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Anabela Mota Ribeiro

Carmen Miranda

14.02.21

Foi a pequena notável. A sereia da América do Sul. A mulher do tutti-frutti hat. Um ícone do século XX. Uma cantora brasileira que acabou entertainer. Uma entertainer de Hollywood que eventualmente cantava. Nasceu em 9 de Fevereiro de 1909. Há cem anos. Morreu com um espelho na mão, sozinha no seu quarto. Morreu num pequeno hall de um quarto que era maior do que um apartamento. Uma espécie de montra de perfumaria, onde se alinhavam centenas de frascos de perfume. Havia um cigarro quase intacto no cinzeiro. A maquilhagem retirada. O roupão vestido. Tinha dito boa noite à macacada lá em baixo, na sala. (Entrava no palco e dizia: “Oi, macacada”). E tinha deixado, em baixo, os amigos e a família. Subido para o quarto. “Dirigiu-se à escada jogando beijos gerais e desapareceu”. Enfim, sós. Morreu. “Uma oclusão das coronárias fizera explodir uma vasta área de seu coração – um infarto maciço”. Ela tinha um “quequequé-catrai” – um quê qualquer que atrai. Carmen Miranda, Maria do Carmo, morena como a Carmen de Bizet, “olhos verdes e muito vivos, boca rasgada, dentes brancos e perfeitos, farto cabelo castanho-claro. Pequenina, é verdade – 1,52 metro e nunca passaria disso –, mas um pitéu”. Ruy Castro descreve-a assim na biografia, “Carmen”. É ele também que desencanta o quequequé-catrai do humorista Barbosa Junior. Há outras maneiras de dizer que Carmen Miranda tinha carisma. Por exemplo: era uma it girl. Tinha esse je ne sais quoi que fazia com que só se olhasse para ela quando aparecia numa fotografia ou num plateau. Foi a inventora de sandálias com plataformas de 13 centímetros, ou 12,5, ou 15. Usava turbantes onde cabia tudo – “Olhei para um candelabro em minha casa e tive uma ideia para um turbante”. Cantora e entertainer. Nasceu há cem anos numa terra de nome impronunciável para um americano: Várzea de Ovelha. (Concelho de Marco de Canavezes). Nunca lá voltou, americanizado ou não. Seria, desde o berço, carioquíssima. Durante muito tempo foi a filha do barbeiro e da lavadeira. Muito antes de ser a pequena notável, foi uma pequena que foi aprendiz no atelier da Madame Anaïs; catava grampos no chão e varria retalhos. E cantava. Ganhou o primeiro salário numa casa de chapéus, La Femme Chic, numa rua do Rio onde paravam as francesas – a rua do Ouvidor. Caruso, o dono, contratou-a por ser “alegre, bonita e comunicativa”. E porque era capaz de vender qualquer peça. Ela mesma usava chapéus “da sua invenção” e aos fins de semana “encontrava tempo para costurar seus próprios vestidos”. E cantava. Vendeu gravatas e camisas na Principal. Era por essa altura uma jovem mulher, ciumenta e possessiva, que chamava a um remador do Flamengo “o seu pedaço”. Dedicou-lhe fotografias assim: “Para o meu bestalhão, para que, olhando para essa linda boquinha, me troque menos pelas outras vacas. Bituca”. Acede, com ele, a camarotes de honra, circula com “soberana naturalidade” em meios privilegiados. “Para todos os efeitos, ela era a namorada de Mario Cunha, não a caixeira da loja de gravatas. Na verdade, Carmen conquistava qualquer meio com seu temperamento radiante, cómico, espontâneo e franco”. Perdeu com ele a virgindade; sentira “algo parecido com uma dorzinha de dente; culpa, nenhuma”. Era o tipo de rapariga que fica radiante quando a menstruação aparece, aos 12 anos. Poderia ter sido, apenas, a “Vênus de Milo” do seu pedaço. Uma moça que acaba casando e tendo filhos. O pedaço devia ter determinadas características: ser bonito, alto, forte, e burro – Ruy Castro dixit, o biógrafo e o apaixonado. (O escritor conta à Pública, em entrevista na sua cobertura, no Rio de Janeiro, que sentiu ciúme deste remador, quando imergiu na vida de Carmen Miranda…). Mário tinha cerca de 30 centímetros mais do que Carmen, Carlos Alberto também, Carlinhos Niemeyer também, John Wayne, como é sabido, também. Acabou por casar com um homem feio, baixo, coxo. “Pois é. Namorei tantos homens bonitos e fui me casar com um manquinho!”