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Anabela Mota Ribeiro

José e Ricardo Sá Fernandes

31.05.21

Há quem os deteste e pergunte: “Quem é que estes tipos pensam que são?”. Há quem os estime e aplauda a coragem de dois cidadãos sem medo. (Por acaso, num escritório que foi de Ricardo e depois de José havia uma procuração assinada por Humberto Delgado, o general sem medo, emoldurada, à entrada). Ricardo e José Sá Fernandes são irmãos e enfrentaram juntos uma muito comentada – e julgada – tentativa de corrupção. Antes desse episódio houve outros, do túnel do Marquês à defesa de Carlos Cruz no processo Casa Pia, que viveram em separado, e que fizeram deles figuras polémicas. Uma coisa é certa: ninguém lhes é indiferente. Eles gostam disso.

Cresceram num quinto andar da Avenida de Roma, numa família burguesa. Estudaram Direito. Era previsível que Ricardo, o mais velho, fosse advogado. Era menos previsível o que José, o Zé, faria com o seu destino. Um replicou a família de origem, o outro deu o salto para um quadro de vida diferente. Um notabilizou-se por ser o advogado de alguns dos processos mais mediáticos da justiça portuguesa, o outro pôs acções populares e acabou vereador da Câmara Municipal de Lisboa. Os Sá Fernandes são os manos inseparáveis, sem fissuras na relação? Ou os manos Sá Fernandes são uns tipos irritantes cheios de pedras no caminho?

Num domingo à tarde, juntaram-se em casa de Ricardo para falar dos avós e dos pais, da vez em que o Zé esteve preso, da relação com a autoridade, do quanto se admiram, do quanto se gostam, das diferenças que os separam. Quando José chegou, Ricardo abriu-lhe a porta e deram um beijo na cara. Mas como é que dois irmãos se haviam de cumprimentar senão com um beijo na cara? Durante a entrevista sentaram-se em cadeiras diferentes, porque o Ricardo pediu para ficar na sua cadeira de sempre – uma cadeira individual. Há coisas que não sabem um do outro. Mas sabem o essencial. E sabem que contam um com o outro.      

 

 

Qual era o objecto da vossa disputa quando eram pequenos?

José – Era o jogo das moedas. Era um futebol de moedas. A minha equipa era o Estrela Nova, a dele era a Armada Invencível.

Ricardo – A bola era uma moeda de um centavo. Tínhamos moedas antigas e estrangeiras, que eram os jogadores. Tínhamos de meter golos um ao outro.

José – Ele nunca me deixava ganhar.

 

Era suposto que o deixasse ganhar?

J. – Era. Eu jogava melhor. Ele fazia batotice. Não me deixava ganhar porque era o mais velho.

R. – Abusava da situação de ser o mais velho, eventualmente.

 

Afinal quem é que jogava melhor?

R. – Ele tinha mais jeito. Isto passa-se quando eu tenho 12 anos e ele oito, quando eu tenho dez e ele seis. Eu tinha mais força. Quando a diferença de idades foi ficando esbatida (ou seja, quando a distância psicológica foi diminuindo à medida que fomos crescendo), a questão deixou de ser pôr. Esse jogo era um grande polo de atracção e de conflito. Adorávamos jogar esse jogo e discutíamos por causa desse jogo.

 

Jogavam só um com o outro?

R. – Não. Jogávamos em equipa. No prédio havia vizinhos que tinham também as suas equipas. O Manuel Pinho [ex-ministro da Economia] também tinha [equipa]. Mas jogava pouco, jogava mal. Isto foi uma coisa que aprendemos com um tio nosso, irmão mais novo da minha mãe, que tinha inventado este jogo com os colegas.

J. – Um dos colegas não era o Basílio? O Basílio Horta.

 

A versão pobre disso não é jogo das caricas? Jogavam isso com moedas, algumas estrangeiras. Diz qualquer coisa sobre o acesso que tinham a essas moedas, o vosso estatuto social.

R. – Sim. Algumas – ainda no outro dia as vi numa caixa – eram moedas das colónias. Angola tinha moedas, suponho que Moçambique também. E pesetas, francos, libras.

J. – Caricas era mais na praia. Fui mais de caricas do que o Ricardo.

R. – E fazíamos batalhas de soldadinhos. Atirávamos um berlinde sobre os soldados dos outros; quando caíam, quando viravam, morriam.

J. – Tínhamos um soldado, que era o nosso grande trunfo, um soldado deitado com uma espingarda. Era difícil deitá-lo abaixo... Ele já estava deitado. [riso]

 

A vossa resposta foi a de duas crianças. Homens adultos, quando olham para quem foram, o que é que acham que estava no centro da vossa disputa? A atenção de adultos? A rivalidade entre dois irmãos?

J. – Nunca senti isso. Não tivemos grande disputas no resto da vida.

R. – A circunstância de ele ser o irmão mais novo marcou-nos para a vida. Continuo a olhar para ele como um irmão mais novo.

 

De quem deve tomar conta?

R. – Há um sentimento de protecção, sim. Hoje há pessoas que acham que ele é mais velho do que eu...

J. – Quem é que acha isso? [gargalhada]

 

Sempre sentiu essa protecção do Ricardo?

J. – Sim. Havia também uma grande admiração por ele.

R. – Depois há o percurso das pessoas. Os nossos pais separaram-se quando éramos adolescentes. Isso teve repercussões económicas grandes na nossa vida. Estávamos habituados a ter uma vida burguesa. Nesses momentos, o mais velho tende a aumentar a dose de protecção sobre o mais novo.

 

A ser o homenzinho da casa?

R. – Sim. A separação apanha-me na faculdade, a nossa irmã a entrar na faculdade, e o Zé mais abaixo. Não imediatamente, mas a situação gerou uma necessidade de eu ir trabalhar, de a minha irmã ir trabalhar. E a possibilidade não se pôs em relação a ele. Estamos a saltar um elemento muito importante: a irmã que está no meio.

 

Vocês são “os irmãos Sá Fernandes”. A vossa irmã tem um percurso mais discreto. É possível compreender a vossa relação sem falar dela?      

J. – A minha irmã é o equilíbrio.

R. – É uma pessoa muito sensata, ponderada. É juíza, magistrada na Relação de Lisboa. É de um extraordinário bom senso – coisa que nós às vezes não temos.

 

Quando foi o caso Domingos Névoa, falaram com ela? O empresário do BragaParques foi julgado por tentativa de corrupção; em causa estava uma permuta de terrenos entre o Parque Mayer e a Feira Popular acordada com a CML. 

R. – Falámos com ela depois.

 

Não sei se podiam, por razões profissionais, envolvê-la antes. Falar com ela antes.

R. – Não falámos antes exactamente porque ela é juíza. Achámos que era uma coisa que a podia [beliscar]. Mas depois ela acompanhou toda esta história, deu-nos todo o apoio. No momento inicial, até isto ter rebentado, ela não sabia o que se estava a passar.

 

Sentiu-se excluída?

R. – Não. Mas [retomando o ponto]: não é possível compreender-nos sem compreender a posição da minha irmã no meio.

J. – Ela tinha de nos aturar aos dois. Eu com as coisas do traquina mais novo, e o meu irmão com as coisas do traquina mais velho.

R. – Foi sempre um elemento de agregação. Eu estou mais vezes com a minha irmã do que com o meu irmão. E o meu irmão está mais vezes com a minha irmã do que comigo. O meu irmão janta todas as semanas com a minha irmã. Não janta comigo. Eu não o via há várias semanas. É o reconhecimento que temos dessa ponderação que nos faz [estar perto dela].

 

Falam-se muito, os dois?

J. – Falamos.   

R. – Se tivéssemos, entre os três, de dizer: “Qual é o elemento mais forte desta família”?, é evidente que é ela, que não somos nós.

J. – É mais fácil [jantar com a minha irmã]. Tem uma vida equilibrada, estável, está sempre lá a horas [riso]. O Ricardo tem uns horários estrambólicos.

R. –Talvez isto tenha tido a ver, também, com a separação dos nossos pais, com a forma como crescemos. Foi uma separação um pouco conflituosa. Deu-nos uma robustez, uma coesão entre os três. Muito cedo formámos um bloco. Às vezes acontece, mas é raríssimo haver uma discussão entre nós.

 

Como é que era a vossa vida no período em que estavam os cinco em casa? São já crescidos, muitas coisas estão já estruturadas quando os vossos pais se separam e formam um bloco para enfrentar o cataclismo.

J. – Fomos todos surpreendidos com isso.

R. – Há aquelas separações que se anunciam, que se vão arrastando. Nós não notámos nada. Até ao momento da separação...

J. – Até ao próprio dia. Vivíamos uma vida normalíssima.

R. – Era uma família de classe média. A minha mãe era de Lisboa, tinha uma família grande. A família do meu pai era do Porto, grande. Vivíamos muito ancorados nas famílias, com muitos tios, tios-avós, primos. O que é que querem que eu diga? A minha infância, a minha adolescência, foi a de uma família burguesa, urbana. Até ao momento da separação, não sentimos problemas económicos. Eu frequentava um liceu, os meus irmãos frequentavam colégios particulares. A minha irmã o Sagrado Coração de Maria, o meu irmão o São João de Brito. Os nossos pais podiam propiciar isso. Não sou capaz de fazer um retrato impressivo de como era para trás. Diria que era normal, corrente, feliz.

J. – E presente. Almoçávamos e jantávamos todos os dias em casa. E durante muito tempo tomámos o pequeno-almoço juntos.

 

Essa constância não é sinónimo de intimidade. Ter a certeza de que o outro está ali a horas certas, e que a vida é previsível, não quer dizer que as pessoas não tivessem um mundo próprio, ou soubessem o que se passava no coração do outro.

R. – Os nossos pais não eram pais modernos, no sentido de terem muitas cumplicidades com os filhos. Cultivavam alguma austeridade nesse domínio. Claramente havia o mundo das crianças e o mundo deles. Não havia a cumplicidade que hoje tenho com os meus filhos – ou que tu tens com a tua filha.

 

Nunca foram passear por Lisboa, olhando a cidade e plantando árvores, como faz hoje com a sua filha?

J. – Não.

 

O que é que faziam juntos, além das refeições?

J. – As memórias mais fortes que tenho são das férias. Passávamos temporadas na praia.

R. – Chegava a Junho e íamos para casas alugadas. Na Ericeira, Praia das Maçãs, Estoril. Variava. Férias longas, dois ou três meses. Em Setembro eu ia para a família do meu pai, para o Minho, onde tinham uma quintarola. Havia muitos programas em grupo.

J. – E [festas de] anos.

 

Ninguém partilhava angústias? Se é que as tinham...

R. – Não.

J. – O meu pai levava-nos ao futebol, e mais tarde ao cinema. Lembro-me de os meus pais discutirem filmes à mesa. Depois, muito presentes, estavam os nossos avós, pais da minha mãe. O meu avô era uma figura por quem tínhamos grande admiração.

 

Como é que ele era?

J. – Era um homem grande, careca.

R. – Um militar. Tinha sido um tenente do 28 de Maio. Era um homem do Estado Novo, de grande carácter, de padrões morais elevados.

 

É a primeira vez que há uma menção ao Estado Novo. Não tinha aparecido uma referência à política. Tudo o que descreveram se passava antes da revolução. A política era uma coisa que se discutia em casa?

J. e R. – Não.

R. – Só já muito próximo do 25 de Abril.

J. – E quando vais para a faculdade.

R. – Digamos que éramos uma família da classe média integrada no Estado Novo. Com uma presença tutelar do meu avô, que era militar, e que era um homem do Estado Novo. De uma rectidão irrepreensível. Supostamente vivíamos num mundo bem organizado.

 

Como naqueles filmes em que a mesa do pequeno-almoço está sempre pronta, com o pão partido e fatias de bolo feito em casa?

R. – Exactamente. 

 

Apesar de ter tido vários casamentos, o Ricardo parece mais um bicho de família, tentando reconstituir a família de origem. O Zé teve um casamento, e parece mais o rebelde.

J. – Posso passar essa imagem, mas sou um impulsionador [dessa estabilidade da família].

R. – Mais como um desejo. Tens tido uma vida...

J. – Liberta. [riso]

R. – Eu, apesar de me ter casado várias vezes – vou no terceiro casamento – procurei sempre reconstituir uma família. Tive três famílias e procurei voltar sempre ao mesmo.

 

O que é que está na génese da sua rebeldia? É menos burguês segundo estes parâmetros, tem o epíteto de “rebelde” de forma mais ou menos constante, com uma conotação mais ou menos positiva.

J. – [breve silêncio]

R. – Ele dava-se com mais pessoas da rua do que eu. Era mais solto. Eu era mais organizado e estabilizado nas relações.

J. – Andei num colégio de padres durante sete anos. Gostei muito de ter andado lá. Estava no sexto ano quando vivi o 25 de Abril. Abriu-se um mundo, o da política. Lembro-me de estar, antes do 25 de Abril, em casa do António Garcia, cujo irmão estava exilado em Paris, e de ouvir pela primeira vez discos do Zeca Afonso e do Sérgio Godinho. Mostrou-mos secretamente. “Não sabia que isto existia...”. (O António era um amigo meu, o Ricardo era amigo do irmão dele.) Mas, de facto, eu andava com toda a gente. Desde os filhos da porteira aos filhos do médico do primeiro andar.

 

Era um mundo menos classista do que é hoje?

J. – Eu acho que não sou classista. E o mundo não era tão classista.

R. – Num certo sentido, sim, as coisas são hoje mais estratificadas. Tínhamos uma diversidade de relações maior do que o meu filho hoje tem. O Zé rapidamente se dava com todo o tipo de gente. [Esteve envolvido em situações] que tiveram uma repercussão concreta. O meu irmão esteve preso.

 

Quer contar a história?

J. – Três meses, quase quatro. Por uma lei inacreditável! Fui preso, mas fui absolvido.

R. – Todos os envolvidos foram absolvidos. Foi o meu primeiro julgamento, ainda como estagiário. Quem fez a defesa do meu irmão foi o Dr. Goucha Soares (ainda vive, fez agora 90 anos).

J. – Nós, [os meus amigos e eu], entrámos num carro que diziam que era roubado. Nessa altura a lei dizia que o crime era incaucionável.

 

Incaucionável quer dizer que a pessoa fica presa preventivamente sem direito a pagar uma caução e sair em liberdade. Tem de ficar presa até à sentença.

R. – Havia muito furtos de automóvel. Foi 1976, 1977. A polícia interceptou-os e prendeu-os a todos.

J. – Isto aconteceu no Verão, o julgamento aconteceu logo no princípio de Outubro e provou-se que o carro não era roubado.

R. – O que se provou foi que o carro vos tinha sido emprestado e que vocês não sabiam qual era a situação do carro.

J. – E não era roubado.

 

Como foram esses meses? Cá fora o país a pegar fogo.

J. – É um assunto de que não gosto de falar. Foi duro, duríssimo. Lembro-me de o juiz me perguntar: “O que é que você está aqui a fazer?” “Sr. Dr., isso gostava eu de saber. Estou aqui há três meses sem saber porquê.” Tenho presente a imagem dele, do juiz. Era um pequenino, não era?

R. – Era. O julgamento foi na sala do tribunal plenário, lembro-me perfeitamente. [vira-se para o irmão] Mas estavas numa cela sozinho? Nunca falámos muito sobre isto.

