Os Filhos da Madrugada
No dia 25 de Abril, passam 47 anos desde a revolução dos cravos. Quase tantos de democracia quantos os de ditadura. O país mudou, o mundo mudou.
Como auscultar esta mudança? Através de uma maratona de entrevistas àqueles que nasceram e foram criados em tempos de liberdade, ouvindo os filhos dessa madrugada, desse dia inicial, inteiro e limpo, assim escrito por Sophia de Mello Breyner Andresen. São 25 interlocutores que trazem o seu percurso, a sua compreensão política e social do país, fotografias e contrastes com a vida dos pais e avós, material que fornece um retrato concreto, particular, quotidiano do Portugal que hoje somos.
Homens e mulheres, as mulheres que, diferença flagrante no país do século XXI, surgiram no espaço público, deixaram a esfera estrita da domesticidade e do trabalho não remunerado. Uns mais conhecidos do que outros. Diferentes sensibilidades políticas. De diferentes áreas de trabalho e geografias. Sempre interessantes. Uma enfermeira que passou anos sem ouvir o pai falar da guerra colonial. Uma escritora negra. Um pastor evangélico. Um professor catedrático cujo pai era pedreiro. Uma rapper nascida já depois da queda das Torres Gémeas. Uma conservadora de direita que veio com os pais, retornados, ainda criança pequena, de Angola. Um homem de uma família laica que se converteu ao catolicismo já adulto. Uma jovem mulher que integra o Governo de Portugal. Uma apresentadora de televisão. Pessoas do teatro, da ciência, da política.
25 entrevistas para acompanhar diariamente em Os Filhos da Madrugada, entre o dia 1 e 25 de abril, às 22h30 na RTP3.
Em breve, também em versão podcast.
A autoria e a condução do programa são minhas, jornalista, nascida em 1971.
Nota de Intenções:
Não tenho memória de mim num tempo anterior ao da liberdade. Nasci em 1971, logo, e entendido de uma maneira estrita, não caberia neste programa que desenha uma cicatriz na vida do país, que aponta para um antes e um depois, e que é 1974.
A geração a que pertenço é a destas pessoas que nasceram num país em efervescência, em recomposição, que parte de uma folha em branco que nunca está inteiramente em branco. A inscrição, de que são momentos vitais a elaboração da Constituição, as primeiras eleições livres, a separação da Igreja e do Estado, do militar e o civil ou a abertura à Europa, já nos anos 80, faz-se com erros, excessos e o acerto primordial que vem com a democracia. Faz-se com mulheres e homens que trazem as marcas do passado, os traumas da guerra colonial, a pobreza, o medo, tudo aquilo que não desaparece de um dia para o outro.
Provavelmente, a ideia deste programa radica numa série de entrevistas que fiz no CCB a figuras seniores da sociedade portuguesa, o (Quase) Toda uma Vida. Todos tinham mais de 75 anos, todos apontavam como elemento estruturante das suas vidas ter crescido sob uma ditadura.
Um passo decisivo foi dado recentemente quando li uma crónica de Rui Tavares no Público. Era sobre a sua mãe, que completava 90 anos, e que começou por ser criada de servir, como então se dizia. O Rui é doutorado, foi deputado europeu, a sua voz é ouvida. Se é verdade que a porosidade social ainda é reduzida em Portugal, ela seria ainda mais diminuta e rara sem a construção do Estado Social que se seguiu à revolução. A Educação foi e é um elevador social, mudou radicalmente um Portugal onde, em 1974, 24% da população era analfabeta.
A minha consciência política foi sendo apurada com o passar dos anos. Como aconteceu com boa parte da geração a que pertenço, os valores da democracia não eram especialmente tematizados porque não estavam postos em causa: eram um dado adquirido. Mas agora percebo que o mundo, mercê das crises dos últimos anos, e de modo mais brutal da crise pandémica do último ano, precisa ser olhado com atenção, quase à lupa. Na rebentação destes dias, os valores humanistas, que persigo, não podem ser descurados. O diálogo, a escuta, a auscultação têm de ser incrementados. Este desejo de conhecer, de aprender, de sentir o pulso do país e daquilo a que chamo “a vida de todos os dias” animaram-se a conceber este programa. O meu foco não seria o dos intérpretes das primeiras décadas do século XX, mas sim o do meu tempo cronológico.