. Porquê? Porque foi o único que a pediu em casamento. E porque queria ser mãe e estava prestes a completar 39 anos. Quando casou, disse “vou” em vez de “sim”. Na véspera tinha dito em família: “É com esse que eu vou”. Casou-se com um “cabelo cor de laranja sob um véu de flores e lantejoulas, um conjunto de lã branco e plataformas em azul e rosa com tachinhas brilhantes”. Mas adiantamo-nos. Uma pergunta essencial: Quando é que Carmen passou a ser Carmen Miranda? “Essa foi a primeira pergunta que eu me fiz quando decidi escrever sobre ela. Descobri que ela morou dos seis aos 16 anos na Lapa, exactamente na época em que a Lapa estava se formando como bairro que seria lendário na primeira metade do Séc.XX. A Lapa tinha essa coisa dúbia, de ser um bairro muito católico, conservador durante o dia, e de ser um bairro boémio durante a noite. Tinha um convento, um colégio de freiras, uma igreja, um seminário, e os cabarets, as boites, os hotéis, os restaurantes”. Na Lapa, escreve na biografia, “Carmen testemunha, ao se construir como pessoa, os esplendores e as misérias, as euforias e as solidões, os vícios e as virtudes de seus habitantes”. Para perceber Carmen Miranda, a sua alegria esfuziante, a malícia do olhar, o requebrado das cadeiras [ancas], é preciso voltar atrás no tempo e andar nas ruas da Lapa. Vamo lá. A Lapa de 1920 era, segundo Castro, uma Montmartre. “Surgiram hotéis com portas de bronze, mensageiros de luvas. Marcavam-se encontros para as três da manhã, em restaurantes que serviam lagosta ou canja de galinha. Discutia-se Mallarmé ao som de valsas francesas. A cocaína era vendida às claras”. As prostitutas cruzavam a rua, os bordéis ficavam lado a lado com moradas de família. Os navalhistas e os proxenetas (cafetão, era o termo) andavam por ali. “Uma deliciosa atmosfera canalha”. Uma deliciosa forma de ser canalha que está também em Carmen, a desabrida, a desbocada. Aquela que encarna o estereótipo da latina tempestuosa que atira com o sapato (e a plataforma) ao namorado, do outro lado do quarto. A que diz “meu bem”, “filhote” e “meu nego” para começar a conversa. Montmartre a resvalar para Pigalle, conclui Castro. A mãe era uma católica fervorosa que cogitou a possibilidade de a fazer freira. Carmen frequentou um colégio de freiras e saiu de lá com a língua afiada. “Disparava palavrões como se fossem vírgulas”. Dizia caralho e puta que o pariu como quem diz oi, queria um copo de água gelada. Uma pândega. Punha uma enfermaria a rebolar a rir, e os médicos com medo que os doentes rebentassem os pontos. E seduzia as mulheres dos homens que a cobiçavam. Era generosa. Irradiava. Quando é que tudo começou e ela passou a ser Carmen Miranda? Quando gravou Taí. E o verso continua, já com instrumentos de sopro e bateria de Carnaval: eu fiz tudo pra você gostar de mim. Explodiu imediatamente antes do Carnaval, em 1930. Era uma moça, (não era uma rapariga, que isso não é maneira de chamar quem tem boa reputação) quando a ouviram cantar na pensão que a mãe tinha em casa. Serviam refeições, preparavam marmitas. Depois deu-se um encontro casual com o autor da música, um encontro fortuito, numa casa de discos. Por fim, a gravadora era do outro lado da rua. Joubert, o autor, falou da “sensação inédita de estar vendo a cantora, como se ela estivesse dentro da vitrola”. E quando a viram ao vivo, havia também esse “despropósito de dengues” (palavras do escritor Marques Rebelo). Na adolescência alimentou o sonho de ser uma starlette. Mandou fotografias para concursos, engrossou filas intermináveis, foi recusada em castings que prometiam Hollywood. Apresentou-se em salas para amadores, foi apresentada nas estações de rádio. “No dia 13 de Setembro de 1930, Carmen estava na coxia do Teatro João Caetano pronta para cantar na nova revista musical da cidade. Até ali, os cantores tinham de se tornar estrelas do teatro de revista para serem convidados a gravar um disco. Carmen começara