J. – Estava numa cela sozinho. No Linhó. Era um ambiente pesadíssimo. Ladrões, criminosos, e um miúdo queque metido ali. Tinha 18 anos. O que me ajudou a aguentar aquilo é que jogava muito bem matraquilhos. Mas mesmo muito bem. Ainda jogo.

R. – Hoje já vai gente mais fina para as prisões [riso], mas na altura...

J. – Eu era um copinho de leite. Portanto apanhei uma amostra de mundo. Vejo filmes [passados numa] prisão e digo: “É mais ou menos isto”. Depois estive numa cela sozinho. Dá-me ideia que eu tinha alguma vigilância dos guardas prisionais. Não quer dizer que não houvesse pessoas que foram depois absolvidas, mas a maior parte estavam presas por todo o tipo de crimes, e muitos delas não era a primeira vez que estavam presas.

 

Como é que os matraquilhos o ajudaram? Foram a forma de socializar, estar entre as relações de poder da cadeia?

J. – Tinha de se ter jeito para alguma coisa para a pessoa ser respeitada, ali no meio. Chamavam-me para jogar matraquilhos, eu ia. Eles jogavam a dinheiro entre eles, e era bom terem-me ali do lado.

 

Nunca mais foi preso?

J. – Não. Mas uma vez deram-me uma ordem de prisão – também fui absolvido – por desrespeito à autoridade. Quando entrei em Direito, percebi que o Direito é uma arma muito importante para não nos deixarmos ir abaixo e lutar pelos nossos direitos. Dessa vez não foste tu [quem me defendeu], foi o [Francisco] Teixeira da Mota. Eu tinha acabado de sair da tropa e estava com os meus soldados a beber umas cervejas na Avenida da Liberdade. É uma história de rapazolas. Não nos serviram a nós mas serviram outros. Protestei. Chamaram a polícia, que nos deu ordem de prisão. Lá fomos todos.

 

Achou que lhe podia aconteceu o mesmo que tinha acontecido aos 18 anos?

J. – Não, não. Era uma coisa completamente diferente. De lana-caprina.

 

O Ricardo esteve preso em 1971. Coisa de uma noite só, tanto quanto sei.

R. – Fui julgado e foi a minha estreia nos tribunais. Defendi-me a mim próprio. Foi uma discussão com um polícia. A certa altura recebo uma ordem de prisão, fui levado para a esquadra da Praça da Alegria. O polícia estava a mandar-me tirar o carro de um sítio onde eu o podia ter. Era uma embirração. Disse que não tirava o carro a não ser que me explicasse porque é que tinha de o tirar. Andava no primeiro ano de Direito, estava até divertido, porque via a agitação dos polícias à procura de uma coisa que me proibisse de estar estacionado naquele sítio; e não encontravam. Era uma espécie de vitória de um miúdo de 18 anos que estava a ganhar aos polícias.

 

Tinha uma atitude de desafio?

R. – De desafio. Aquilo devia estar a enervá-los. Eu estava no átrio da esquadra. Ando sempre muito de um lado para o outro – devia estar a andar de um lado para o outro. O polícia chegou-se ao pé de mim: “O senhor faz favor de se sentar. Sente-se!” Sentei-me. E depois, sentado, pensei: “Mas eu não tenho de estar sentado. Estou detido. Mas sou livre de estar sentado ou de pé”. Tornei a levantar-me. “Ai és desses? Sr. subchefe, traga as algemas que este senhor é perigoso e pode querer fugir”. Algemaram-me a uma porta, durante horas. Mas eu estava tranquilo, sabia que só podia acabar bem. Só às cinco da manhã percebi que as coisas podiam ser exactamente ao contrário [do que eu tinha previsto]. Que corria riscos. Apareceu na esquadra um militar que superintendia na polícia e começo a ouvir o guarda, chefe da esquadra, a inventar uma história. A inventar! “Este rapaz disse que os polícias eram todos uns palhaços! E quis fugir.” Naquele momento fez-se um clique. Percebi que ainda acabava condenado com aquela história. E comecei aos berros. Eram paredes de tabique. Comecei a chorar. Tive uma crise de choro, de berros. O militar (suponho que era um coronel) assustou-se e foi falar comigo. “Que é que se passa?” “O que esse senhor está a contar é completamente mentira.” Tive a sorte de o tipo, que era um homem mais velho, dizer: “Está bem, rapaz”. Passados dez minutos tiraram-me as algemas e mandaram-me julgar no dia seguinte em processo sumário, com uma acusação que correspondia exactamente ao que tinha acontecido. Fui absolvido.

 

Foi o primeiro momento de descrédito em relação à justiça?

R. – Eu tinha razão, estava seguro disso. Se não tem sido o bom senso daquele senhor, que percebeu – percebeu [pelo modo] como eu estava a reagir – que aquilo não batia certo, no dia seguinte tinha sido julgado, com uns polícias a confirmar o que estava no auto de denúncia inicial, e sido condenado. E teria começado a faculdade, aos 18 anos, com uma condenação por crime de desobediência. Não era simpático. Mas percebi que quando exercemos os nossos direitos temos que ter muita cautela. Para não sermos surpreendidos por aquilo que não podemos demonstrar.

 

Ainda voltamos a estes episódios. Mas gostava, para já, de ligar isto à profissão que ambos escolheram, a advocacia. Em relação à tentativa de corrupção, ocorreu-vos que a situação podia inverter-se?, que podia colocar-vos numa situação que não controlavam? Lembraram-se desses episódios quando discutiram o assunto BragaParques?

J. – Isto foi acompanhado pelo Ministério Público e pelo juiz de instrução. Nunca me ocorreu que houvesse [essa inversão].

R. – A mim ocorreu-me que isto tinha perigos. Daí as cautelas que tive. Mas nunca me passou pela cabeça que os perigos atingissem a dimensão que atingiram. Isso nunca.

 

Que perigos imaginava que podiam ocorrer? E quais foram aqueles que o surpreenderam?

R. – O perigo que imaginava que me podia acontecer era o senhor negar a conversa.

J. – E contar uma história qualquer.

R. – Inventar uma história, inverter a história. Daí, quando tenho o primeiro encontro com ele, ter feito a gravação.

 

Já no primeiro encontro levou gravador.

R. – Exactamente.

 

O Ministério Público entra no processo (vamos dizer assim) no segundo e terceiro encontros.

R. – Exactamente. Nesses estou mais descansado. Nesses o meu único receio era que a gravação não ficasse bem. A primeira gravação é um instrumento de defesa fundamental. Se a não tivesse feito, teria sido possível construírem uma história... Como aliás tentaram, como aliás tentaram. Mas, não só a primeira gravação como a sequência das gravações, desmente a versão dele [Domingos Névoa]. O que nunca imaginei foi que este acto de denúncia tivesse gerado tantas hostilidades. A lata da criatura excedeu aquilo que eu esperaria. Mas o acolhimento que aquela estratégia teve junto de algumas pessoas, com responsabilidades, é [surpreendente].

J. – É uma coisa absolutamente inacreditável. É que aquelas gravações são tão peremptórias, e a luta [contra a corrupção] é tão importante... Como é que é possível que pessoas com responsabilidade tenham alinhado na conversa daquele senhor.

R. – Como é possível que tenha havido advogados, jurisconsultos, magistrados a cobrirem aquela criatura... Como é possível?

 

Qual é a explicação que dão?

J. – [prontamente] Falta de carácter.

R. – Há várias explicações. Há vários factores que concorrem para isso. Para já, a sociedade portuguesa é complacente com a corrupção.

 

É complacente porque somos muito poucos, e todos são primos e amigos, e amigos dos primos?

R. – Estamos todos agarrados uns aos outros por qualquer coisa. Portanto não há casos de corrupção em  Portugal... Grande corrupção, não há. Não há nenhum caso julgado. De média corrupção, há este. E há pequena corrupção [julgada]. Outra coisa que teve aqui um papel importante: quem denuncia. Quem denuncia são pessoas que têm vida própria, com uma projecção pública; há quem goste e quem não goste. Quem não gosta, aproveitou isto para fazer ajustes de contas. Algumas das ramificações deste processo são um desejo de acertar contas comigo.

 

Alguns dos seus processos mais mediáticos: a defesa dos familiares das vítimas de Camarate (e o livro no qual considera que se tratou de um atentado) ou o processo Casa Pia, que estava a rolar. No caso de José, tinha posto acções populares, tinha já rebentado a polémica do túnel do Marquês.

R. – Foi um momento de acertar contas com esta parelha, com estes manos. “Quem é que estes tipos se julgam?”

 

E uma animosidade das pessoas em geral, sentiram-na?

J. – Acho que não.

R. – Nesta história da corrupção, não. Ao contrário.

J. – Lembro-me de estar em Braga e de as pessoas virem ter comigo e terem dito: “Até que enfim alguém afronta estes tipos”.

R. – Há um terceiro elemento que desvalorizei, e de que não tinha noção: o poder do dinheiro. Ou seja, quando quem está do outro lado tem muito dinheiro para alugar a consciência das pessoas, as pessoas, de facto, vendem a sua consciência.

 

Está a falar de pareceres?

R. – Pareceres, outro tipo de intervenções profissionais – que se explicam porque as pessoas quiseram ganhar aquele dinheiro. Como não me imaginaria a aceitar dinheiro em coisas dessas, fez-me uma enorme confusão que se tenham “vendido”. Ainda por cima, a maior parte destes intervenientes forenses eram pessoas que conhecia.

 

Um parêntesis: o brasileiro Nelson Rodrigues escreveu que o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro.

R. – Não conhecia essa frase, mas é mesmo assim.

J. – Foi uma desilusão na justiça... Deixe-me dizer uma coisa. Há um filme, que tu também viste – quem nos mostra esse filme é o [tio] Zé Manel – que se chama 12 Homens em Fúria, passado numa sala de jurados. Foi muito inspirador para o curso que tirei e [para os processos em que] se defende aquilo em que se acredita.

 

O filme (de 1957, dirigido por Sidney Lumet) é uma discussão entre jurados. O personagem interpretado por Henry Fonda começa por discordar e inviabilizar o consenso que era indispensável para se chegar ao veredicto.

J. – Ele tinha dúvidas. E vai perguntar [a cada um dos outros jurados sobre as suas certezas].

R. – E no fim, todos têm dúvidas.

 

Porque é que esse filme foi importante? Trata da dúvida. No Direito procuramos certezas.

J. – O que tirei do filme é que não podemos condenar as pessoas pelas primeiras impressões. Ia-se cometer uma injustiça.

R. – O que é certo nesse filme é a existência da dúvida, o reconhecimento da dúvida. E Não se pode condenar com uma dúvida. Ainda por cima era um caso de pena de morte, naquele tempo, naquele estado, nos EUA.

 

Voltemos à prisão do José. Como é que viveu a circunstância de o seu irmão mais novo estar preso?

R. – Há dois momentos da vida dos meus irmãos que foram extremamente violentos para mim. Este e, uns anos antes...

J. – A peritonite.

R. – A peritonite da minha irmã, que esteve à beira de morrer. Se as coisas têm corrido mal para o meu irmão, para nós era o desabar das nossas vidas. Não só a prisão como a humilhação social.

J. – A minha família foi extraordinária. O nosso avô, o tal homem austero, foi-me lá ver.

R. – E a avó do Porto veio cá ver-te. Mas é um momento em que pensamos que a forma como gostamos que os outros nos vejam pode ser posta em causa. Todos precisamos de reconhecimento. Por mais que as pessoas digam que não lhes interessa a opinião dos outros, a opinião de alguns interessa.

 

Quem eram essas pessoas que não queriam desiludir, importantes nas vossas vidas?

J. – Família. Tive alguns amigos – perdoei-lhes isso – que não ligaram nenhuma. Exactamente porque houve este estigma social. Nem sequer perguntaram porque é que aquilo tinha acontecido, que era o mínimo. Tive amigos que durante anos não me deram cavaco. Foi duro, também.

R. – Disso não sabia.

 

Porque é que nunca falaram disso em família?

J. – Porque é um assunto de que não gosto de falar. Porque eu estive lá preso três meses.

R. – É preciso perceber a família em que é. O que se cultivou sempre foi a verdade, o respeito pelas regras, a sociedade, a boa educação. O meu pai era uma pessoa obsessiva na boa educação. Isto para nós era...

J. – Uma bomba.

 

Falemos do vosso pai, que era engenheiro, numa família de juristas, magistrados, advogados. Parece uma peça fora do baralho. Ainda mais porque a seguir prosseguem a tradição da família.

J. – O meu pai era uma pessoa encantadora.

R. – Era de uma delicadeza...

J. – Diziam que eu era fisicamente parecido com ele.

 

E quanto ao temperamento?

R. – Somos uma mistura dos nossos pais. A minha mãe, a nossa mãe, é uma pessoa com uma grande força moral. Não faz fretes. Tem 80 e tal anos, mas diz-nos o que pensa sem rodeios. Às vezes é até um bocadinho bruta. O meu pai era o contrário disto. Era incapaz de dizer qualquer coisa que magoasse o outro.

 

Umas vezes saem mais ao pai, outras saem mais à mãe?

J. – Nisso somos parecidos. [Concordo] que somos uma mistura dos nossos pais.

R. – Faz-me muita impressão a falta de educação. Mantenho muito vivos os princípios da boa educação do meu pai. Mas acho que tenho, que temos a força da minha mãe, que o meu pai não tinha. Era uma pessoa mais frágil. Talvez por isso é que tenha sido possível que a gente não se tenha apercebido que eles se iam separar.

J. – Nunca demonstrou nada.

R. – Nada, nada, nada. Mas nada. [Quando nos disseram, pensámos:] “Deve ser engano”.

 

O vosso pai já morreu?

J. e R. – Já.

J. – Em 1990

R. – Em 1991, 92. Um cancro no pulmão. Não era engenheiro-engenheiro, era engenheiro técnico. Fazia questão de dizer isso. Tinha feito o curso no instituto industrial. O meu pai... [lapso], o meu avô paterno era magistrado. Os nossos avôs são, os dois, presenças muito fortes. Do lado da minha mãe é o tal militar. Do lado do meu pai era magistrado, e foi director geral dos impostos nos anos 30.

 

Era salazarista?

R. – Não. Curiosamente, a família do meu pai, do Porto, com raízes transmontanas, era republicana. O meu avô é seduzido pela ideia de trabalhar para o bem público. Conta-se na família que Salazar lhe terá dito: “Venha”. O nosso avô faz um grande trabalho como director-geral. Quando fui secretário de Estado [das Finanças, 2000/2001] havia antigos funcionários que se lembravam dele. Acho que o meu pai não gostava de Direito. Se calhar sentia-se sufocado por aquela tradição. Não era um bom aluno. Foi para o instituto um pouco porque tinha de fazer qualquer coisa. [A engenharia] não era uma paixão. As fotografias, as roupas que herdei dele deixam perceber que era um bon vivant

 

Como eram as roupas do seu pai?

R. – Posso mostrar algumas.

J. – Herdei um lenço que era dele. Ainda ando com esse lenço. Um lenço com cornucópias. É muito giro.

R. – Herdei uma colecção de laços.

 

Quando compõe o que parece ser o personagem “senhor antigo”, com o chapéu, o laço, está a aproximar-se do seu pai?

