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Anabela Mota Ribeiro

Daniel Oliveira

27.07.21

O que é que interessa o que o Daniel acha? A pergunta é dele. Daniel Oliveira é um dos mais reconhecidos opinion makers da sua geração. Truculento, convencido, raivoso. Político, e antes jornalista. Colunista do Expresso. Comentador da SIC Notícias. Alinhado, com muito gosto. O filho de Herberto Helder que não queria ser conhecido como o filho de Herberto Helder.

Um esclarecimento feito a Daniel Oliveira e que fica para os leitores: não ouvi nenhuma das pessoas que temos em comum. Evitei a sugestão. O que levava para a entrevista era a curiosidade pelo seu percurso, que conhecia mal, apesar de nos termos cruzado profissionalmente. Conhecia o boneco, como ele lhe chama. Pela primeira vez, iria conceder uma entrevista pessoal. O que o deixava nervoso. Embora se tenha falado de política o tempo todo. É possível entrevistar Daniel Oliveira e falar do Bloco de Esquerda, de que foi destacado dirigente, sem uma vez apontar o nome de Francisco Louçã? É. Sem fazer disso uma questão. Se é uma entrevista pessoal, que fique o que deve ficar além da espuma dos dias. Entendimento tácito sobre o assunto.

Afirmou-se no espaço público nos jornais e na blogosfera. Escreve para o Expresso. Na SIC Notícias, é comentador do Eixo do Mal. É um homem da sombra que não resiste ao (eventual) protagonismo da boca de cena. Não jura que não venha a ser um oportunista.

 

 

Quando era pequeno, quem é que era o seu herói?

Ui. Público? Privado? Há os idealizados e os reais. Tinha uma referência: o meu padrasto, Manuel Gusmão. Foi responsável, com a minha mãe e o meu irmão mais velho, pela minha formação cultural e política. Era um herói não reconhecido, como são sempre os que estão ao nosso lado. Foi fundamental para muitas das escolhas que fiz, para [a definição] dos meus interesses. O meu herói público – se calhar isto é deprimente… [riso] – era o Álvaro Cunhal.

Eu ligava muito a política. Anormalmente para a minha idade. Não-anormalmente tendo em conta a época. Tinha quatro anos quando foi o 25 de Abril.

 

Achei que ia responder Lenine. Cunhal, apesar de tudo, estava próximo.

Nunca tive um grande fascínio pela União Soviética. Nem quando fui militante do PC. Na adolescência, os meus heróis (e tinha sobretudo heróis políticos) eram heterodoxos. O Tito e o Berlinguer. Do Tito arrependo-me, do Berlinguer, não. Tinha simpatia por desalinhados. Em criança, não. Em criança, ia para a escola com um emblema do Ho Chi Minh.

 

Quem é que lhe punha ao peito o emblema?

Ninguém. Tinha um interesse que era influenciado pela minha família (o meu padrasto foi deputado à Constituinte, a minha mãe era sindicalista). Fui para os pioneiros [organização do PC para crianças] e a minha mãe achava mal. Eram militantes. Os militantes do PCP, em princípio, são alinhados. Mas eram, do ponto de vista cultural, heterodoxos. E liberais, do ponto de vista dos costumes.

 

Ambiente severo?

Severidade emocional. Não havia uma severidade moral. Financeira, havia por uma questão de necessidade, não por princípio. Não nasci numa família abastada. Nasci numa família intelectual sem dinheiro.

 

Uma família para quem o dinheiro era uma coisa despicienda?

Para quem ele não existia.

 

Mas a vida não era funcionalizada ao dinheiro, como acontecia com muitos dos proletários que defendiam, para quem o dinheiro era a questão central.

É verdade. A minha mãe era funcionária dos Correios, teve quatro filhos; apesar de ser um quadro superior, recebia muito mal. Nunca fui pobre, mas não era sequer de classe média. Não havia luxos, havia livros. Os nossos projectos de vida, meus e dos meus irmãos, o modo como a minha mãe os via, não era em função do dinheiro. As primeiras calças de ganga que tive foi tarde.

 

A discussão é gratuita. E essa havia em abundância na sua casa. Resultava dos livros e do pensar.

Havia. A família materna, com que vivi e cresci, tinha duas espinhas dorsais de identificação: a política e a música erudita. É um clã. Não é uma família muito grande, mas é uma família alargada. Sempre foi, e manteve-se. E muito homogénea. Éramos 13, 14, 15, 16 militantes do PC, só na família. Ainda hoje, a diversidade vai entre o Bloco [de Esquerda] e o PC – é pouca. Arrisco-me a dizer que sou a pessoa mais à direita na família [riso].