por cima, pelos discos”. Inaugurava-se o reinado das Rainhas do Rádio. Salvé, salvé. Era a sua primeira plateia “de verdade”, nove meses depois de o disco ter sido lançado e ela, da noite para o dia, se ter transformado numa sensação. Ruy Castro considera que Carmen era “tecnicamente uma cantora extraordinária. Mas no Brasil a música popular estava apenas começando a ser vista como uma coisa importante. Ela pegou o rádio quando o rádio estava começando, a indústria do disco quando o disco estava começando, o cinema musical brasileiro quando o cinema estava começando. Os cassinos: foi a primeira artista brasileira a se apresentar e a estabelecer um parâmetro de salário e de qualidade de apresentação. Sem falar no Samba, que a gente acha que sempre existiu, mas não; e decididamente não tinha as marchinhas de carnaval como passou a ter. Grande parte da fixação desses géneros musicais foi feita por ela. Pelo jeito de ela cantar. Foi muito influente. Precursora”. Mas com 21 anos e a vida toda, literalmente, à sua frente, podia ainda ser tudo. Podia, inclusive, ficar por ali e ser, apenas, uma cantora de marchinhas de carnaval. Ainda não tinha inventado a famosa baiana com um cacho de bananas na cabeça, nem tinha como sonhar com o technicolor de Hollywood. E nessa altura, Carmen disse isto numa entrevista: “Se eu não fosse artista de rádio, é porque me teria casado aos 15 anos e já teria uns cinco filhos. Seria uma boa dona de casa, bem burguesa, dessas que lêem os jornais e as revistas de moda e, quando saem, vão à manicure. Mas o que você quer saber é o que eu desejaria ser – e não o que eu não fui. Pois olhe, se não fosse artista de rádio, onde ganho bem, aceitaria qualquer outra profissão que me divertisse”. Ter uma carreira ou ter uma família foram sempre alternativos na vida de Carmen Miranda. (Perguntem à Madonna, no início do século XXI, como é que ela faz, e imaginem o quadro de Carmen, quase cem anos antes. Ruy Castro equipara o estatuto de celebridade de uma e de outra). “O problema era trocar a segurança profissional por alguém, como Carlos Alberto, que mal conseguia sustentar-se a si próprio. E havia também a questão da sua própria família. Embora todos os irmãos trabalhassem, Carmen se sentia responsável por eles e por sua mãe. Para completar, sua carreira não parava de crescer” (no livro “Carmen”). Mas antes dessa opção final, um casamento desastroso que os amigos consideraram ser “o princípio do fim de Carmen Miranda”, muita diversão (e muita música) iriam passar debaixo da ponte. Muitos banhos de sol na praia da Urca (quando ficou famosa deixou de ter sossego para aí fazer o seu crochet!) ou os banhos de sol na “piscinona” (como lhe chamou Susana de Moraes, filha de Vinicius, que aí aprendeu a nadar) da casa americana. Muitos anos antes do derradeiro close up, com a mítica Sunset Boulevard a dois passos, Carmen posava com uma alegria que enfeitiçava. Um íman. Os mecanismos da atracção? Que é uma maneira de perguntar: O que é que a baiana tem? A canção foi escrita pelo jovem Dorival Caymmi que lha apresentou em casa, quando ela já era uma estrela. Recebeu-o como recebia todo mundo: “de plataformas, short cavadinho nas virilhas, camisa amarrada na cintura e um lenço colorido na cabeça”. Se só se pensa em Carmen Miranda de penduricalhos ao pescoço e uma salada de frutas presa ao cabelo, eis como ela andava por casa. Pelo menos antes de a baiana passar a ser uma segunda pele. A baiana de Caymmi: “Tem saia engomada, tem/sandália enfeitiçada, tem/ Tem graça como ninguém/Como ela requebra bem”. Era uma baiana inspirada nas negras e mulatas da Baía. Antiquíssimas. “A primeira baiana estilizada de que se tem notícia no teatro de revista é em 1892”. A baiana de Carmen seguia o figurino da letra de Caymmi e tinha os toques pessoais que fazem a diferença. “A bata, muito sensual, deixava entrever os ombros e o estômago (mas não o umbigo). A gargantilha dourada com colares de contas graúdas e a torrente de balangandãs (rosários, correntes). O turbante ainda era modesto para os padrões futuros, mas já levava apliques de pérolas e pedras”. Um bruá. Um sucesso. “É só abrir a boca e pedir. Quanto, Carmen?”