R. – Sim, sim. O meu pai era um dandy. Do que gostava, era de uma certa vida social. Era um fotógrafo excepcional. Era um dançarino.

J. – Um Fred Astaire.

R. – Aliás, era parecido. A certa altura usava o cabelo como o Fred Astaire.

 

O que é que descobriram do vosso pai depois da morte dele olhando para os objectos dele?

J. – O nosso pai era fácil de compreender.

R. – Eu não acho.

J. – Não achas? É a imagem que tenho dele. As fotografias, já as conhecíamos da vida dele. A cigarreira, é a que uso. As angústias, não as conheço.

R. – Acho que devia ser uma pessoa muito angustiada. E escondia isso. Uma coisa a que este [aponta para o irmão] sai: fumava desalmadamente. Acho que o compreendi melhor depois da morte dele. Acho que manteve a relação com a minha mãe, bem ou mal, até ao limite do que pôde. E escondeu sempre tudo. É uma coisa boa na medida em que quis poupar sofrimento. É uma coisa má na medida em que representa alguma falta de coragem. Não sei medir isto. Tu dizes: “O nosso pai era fácil de compreender.” Eu não acho porque não tenho resposta para isto.

 

Como é que lidou com a vossa decisão de ir para Direito? Foram os três filhos a escolher esse caminho.

R. – Com muita satisfação. Era um pai muito babado connosco.

J. – Era, era.

 

Ele esperava que tivessem protagonismo social? Que fossem advogados distintos, políticos?

R. – Acho que sim. Gostava de ver os nossos sucessos. Via-me a mim com uma vida estabilizada. E sempre viu o Zé como um rebelde. Não desgostava disso...   

J. – Não só não desgostava como se identificava.

 

No seu caso, havia a coragem de exprimir uma rebeldia que ele calou durante muito tempo. 

J. – Provavelmente.

R. – O meu pai era extremamente reservado. Não era capaz de manifestações de grande rebeldia. Por isso achava graça à rebeldia do Zé. 

 

O José foi um aluno mediano. Esperava-se menos de si porque os seus resultados escolares ficavam aquém dos do Ricardo?

J. – Não era nada mau aluno! O Ricardo era um aluno excepcional. Não, não era um peso. Era um grande orgulho. Grande admiração. A minha alcunha era o rato sábio. [riso] Era muito activo, rebelde.

R. – Sempre à procura. Que é que ele ia fazer a seguir? Eu era: vou ser advogado, vou ser advogado, vou ser advogado, fui advogado, fui advogado, fui advogado. Ele idealizou várias coisas, vários sonhos. A quantidade de projectos que teve, de empresas que quis formar... Havia um fervilhar, uma irrequietude nele que nunca existiu em mim.

J. – Eu era também o que tinha piada na família. As pessoas achavam-me piada. Já na escola também tinha piada.

 

Era espirituoso, é isso?

J. – Sim. Fazia umas palhaçadas, também.

 

Como é que se fez tão desprendido? Como é que deu o salto da vida burguesa para ser aquele que precisa de pouco para viver, que tira a carta de marinheiro, que decide fazer a pé a costa algarvia, que planta árvores. Aparentemente não tem uma grande angústia com o dia de amanhã nem se preocupa especialmente com a renda da casa. Isto dá o personagem “o último dos românticos”, como o descreveu o seu irmão há uns anos.

J. – Foram as circunstâncias. De facto, não é preciso muito para viver. É evidente que gosto de comer bem, etc.; não posso [comer fora] todos os dias. Até acho que há uma racionalidade nisso.

 

Antes de começarmos a gravar, e a pretexto da crise, disse-me que leva comida de casa para o trabalho.

J. – Eu e milhões de pessoas. Ganho menos, tenho de me desenrascar. Mas acho, de qualquer maneira, que devemos jantar fora uma ou duas vezes por mês, para dar negócio aos restaurantes.

R. – É interessante nele essa capacidade. Todos temos às vezes vontade desse desprendimento. Todas as pessoas têm momentos em que apetece dizer: “Que se lixe”, sem se preocuparem com o padrão burguês em que estão inseridas.

 

Porque é que conseguiu menos dar o salto?

R. – Eu não dei o salto. Uma coisa é não fazer as minhas opções pelo dinheiro. Nunca precisei de fazer. Mas sempre vivi razoavelmente.

 

E percebe que tem de ser advogado do Paulo Penedos, arguido no processo Face Oculta, para poder ser advogado do Carlos Cruz no processo Casa Pia (disse publicamente que não lhe levava nada porque ele não podia pagar)?

R. – Não me referindo aos exemplos, há casos em que não cobro e há casos em que cobro bem. Não sou rico, mas tenho um rendimento que se encaixa seguramente no escalão dos que vão levar a tal sobretaxa...

 

Que chão é que perdia se ficasse sem determinadas coisas?

R. – Acho que só se é verdadeiramente independente se, do ponto de vista económico, não se depende de ninguém. A não ser que consigamos dar o salto e estarmo-nos nas tintas para o mínimo de conforto. Que é o que admiro no Zé. Há uma altura da vida em que é capaz de viver com muito pouco. De andar num carro que tem 40 anos e que está podre.

J. – Tem 17 anos. [riso]

R. – E de não comprar roupa. Eu sou independente e tenho independência económica para o ser. É evidente que há vários graus nesse corte que ele foi capaz de fazer, e que ele beneficia de uma coisa: tem dois irmãos que o protegem.

 

Contou sempre com isso? Soube sempre que se de repente tivesse uma aflição tinha dois irmãos para o ajudar?

J. – Conto sempre com eles, não tenho dúvida nenhuma.

R. – O salto dele é louvável, porque poucos o dão; mas há pessoas que não têm sequer essa rede de apoio. Ele sabe que se ficasse sem nenhum tipo de rendimento que a minha irmã e eu o ajudaríamos. É um conforto. Não retira que ele tenha dado o salto para poder viver com pouco.

 

É notório que admira muito esse lado do seu irmão. Se calhar porque ele foi capaz de fazer uma coisa que você não foi capaz de fazer.

R. – A questão é que não me estou a ver a dar esse salto. A questão nunca se me pôs. Na vida dele há um momento em que tem de fazer essa opção. E dá o salto para o lado bom, não dá o salto para o outro lado.

 

O “outro lado” é o lado compromissório?

R. – Claro. Eu tive uma vida mais organizada, mais estável. Criei compromissos. Tenho várias pessoas que dependem economicamente de mim. Empregados. Não são muitos, mas tenho várias pessoas que trabalham para mim. Fiquei com a nossa casa de família em Trás-os-Montes.

 

Já vamos à Oura. Politicamente, houve um momento em que os vossos caminhos se bifurcaram? O Ricardo pareceu sempre próximo do PS. O José apareceu ligado ao Bloco de Esquerda na candidatura à Câmara de Lisboa. Tiveram discussões, divergências?

R. – Eu estive sempre mais identificado com o PS, o Zé, numa determinada altura da vida, identifica-se mais com o PSD.

 

Que momento foi esse?

J. – É a altura do Sá Carneiro. O fascínio por ele é o fascínio pela social-democracia, inspirada na social-democracia nórdica, do Olof Palme. Sá Carneiro era um homem agradável de se ver, de se ouvir, de...

R. – De se acreditar nele.

 

Acreditou nele, também?

R. – Sempre me considerei socialista. Ainda que tenha um grande respeito pela figura de Sá Carneiro (quando me envolvi no processo de Camarate isso ainda [se intensificou]); mas as minhas fidelidades políticas eram à esquerda.

 

Coincidiu com o Paulo Portas e o António Pires de Lima no colégio São João de Brito?

J. – O Paulo Portas é mais novo. Quem andou no meu ano foi o Miguel [Portas], mas noutra turma. Atenção: eu não fui para o Bloco de Esquerda [BE]. Houve uma interferência directa de três pessoas: o Ricardo, o António Barreto [padrasto da mulher de Ricardo, Sofia Pinto Coelho] e o Gonçalo Ribeiro Telles. Os três disseram: “Tem que ser. Lisboa tem que ter o corredor verde”.

 

Era uma candidatura de um independente com o apoio de um partido. Nunca se viu, ideologicamente, próximo do BE?

J. – Procurei gostar deles. E eles procuraram não gostar de mim.

 

E depois houve um divórcio público.

J. – O programa foi pensado por mim, pelo Gonçalo Ribeiro Telles, com coisas do BE – é certo –, mas a pensar em Lisboa. Lisboa, Lisboa, Lisboa.

R. – O grande equívoco desse casamento é que ele tinha uma preocupação com Lisboa. O Bloco é um partido que tem preocupações que passam para além de Lisboa. Há um determinado momento em que o que é importante é fazer uma ruptura com o PS. Para o Zé e para aqueles que o apoiaram o importante era fazer aproximações com o PS, porque naquela conjuntura era com o PS que se defendia Lisboa. Houve uma des-sintonia resultante de os interesses [que o Zé defendia para Lisboa] não serem compagináveis com os que, à escala nacional, o BE tinha.

 

Quando é que quis ser político?

J. – Acho que só quis ser político quando me convidaram para ser candidato pelo Bloco de Esquerda. Fiquei aflito.

R. – Ele estava convencido de que ia passar o resto da vida a pôr acções populares. Foste um bocado surpreendido com aquele convite.

J. – Fui, fui. O colocar acções populares, para além do poder exercer Direito, era fascinante.

R. – Temos de reconhecer que o Bloco teve um golpe de asa. Acho que o Zé deve ao Bloco que o Bloco tenha olhado para ele.

 

Fala o advogado. O Ricardo está sempre a fazer de advogado do irmão.

J. – O Bloco portou-se mal comigo.

R. – Está bem. Mas inicialmente portou-se bem. Se não te tivessem convidado, não podias ter feito as coisas que fizeste. Sou menos severo com o Bloco do que ele. Talvez porque os confrontos não foram comigo.  

J. – Eu era, e acho que sou, muito bem informado sobre Lisboa e sobre Direito do Ambiente. Estava em muitas lutas em Lisboa com o Ribeiro Telles. Perguntei-lhe a opinião; sabia da divergência política dele com o BE.

R. – É extraordinário ter um candidato, com cartazes do BE, com o António Barreto e o Ribeiro Telles... Não percebo como é que o Bloco não percebeu o caminho que se lhe abria. É de uma tacanhez política que me custa a compreender.

J. – Nessa altura estava com uma grande actividade na advocacia, e com boas vitórias. Ganhei uma acção para não destruírem uma ponte romana para os lados de Ponte de Lima. Estava a desbravar um caminho imenso, porque não era usual em Portugal pôr esse tipo de acções. Não se ganhava dinheiro, mas era um grande estímulo para defender as duas coisas em que ainda hoje acredito: património e ambiente. Almocei com o Ribeiro Telles no antigo Paris (é um restaurante indiano, mas chama-se Paris), e ele disse-me: “Tem que ser!”. Formou-se a associação Lisboa é Gente para essa aventura. O que é certo é que vamos inaugurar o corredor verde de Monsanto no dia 14 de Dezembro. É um sonho antigo. O Gonçalo tem 91 anos e vai ser uma festa. É uma grande coisa, acho eu.

 

O que é que houve nesse processo de vaidade pessoal? Quando começou a aparecer nos jornais, várias pessoas, entre elas João Soares, falavam de sede de protagonismo. O que é que houve em si de deslumbramento com esse actor social em que se transformou?

J. – Consegui defender direitos. É preciso dizer que não estive sozinho em nenhuma destas coisas.

 

Era a face visível.

J.- Está bem. Porque era o advogado, e muitas vezes em acusa própria.

R. – Esses comentários, do João Soares e de outros, são coisas da mais baixa política. É a forma mais rasca de criticar o trabalho dos outros. Se há um tipo que aparece sozinho, é porque é oportunista.

 

Também tem acusações de carência de protagonismo social por causa dos seus processos mediáticos. Como é que lida com isso?

R. – Os processos é que são mediáticos. Sou o advogado dos processos e transporto para mim algum mediatismo que os processos têm. O que é que se pretende? Que não defenda processos mediáticos? É mau defender processos mediáticos? No caso do meu irmão, ele não devia pôr as acções populares? Vivemos num país em que quando alguém aparece um bocadinho mais alto tem que se lhe cortar um bocado das pernas ou a cabeça. É uma sociedade extremamente cinzenta que não tolera que alguém saia do que está estabelecido.

 

É um resquício do salazarismo?

R. – Diria que vem de trás. De uma sociedade clerical, da Inquisição. De uma sociedade pouco livre. Em Portugal quem sai fora do que é canónico ou é oportunista ou é vaidoso ou quer dar nas vistas. Então as coisas não têm de ser avaliadas por elas próprias? O que tem de ser avaliado no trabalho dele é o que ele faz. O que tem de ser avaliado na minha intervenção em processos mediáticos é o que eu faço. Quando isto se inverte, estamos a desvirtuar tudo. E estamos a traduzir esta ideia: o melhor é não fazer ondas.     

 

Vou pegar numa frase que alguém usou a vosso propósito, e que trouxe para aqui: quem é que estes tipos pensam que são? Sentiram isso várias vezes ao longo do vossos percurso?

R. – No caso do BragaParques, senti.

J. – E depois há o caso do túnel [do Marquês]. Eu perco esse caso na comunicação social. Há pessoas que, eu passo na rua, e me rosnam. Mas ganhei-o muito bem no tribunal.

 

Rosnam porque a derrapagem na obra foi de 40%? Além do transtorno.

J. – As pessoas confundem tudo. Não sabem que a acção foi muito bem posta. Foram três juízes que decidiram que a obra tinha que parar. No julgamento percebeu-se que o projecto não tinha pés nem cabeça. Os próprios engenheiros da empresa que estava a construir o túnel disseram ao juiz que o projecto ainda não estava todo feito, que o problema da ventilação tinha de ser estudado, etc. Os juízes não tinham outra maneira senão parar aquilo. Não fui eu que mandei parar o túnel. Eu tinha posto uma acção dois anos antes por causa de um túnel no Terreiro do Paço. Infelizmente não fui a tempo de parar aquela obra, porque aconteceu o que aconteceu no Terreiro do Paço. A água entrou pelo túnel adentro. Aconteceu uma catástrofe que podia ter sido ainda maior. Fui ver o processo do túnel [do Marquês] por descargo de consciência. Quando percebi que o processo era incompleto, que não tinha havido os estudos suficientes, disse: “Isto não pode ser assim. Não vai acontecer a mesma coisa que aconteceu no Terreiro do Paço”. Durante o ano em que a obra esteve parada os estudos foram feitos. Estamos a falar de estudos de estruturas, ventilação, do problema do metro. Ainda bem que a obra esteve parada. Fizeram-se os estudos e completou-me a obra em segurança. Mas puseram-se outdoors contra mim. Foi uma avalanche de informação a dizer que eu tinha sido um malandro e que a obra custava muito mais caro por minha causa.

 

Bastava andar de táxi nessa altura para ouvir isso.

J. – Exactamente.

R. – Isto é próprio de uma sociedade que nunca estuda. Um dos grandes problemas em Portugal é que tudo é superficial. São bocas. Somos um país de bocas. Ninguém estuda, e tudo emite opinião com base nas bocas. Às vezes com consequências terríveis. O processo Casa Pia é um desses. As pessoas recusam-se a olhar para as coisas. Se olharem, percebem que não é assim.

