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Anabela Mota Ribeiro

Like Someone in Love: o prof. Takashi viveu amando

13.02.21

O prof. Takashi viveu amando – like someone in love.

Todos conhecemos a famosa frase de Camilo relativa a Simão: “Amou, perdeu-se e morreu amando” que me ocorreu assim que pensei no prof. Takashi. Talvez porque este personagem do filme de Abbas Kiarostami, ao contrário do herói trágico de Amor de Perdição, viveu – e vivificou – amando. Talvez se tenha perdido, pelo meio. Mas, se se perdeu, perdeu-se aos olhos de quem?

Vamos por partes.

Like Someone in Love é um filme de um realizador iraniano rodado no Japão, com actores japoneses, em japonês. Que faz um iraniano no Japão?, porquê no Japão?, o que muda por ser no Japão? Não temos tempo, nem é o espaço, para responder às questões da cinefilia. Mas vale a pena, e é preciso, situar o filme para que se perceba o que vim cá dizer.

Os protagonistas, aqueles que ficarão estranhamente in love, são um velho professor de sociologia, reformado, e uma jovem ninfeta, estudante universitária, prostituta.

(Quase fere usar a palavra prostituta para falar de Akiko, de tal maneira o seu perfil, a sua cara não coincidem com o que visualizamos quando se fala de prostitutas. Mas ela é uma dessas meninas, tão tenras que podem ser chamadas de meninas ou ninfetas, que chegam a uma selva como Tóquio e vendem o corpo para assegurar uma certa normalidade no quotidiano; e desse quotidiano faz parte um curso universitário onde estuda, entre outras coisas, a evolução da espécie.)

Uma noite, muito contrariada, ensonada, a mando do patrão, Akiko chega a casa do prof. Takashi para fazer o que se imagina que fazem as meninas que vão a casa de professores reformados depois das dez da noite. Mas neste filme, prodigioso na arte da elipse, nem isso se sabe. Quer dizer, não se sabe o que fazem depois das dez da noite. Numa linha: não se sabe se o sexo é perpetrado. (Estranha palavra me saiu para falar de sexo: perpetrado. Normalmente a palavra é usada para falar de crime. “Um crime perpetrado”. Não é que o sexo, ali, naquele apartamento, seja um crime. Mas talvez, aos meus olhos, fosse um acto deslocado, uma nota fora de tom. Uma estridência.)

O realizador, Kiarostami, deixa à imaginação de cada um se há ou não uma relação sexual entre o prof. Takashi e Akiko.

Eu tendo a dizer que não, não há. Que o sexo não entra na explosão de vida e de desejo que acontece nele, sobretudo nele. Desejo de quê, se não é um desejo de corpo, prazer, se não se manifesta como habitualmente o desejo se manifesta? Desejo de vida. A vida que ela irradia, como um imã.

Também é verdade que o facto de não haver uma relação sexual explícita torna, aos meus olhos, o romance menos incestuoso. Menos ou nada. Não penso na pedofilia ou no incesto ou em palavras graves quando os vejo, aos dois. A apresentação é esquemática, mas é como se o amor ficasse púdico, naquela des-sexualização. Púdico e concentrado na sua essência amorosa. Naquele encontro, eventualmente o sexo introduziria um desencontro. A parte dele que se quer encontrar com ela não é a da pulsão libidinosa. No caso de Akiko, se é o encontro sexual que a leva até Takashi, ela escuda-se nesse ofício. Não se entrega. O sexo seria uma espécie de encontro-desencontro.

Retomo a normalidade das partes.

Ele tinha-lhe feito um caldo de camarão que era especialidade da terra natal dela. Um lugar onde Dezembro era mês de clementinas. Mas ela não gostava dessa sopa. Ele tinha comprado um vinho rosé, que serviu em flutes elegantes. Ela seguiu directa para o quarto e despiu-se peça a peça. Ele quis, sugeriu, precisou dos caminhos do romance, ela quis, sugeriu, precisou de resolver os caminhos do sexo que a tinham levado até ali.