. Não foi exactamente isso que lhe disse Lee Schubert. A proposta que lhe fez foi razoavelzinha. Mas não foi por causa da grana que Carmen o seguiu até aos Estados Unidos e mudou de vida. Ele, Schubert, tinha viajado até ao Rio num daqueles transatlânticos perante os quais se estanca. Ruy Castro descreve-o como “a França flutuante”: o mais bonito, o mais rico e o mais chique que Carmen já vira. “Já se habituara ao dinheiro, mas era a primeira vez que se defrontava com a opulência”. Shubert, monsieur le proprietaire de meia-Broadway, e há três gerações, empresário dos Irmãos Marx, Fred Astaire, May West ou Noël Coward, viu-a no cassino da Urca e contratou-a no dia seguinte. “Como não entendia o que Carmen estava dizendo, foi o geral que o interessou: a gesticulação da cantora, seus olhos, seu magnetismo, seu ritmo e aquela roupa maluca, com o turbante, os colares e os sapatos”. Schubert não se enganou. A proposta era para uma produção a estrear daí a semanas na Broadway, uma excursão por cidades americanas, apresentações em rádios e nightclubs. Ela já ganhava dois mil dólares fixos por mês. Mas aquele era outro lance. E as hipóteses, depois de dez anos de carreira, eram prossegui-la no Brasil ou desistir dela e ter um casamento com cinco filhos. Foi. America, here I go. A imprensa local, o Brasil inteiro despediu-se da sua estrela e empregou palavras como missão e embaixada. “Carmen vai dar ao Samba um cartaz mundial”. Fez-se um forrobodó a bordo do navio, “Vão entrando, nada de cerimónias”, a cabine apinhada de gente, música e requebrado dias a fio. Uma espécie de cabine dos Irmãos Marx mais espaçosa e com mais gente. Os Garotos da Lua, os seus músicos, seguiram com ela. “Todo o navio vibrou, e mais de metade dos passageiros era de americanos. Ali, Carmen convenceu-se de que não havia nada a temer”. Ela tinha “uma garganta de ouro, uma fachada bem jeitosinha e um corpinho de se tirar o chapéu” (Fernando Sabino), mas não era uma vamp misteriosa, que avança de cigarro na boquilha, como as divas a que a América estava habituada. Era uma garota bacana. E uma comediante. Quando à chegada lhe perguntaram que palavras sabia dizer em inglês, sentada em cima do baú, de pernas cruzadas, respondeu: “I say money, money, money, I say hot dog, I say yes, I say no, I say mens, mens, mens”. Gargalhada geral. Com um sotaque que a fazia dizer mónei em vez de money, e que manteve, mesmo quando o inglês já era perfeito. Ensaiava a sua personagem americana. Distribuía sorrisos, malícia, sensualidade. Dizia souse [bêbedo] em vez de south em South American Way. Anos mais tarde, as graças incidiam sobre ela mesma, explorando as suas imperfeições. “Dizem que sou careca, mas vejam só o meu cabelo… É tingido!”. Ou: “Esta é a minha cicatriz preferida”. Seis minutos foi de quanto precisou para conquistar o público americano no primeiro espectáculo em que se apresentou. Um espectáculo teste em Boston, com a dupla Abbott &Costello, doze dias depois de ter chegado. O porquê do sucesso? O de sempre. “Cantava com as mãos, os olhos, os quadris, os pés. “Um repertório de meneios, dengos e chamegos que dispensavam tradução”. Outras maneiras de o dizer: “A sereia da América do Sul”. “A labareda latina”. “Lança-Chamas”. “The brazilian bombshell – a granada brasileira”. (Títulos de jornais). Ela resumia assim a aventura americana: “It’s a maravilha!”