 

Sentem que são odiados por causa de determinados processos, determinadas acções?

J. – Sinto que há pessoas que não me suportam e que isso tem muito a ver com o túnel. Há pessoas que ainda me dizem que, por minha causa, Lisboa perdeu 20 milhões de euros. Inacreditável. Não vale a pena. Vale!, vale a pena. Quando explico às pessoas, acho que percebem.

R. – Não há nada mais difícil de combater do que uma ideia feita.

 

Sente isso sobretudo em relação ao processo Casa Pia? A sua imagem enquanto advogado foi beliscada por ter defendido Carlos Cruz, nomeadamente, e ter vindo a público dizer que punha as suas mãos no fogo por ele?

R. – Há um pouco de tudo. Há pessoas que passaram a não gostar de mim por causa disso, e outras que passaram a gostar por causa disso. Sinto que apesar de tudo, maioritariamente, as pessoas respeitam a minha posição. Nunca fui insultado na rua. [Fui] uma vez, num táxi, tenho impressão... Também há pessoas que me dizem que acreditam na inocência do Carlos Cruz porque me vêem na intervenção do processo. Já falámos de reconhecimento; para mim também é importante o reconhecimento. Mas quando estou muito seguro do que faço – e o Casa Pia é um caso desses – as minhas opções não vacilam perante a opinião dos outros. Prefiro que me reconheçam do que não gostem de mim.

J. – [Comigo] é a mesma coisa.

R. – Se vir que determinada intervenção minha tem reconhecimento, fico satisfeito. Se vir que não tenho, fico incomodado e triste. Não vamos ser hipócritas... Agora, se eu acho que “este” é o caminho, travo-o até ao fim, não mudo em função de ter ou não ter reconhecimento. Como sou um optimista, acho que no fim terei esse reconhecimento. [riso]

 

Tem um vinho chamado Vicência? O nome de uma avó?

R. – É o nome da nossa tetra-avó.

 

A ligação à Oura, em Trás-os-Montes, é uma memória fictícia. Não foi a casa da vossa infância. 

J. – É fictícia. Mas sente-se lá qualquer coisa. Gosto imenso de ir a Trás-os-Montes. Tive um sonho..., tínhamos outra propriedade em Sabrosa. Mas tinha de me sair a lotaria! [riso] Até esses sonhos, já os tirei da cabeça.

R. – Temos uma relação com Trás-os-Montes que é adquirida. Os nossos avós e bisavós eram dali, mas nós não somos uns rapazes que vieram de Trás-os-Montes para Lisboa. É o percurso inverso. Crescemos em Lisboa, fomos à procura das nossas raízes, elas estavam lá. Fomos seduzidos e envolvidos naquilo. Eu mais do que ele.

 

Porque tinha mais dinheiro para recuperar a casa.

R. – Porque tinha capacidade económica para o fazer. Acabei por ficar com a casa, onde ele e a minha irmã vão muitas vezes. Onde vai, aliás, toda a família, muitas vezes. Estamos a fazer uma experiência com um vinho. Um dos nomes com que sonhei foi o da nossa tetra-avó. Foi a última morgada, era uma figura camiliana, que atravessa quase todo o século XIX, e que marca a família.

 

O Ricardo fala muito mais. Sempre foi assim? Fala para o defender, porque ocupa o espaço, porque é o mais velho?

J. – Acho que é isso tudo. [riso]

 

Admira-o mais ele do que ele a si?

J. – Eu acho que o admiro mais. E acho que o Ricardo tem mais coisas para admirar do que eu.

R. – Não sei se tenho mais. Mas acho que ele tem mais importantes. O tal desprendimento. O trabalho por Lisboa, e não só, as acções populares que fez por todo o país, são uma coisa mais perene, mais importante do que aquilo que eu faço.  

 

 

Publicado originalmente no Público 2011

 

 

Maria Filomena Mónica e Isabel Pinto Coelho

31.05.21

A família da Mena não é a família da Isabel, nem a família da Isabel é a família da Mena. E contudo, é a mesma família…

Houve um tempo em que Maria Filomena Mónica e Isabel Pinto Coelho eram As Mónicas. Como é que de uma família podem nascer duas irmãs tão diferentes entre si? E como é que duas pessoas tão diferentes podem dar-se tão bem?

 

A família é (quase) sempre um lugar estranho. Mena e Isabel sentaram-se num mesmo sofá, na casa de Mena, para visitar esse lugar. O de uma família onde foram felizes e onde não foram. Uma família que não é a mesma, sendo a mesma. Durante duas horas, escrutinaram a dinâmica familiar, falaram da mãe, do que as fez ser como são, das diferenças, da cumplicidade, de como uma murchou na presença da outra, de como a mesma idolatrou a outra, do tempo em que se ia à janela na rua Artilharia 1 para as ver passar. Durante muito tempo elas foram as filhas daquela mãe, e daquele pai vagamente ausente, que por vezes aparecia de castanho ao fundo do corredor. As Mónicas dão-nos também um tempo e uma condição social.

Disseram coisas terríveis, sem excessivos cuidados, como só podem dizer as pessoas que não duvidam do afecto e da permanência do outro. Onde a Mena ouviu: “Apaga a luz!”, Isabel queria dizer: “Deixa-me ir para a tua cama”.

Falaram dos pilares em que assentam, com bonomia e crueza. Discordaram, pouparam-se, reproduziram um modelo de relação que é antigo, e que pode ser oscilante.

Mena nasceu em Janeiro de 1943, Isabel 18 meses depois. Durante dez anos foram filhas únicas. Os irmãos António e Teresa nasceram, portanto, muito mais tarde – eram “os pequeninos”. Mena foi sempre a rebelde, Isabel a dócil. Muito disto já sabemos a partir da auto-biografia Bilhete de Identidade, lançado em 2005 por Maria Filomena Mónica. (É curioso que esteja agora a ser lançado o livro Vidas, um conjunto de perfis de figuras públicas e encontros escritos pela socióloga. A vida dela já foi escrita, algumas das vidas dela já foram escritas, pelo seu punho.)

É Mena que comanda a entrevista? Não é certo. Parece mais seguro dizer que a docilidade de Isabel deriva da rebeldia da irmã, e do desejo de agradar a uma mãe que é omnipresente. Em boa verdade, talvez a mãe seja a figura central da entrevista, pela razão óbvia de o ser na vida delas.

Isabel estava em Lisboa por umas semanas. Continua a viver em Madrid, mesmo depois da morte do marido, o pintor Luís Pinto Coelho. Mena vive em Lisboa e é casada com António Barreto (depois de casamentos com Vasco Pulido Valente e com Carlos Pinto Coelho). Começaram por sentar-se cada uma no seu sofá, mas no primeiro minuto de gravação puseram-se lado a lado, no mesmo sofá. Foi uma conversa entre duas mulheres maduras que por vezes parecem as miúdas que foram quando eram irmãs que partilhavam o mesmo quarto.

Pode compreender-se uma sem a outra?

  

Vou começar pela Mena. Alguma vez quis ser como a sua irmã?

Mena – Não, até porque era impossível. O meu temperamento é completamente diferente. Era como querer ser a Madre Teresa de Calcutá ou a Rita Hayworth. E depois por ser a mais velha. Nunca quis ser como a Isabel, embora o feitio dela tenha aspectos muito mais positivos, que se calhar a fizeram mais feliz do que eu fui ou sou.

 

A sua mãe escreveu no seu livro do bebé que tinha ciúmes da Isabel. 

Mena – Eu não queria que a Isabel existisse. Temos 18 meses de diferença. A minha mãe escreveu no livro do bebé que eu teria dois ou três anos e ela teria meses e que eu lhe dava murros na cabeça. Eu era o centro do mundo até ela ter nascido. Sentia que a minha mãe era só minha. Quando apareceu, fiquei com uma rival.

 

Quando é que a Isabel sentiu que a sua irmã não gostava de si?

Isabel – Não senti. Não tinha ciúmes, nem inveja. Achava que ela era quase perfeita. Achava que ela era óptima aluna e eu não era. Que tinha mais namorados do que eu – eu não tinha porque não queria, mas não interessava. Que era mais loura do que eu. Nunca senti que ela não queria que eu existisse – nessa altura, não o podia pressentir. A Mena diz na biografia que eu podia ser a sombra dela e que podia fazer queixinhas à mãe (a mãe obrigava-nos a sair juntas para eu tomar conta dela); a ideia que tenho é que sempre a defendi. Eu estava entre a espada e a parede.

 

Porquê?

Isabel – A Mena era disparatada e independente demais, e eu fui ficando cada vez mais dócil, para não criar problemas entre a família. Quando a mãe perguntava: “O que é que a tua irmã fez hoje?”, eu pintava sempre tudo de cor de rosa, deitava água na fervura. Na altura dos namoros, quando podíamos ter mais choques, não os tivemos.

Mena – Até me admira como é que ela se casou!, porque dizia que não a todos os pretendentes. Até com o Luís fingiu que não ouviu!

Isabel – Dizia uma frase deliciosa que uma amiga me tinha ensinado (porque não queria magoá-los!): “Gosto muito de si como amigo. Mas mais nada”.

 

O seu marido, Luís Pinto Coelho, conta na auto-biografia que ficou muito surpreendido com a sua resistência, quando por fim se declarou.

Isabel – Fazia parte. Eu tinha pavor dos problemas da juventude. A Mena teve problemas existenciais, eu não tive. Tive uma infância feliz. Não queria começar um namoro muito cedo porque só poderia casar daí a uns anos; entretanto, íamos ao cinema, íamos à festa dançante… O Luís não gostava deste ambiente, daí ter ido para Madrid. Quando ele vai para Madrid, percebo que não o quero perder. Aí começámos o namoro, numa altura péssima…

Mena – [num tom irónico] Boa para ti, porque podiam ficar amigos eternamente…

Isabel – Mas eu não queria ser amiga eternamente! [riso] Que estúpida. Ela queria era roubar-me os namorados.

Mena – Excepto o Luís, que nunca quis roubar.

Isabel – O Luís era louro, muito bonitinho, espadaúdo… lembras-te, quando ele se passeava no Tamariz? E muito engraçado, sobretudo. Toda a gente o adorava.

 

Porque é que quis roubar todos os namorados da sua irmã?

Mena – Eu tenho provavelmente piores instintos do que ela. É curioso que a Isabel me tenha idealizado. Ela idealiza a infância e a adolescência em geral, na minha opinião. Perante os tumultos e guerra civil instalada naquela casa, é normal que a Isabel dissesse: “Eu não quero sofrer isto. Não quero causar mais problemas à mãe”. Mais tarde, é normal que já não lhe batesse tanto; pelo contrário, ela diz que a ajudava a fazer os trabalhos de casa e a mãe é que lhe puxava pelo rabo-de-cavalo. Não acho tanto que a Isabel fosse queixinhas. Acho que a mãe a usava como espia. Éramos muito pequeninas e dormíamos no mesmo quarto – dormimos no mesmo quarto até nos casarmos…

Isabel – Eu queria sempre ir para a tua cama.

Mena – Ah, eu queria estar com a luz ligada, a ler. “Fecha a luz!”

Isabel – “Posso ir para a tua cama?”

Mena – Era?

Isabel – Não te lembras? Eu tinha imensos pesadelos.

Mena – Ela era muito boazinha. Era e é, provavelmente. A minha mãe forçava-a a contar, fazia chantagem sobre ela. Mas ela não contava muita coisa. Também, a partir de certa altura, só sabia de metade do que se passava na minha vida. Se soubesse da outra metade, teria ficado horrorizada. Mas idealizava-me! Ainda há pouco tempo estava a tentar convencer-me que, quando íamos para a casa de uma amiga que tem cavalos (a Quinta da Alorna), eu andava lindamente a cavalo! É uma mentira completa! Tenho pânico de cavalos. Portanto, ela tem uma imagem muito rósea do que eu era. Eu era mais ruim no carácter do que ela imagina. E tinha uma rivalidade com os namorados dela. Eu sou a primogénita, sou o centro da casa! Ainda por cima, ela era mais baixa do que eu.

 

Conta no Bilhete de Identidade que, na sua ausência, a Isabel cresceu.

Mena – Aos 18 anos fui um ano para Londres. Quando voltei, a Isabel tinha florescido! Sem a minha presença. Cresceu uns três centímetros! Ou quando foi para Madrid. De repente estava da minha altura. Fez-lhe lindamente…

 

Estar fora da sua sombra.

Mena – Sim. E estar fora daqueles tumultos com a minha mãe. Foi quando estive em Londres que aceitaste namoro com o Luís? Acabei por casar com um irmão do Luís, e mais depressa do que ela! Quanto tempo tiveste de namoro?, um ano ou dois? Um tempo que nunca mais acabava! Eu despachei logo a coisa. O Carlos era muito diferente do Luís. Eram os dois muito bonitos. Casei-me em Abril de 63. E tu? Não me lembro do casamento dela, porque tinha tido o Filipe, o meu segundo filho, três dias antes.

Isabel – Estavas giríssima! Toda bem arranjada. Deve ter sido a mãe a mandar-te o vestido.

 

É o que se vê nas fotografias.

Mena – Estava? Nessa altura eu gostava de me vestir. Já disse suficientemente mal de mim. Acho que sim, que havia essa rivalidade, que era má.

Isabel – Que exagero.

Mena – Acho também que era protectora.

Isabel – Pois eras.

Isabel – Todos os apaixonados que eu tinha, eram péssimos! Mas depois já não eram assim tão péssimos…

Mena – Nunca peguei em nenhum namorado teu!

Isabel – Ah não? Um que era arquitecto, que não era mau e agora está gordíssimo…

Mena – Nem me lembro.

 

Porque não o Luís?, se cobiçava os namorados da Isabel.

Isabel – Respeitou.

Mena – Não sei por que não o Luís… O Luís era um menino bem comportado das classes altas. Eu queria um menino mal comportado das classes altas.

Isabel – Que era o Carlos.

 

Os bonzinhos com os bonzinhos, os mal comportados com os mal comportados. A Isabel com o Luís, a Mena com Carlos.

Mena – O Carlos já tinha fugido de casa, tinha perdido o sétimo ano, tinha ido de moto sozinho para a Suécia. O Carlos era parecido comigo.

Isabel – O Luís também teve uma vida acidentada.

Mena – Mas era um menino mais de salões. Era adorado no salão.

Isabel – Sobretudo, andava comigo! [riso]

Mena - Eu adorava-o. Escrevi um artigo sobre o que é envelhecer e disse que o Luís me faz imensa falta. Em 1962, quando eu estava em Londres, ele escrevia-me imenso. Achou péssima ideia eu casar com o Carlos. Achava que o Carlos era louco varrido e que não tinha futuro nenhum. E que os dois juntos, então, ia ser o mais explosivo possível. O Luís, não sendo igual àquilo que o pai queria que ele fosse, seguiu um trilho convencional. Por fora. Por dentro, era muito mais louco do que aparentava. O Carlos não gostava de frequentar aquele meio, ainda que lhe pertencesse. Eu também não.

 

Um dos traços mais vincados da Isabel parece ser a docilidade. Talvez esse traço derive da relação conflituosa que a Mena tinha com a vossa mãe. Tinha um desejo de aparecer, aos olhos da sua mãe, como a filha querida? 