A minha avó era professora do Conservatório. Fui o único que não andou no Conservatório em toda a família.

 

Porquê?

Não tenho qualquer talento musical. Gosto de cantar, cantar entre amigos. Tinha uma voz muito rouca. Boa para cantar fado. A minha família não ligava. Eu gostava muito.

 

Era considerado um toque de marialvismo…

Era. O fado tinha uma conotação que não tem hoje. As pessoas achavam graça quando eu cantava fado. Era um miúdo bem disposto, gostava de fazer rir. Um bocado teatreiro. 

 

E sempre era uma forma de conquistar um espaço seu.

A família tinha talento para duas coisas que me esmagavam. É deprimente cantar o Parabéns a Você ao lado deles, porque são todos muito afinados. A minha mãe cantou no Coro Gulbenkian. Uma vez circulou uma partitura e percebi o que era ser analfabeto. Não sabia lê-la. Também tinham todos jeito de mãos. Provavelmente procurava os meus nichos de mercado. Não era tanto revolta.

 

Qual foi a sua forma de rebelião? Em algum momento, de alguma forma, todos nos rebelamos contra a família.

Em coisas pequenas. Na forma como vestia. Era mais betinho. Também foi uma influência de ter estudado no Pedro Nunes. Sempre fui muito provocador. Mas isso é da minha natureza. A rebelião era permanente desse ponto de vista. Entrei aos 12 anos para a Juventude Comunista. Quando falo da minha vida política, ela começou talvez demasiado cedo. Talvez não.

 

Foi há 30 anos.    

Para mim não foi mau. Foi um espaço de socialização como outro qualquer. Há pessoas que saem com amigos, que bebem copos, que vão para os clubes, para os escuteiros, e há pessoas que se envolvem na política.

 

Também era o espírito de um tempo.

Com certeza. E o espírito da minha família. Nunca fui muito disciplinado. A política deu-me alguma disciplina. Capacidade de falar em público. De discutir. Deu-me um interesse direcionado. Tinha algumas características para uma adolescência perdida. Era um aluno irregular, com períodos péssimos e outros em que estava entre os melhores da turma. A escola não me interessava assim tanto. A política deu-me foco, permitiu-me ser consequente. Não ser diletante.

 

Era um pecado burguês, ser diletante?

Continua a ser um pecado horrível. Há coisas em que sei que ficou uma cultura comunista. O que é bom no ter tido esta formação é que é um travão. Detesto a diletância. Detesto-a e muitas vezes identifico-a em mim. A diletância e a inconsequência marcam parte do que faço.

 

As características que apontou, e que adquiriu na política, são fundamentais para a sua afirmação enquanto opinion maker.

A inconsequência também faz parte do trabalho do opinion maker. Falamos de tudo. Um estrangeiro, que não me conhecia, quando ainda não era um opinion maker, perguntou-me: “Você só se interessa por tudo ou interessa-se por alguma coisa?”. Uma pergunta acertadíssima. O problema é que, tendencialmente, só me interesso por tudo. Tenho paixões por coisas diferentes, novas. Inconsequentes. Aí, a política deu-me, mais do que disciplina, um sentido de dever. Enorme. Brutal. Asfixiante, às vezes.

 

Que se traduz em quê?

O que é que estou aqui a fazer? Para que é que trabalho? Qual é a função do que faço? Se tenho palco, para que é que o devo usar? A favor de quem? Sou incapaz de olhar para o palco que me dão e pensar: “Agora vou dizer o que acho, e pronto”. Fui dando provas de que sou uma pessoa livre, que pensa pela sua cabeça. Mas não acho que pensar pela minha cabeça e dizê-lo chega.

 

Esteve quase sempre ligado a grupos políticos. O PC, a Plataforma de Esquerda, e com uma maior exposição pública no Bloco. Mesmo que dê provas de que pensa pela sua cabeça, tem a noção de que é considerado alinhado?

E quero ser. Vejo-me como uma voz alinhada. No dia em que disserem que sou independente, fico triste. Não o quero ser na vida. Quero ser comprometido. Mesmo que venha a não ser de partido nenhum. Como opinador: o que é que interessa o que o Daniel acha? Não é que represente um partido. Fiz sempre por não representar um partido nas minhas opiniões. Mas quando escrevo tenho um compromisso com uma área política.

 

O Bloco?

Não é o Bloco. É mais ampla do que o Bloco. Para simplificar, vai de sectores do PC a sectores do PS. Sou um social democrata. Coisa que a maior parte das pessoas do Bloco não é. Estou comprometido com essa área enquanto forem essas as minhas convicções. Mais do que comprometido politicamente, é um comprometimento social. Costumava dizer (e já não estou a falar como opinador) que numa guerra entre patrão e sindicato, escolho o sindicato, mesmo que o sindicato não tenha razão. O patrão já tem muitos porta-vozes. Não precisa de mim para nada. (Isto é uma metáfora. Até já critiquei sindicatos.) O que quero dizer: eu, com razão, sem razão, enganando-me, acertando, sinto que tenho um privilégio.