. Enquanto isso, para se ter uma noção do sucesso, Josephine Baker estava no casino da Urca, a fazer uma imitação de Carmen Miranda – “perfeitamente horrível”, comentavam. Ruy Castro escreve na biografia: “As coisas estavam acontecendo muito depressa para Carmen. (…) Nas três primeiras semanas, tivera matérias de arromba em revistas como a Life, Look, Vogue, Esquire, Pic, Harper’s Bazaar e fora capa do Sunday Mirror. Hollywood bateu à porta”. Armazéns como o Macy’s e o Saks passaram a vender sapatos com plataforma e turbantes. Tudo nela era “exótico, vivaz, diferente”. “Subira ao palco pelo menos 416 vezes em pouco mais de meio ano nos Estados Unidos – uma média de 2, 27 shows por dia, todos os dias”. Está a soar bem demais? Benzedrine é a palavra dissonante. Não era considerado uma droga, tomava-se nas calmas, sem alarido. “O caso é o seguinte: preciso dar uma entrevista de manhã, depois tenho que tirar uma foto, são onze horas, depois tenho um programa de rádio ao meio dia, depois tenho não sei o quê, depois tenho uma matiné às quatro, depois tenho que filmar às sete… Estou aqui quase morrendo de sono, e toma isso que você vai aguentar. Não era nenhuma angústia psicológica, apenas uma questão mecânica, técnica: como ficar acordada e responder a todas as solicitações. Acho que Carmen foi muito feliz até à dependência se instaurar definitivamente, o que calculo que tinha sido por volta de 1947/48. Em 1949, na excursão a Londres, já foi obrigada a tomar anestesia para conseguir dormir! Numa segunda etapa, instalou-se a dependência do álcool” (Castro em entrevista à Pública, no sofá da sala; memorabilia de Carmen espalhada pela casa). Voltou ao Rio. Disseram que voltou americanizada. Receberam-na com reservas. Ela parecia uma caricatura de si própria. “Pouco autêntica”. Encarnava o personagem de que estava refém nos Estados Unidos. Cantou mais tarde: “Posso lá ficar americanizada?/ Nas rodas de malandro, minhas preferidas/Eu digo é mesmo “Eu te amo”, e nunca “I love you”. Voltou aos Estados Unidos, com a mãe, dona Maria. A família à volta. “São centenas de parentes, todos sustentados por ela” – escandalizava-se Groucho Marx, o sovina, quando foram colegas de plateau. Voltou do Rio para os estúdios da Fox. Foi durante anos a sua star. Abriu o filme Down Argentine Way, com quatro quilos de bijuteria e tamancos de meio metro. “”Ela frustrou os publicistas da Fox, que esperavam vê-la desembarcar envolta em peles, com um staff de pelo menos meia dúzia. Em vez disso, chegou com a mãe, o irmão e uma cozinheira. Depararam-se com o que consideraram um quindim, um merengue, um doce-de-coco humano”. Com os pés em Hollywood e o cocuruto nas nuvens, Carmen Miranda ainda era o tipo de pessoa que acende uma vela e reza com a mãe antes da primeira filmagem. O seu estilo? “Era uma comediante, uma grande clown, coisa raríssima entre mulheres atraentes. Capaz de vestir uma fantasia absurda, à base de bananas e abacaxis, e fazer rir – e, ao mesmo tempo, fazer com que os homens quisessem descascá-la e comê-la”. Tinha um peito grande. “Que é que vou fazer com esses mamões?”. Mas o principal problema, era o nariz. “Não gostava do nariz, quase destruiu o nariz numa operação plástica. Sei disso porque sou muito amigo da sobrinha dela, filha da Cecília (irmã). Mas eu tenho impressão que ela se sentia bem. Ela usava aquele corpo, né? “ Passou a ser vista como uma comediante de cinema que eventualmente cantava, e menos como uma cantora de discos e do rádio. O Brasil, e quem ela era no Brasil, tinha ficado para trás. Carmen alimentava-se de uma vontade infantil de agradar. E de cápsulas mágicas, claro. Para dormir e para acordar. Acordava a horas, era a primeira a chegar à maquilhagem, gravava à primeira. Resistia aos avanços do produtor quando este tentou induzi-la a fazer-lhe sexo oral: “Mas senhor Zanuck, eu não estou apaixonada pelo senhor”. E debitava pérolas deste calibre quando lhe apresentaram o filho de Aga Khan: “Se aquilo é príncipe, meu cu é pêssego da Califórnia”. O noivo brasileiro a que sempre aludia nas entrevistas, um moço fino, perdeu-se pelo caminho. Tinha um caso não assumido e mal resolvido com o líder dos Garotos da Lua, Aloysio de Oliveira. Engravidou dele, fez um aborto. “Observava essa azáfama de casamentos, gravidezes e partos das suas colegas. Todas eram mais novas do que ela. Aos 34 anos, a sua vida não tinha nenhuma perspectiva nesse front. Ela também trocaria