Isabel – Não tinha essa intenção. E não sou tão boazinha como aparento ser. Sou dócil porque a minha maneira de ser é dócil. Mas quando me zango é à séria e sou até um pouco autoritária. Fico parecida com a mãe.

Mena – E teimosa.

Isabel – E teimosa. E quando penso numa coisa, peço muitas opiniões, mas acabo por fazer o que quero. Portanto, não sou um anjinho com asas – embora nas Doroteias me pusessem sempre de anjinho com asas!

Mena – Eu ia de diabo, com certeza!

Isabel – Com a minha mãe, discutíamos muito. Eu sou muito de discutir. Não guardo nada para mim, se estou zangada. É mais saudável. Não tenho nenhuma razão de queixa em relação à minha mãe. Pelo contrário, acho que tive uma mãe fantástica. A ideia que a Mena tem da nossa adolescência é completamente contrária à que eu tenho. A minha família não é a família dela, nem a família dela é a minha.

 

E contudo, é a mesma família…

Isabel – Daí eu ter ficado muito triste com a biografia que ela escreveu. Não a parte dela, que achei comovente, e estava a par. Mas com a parte que nos tocava às duas. Tive que lhe dizer. E não disse tudo… [riso]

Mena – Agora vai aproveitar… [riso]

Isabel – Sublinhei coisas [de que lhe queria falar]. De qualquer maneira, aquela família não é a minha. O meu pai era, de facto, um pai ausente, como eram os pais daquela geração. Ou porque trabalhavam muito ou porque havia muitas criadas. Mas estava presente nas alturas importantes. A Mena vai para Londres: a mãe não decidia sozinha que ela ia, sem autorização do pai. O pai deixava a mãe tomar muitas decisões porque sabia que, em princípio, seriam as certas. Grande intimidade com o meu pai, não tinha. Mas as vezes que falei com ele foi de uma maneira tão franca… Quando a minha mãe não estava, exactamente.

 

Em que circunstâncias aconteceram essas conversas?

Isabel – Uma vez em Madrid, quando o pai me foi visitar. Outra vez passeámos. Uma relação que – eu ficava admirada – era como se fosse uma relação de irmãos. Ele contava coisas da família, etc. A minha mãe, ainda hoje me faz uma falta horrível. Acho que era a única pessoa que dava sem nunca me ter pedido nada. A mãe dava-me estaladecas com o anel não sei quantas vezes, ralhava; mas nunca me pediu nada. Tudo o que eu fazia, ela achava óptimo (também tinha essa parte agradável).   

 

Sente que cumpriu o destino social que ela tinha destinado às filhas? Também foi isso?

Isabel – Não. O destino social não coincidiu. A mãe queria que casássemos com uns senhores com estudos (o que para ela era importantíssimo), trabalhador, se possível bonito (a estética era muito importante). A parte social: claro que preferia que nos casássemos com uma pessoa educada do que com um borra-botas qualquer. Mas, neste aspecto, e não quero dizer mal da família Pinto Coelho, de quem gostamos muito, mas não eram os maridos ideais. O Carlos estava na tropa, não fez o sétimo ano e a Mena é que trabalhava. Depois trabalhou como comissário de bordo e assim ficaria se a mãe e Mena não tivessem puxado por ele.    

Mena – Deve ter sido essa a única vez em que a mãe e eu estivemos do mesmo lado.

Isabel – A mãe tinha um savoir faire com os genros. Soube dar a volta ao Carlos, convencê-lo a continuar a estudar. O Luís: naquela altura, casar com um artista, pintor, era um bico de obra!

 

O pai deles era professor catedrático e embaixador em Madrid.

Isabel – Mas isso era o pai. A mãe, repito, preferia que nos casássemos com uma pessoa educada, e estas em princípio são de classe alta. (Cheguei à conclusão que não é bem assim.) Estas pessoas, também em princípio, têm um nível intelectual acima do normal. Não dizia: “É assim, assim e tem muito dinheiro”. Dizia: “É assim, assim e é muito bonito”.

Mena – Faz de conta que agora estou a falar como socióloga e psicóloga, e não como filha: o que é difícil para os filhos em geral é que os pais são figuras poliédricas. Têm várias facetas e não são iguais para todos os filhos. O pai e mãe, como eu os senti, aquela família, como eu a vivi, não é igual à da Isabel, nem à do António, nem à da Teresa (que são os nossos irmãos). Assim como tenho a certeza que os meus dois filhos me vêem de maneiras totalmente diferentes. Tenho dois filhos que são o oposto [um do outro], e foram criados da mesma maneira. Como eu e a Isabel. Fisiologicamente somos muito parecidas, temos as mesmas dores de cabeça; mas a relação com os pais, tudo o resto, é diferente. Custa muito a aceitar que a educação é limitada. A relação que tenho com a minha filha é diferente da relação que tenho com o meu filho. Como é que é possível, sendo ambos meus filhos, tendo ambos andado nas mesmas escolas, tendo tido a mesma educação, que sejam dois seres tão diferentes?

 

Que resposta tem?

Mena – Só sei que os vejo diferentes. A conclusão a que cheguei é que, apesar de eu pensar que os tratava da mesma maneira, e de ter tentado tratá-los da mesma maneira, não tratei. Acho que se puxa mais pelo primogénito. Eu dei mais responsabilidades à Sofia. Os segundos são, ao mesmo tempo, mais mimados e menorizados. Especialmente quando são muito próximos – os meus filhos têm 12 meses de diferença. Portanto, a maneira como vemos os nossos pais também não pode ser igual. Digo isso no prefácio das memórias: aquela é a família como eu a vi e vivi. Não há uma verdade. A nossa mãe é aquela que a Isabel sente e vê – não tenho dúvida da sinceridade dela. A mãe que eu descrevo é a mesma pessoa vista por mim. A relação é mais complicada. Ou dolorosa. A relação que a Isabel tem é mais reconfortante.  

 

Não reconhece de todo a sua mãe na descrição da Isabel?

Mena – Há um ponto em que estamos em total desacordo: na dádiva. A Isabel diz que a mãe foi a única pessoa que lhe deu coisas sem exigir. No meu caso, a partir dos 16 anos, e porque ela estava tão dilacerada comigo… Sendo dirigente da Acção Católica, com o pelouro da juventude, a minha mãe não se podia dar ao luxo de ter uma pessoa como eu. Tentou tudo. Havia a punição ou o suborno para eu entrar no caminho que ela queria. Comecei a ter dúvidas de fé no sétimo ano, ainda no colégio; para ela, era inconcebível ter uma filha ateia. Para não falar numa filha que não fosse virgem antes do casamento. A partir dos 18 anos, jurei a mim própria nunca mais pedir nada à minha mãe. Sabia que se eu pedisse um dedo, cinco tostões, um cobertor para a minha cama, ela exigia que eu me conformasse com os valores dela.

 

A relação nunca foi gratuita?

Mena – Nunca. Eu sentia isto como uma grande crueldade, porque não podia contar com ela para nada. É o inverso do que a Isabel diz! Mas provavelmente, não era ilegítimo. A Sofia foi rebelde, saiu de casa e voltou; disse-lhe: “A partir de agora reges-te por estas regras e estas”. Acho normal que uma mãe exija de uma filha que ela se comporte de acordo com as regras daquele lar. Que isso nos marcou, e envenenou a relação toda a vida, envenenou. O [meu] divórcio foi outro trauma horrível. Ela ficou sempre com a esperança de que eu voltasse a casar com o Carlos, que era uma coisa manifestamente impossível!  

 

A vossa mãe deixou uma marca fundamental na vida das duas. Praticamente só falámos dela. 

Isabel – A Mena está a contar esta história da mãe; eu acredito mas não consigo ver! A certa altura, quando tive problemas com o Luís, não lhe quis contar para não a preocupar. Ela telefonou-me – porque havia uns zuns-zuns – a perguntar o que é que se passava; eu tinha ido para casa de uma amiga e acabei por ir para casa da mãe. “Agora a mãe vai fazer-me um discurso, fazer perguntas, querer saber muitas coisas que não me apetece contar…”. Espantou-me que à noite ela tenha vindo dar-me um beijinho e tenha dito: “Só ouvirei os teus problemas se te apetecer contar. Mas uma coisa é certa: Só Deus sabe quem é bom”. Como quem diz: para mim és sempre boa. Não foi tanto tempo assim depois da tua separação. Evoluiu.

Mena – Não só evoluiu como era ambivalente. Era muito inteligente. É muito esquisita a palavra “gostar”. Durante os onze anos em que ela esteve muito doente com Alzheimer, perguntava-me: “Mas eu gosto ou não da minha mãe?”. Depois de ela me ter feito sofrer tanto. Uma coisa era certa: eu admirava-a imensamente.

 

Admirar é diferente de gostar.

Mena – É. Gostar era a capacidade de me sacrificar por ela. O natural é que gostasse dela; mas é uma questão em aberto.

 

Em que sentido ela era ambivalente?

Mena – Nós tínhamos de ter tudo. Eu tinha que andar vestida pelo Dior, ser casada com o mesmo homem…

Isabel – Não exageres.

Mena – Ela ambicionava para nós uma paleta de coisas quase inconciliáveis. Ou então exigia-me a mim porque era a mais velha. Vou falar na ida para Oxford: quando fui, em 1970, o que fiz foi “abandonar” dois filhos. Ficaram seis meses com o pai, seis meses comigo. A coisa mais equitativa do mundo. Mesmo assim, o que foi visto foi: a Mena abandonou os filhos. A sociedade era muito machista. Curiosamente, a minha mãe nunca me criticou.

 

Porque é que acha que foi assim?

Mena – Eu acho que ela gostaria de ter feito uma coisa parecida. Uma parte dela revia-se em mim. Acho agora.

Isabel – Acho que ela compreendeu lindamente e não houve críticas lá em casa. Até teve imensa pena. “Coitadinha da Mena, estar separada dos filhos”.

Mena – O pai escrevia-me: “Faz-me impressão que estejas aí, com essa idade, no meio desses académicos mais novos. Mas se é disso que tu gostas…”. O meu pai apoiou-me, a minha mãe era ambivalente. A mãe, quando casou, estava no segundo ou terceiro ano da faculdade (o que era raro), e deixou de estudar. Tinha um apetite pelo saber, que eu herdei. Mas não era exigente comigo. Desde que eu passasse de ano…

Isabel – Não era?

Mena – Só tu é que achas que eu era boa aluna! Preferiam que eu passasse – até porque era um colégio privado, e pagava-se mais. Mas não me puseram no liceu Maria Amália, que era na nossa rua, que academicamente era superior, e preferiram pôr-me nas Doroteias, para meu sacrifício intelectual. Se valorizasse mais o saber do que a religião, a mãe tinha-me posto no Maria Amália.

 

Alguma vez sentiu que ela tinha orgulho em si?

Mena – Quando me doutorei, teve um imenso orgulho. E uma vez, ela já estava velhinha, fiz parte da direcção de uma revista da Gulbenkian, e convidei-a [a escrever]. Como ela tinha trabalhado na Gulbenkian, adorou mostrar-me. A minha mãe adorava o poder – faceta que nem eu nem a Isabel herdámos; bem, talvez a Isabel, um bocadinho…

Isabel – [riso] A mãe era ambiciosa.

Mena – No bom sentido. Gostava de exercer o poder, tinha imenso jeito para exercer o poder, e era muito tolerante – excepto comigo. Era directora de produção do ballet da Gulbenkian, onde se passava tudo e mais alguma coisa no domínio da homossexualidade.

Isabel – Mas uma coisa era ser bailarina, outra coisa era ser filha.

 

Presumo que nunca tenham tido com ela uma conversa sobre sexo.

Mena – Zero.

Isabel – Zero, mas com o pai, sim.

Mena – Tiveste conversas sobre sexo com o pai?

Isabel – [Gargalhada] Estávamos na mesa do pequeno-almoço e veio à baila uma conversa sobre sexo. Explicou-me em duas penadas…

Mena – O quê?

Isabel – Já não me lembro. Mas era uma coisa que em princípio a mãe não ia contar.

Mena – O pai?!

Isabel – Sim! E em Madrid tivemos uma conversa – como disse, de irmãos – porque o pai deve-se ter sentido liberto de responsabilidades. Liberto… da própria mãe, que ele adorava, mas que não o deixava falar! Conversámos, conversámos, conversámos. O pai escreveu um cartão ao Luís que não posso esquecer. Quando estivemos uns meses separados – a Mena diz que foi um sonho mau –, o pai escreveu ao Luís. “Sou seu sogro, custa-me muito ver a minha filha sofrer, compreendo os problemas que atravessam, saiba que pode contar comigo sempre”. Ele era de poucas falas, mas estava nos momentos importantes. E de uma maneira discreta.

Mena – Sim. Quando estive em Londres, o pai foi ver o que se passaria comigo. Foi a primeira vez que estive com o pai sem a mãe presente.

 

O que resulta da sua biografia é que o pai era muito ausente. Se calhar porque a mãe ocupa todo o espaço.

Mena – O nosso pai ia para casa às oito. A casa tinha três portas: a das criadas, a porta grande, por onde nós entrávamos, e uma porta que dava para o escritório e para a sala. O meu pai entrava por essa, para o escritório dele. A casa era espacialmente muito segregada. (Não se percebe porque é que numa casa com 14 assoalhadas eu tinha de partilhar o quarto com a minha irmã! “Apaga a luz!”

Isabel – “Deixa-me ir para a tua cama”!)

Mena – O meu pai vinha por um longo corredor para a casa de jantar. Embirrávamos com a cor castanha lá em casa. Fatos castanhos era o cúmulo da degradação estética! E eu dizia: “Quem é aquele senhor que vem ao fundo do corredor vestido de castanho?”

 

Isso para falar da ausência do seu pai. Até dentro de casa.

Isabel – A Mena era uma embirrenta!

Mena – Ele falava pouco. Em questões de dinheiro, julgo que era ele a decidir. Teve a sensação que eu sofri bastante e que não gozei a vida. Por isso me disse: “Agora que tens os filhos criados, vê lá se te divertes um bocado”. Percebeu qualquer coisa de fundamental: a dificuldade imensa que eu tenho em ser feliz. Só sou capaz de ser feliz durante uns, vá lá, 20 minutos.

 

Um exemplo.

Mena – Vinha uma referência muito elogiosa no Times Literary Supplement à minha biografia do Eça de Queirós. Para mim, o TLS é uma espécie de bíblia. Em Portugal ninguém lê o TLS, o Eça de Queirós não é conhecido lá fora… mas só de ver o meu nome lá, fiquei numa felicidade imensa. Arranjei maneira, passado um hora, de já estar a embirrar com não sei quê! Tenho dificuldade com o orgulho, a vaidade, a auto-satisfação – para já não falar noutra felicidade mais global.

 

No fundo de si, tanto quanto consegue perceber, porque é que é assim? Ainda há pouco disse que já tinha dito suficientemente mal de si.

Mena – Acho que é temperamental. Fui alegre e feliz na infância até aos seis, sete anos. Divertimo-nos imenso, no campo, na praia, brincámos muito. Com a adolescência, foi o fim do mundo. Deve ter sido hormonal. Eu queria ser infeliz! Tenho uma fortíssima componente masoquista. Qualquer idiota que não olhasse para mim, era logo um ser fascinante! O que era perigosíssimo. A maior parte deles eram mesmo idiotas. Eu queria ser maltratada.