 

O privilégio de ser ouvido, de ter uma tribuna.

Um privilégio nunca merecido, obra do acaso, da sorte, de algum talento, seguramente; mas há milhares de pessoas que têm opiniões como eu e que conseguem expressá-las como eu e que teriam direito a ter espaço. Aproveito o privilégio, para usar aquela frase horrível do MR[PP], não para dar voz a quem não tem voz. Não tenho esse direito, de achar que sou porta-voz. Ninguém me elegeu para isso. Mas para tentar, numa agenda mediática completamente distorcida, puxar um bocado para o outro lado. No dia em que não cumprir este dever, não tenho legitimidade para escrever num jornal. Serei apenas mais um.

 

Como é que concilia esse comprometimento e sentido de dever com a liberdade que disse sentir que tem?

É possível. É aliás a única maneira. O comprometimento que não é livre não é comprometimento – é obediência. O comprometimento tem de ser crítico. Penso pela minha cabeça e a minha cabeça está comprometida. Colunistas e opinadores que não fazem parte de uma cultura política são borboletas. Dizem uma coisa hoje, outra amanhã e nada daquilo bate certo. Tenho uma linha de raciocínio, que não é estática, mas que é coerente. É a minha coerência que me permite ser livre. Não recebo ordens para dizer o que quero dizer. Concordarei com 60% das coisas que o Bloco defende. O que é imenso. Há poucas pessoas individualmente com quem concordo em 60%. Não deixo é aparecer 40% com os quais não concordo. Não entro em guerras permanentes com o Bloco. Não faço da minha liberdade uma bandeira.

 

Ultimamente a divergência entre o que pensa e o que o Bloco defende tem aparecido mais.

Tem. Acho que estou a defender, mais coisa menos coisa, o que sempre defendi. O Bloco tem tido algumas derivas que me agradam menos. Não faço disso um drama.

 

Depois de ter saído da Comissão Política, sente-me mais livre para exprimir essa dissidência, o desacordo em relação às derivas do Bloco?

Minto se disser que não. Ser dirigente de um partido [e ser opinador] – e isso pesou para deixar de ser dirigente, por opção própria – [resultava] numa situação injusta para todos. Quando escrevia a minha opinião, muitas pessoas que me liam achavam que aquilo era a opinião do Bloco. Era injusto para o Bloco porque muitas vezes não era; era a oposta. E às vezes havia um desconforto com o que eu escrevia (não que alguma vez alguém da direcção do Bloco me tenha chamado a atenção).

 

Um dirigente pode ser opinador?

Um dirigente pode ser tudo, menos jornalista e juiz e mais duas ou três actividades. Jornalista no activo, ou numa redacção, ou de política. Já critiquei decisões do Bloco em que estive envolvido. Havia qualquer coisa que roçava a deslealdade. Por outro lado, não podia ser desleal com os leitores e dar uma opinião que não era a minha. Percebi que não estava a conseguir gerir bem a situação e que tinha de fazer uma escolha. Só passei a ser comentador nessa altura. Até lá, era um colunista alinhado politicamente. Já só pessoas muito distraídas me vêem como dirigente político. Não sou, e tenho uma actividade partidária mínima. 

 

Não ter actividade política era sequer uma possibilidade, aos 12 anos, quando iniciou o seu percurso político?

Não. Continua a não ser. A minha grande opção, do ponto de vista profissional, não era a política. Decidi que ia ser jornalista na quarta classe. Adorava política internacional. Ofereciam-me o guia do Terceiro Mundo, uma espécie de Atlas político (alinhado politicamente, é claro). Ser funcionário de um partido não estava no meu horizonte. Nunca pensei que viria a ser dirigente partidário.

 

Porque não?

Gosto de estar num partido, mas não sou um homem de partido. Sou um individualista. Sou demasiado egocêntrico, vaidoso, autocentrado. O que torna difícil a convivência num partido. É sempre uma enorme tensão entre o sentido de dever e a minha natureza.

 

Ainda mais para uma pessoa que aponta como ídolo Álvaro Cunhal.

Era um ego-maníaco. Era um autoritário. De uma inteligência superior. Ainda mantenho uma razoável admiração por ele. Mas mandava no partido. Como não acredito em partidos assim, não há espaço para ego-maníacos.

 

Gosta de estar no grupo, nos partidos. Ao mesmo tempo, quer ser protagonista nessa peça que é representada.