A cena seguinte é na manhã seguinte. Ele leva-a à escola, uma escola onde Takashi tinha sido mestre. Vamos tendo noção de que os caminhos são coincidentes e circulares. Outro capítulo começa então.

Se disser só isto, parece que digo o essencial, e contudo deixo de fora o essencial. Ficam de fora outros protagonistas que ajudam a compreender a singularidade de Takashi e Akiko e a deflagração do seu encontro.

Do lado de Akiko, uma avó que vem da terra para a visitar e que ignora a vida que ela leva (só uma interrupção: pode uma avó imaginar que à mesma hora que telefona à neta esta se prepara para um encontro com um homem que tem idade para ser seu avô?). E do lado do Akiko há também um namorado ultra-ciumento que pretende casar e tê-la como propriedade; evidentemente também este ignora o que Akiko faz depois das aulas.

Do lado de Takashi, há uma fotografia da mulher falecida, um quadro na parede de uma mulher que fala com um papagaio (um lindíssimo quadro de Yazaki em que não se sabe quem ensina quem: se é a mulher que ensina o papagaio a falar, se é o papagaio que ensina a mulher a falar). Uma alusão belíssima daquilo que é o amor: quem ensina quem? A resposta não importa. O que é decisivo é aquele feitiço em que ambos se encontram, o da mulher e o do papagaio, a falar um com o outro, com os olhos – uma fala muda, um olhar magnético.

Quer a falecida mulher de Takashi quer a mulher que olha o papagaio, no quadro, têm parecenças físicas com Akiko. É ela que o nota. Ele concorda. Ela vai mais longe: diz que é parecida com toda a gente. Que várias pessoas lho têm dito. Como se não tivesse identidade própria. Como é a cara de Akiko? Pergunto de outra maneira: que transparece na cara dela?

Isto já me leva ao coração do que quero dizer: Akiko irrompe pela vida de Takashi como uma assombração do lado da vida. Vou ser mais explícita. Se as assombrações vêm do lugar dos mortos, esta vem do mundo dos vivos, e arranca-o, prof. Takashi, a esse sítio triste, desistente do mundo, onde ele parece instalado. E por isso comecei por dizer que ele vive, vivifica, amando. Amando o pretexto exterior que Akiko representa.

Há dois triângulos que consigo gizar olhando para este filme. O primeiro: Akiko, a avó e Takashi. Sublinho isto: a rapariga vai ao encontro de Takashi o que impossibilita o encontro com a avó. Se me perguntar o que representa este homem para esta ninfeta, penso na avó perdida, num amor deslocado de um para outro, e numa sensação de protecção que instantaneamente Akiko transfere da avó para Takashi. Mesmo que no começo ele seja apenas mais um cliente, um homem importante.

O outro triângulo: Akiko, o namorado enciumado e Takashi. O namorado pergunta a Takashi directamente: “Qual é a sua relação com Akiko?”

É uma boa pergunta. Qual é a relação entre os dois? Estão ligados por que vínculo? Numa primeira análise – já vimos que falsa, pelo menos para mim –, por uma relação sexual. Num segundo tempo, podemos pensar numa relação filial – mais plausível, sobretudo se pensarmos num dos triângulos e na transferência que Akiko faz da avó para aquele professor com idade para ser seu avô.

Convém sublinhar esta dimensão: esta não é a clássica ilustração do complexo de Édipo, com um homem com idade de pai e uma menina com idade de filha. Não. Takashi está no ocaso da vida, na idade dos avós que cuidam das feridas dos netos (como ele, de resto, faz, quando Akiko é batida pelo namorado). E ao estar nesse lugar perto do fim está simultaneamente mais próximo do começo, fechando um círculo. Está capaz de se deslumbrar com uma pureza infantil, disponível para o espanto, para se reencontrar com o seu espanto há muito esquecido.