 

Era o desafio de os conquistar, porque começavam por recusá-la? Tudo isso radica numa insegurança enorme, numa necessidade de ser confirmada.

Mena – É, é. Deve ser a deriva de a minha mãe ser tão majestática. A Isabel não era insegura, pois não?

Isabel – Não. Eu podia ter ciúmes dela, mas não.

 

A Isabel idolatrava a Mena?

Isabel – Sim, sim. A única coisa que me incomodava era o mau ambiente que ela criava em casa. Criava um mau ambiente para chamar a atenção. Mas não tínhamos uma má relação.

Mena – Muitos dos meus amigos acham estranhíssimo que eu goste dela, e vice-versa, que duas irmãs tão diferentes se dêem bem. Mas nós sempre nos demos bem.

Isabel – Somos as duas bem educadas, cumpridoras, respeitadoras, pontualíssimas, e temos as duas muito sentido de humor.

 

Zangaram-se a sério alguma vez?

Isabel – Fiquei muito triste com o livro dela. Aconteceu-me uma coisa estranha: é raríssimo chorar. (Quando o meu marido morreu, não chorei e não fiz o meu luto). A Mena ligou-me dois ou três dias antes do lançamento, disse que tinha um livro para mim, mas estava já a chorar quando mo disse. Li o livro de fio a pavio. Dei por mim a chorar, por duas razões: com imensa pena do que ela tinha escrito sobre a minha mãe e por ela, porque sabia que tinha sofrido muito.

 

Não foi ao lançamento do livro.

Isabel – Estava furiosa! “Não vou, porque não estou de acordo com isto. Não sei quem é esta família!”. Depois tentei ler o livro como se não fosse irmã dela. Mas era muito difícil. Cheguei ao fim mais compreensiva. À minha volta, algumas pessoas diziam coisas, e eu irritava-me. Eu compreendo a minha irmã, sei o que ela quis dizer, e os meus amigos falam por falar. Acabei por me afastar de imensa gente…

 

Como em casa: defende a Mena.

Isabel – Exactamente. A uma amiga disse uma coisa horrível: “Não tens categoria para falar do livro da minha irmã”.

Mena – Se calhar não tinha. Tens de me dizer quem é! [riso] Estava a perguntar-me se alguma vez me zanguei com ela. Acho que não. Ela lembra-se da parte boa que eu tenho e minimiza a parte má. Uma vez zanguei-me, mas ela não sabe… Se calhar é a primeira vez que vai ouvir. Quando o meu primeiro marido morreu, há um ano e meio, pedi à Sofia que me trouxesse as cartas que lhe tinha escrito. Ele esteve nove meses nos Estados Unidos a tirar um curso de piloto e escrevia-lhe dia sim, dia não. Numa das cartas, escrevi: “Querido Carlos, fomos ontem a Madrid. A Isabel está absolutamente insuportável, o teu irmão então…” Contei-te? Chegámos atrasados e anão sei o quê e ela obrigou-me a ir dormir para o quarto da criada! Amuei! “São uns burgueses nojentos!” Não me lembro de outra zanga. E lembro-me desta porque a li há muito pouco tempo.

Isabel – [gargalhada] Acho que te contei a minha vida inteira. A Mena é como o pai: introvertida. Às vezes é disparatada e conta umas coisas disparatadas à frente de toda a gente. Mas é mais reservada. Eu nunca fiz cerimónia contigo, e abri-me sempre muito. Durante a etapa da doença do Luís, que foi dramática, a mãe já estava com Alzheimer, e senti na Mena uma segunda mãe.

Mena – A doença do Luís aproximou-nos muito. Sou péssima para lidar com pequenos problemas com a PT. A minha especialidade são coisas traumáticas ou graves. Sou muito egocêntrica, vivo muito virada para o meu umbigo; mas se sinto que um amigo precisa de mim, acho que dou a mão e ajudo.

 

Porque é que se menoriza?

Mena – Acho que não me menorizo. Mas não sou egoísta. O Luís, como se dizia nuns romances, provavelmente cor de rosa, era um homem solar. Era a Alegria. Um cancro, não podia ser… A Isabel esteve ao lado dele e nunca se queixou.

Isabel – Se ele não se queixava, eu não me podia queixar. Também não está muito no meu feitio queixar-me.

 

Há um capítulo na auto-biografia do Luís que se chama “As Mónicas”, que é como eram conhecidas. Eram as beldades da vossa geração, escreve ele, orgulhoso de andar as passear as duas.

Mena – Acho que não sentíamos isso. Sentíamos que éramos bonitas, mas a beleza é sempre vista através dos olhos dos outros. Eu só percebi que era bonita quando as outras pessoas começaram a dizer que eu era bonita.

Isabel – Se tinhas tantos apaixonados…

Mena – Pois tinha. Mas até aos 10 anos, não achava que era bonita.

Isabel – Mas “As Mónicas” foi só na adolescência.

Mena – A ideia de quão bonitas nós éramos é-me dada agora, pelos comentários que as pessoas fazem.

Isabel – Lembras-te daquele meu amigo que vivia na [Rua da] Artilharia 1 [em Lisboa]? Nós íamos para o colégio e levávamos os [irmãos] pequeninos, o Tó para os Maristas e a Teresa para as Doroteiras. E ele ia para a janela para nos ver passar!, sabia a que hora passávamos.

 

Fala da infância como um período em que foram felizes as duas. Mas na adolescência concentra-se em si. Parece que a Isabel deixou de contar. Trata-se de si e da sua luta com a sua mãe.

Mena – Tive um namoro pacífico entre os 13 e os 16, com um rapaz bem comportado. Mas com o aparecimento de um que era uma espécie de James Dean português, concentrei-me só nele e na minha mãe. Durou muito pouco tempo. Comecei a fazer coisas estranhíssimas: “Ó mãe, vou pôr um selo no correio” Saía às três da tarde e voltava às quatro da manhã”.

Isabel – Coitadinha da mãe.

Mena – A bola da loucura começou a rodar e eu pensei em suicidar-me. Nunca concretizei, nunca tomei pastilhas, nada. A escalada em que eu ia acabava no suicídio, num infligir a mim própria o máximo de sofrimento. Fui então para Londres com a Teresa Gil, arranjámos um colégio. Depois eu fugi do colégio e fui viver com uns polacos. Aquilo fez-me lindamente, abriu-me mundo. Percebi que Portugal não era o único lugar do planeta, a religião católica não era a única. Eu não sabia! É difícil explicar às pessoas a redoma em que nós vivíamos. Quando me perguntam: “Mas não deste pelo Humberto Delgado, em 58?”. Não, não demos.

 

Como é que se deu sozinha, em Londres, saída da redoma da Rua Rodrigo da Fonseca?

Mena – Portei-me maravilhosamente, segundo os cânones da minha mãe. Não fui para a cama com ninguém. Tinha imensos apaixonados da alta aristocracia espanhola, fui para Jerez de la Frontera para casa dos Domecqs. Podia ter feito dezenas de disparates. E como estava livre, como lia o que queria, como podia passear, não fiz. 

 

Já não havia o sabor da transgressão.

Mena – Já não havia o freio da minha mãe. Desaparecido esse primeiro James Dean, apareceu um segundo, que era o Carlos, com quem vim a casar seis meses depois. E a Isabel deixou de fazer parte da minha vida, tivemos muito tempo sem ter qualquer intimidade. A ponto de a Isabel não se lembrar de uma das minhas casas! Vivi em três ou quatro casas. (Quando me casei, como não tínhamos dinheiro nenhum, fomos viver para casa do meu sogro, de graça. Ele depois vendeu essa casa. O meu sogro, ele próprio, teve acidentes que são conhecidos.

Isabel – Sentimentais.

Mena – De natureza amorosa e políticos. Deixou de ser embaixador, o Salazar demitiu-o. Separou-se da minha sogra e divorciou-se.) Tivemos um período de três ou quatro anos em que não foste a minha casa. Achei que ela estava completamente burguesa, vivia sempre na Embaixada. Eu detestava!

 

Que pessoa era já, politicamente?

Mena – Gostava já de umas coisas de esquerda, intelectuais, dos Cahiers du Cinéma. A Isabel e o Luís eram de um mundo conservador. Politicamente éramos completamente diferentes. Não pude votar em votar em 69 (eram só licenciados e chefes de família), mas teria votado à esquerda. Continuei a estudar, sabe-se lá porquê. Estava num cubículo, era funcionária pública (tradutora-intérprete), e não tinha nada para fazer.

Isabel – Fizeste um edredon, não foi?

Mena – Crochet com lã! Uma colcha! Lembras-te da colcha?

Isabel – Era bem gira. A mãe dizia: “A Mena agora faz colchas?” [risos das duas]

Mena – Isto para dizer que politicamente comecei a ligar-me à esquerda, através do ateísmo e da liberdade. Por temperamento, sou de esquerda. Muitas pessoas acham que sou de direita, porque não sou politicamente correcta, porque não partilho de muitos valores do Partido Socialista. “Tu, no fundo, és de direita”. Não. Eu prezo a liberdade, e a direita portuguesa, e parte da esquerda, não preza a liberdade. Quando ia a Madrid, à embaixada, achava aquilo tudo nojentamente conservador.

 

Não era uma zanga, deveras, em relação à sua irmã, mas um afastamento. A Isabel estava a dizer que foi ficando cada vez mais de direita…

Isabel – Estava a brincar. O meu sogro era um embaixador político, escolhido a dedo pelo Salazar. Nós passávamos a vida na embaixada. Eu trabalhava no ICEP, para ganhar o mínimo e o Luís poder pintar. Tínhamos essa vantagem, que a Mena achava que era um presente envenenado, que era viver na embaixada. Eu gostava e não gostava. Era agradável ter uma embaixada muito bonita, conhecer pessoas interessantes, ir várias vezes ao palácio real, conhecer o rei, políticos… E era maçador, eu era uma miúda. O Luís tirava sempre partido das coisas. No ICEP tratavam-me por senhora dona Isabel Maria! “Não venha tão cedo, não é preciso”. Madrid abriu-me horizontes.

Mena – Às vezes falo com a Isabel sobre o provincianismo português, a propósito das críticas às minhas memórias. As críticas das pessoas em geral interessam-me pouco. Fiquei triste com as pessoas que se zangaram e [cuja reacção] eu não esperava. A começar pelos meus irmãos e a acabar no Vasco [Pulido Valente]; mas sobre o Vasco não me apetece falar, já dissemos ambos o que tínhamos a dizer. As pessoas que nunca saíram para além delas têm uma percepção da vida tão diferente das que têm alguma experiência cosmopolita que isso faz uma barreira. A maior parte dos meus amigos são estrangeirados. Depois, as pessoas casam muito entre si, a sociedade é ainda muito estratificada. Se a Isabel não tivesse ido viver para Madrid seria uma pessoa totalmente diferente.

 

Temos falado dos vossos percursos, das semelhanças e dissemelhanças. Em que é que acham que são irmãs?

Mena – Acho que é o percurso comum. Vivemos muitos acontecimentos juntas. Se a Isabel fosse 15 anos mais nova, a nossa intimidade seria diferente. Sou muito amiga da minha irmã mais nova, gosto muito dela e houve momentos em que estava mais perto da Teresa, que é 12 anos mais nova do que eu. Quando me doutorei, dei-me um presente, que foi ir a Nova Iorque. Foi ela que me emprestou dinheiro, que eu não tinha. Estávamos as duas separadas e divertimo-nos imenso. Ela tirou Sociologia, fui professora dela. Agora que ela tem um segundo casamento, vemo-nos menos, e ela reagiu muito mal às memórias. Mas há alguma coisa na fraternidade que é um passado em comum, e que junta as pessoas. Embora, depois, as partilhas tendam a quebrar esse passado comum.

Isabel – Não foi o nosso caso, não tínhamos praticamente nada a partilhar.

Mena – Excepto um candeeiro com que tu ficaste e que eu queria dar à minha filha Sofia! [riso]

 

Em que é que a Isabel sente absolutamente que são irmãs?

Isabel – Comecei por dizer isso: sempre senti na minha irmã mais velha um ídolo. Quando soube que o Luís tinha uma coisa má, a Mena foi a primeira pessoa a quem telefonei. Há uma grande ligação, e não sei explicar bem porquê.

 

Alguma vez sentiu que a sua mãe gostava mais da sua irmã porque ela era bem comportada? Porque correspondia ao que a vossa mãe esperava de uma filha.

Mena – É giro que faça essa pergunta, porque nunca tinha pensado nisso. A resposta é: nunca se me pôs essa pergunta. O que deve significar que não pensei que a mãe gostasse mais dela do que de mim. Agora que estou a reflectir sobre isso, acho que a mãe gostava incondicionalmente da Isabel. E que comigo, sendo a relação tão complicada… ela gostava de mim!, mas eu causava-lhe tantos sarilhos que ela devia ter medo.

Isabel – Mas isso é como o filho pródigo… A mãe já estava com Alzheimer e tu ias [vê-la] todos os domingos; dizias-me que não ias tanto por amor, mas por obrigação. Eu, quando vinha cá, achava que devia ir mais vezes. Ia todos os dias e tinha um enorme prazer em levá-la até ao Guincho. A mãe sempre adorou o mar e cantava!

Mena – Afinada ou desafinada?

Isabel – Afinadíssima. Ela pertencia a um coro na igreja. Estava tão feliz… A minha relação com a mãe pode considerar-se perfeita.

Mena – Achas que ela gostava mais de ti do que de mim?

Isabel – Acho que ela me dava de exemplo para toda a gente. Mas acho que não, [que não gostava mais de mim do que de ti]. Muitas vezes me disse assim: “A tua irmã está tão diferente, está tão boazinha”. Ficou muito orgulhosa quando aceitaste o cargo de não sei o quê. A mãe ligava imenso à parte profissional. Ah, muitas vezes esqueço-me que estive dois anos doente, com gânglios, que me pegou aquela costureira. Depois tive hepatite, e o meu irmão também. Um ano de cama. A Mena foi para outro quarto e o Tó e eu no mesmo quarto. Daí eu ter perdido dois anos [na escola]. Nunca me ralharam. A mãe explicava pessimamente, enervava-se. Tu é que explicavas bem.

Mena – Eu fazia tudo bem, está a ver? [gargalhada]

Isabel – Eu defendia-a da minha mãe e muitas vezes mentia. A Mena era óptima. Mas a minha mãe dava-me como exemplo. “A Isabelinha assim, a Isabelinha assado”. Os mais novos deviam irritar-se um bocado…   

 

  

Publicada originalmente na Revista Pública, em Maio de 2010

 

 

  

 

 

 

 

6 crianças fazem selfies com palavras

31.05.21

A Laura, a Margarida, a Marta, o Martim, a Matilde e o Pedro fizeram selfies com palavras, em fotografia, em desenho. Neste auto-retrato, falaram do brincar, dos sonhos, das pessoas importantes da sua vida, dos lugares para onde dirigem a atenção. Mostraram-se crianças como as outras, pessoas como as outras. Ou seja, todas diferentes entre si.

Amanhã é Dia da Criança. Ouvir crianças permite-nos conviver com a criança que temos algures, visitar um espaço remoto, continuar a descobrir o mundo com espanto. Para que, como num poema de Pessoa, a criança que fomos não fique para sempre a chorar na estrada.