o cinema, a carreira e o sucesso por um casamento e filhos – se tivesse tal escolha”. E não teve. Aloysio não era o homem, aquele não era o momento. Os homens da vida de Carmen nunca coincidiram com ela nem com o momento. Convenhamos que não era uma mulher madura emocionalmente… “Querido, fazem já uns bons sete anos que não pego numa pena para escrever uma cartinha de amor. (…) Ela se sente uma garota muito safadinha que topa todas as loucuras que ele qué. Mas também brigaria com ele “pra caralho”. (…) E ovinhos quentes pela manhã. Três minutos e meio. E os dez dias na minha casinha, que dias, meu amor, como maridinho e mulherzinha. (…) Meu corpinho todo cheirosinho, minha bundinha bem gordinha, meus peitinhos bem fofinhos para ele deitá a cabecinha dele e minha boquinha toda cheia de beijinhos. Da sua Rolinha”. Também não ficou com este, um Niemeyer. Casou com um manquinho, assistente de produção, que lhe mandava flores e comprava jóias – com o dinheiro dela. David Sebastian. A guerra das rosas começou cedo. “”Já no primeiro mês, Carmen inaugurou a prática de, no meio de um bate-boca, tirar a aliança do dedo, jogá-la na privada [sanita] e dar descarga. Sebastian sempre lhe comprava uma aliança nova – com o dinheiro dela”. A juntar à farmácia particular que transportava nas viagens, começou a entrar na copofonia. Vinicius de Moraes, colocado pelo Itamaraty em Los Angeles, “deu-lhe aos boas vindas ao clube”. Dave também era “alcoólatra”. Mas verdadeiramente, o problema era, segundo Castro, “os red devils, como os íntimos se referiam ao Seconal; e os bennies, abreviatura carinhosa de Benzedrine”. Em resumo, vivia dopada. E no ecrã começou a aparecer ausente, desgastada, envelhecida. E inchada. Engravidou. Finalmente, aquele casamento servia-lha para alguma coisa. Aborto espontâneo. O próprio marido fez o relato: “Carmen perdeu o bebê em Nova York. Assim é a vida”. O biógrafo acha que Dave errou na simplificação. Além do cansaço, havia os 39 anos de Carmen, os soníferos e estimulantes, e o álcool. Sebastian foi expulso do quarto de Carmen mas não da sua vida – “Não há divórcio para católicos”. Mas acordava e dizia: “Good morning, stupid”. E continuou a correria extenuante em que vivia há nove anos. Era uma “mulher-maratona”. “Não parava porque não era possível parar – havia um contrato a cumprir e um avião a tomar, e uma plateia pronta a ouvir “Mamãe eu quero” e a rir com a história do cabelo, e talvez porque fosse melhor estar na estrada do que em casa”. Mas parou. Houve um dia em que o corpo disse stop. Foi internada, desintoxicada, foram-lhe aplicados electro-choques (indicados “para os casos agudos de depressão, que já não respondiam a sedativos como o Demerol”). Fez uma viagem ao Brasil, recuperou um pouco. Voltou aos Estados Unidos, recomeçou. Teve falhas de memórias. Esqueceu a letra das canções. A sua última batucada, que é também o título de uma das suas canções, resume-se nisto: estava no Jimmy Durante Show. O corpo tinha-lhe dado “pequenos avisos de que havia um grande vulcão preparando-se para a erupção final”. Mas foi ignorado. Show must go on. E houve um momento, na gravação, em que ela cai na vertical, e o bailarino a ampara. Falta de ar, continuemos. “Mais um corte, mais uma pausa. Carmen, cansada, mas contente, aparece saindo de costas por uma porta, dançando com o Bando da Lua, jogando beijos e despedindo-se de Jimmy, do público e da vida”. As imagens estão hoje disponíveis no youtube. Exauriu-se. O corpo implodiu. O grand final foi em casa, a sós, horas depois desta despedida. Um “infarto maciço”. Com o espelho na mão, os frascos de perfume, o hall. Tinha 46 anos. Foi enterrada no Brasil, como quis. Regressou a casa com a bandeira brasileira a envolver o caixão. “Alguns se chocaram com o fato de Carmen estar vestida de vermelho, penteada e maquiada. Até a morte era em technicolor” – escreve Ruy Castro. Mas seria possível que esta pequena aparecesse descomposta? Publicado originalmente no Público em 2009