Takashi está disponível para amar. Não com a condescendência e a calma dos amores de uma vida, há muito adormecidos no conforto. O prof. quer a fúria intempestiva, a deflagração, o sarilho, a vida perigosa a espreitar por todos os poros, aquela urgência dos que se encontram na primeira noite. Uma vida viva. Um último clarão antes do fim. Comummente chamamos-lhe paixão. Mas eu, ainda que erradamente, não consigo chamar-lhe isso. Chamo-lhe amor. Uma forma de amor que permite recuperar os versos de Chico Buarque:

“Vou, uma vez mais correr atrás de todo o meu tempo perdido... (...) E mais à frente, na mesma canção que Chico escreveu para o Sérgio Godinho:

“Um pedaço de vida, vida

A vida que eu não gozei

Eu não respirei

Eu não existia

Mas eu estava vivo

Vivo, vivo

O tempo escorreu

O tempo era meu

E apenas queria

Haver de volta

Cada minuto que passou sem mim…"

Cada minuto que passou sem mim. É isso, o tempo passou sem ele. Talvez desde a morte da mulher. Não o sabemos. Em qualquer caso, um tempo que era seu e que não viveu.

Volto a perguntar: que relação há entre eles? Eu vejo em Akiko a volta dessa vida em que se respira e existe e se está vivo. Não importa, parece-me, ser correspondido nesse amor. Como já disse, ela é o pretexto exterior do que ele sente. O problema no amor de todos os dias é que precisamos da palavra, do gesto, da concretização, do que torna o amor mais real e por isso mais finito. Precisamos da noção de que o outro nos acompanha minimamente, e que se encaixa razoavelmente na ideia de amor que temos na cabeça.

Estou a medir bem as minhas palavras: estou a dizer “a ideia de amor que temos na cabeça” e não “a ideia de amor que temos no coração”. O que sentimos não tem a ver com o pensamos – isso toda a gente sabe. O coração é um músculo involuntário, que trepa por caminhos ínvios, desconhecidos de nós mesmos, fogo que arde sem se ver... tudo o que faz parte da mitologia.

Vou para o fim do filme. O namorado, enlouquecido, atira uma pedra para a janela de Takashi (nessa altura ele já deduz, com alguma certeza, a natureza da relação entre a namorada e o velho professor; pobre rapaz que não sabe que o âmago lhe escapa, e se alicerça nas aparências).

Foi com muita surpresa que revi o filme e que percebi que ele atirava uma pedra. Na minha imaginação, desde sempre, acontecia algo muito mais terrível e maravilhoso. O namorado fazia deflagrar uma bomba, à entrada da casa do professor, e os estilhaços chegavam ao andar de cima, ao apartamento onde estavam refugiados os dois amantes (vou chamar-lhes assim pela primeira vez: amantes como aqueles que se amam, e não amantes que trocam de corpo e de respiração).

Na primeira vez que vi o filme eu cheguei a achar que eles poderiam morrer depois dessa deflagração. Kiarostami, mais uma vez, não deixa perceber, não revela tudo. Entrega ao espectador a possibilidade de sonhar, de se projectar, de pôr dentro da caixa o que quiser.

Portanto, eles até poderiam morrer na sequência da deflagração. Porém, o que me ocorreu é que eles ficariam vivos, entrincheirados, ele a amá-la.

Ela?, não sei bem. Tenho a presunção de compreender melhor a cabeça de um homem e de um homem com idade para ser meu avô. Ela é a chama. Faço um retrato limitado, redutor e passivo de Akiko, bem sei. Mas neste contexto penso nela como a chama. Isso basta-me. Um dia, apagar-se-á. Mas até lá... Até lá, in love, o prof. Takashi vive amando. E canta

que sera, sera...

O que for, será, diz a canção. Que importa o futuro? Que importa a mortalidade? O amor, essa chama, finta o medo da morte. Essa chama é o contrário da morte, é a própria vida. Não há tempo para sentir a angústia da morte. Há um amor para viver.

 

 

 Texto apresentado no ISPA, em Lisboa, no congresso "Amor(es), desamor(es)... e talvez sexo!", em Maio de 2014