 

Laura, oito anos

Chamo-me Maria Laura Monteiro da Silva, mas gosto que me chamem Laura. Os meus pais chamam-me Laurinha e Maria Laura quando é mais a sério ou se zangam comigo.

Passo a maior parte da minha vida na escola. É uma escola pública. Entro às nove e saio às cinco e meia. Estudo. Faço trabalhos, projectos. Almoço. Não gosto de toda a comida, mas tenho de comer o que há. Às vezes vemos teatros. Gostava de ter mais tempo para brincar e de ter mais aulas de violoncelo.

Quando for grande quero ser violoncelista e dar concertos, conhecer muitos países e pessoas diferentes. Não sei explicar o que sinto, mas fico feliz quando estou a tocar. Quando estão a olhar para mim, fico um bocadinho nervosa, mas depois passa porque esqueço que as pessoas estão lá. Sofre-se para tocar bem porque é preciso muito trabalho.

Pratico todos os dias, trinta ou quarenta minutos, em casa. Duas vezes por semana, estudo na Academia de Música de Costa Cabral, no Porto, que frequento desde os seis anos.

Quando comecei, o violoncelo era pequenino e mesmo assim era quase do meu tamanho. Escolhi o violoncelo por causa do som e porque gostava do instrumento. É bonito. Se não puder ser violoncelista, não tenho nada que queira ser. Pode ser que depois queira outra coisa.

Além do violoncelo, divirto-me a brincar com os meus amigos, jogar futebol, andar de skate, ler, andar de bicicleta e passear. Em casa, não passo muito tempo em frente à televisão, mas gosto de ver. Gosto de falar sobre os meus amigos, as coisas que vejo na televisão e na rua. E também sobre banda desenhada. Aos fins de semana e nas férias brinco mais e estou mais tempo em casa dos meus amigos e dos meus avós. Nas férias de Verão gosto de ir à praia e vou para a quinta na aldeia.

No futuro, gostava de viver na quinta e trabalhar no campo (quando não tocasse). Na aldeia temos mais tempo para fazer as coisas e mais liberdade. Podemos brincar na relva, andar descalços e ter muitos animais. Gostava que a minha casa fosse a casa da quinta, com toda a minha família lá. É grande e bonita, só falta uma piscina.

Tenho irmãos. Comigo, somos quatro. Uma irmã filha da minha mãe, dois irmãos filhos do meu pai. Têm 20, 21 e 26. Sou a mais nova e recebo o mimo deles todos, mas às vezes também me põem na ordem.

As minhas características: não sou tímida e não falo muito. Nos trabalhos, como estudo e como sei, sinto-me segura. Quando faço uma prova de violoncelo, tenho confiança que vou conseguir. Estudo muito e se me enganar numa nota, tento outra vez.

As pessoas mais importantes da minha vida são os meus pais. Penso ter filhos. Bem educados, simpáticos, que ajudem os mais velhos e os pobres. Vou dizer-lhes para serem boas pessoas. Preocupo-me com as pessoas que passam dificuldades. Fico com pena. Às vezes nem conseguem arranjar casa nem têm dinheiro. Ouço isto nas notícias e vejo pessoas na rua a pedir. Algumas contam as suas histórias. Ficaram desempregadas, não conseguiam pagar mais nada e começaram a pedir. Fico com pena porque, se fosse eu, ia ficar triste, não ia gostar.

Também penso nos senhores que têm aquele trabalho muito difícil de nos proteger. Os polícias, os bombeiros e os políticos.

O segredo que te posso contar é que gostava de aprender a tocar percussão.

 

 

Margarida, nove anos

Quem é que eu sou? Sou uma pessoa. Vivo com dois irmãos e com os meus pais. O meu nome é Margarida.

De manhã acordo, como toda a gente. Acordo às 6.45. Não acordo sozinha porque ainda tenho preguiça. Já sou bastante autónoma. Gosto de me aventurar. Aventura é descobrir coisas novas. Correr riscos.

As pessoas fundamentais da minha vida são a minha mãe e o meu pai. A minha mãe é uma pessoa muito simpática, com grande carácter e alegre. Está sempre lá para nos ajudar. Tem cara de advogada, mas não é advogada. O meu pai é uma pessoa com características muito fortes, que se diverte muito e é muito divertido. Tem cara de pessoa que faz filmes de animação. Gosto muito dele. Foi em quem me inspirei mais. Somos muito parecidos. Fazemos piadas. Tem aquelas frases que nos fazem ser uma pessoa melhor. Por exemplo: “Pai, ajuda-me com os trabalhos de casa”. “Não, Margarida. Porque quando fores maior, não vais ter ninguém que te ajude. Tens de aprender a fazer as coisas sozinha.”

Outras pessoas importantes: a Jô. É a senhora que limpa a casa e trata de nós. Está desde que nasci. Foi como uma segunda mãe para mim.

O meu irmão Francisco tem menos dois anos do que eu. Zangamo-nos muito, como é normal. Temos muito em comum, brincamos, ajudo-o nos trabalhos. Há uma coisa em que somos completamente diferentes: ele é muito meiguinho e eu sou um bocadinho mais bruta. Não é para ofender as pessoas, mas digo mesmo o que penso. É um defeito que tenho. Também pode ajudar as pessoas a mudar.

O meu irmão António: é como se eu me preparasse para ter um filho. Sou cinco anos mais velha. Nunca lhe mudei a fralda. Aos sábados dou-lhe banho. Em casa, se a mãe está doente e o pai está fora, dou-lhe o jantar. É uma questão de paciência. Alguém tem de o fazer.

A minha avó Sheila é muito importante. Ela ensina-me a criatividade e a abstracção. É muito solta. Tem umas folhas grandes onde podemos pintar. É uma avó mais para o lado divertido.

A minha avó Margui, que não se chama Margui, mas é o que lhe chamamos, também brinca muito comigo. Ensina-me a jogar jogos de cartas. Preocupa-se com as notas e a escola. No almoço de domingo, em casa dela, estou com os meus primos, os meus tios.

A minha mãe fala comigo em inglês. O inglês ajuda-me. Fico preparada para correr o mundo inteiro. Índia, Nova Iorque, México. Falo inglês com a minha avó Sheila. Naturalmente. Se não sei alguma palavra, paro e digo em português.

Gostava de ter uma boa vida. Uma vida boa é viver bem. Ser bom no que se faz. Ter orgulho em quem se é. Gostava de ter dois filhos. O que quero mesmo muito, muito é ser cozinheira. Chef de cozinha. Gosto de ajudar o meu pai na cozinha. A minha tia entrou no Master Chef e isso empolgou ainda mais o meu gosto pela cozinha.

Empolgou: estas palavras, aprendo na leitura. Leio livros de aventura, de magia. Agora estou a ler o Harry Potter, em português.

Adoro, adoro, adoro dançar. Gostava de aprender breakdance e dança contemporânea, tenho aulas de hip hop. Samba, vou aprendendo, com a Jô, que é brasileira.

Música, ah, pois. O meu avô está muito ligado à música, a minha mãe, também. Fui para uma escola de música quando tinha cinco anos. Sempre gostei da flauta transversal e da lira, que é o símbolo da Academia de Música de Santa Cecília. Só que não pude ir para a lira. A lira é muito cara e há pouca gente que a toque. É uma harpa pequenina. Antigamente é que se tocava.

 

 Marta, oito anos

Eu sou a Marta. Tenho oito anos. A minha vida está a correr bem. Não está a correr nada mal. Tenho três irmãos, uma irmã e dois irmãos. Sou a segunda. Primeiro foram as meninas e depois os rapazes. Agora partilho o quarto com a minha irmã. Temos um beliche. Durmo na parte de baixo, mas vamos trocando.

Acordo às sete da manhã. Primeiro visto-me e depois tomo o pequeno-almoço. Uma torrada e leite. Depois vou de carro para a escola. Demora meia hora. Vivo em Oeiras e a escola é no Cacém. Andamos os três mais velhos nesta escola. O mais pequenino, não, anda na pré. Os pais vão buscar-nos à escola às três da tarde, à terça e à quarta. No resto da semana, é uma amiga. De manhã, são os pais que nos levam. Esta amiga deixa os filhos no nosso carro, e eles vão connosco.

Costumo brincar à apanhada. Nos intervalos vamos ao parque. Temos um parque ao pé da escola. Gosto de ver as plantas. Há umas que se pode chupar. É assim: a planta tem uma parte que se chupa e sai um suco docinho. Não sei o nome da planta. Tenho muitas flores preferidas, mas aquela de que gosto muito é a tulipa. No parque não há tulipas, mas o nosso vizinho tem flores, e costumo ver as tulipas dele. Nós temos plantas, em casa. Manjericão plantado. Está na varanda e os pombos vão lá.

Em casa ajudo a mãe a cozinhar. Não gosto de polvo, lulas, cogumelos, camarão. O cogumelo não tem sabor, mas a textura... Do polvo e da lula, também é da textura que não gosto. De lula grelhada é que não gosto mesmo nada! Às vezes tenho de comer, outras vezes, não. Gosto de lasanha, bife, do peixe que a minha mãe faz. E gosto muito de limpar!, de ver tudo organizado.

O meu pai é pastor evangélico. Penso todos os dias em Deus. Fazemos o culto doméstico no final do dia, ao domingo fazemos o culto na igreja. Depois da refeição, vamos buscar as bíblias e o meu pai lê. Depois dizemos versículos de cor. Depois eu e os meus irmãos lemos alguns versículos. Depois a minha mãe conta histórias da Bíblia. Depois cantamos alguma coisa. Depois vamos para a cama. Gosto muito do culto de domingo. A minha parte preferida é quando cantamos.

Deitamo-nos às oito ou nove. Quase não vemos televisão. Ao domingo, temos o culto, de manhã. Durante a semana também não dá. Ao sábado, vemos um bocadinho. O que gosto mais de ver é “Os Cinco em Acção”.

Não penso no futuro. Simplesmente faço o que acontece. Não penso se vou casar ou ter filhos. Mas gostava de ser cantora. Gosto muito da Marisa Monte. O meu pai também é músico. Não conheço as canções todas, que ele tem muitas!

Gosto muito da minha família, dos meus amigos. A minha melhor amiga é a Fabiana, que conheci no acampamento das crianças de Água de Madeiros, no ano passado. (Água de Madeiros é muito longe!) Tenho outra melhor amiga, que vive ao pé de mim, a Inês.

Não costumo estar muito sossegada. Mas sou um bocadinho tímida. Às vezes sou distraída, outras vezes sou atenta. Sou parecida com a minha mãe, de cara. Apesar de não ter caracóis. Tinha, quando era pequenina. Mas perdi-os.

Os desenhos: agora já não faço tudo à pressa. Faço devagar, para sair bem. Mas quem desenha mesmo bem é a minha irmã, que tem 11 anos. Somos amigas. Como ela está no quinto ano e eu no segundo, ajuda-me com os trabalhos. Gosta mesmo muito de ler. Emprestaram-lhe a colecção Uma Aventura e está a ler tudo aquilo. Eu também gosto de ler. Nós os três gostamos de português e não gostamos de matemática. Eu estou bem na matemática, mas não gosto das matérias.

Quero fazer-te uma pergunta: quantos anos tens?

 

Martim, dez anos

Chamo-me Martim, fiz dez anos em Janeiro. Vivo com o meu pai e a minha mãe, o Ricardo e a Sónia. Os meus irmãos chamam-se Manel, Madalena e Mateus. Tenho um cão, o Mojito.

Acho que sou um menino feliz. Porque tenho tudo o que é preciso para ser feliz. Tenho pais, irmãos, avós, tios. Tenho uma casa. Não queria mudar nada na minha família.

O dia mais feliz da minha vida foi quando a minha irmã nasceu. Eu queria um irmão mais novo. Eu queria ser o irmão mais velho. Ao princípio, tive ciúmes. Depois, sorriu para mim e comecei a gostar dela.

As pessoas mais importantes para mim são os meus irmãos e os meus pais. Com o Manel, gosto de brincar. De vez em quando andamos à pancada porque gozo com ele e ele fica demasiado irritado. Digo-lhe: “Não jogas nada de futebol!”. O Manel tem 13, vai fazer 14. Dividimos o quarto. Partilhamos as coisas. Prefiro assim.

A Madalena pede-me muitas coisas. Por exemplo, para desenhar com ela. Tem cinco anos. Às vezes vou buscá-la à escola de trotinete, e ela queixa-se: “Não me trouxeste a minha trotinete!”. Nunca fui buscá-la sozinho, mas às vezes vou à mercearia sozinho.

A primeira vez que andei sozinho tinha quase nove anos. Fui comprar batatas e outras coisas para uma festa cá em casa. Gosto da responsabilidade, apesar do medo de perder o dinheiro ou de me esquecer do recado.

O Mateus tem seis meses. Estou sempre a brincar com ele. A fazer com que se ria.

A relação com o pai e a mãe é diferente. Com o pai, gosto, quando ele não está à espera, de lhe tocar no ombro e fugir. Outras vezes, brinca comigo a torcer os dedos, aos encontrões. Com a mãe: gosto de fazer piadas que a façam rir. É um tipo de brincadeira que não sei explicar. A mãe é mais meiguinha. Quer abraçar-me muito e eu deixo-me abraçar, mais ou menos.

Como é que imagino que vai ser a minha vida? Ocupada. Gostava de ser tenista profissional. Sendo tenista, tendo dois ou três filhos, uma mulher desempregada ou com emprego, acho que teria o mesmo dinheiro que os meus pais têm agora.

Quando tinha seis anos, recebi uma nota de 50 euros. Dos meus avós. Os meus pais também me deram uma nota de 50. Fiquei louco, louco! Comecei a gostar de ter dinheiro – para poupar. Tenho 400 euros ou mais. Gasto algum dinheiro, cinco, dez euros. Para gelados, nas férias.

Agora ganho num mês, pelo menos, 20 euros. Os meus pais fizeram uma coisa: nos testes, se tirarmos negativa temos de lhes dar dinheiro. Satisfaz: damos-lhes cinco euros. Bom: dão-nos 12 euros. Muito bom: é 24. Eu andava a tirar “satisfaz” a mais e o Manel a ter negativas. Se não fosse o dinheiro, trabalhava na mesma, mas assim é como ter uma profissão: trabalho para ganhar dinheiro.

No dia a dia não penso muito no preço das coisas. Não sei quanto custam as coisas no supermercado.

Com este dinheiro, se oferecesse um presente, dava aos meus pais uma viagem ao Brasil. Aos meus avós, depende. Os avós maternos: estão separados. Para a avó, uma ida à Madeira. Para o avô, uma prova de vinhos. Para o avô paterno, uma ida ao teatro. Para a avó materna, um curso de cozinha.

Destes presentes todos, a prova de vinhos está excluída. Já provei vinho. Não gostei do sabor. De cerveja, gosto. Gosto mas não bebo.

Se o ténis não correr bem, posso ser negociador. Negociador de várias coisas. Tenho talento para convencer as pessoas.

[longa pausa] Há uma coisa que quero saber: o que é ser adulto?