Com Os Filhos da Madrugada procuro olhar para o futuro a partir destes 25 Portugais. Apesar de procurar um mosaico polifónico, heterogéneo, complementar, a amostra é sempre incompleta. Seriam outros Portugais se os entrevistados fossem outros. Mas são estes. E são pessoas que vão pela primeira vez à televisão, e pessoas que são conhecidos de todos pela televisão. São pessoas que nos ajudam a fazer um retrato do que se fez em quase tantos anos de democracia quantos os de ditadura.
Acho que não ficamos mal na fotografia.
Outras notas:
O programa tem cerca de 20 minutos (desafio imenso para mim, habituada a entrevistas de duas horas). Gravamos como se fosse directo, ou seja, não há edição. Toda a equipa está de máscara, o convidado e eu estamos sem máscara, numa mesa de quase três metros e depois de fazer teste covid.
Sendo feminista e defensora das quotas, era indisputável para mim que pelo menos metade fossem mulheres. Procurei muitos equilíbrios na escolha dos 25: são de esquerda e de direita, não só pessoas que desempenharam ou desempenham actividade partidária, vêm de todo o país (Minho, Porto, Alentejo, Lisboa, Luanda, uma pessoa com dupla-nacionalidade, portuguesa e brasileira, eu sou transmontana...), de todas as áreas (ciência, cultura, política, sociedade), nasceram na década de 70, 80, 90 e a mais nova nasceu em 2002.
O Portugal que vai emergindo nas suas vivências e relatos é diverso, plural. A maior parte deles tem formação superior, muitos são doutorados. Num país que tinha uma taxa de analfabetismo de 24% em 1974, a mudança é espantosa.
Muitos são desconhecidos do grande público e vão pela primeira vez à televisão (pessoalmente, gosto muito do discurso não formatado, que revela coisas tão simples que todos sentimos como nervosismo, deslizes, pequenos silêncios; eu mesma tenho muito disso apesar dos muitos anos de televisão).
Vêm de meios desfavorecidos, e sobretudo para esses a revolução mudou a vida, vêm de meios mais abonados.
Trato a maior parte dos convidados por tu. No programa, tratamo-nos como nos tratamos cá fora. Já tinha entrevistado alguns, outros encontro pela primeira vez. Se falássemos inglês, a distinção ficaria elidida no You. Obviamente tratar por tu não é menos respeitoso e talvez revele uma prática banal: as pessoas da mesma geração tratarem-se por tu. Ou seja, somos contemporâneos.
Obrigada a todos os que aceitaram o meu convite, a toda a equipa que montou esta operação em tempo record, aos que nos virem. As fotografias que nos ajudam a espreitar nas gravações são da Estelle Valente.
1 - Djaimilia Pereira de Almeida, escritora, 1982
2 - Carmen Garcia, enfermeira, 1986
3 – Tiago Rodrigues, dramaturgo, encenador, 1977
4 – Assunção Cristas, professora universitária, 1974
5 – Rita Rato, directora do Museu do Aljube, 1983
6 – Vítor Cardoso, físico, 1975
7 - João Taborda da Gama, jurista, 1977
8 - Joana Cabral, cientista, 1984
9 - Mariana Vieira da Silva, ministra, 1978
10 - Tiago Cavaco, pastor evangélico, músico e blogger, 1977
11 - Constança Freire de Sousa, escritora e técnica de comunicação, 1994
12 – José Reis, jurista, ex-atleta, 1977
13 - André e. Teodósio, encenador, 1977
14 – João Pina, fotógrafo, 1980
15 – Bruno Vieira Amaral, escritor, 1978
16 - Adriana Molder, artista plástica, 1975
17 - Joana e Mariana Mortágua, deputadas, 1986
18 - Adolfo Mesquita Nunes, político e gestor, 1977
19 - Maria Inês Marques, dramaturgista e fundadora da UMA, 1990
20 - Gisela João, fadista, 1983
21 – Leonor Teles, cineasta, 1992
22 – Filomena Cautela, actriz e apresentadora de TV, 1984
23 – Tatiana Salem Levy, escritora, 1979
24 – Domingos Folque Guimarães, empresário, 1974
25 – Nenny, artista, 2002