 

 

Matilde, dez anos

Eu sou a Matilde, tenho dez anos. Tenho dias em que sou resmungona, impaciente, outros, não. Gosto muito de desenhar, de animais e de passar muito tempo com a minha melhor amiga, a Vitória. Brincamos, falamos sobre o nosso dia-a-dia, fingimos que temos filhas. As filhas são os Nenucos. Sou amiga da Vitória desde que nascemos. Só uma vez não nos entendemos. Conto-lhe segredos que sei que ela não conta a ninguém. Confio nela. Tenho três cães, um pastor alemão e duas cadelas da raça Golden Retriever, mãe e filha. O Tobi, a Nina e a Chiara.

Moro numa casa, entre o campo e a cidade, perto de Vila Real, em Trás-os-Montes. Ao pé da casa há um rio e uma vinha. Moro com a minha mãe e o meu padrasto. Não vivo com o meu pai há dez anos. Os meus pais separaram-se quando eu tinha dois meses.

As pessoas mais importantes na minha vida são a minha mãe, o meu pai, a minha prima, que é muito chegada, e a minha melhor amiga. Os meus avós maternos estão em França. O meu avó paterno está em Portugal, mas só convivo com ele quando o meu pai está cá.

O meu pai emigrou há dois anos. Está na Suíça. Comunicamos pelo Skype. Conto-lhe as minhas notas. Sou boa aluna, mas não sou das melhores. A minha disciplina preferida é português. Faço erros, mas tenho jeito para redacções. Tenho saudades do meu pai e gostava que ele estivesse cá. Mais perto. Vejo-o mais ou menos uma vez por ano. Quando ele vivia em Portugal, estava com ele todos os fins de semana.

Falo francês porque a minha família materna está toda em França. Vou lá todos os anos. Habituei-me a falar francês, também, por causa da minha prima, que me ensina e corrige. Eu faço a mesma coisa com ela: ensino-a a falar português.  

No futuro gostava de ter um bom emprego, em que ganhasse bem. Gostava de ser criadora de desenhos animados ou então veterinária. Gostava de ter uma casa, claro. Que não fosse muito grande nem muito pequena. Gostava de viver com alguém, mas não faço questão em casar. Não quero ter um marido. Se uma pessoa se quiser divorciar, não tem de ir a tribunal. É mais por isso. Mas gostava de ter filhos.

Outro projecto: viajar. Sempre quis a Londres, ver o Big Ben e ver o estúdio onde foi feito o Harry Potter.

Um dos livros que tenho é o Diário de Anne Frank. Na escola fizemos um trabalho sobre o livro. A minha mãe tinha-o em casa e emprestou-mo. Ainda não o li todo. Li algumas passagens. É muito impressionante, por acaso até é. Vi a publicidade do filme e é um bocadinho pesadinho. A minha professora disse que a casa estava em exposição, que tinha o cabelo e as roupas que a Anne Frank usava. Fiquei a pensar: como é que pode ser, se o cabelo dela foi cortado e para o lixo? Depois, a minha melhor amiga, que visitou a casa, contou-me que a casa estava vazia. Que o pai da Anne quis que a casa estivesse vazia para mostrar a solidão em que eles viviam.

Gosto da vida que tenho. Gostava que fosse diferente em algumas partes. Gostava de tirar tudo cinco, na escola. Sou aluna de quatro. Tenho uma amiga que tirou cinco a tudo.

Quando é que vou deixar de ser criança? Quando tiver 16 anos. Nessa altura vou ser adolescente. Jogo basquetebol e ao fim de semana faço natação. Amanhã vou dar uma caminhada até à Régua. Vai ser das grandes.

 

Pedro, oito anos

O meu nome é Pedro, nasci no dia 23 de Setembro de 2006. As minhas festas de anos normalmente não são temáticas, mas a última foi sobre culinária e fizemos pizzas. A cozinha lá de casa era pequenina para seis meninos.

Tenho uma família boa. A família principal é constituída por: avô, avó, outro avô e outra avó, pai e mãe e a minha irmã. Se for família maior, acrescento os meus primos, os meus tios, os tios-avós, os tios-avôs.

A minha rotina também é boa. Acordo às oito. Tenho oito anos mas continuo a gostar de comer Nestum. Depois vou lavar os dentes. Depois dispo o pijama e visto a roupa. Depois pomos os lanches na mochila e vamos para a escola. Vamos a pé. Vivo perto da escola, nos Anjos. É uma escola pública. Quando acaba a escola, o pai, a mãe ou a avó vêm buscar-me. Nunca é às cinco e meia. Há uma coisa que é o Centro de Apoio à Família para pais que chegam mais tarde. Às terças e quintas faço ginástica.

Estou uma semana com o pai e uma semana com a mãe. Na semana da mãe, às terças feiras ficamos com o pai, e na semana do pai às segundas-feiras ficamos com a mãe. Estou habituado a isto. Estão separados desde a pré-primária.  

As minhas amigas meninas são mais do que os amigos rapazes. Porque eu não costumo jogar à bola. Fora da escola, até jogo. Mas na escola fazem batota. E quando uma equipa ganha, começam à bulha. Nunca andei à bulha com ninguém.

O assunto de que gosto de falar é animais. Rapazes e raparigas não costumam prestar atenção. Estão mais interessados em brincar. Eu também brinco. Brincamos aos pais e às mães.

Brincar aos pais e às mães é assim: existe um pai, existe uma mãe. Às vezes existe apenas uma mãe. Os outros são os filhos. Existe o mais velho, o mais novo. Às vezes até existe um bebé. De vez em quando existe um animal de estimação. É mais ou menos brincar ao faz de conta. O pai ou a mãe mudam a fralda e dizem: “Vão pôr a mesa”. Há cenas mais dramáticas, uma filha foge de casa. A família toda vai procurar essa filha.

Eu gosto mais de fazer de filho ou de animal de estimação. Recebo a atenção dos outros.

Tenho um vocabulário bom. Aprendo lendo muitos livros, ouvindo os pais a falar. Os meus livros preferidos são os do Harry Potter. Conheço a história da Menina do Mar e da Fada Oriana porque a mãe leu à noite, a mim e à minha irmã. O meu pai está a ler o Dom Quixote para nós. É um livro mais para adultos. Ainda não chegámos a essa parte, mas já ouvi falar do Sancho Pança. A minha irmã tem uma camisola que a minha mãe trouxe de um país que já não me lembro qual é, e que tem o Dom Quixote e o Sancho Pança.  

Ser adulto é ter a responsabilidade de cuidar de mim mesmo, das minhas coisas. É ter a responsabilidade de ganhar dinheiro para me alimentar e alimentar a minha família. Ser criança não é o melhor do mundo, mas ser adulto também não é o pior do mundo.

O meu animal preferido é o flamingo. A minha cor preferida é violeta, mas não há nenhum animal violeta. A segunda cor é rosa. E o flamingo é cor de rosa.

No futuro gostava de ter filhos. Dois ou um. Uma casa arrumada. Um bom emprego. Um bom emprego é um emprego em que uma pessoa trabalha bem e recebe bem. Quero ser zoólogo, veterinário e poeta. Não faço poesia, mas gostava de ser poeta. Um poeta escreve poemas que são versos bonitos; podem não ser bonitos, mas acho que deviam ser bonitos. Servem para as pessoas lerem e sentirem-se felizes.

 

 Publicado originalmente no Público em 2015

 

Os Filhos da Madrugada

14.05.21

No dia 25 de Abril, passam 47 anos desde a revolução dos cravos. Quase tantos de democracia quantos os de ditadura. O país mudou, o mundo mudou.

Como auscultar esta mudança? Através de uma maratona de entrevistas àqueles que nasceram e foram criados em tempos de liberdade, ouvindo os filhos dessa madrugada, desse dia inicial, inteiro e limpo, assim escrito por Sophia de Mello Breyner Andresen. São 25 interlocutores que trazem o seu percurso, a sua compreensão política e social do país, fotografias e contrastes com a vida dos pais e avós, material que fornece um retrato concreto, particular, quotidiano do Portugal que hoje somos.

Homens e mulheres, as mulheres que, diferença flagrante no país do século XXI, surgiram no espaço público, deixaram a esfera estrita da domesticidade e do trabalho não remunerado. Uns mais conhecidos do que outros. Diferentes sensibilidades políticas. De diferentes áreas de trabalho e geografias. Sempre interessantes. Uma enfermeira que passou anos sem ouvir o pai falar da guerra colonial. Uma escritora negra. Um pastor evangélico. Um professor catedrático cujo pai era pedreiro. Uma rapper nascida já depois da queda das Torres Gémeas. Uma conservadora de direita que veio com os pais, retornados, ainda criança pequena, de Angola. Um homem de uma família laica que se converteu ao catolicismo já adulto. Uma jovem mulher que integra o Governo de Portugal. Uma apresentadora de televisão. Pessoas do teatro, da ciência, da política. 

25 entrevistas para acompanhar diariamente em Os Filhos da Madrugada, entre o dia 1 e 25 de abril, às 22h30 na RTP3. 

Em breve, também em versão podcast. 

A autoria e a condução do programa são minhas, jornalista, nascida em 1971. 

 

Nota de Intenções:

Não tenho memória de mim num tempo anterior ao da liberdade. Nasci em 1971, logo, e entendido de uma maneira estrita, não caberia neste programa que desenha uma cicatriz na vida do país, que aponta para um antes e um depois, e que é 1974.

A geração a que pertenço é a destas pessoas que nasceram num país em efervescência, em recomposição, que parte de uma folha em branco que nunca está inteiramente em branco. A inscrição, de que são momentos vitais a elaboração da Constituição, as primeiras eleições livres, a separação da Igreja e do Estado, do militar e o civil ou a abertura à Europa, já nos anos 80, faz-se com erros, excessos e o acerto primordial que vem com a democracia. Faz-se com mulheres e homens que trazem as marcas do passado, os traumas da guerra colonial, a pobreza, o medo, tudo aquilo que não desaparece de um dia para o outro.

Provavelmente, a ideia deste programa radica numa série de entrevistas que fiz no CCB a figuras seniores da sociedade portuguesa, o (Quase) Toda uma Vida. Todos tinham mais de 75 anos, todos apontavam como elemento estruturante das suas vidas ter crescido sob uma ditadura.

Um passo decisivo foi dado recentemente quando li uma crónica de Rui Tavares no Público. Era sobre a sua mãe, que completava 90 anos, e que começou por ser criada de servir, como então se dizia. O Rui é doutorado, foi deputado europeu, a sua voz é ouvida. Se é verdade que a porosidade social ainda é reduzida em Portugal, ela seria ainda mais diminuta e rara sem a construção do Estado Social que se seguiu à revolução. A Educação foi e é um elevador social, mudou radicalmente um Portugal onde, em 1974, 24% da população era analfabeta.

A minha consciência política foi sendo apurada com o passar dos anos. Como aconteceu com boa parte da geração a que pertenço, os valores da democracia não eram especialmente tematizados porque não estavam postos em causa: eram um dado adquirido. Mas agora percebo que o mundo, mercê das crises dos últimos anos, e de modo mais brutal da crise pandémica do último ano, precisa ser olhado com atenção, quase à lupa. Na rebentação destes dias, os valores humanistas, que persigo, não podem ser descurados. O diálogo, a escuta, a auscultação têm de ser incrementados. Este desejo de conhecer, de aprender, de sentir o pulso do país e daquilo a que chamo “a vida de todos os dias” animaram-se a conceber este programa. O meu foco não seria o dos intérpretes das primeiras décadas do século XX, mas sim o do meu tempo cronológico.  

Com Os Filhos da Madrugada procuro olhar para o futuro a partir destes 25 Portugais. Apesar de procurar um mosaico polifónico, heterogéneo, complementar, a amostra é sempre incompleta. Seriam outros Portugais se os entrevistados fossem outros. Mas são estes. E são pessoas que vão pela primeira vez à televisão, e pessoas que são conhecidos de todos pela televisão. São pessoas que nos ajudam a fazer um retrato do que se fez em quase tantos anos de democracia quantos os de ditadura.

Acho que não ficamos mal na fotografia.  

 

Outras notas:

O programa tem cerca de 20 minutos (desafio imenso para mim, habituada a entrevistas de duas horas). Gravamos como se fosse directo, ou seja, não há edição. Toda a equipa está de máscara, o convidado e eu estamos sem máscara, numa mesa de quase três metros e depois de fazer teste covid. 

Sendo feminista e defensora das quotas, era indisputável para mim que pelo menos metade fossem mulheres. Procurei muitos equilíbrios na escolha dos 25: são de esquerda e de direita, não só pessoas que desempenharam ou desempenham actividade partidária, vêm de todo o país (Minho, Porto, Alentejo, Lisboa, Luanda, uma pessoa com dupla-nacionalidade, portuguesa e brasileira, eu sou transmontana...), de todas as áreas (ciência, cultura, política, sociedade), nasceram na década de 70, 80, 90 e a mais nova nasceu em 2002.

O Portugal que vai emergindo nas suas vivências e relatos é diverso, plural. A maior parte deles tem formação superior, muitos são doutorados. Num país que tinha uma taxa de analfabetismo de 24% em 1974, a mudança é espantosa.

Muitos são desconhecidos do grande público e vão pela primeira vez à televisão (pessoalmente, gosto muito do discurso não formatado, que revela coisas tão simples que todos sentimos como nervosismo, deslizes, pequenos silêncios; eu mesma tenho muito disso apesar dos muitos anos de televisão).

Vêm de meios desfavorecidos, e sobretudo para esses a revolução mudou a vida, vêm de meios mais abonados.

Trato a maior parte dos convidados por tu. No programa, tratamo-nos como nos tratamos cá fora. Já tinha entrevistado alguns, outros encontro pela primeira vez. Se falássemos inglês, a distinção ficaria elidida no You. Obviamente tratar por tu não é menos respeitoso e talvez revele uma prática banal: as pessoas da mesma geração tratarem-se por tu. Ou seja, somos contemporâneos.

Obrigada a todos os que aceitaram o meu convite, a toda a equipa que montou esta operação em tempo record, aos que nos virem. As fotografias que nos ajudam a espreitar nas gravações são da Estelle Valente.

 

1 - Djaimilia Pereira de Almeida, escritora, 1982

2 - Carmen Garcia, enfermeira, 1986

3 – Tiago Rodrigues, dramaturgo, encenador, 1977

4 – Assunção Cristas, professora universitária, 1974

5 – Rita Rato, directora do Museu do Aljube, 1983

6 – Vítor Cardoso, físico, 1975

7 - João Taborda da Gama, jurista, 1977

8 - Joana Cabral, cientista, 1984

9 - Mariana Vieira da Silva, ministra, 1978

10 - Tiago Cavaco, pastor evangélico, músico e blogger, 1977

11 - Constança Freire de Sousa, escritora e técnica de comunicação, 1994

12 – José Reis, jurista, ex-atleta, 1977

13 - André e. Teodósio, encenador, 1977

14 – João Pina, fotógrafo, 1980

15 – Bruno Vieira Amaral, escritor, 1978

16 - Adriana Molder, artista plástica, 1975

17 - Joana e Mariana Mortágua, deputadas, 1986

18 - Adolfo Mesquita Nunes, político e gestor, 1977

19 - Maria Inês Marques, dramaturgista e fundadora da UMA, 1990

20 - Gisela João, fadista, 1983

21 – Leonor Teles, cineasta, 1992

22 – Filomena Cautela, actriz e apresentadora de TV, 1984

23 – Tatiana Salem Levy, escritora, 1979

24 – Domingos Folque Guimarães, empresário, 1974

25 – Nenny, artista, 2002