Pois. Talvez. Não sei se alguma vez fiz essa escolha. Se era capaz de viver no absoluto anonimato? Era. Nunca quis ser famoso. Os miúdos querem ser reconhecidos; nunca tive isso. Não vou dizer que nunca quis ser protagonista. Todos somos um pouco vaidosos. Se não quisesse nenhum protagonismo, não entrava num programa de televisão. Mas nunca foi um objectivo da minha vida. Ter importância nas coisas, foi. Gosto muito de ter um papel na sombra. Um papel determinante na sombra. E tive. Em vários momentos.

 

Isso é ser o ideólogo?

Ideólogo, estratega, táctico.

 

É o reconhecimento da sua inteligência?

Isso chega-me. Até porque sei que o protagonismo é fácil. É tão mais fácil! Para ser reconhecido basta aparecer. “Gosto muito de o ver na televisão.” Não é: “Gosto muito do que diz”. É preciso ter talentos de comunicação. Não é preciso ser especialmente inteligente. O meu boneco [televisivo] é sempre um bocadinho mais estúpido do que eu. A maior parte dos bonecos das pessoas que conheço são mais estúpidos do que elas.

 

Partes boas do reconhecimento?

Fazerem-nos sentir importantes. Desde que não percamos a noção de que essa importância é falsa… Não terei direito a uma nota de rodapé de uma nota de rodapé de uma nota de rodapé da história de qualquer coisa. Não sou deslumbrado. Gosto de falar de mim, mas isso não é novo. [riso] Mesmo quando ninguém sabia quem eu era gostava de falar de mim. Pelo contrário, a exposição pública reduziu a minha vaidade. Pôs-me no meu lugar. De repente ficamos inseguros.

 

Voltemos ao momento em que se jogam as grandes cartas. Houve um momento em que quis ter uma menção numa nota de rodapé? Um papel mais executor.

Não. Não sei se aguento essa responsabilidade. Uma das razões porque acabei por ser comentador é por que o papel de protagonista tem um lado que me estimula e um lado que me assusta.

 

E se a decisão for errada? – é isso?

Com certeza. É sinal de alguma fraqueza. No Bloco tive um papel relevante mas escondido, e sempre peneirado pelos outros. Tinha um papel nas decisões, mas não final e determinante. Não tenho assim tanta confiança na minha razão. É preciso ter uma grande autoconfiança (e eu tenho alguma) para se decidir o futuro de tanta gente. Sendo um grupo, permite que essa responsabilidade seja dispersa. A decisão colectiva tende a ser mais acertada. Várias cabeças juntas anulam as coisas realmente estúpidas. Não é humildade. É ter a noção dos nossos limites.

 

Em português curto e grosso: é uma questão de tomates?

Acho que os tenho bastante. Se há qualidade que acho que tenho é a coragem.

 

Afronta poderosos. A zanga com o clã Soares dos Santos é apenas um dos casos.

A coragem tem sempre um grau de inconsciência. O que é que me pode acontecer? Nada de especial. Ficar sem emprego. Acho que me consigo virar. Se não corro o risco de passar fome, chega.

 

Vou perguntar de outra maneira: o que é o torna vulnerável?

A melhor maneira? Não me importar de ser vulnerável. Há um lado de arrogância na coragem. Tenho-o. Não me preocupa a minha respeitabilidade (no sentido mais bacoco do termo). “É muito interessante, muito inteligente, muito culto…” Como se a cultura fosse um Ferrari que se anda a mostrar por Portugal. Estou-me nas tintas para isso. O dinheiro: gosto de viver bem. Não vivo com excessos. Na Índia entrei no lobby do Taj Mahal e não me apetecia ficar ali. Há um luxo a partir do qual não me sinto confortável.

 

Advém uma culpa de um conforto excessivo?

Sim.

 

Viver numa casa com jardim, como esta, e provindo de uma família como a sua…

… não há dia nenhum que não me ocorra que sou um privilegiado. Até porque não há dia nenhum em que não escreva sobre a desigualdade em Portugal, a pobreza. Não sinto uma culpa que tento permanentemente expiar. Vivo exclusivamente do dinheiro do meu trabalho. Não exploro ninguém, não tiro dinheiro a ninguém. Mas sei que há muita gente que trabalha muito e que tem pouco. Nas opções privadas tento não ser contraditório, mas sou. Não consigo ser coerente entre o que apregoo e o que faço. Como quase toda a gente. Os que conseguem, assustam-me.

 

O que é que muda significativamente quando vive com mais dinheiro ou menos dinheiro?

Perde-se liberdade. O que não quero é ter um nível de vida que me tire a liberdade. Não me endividar excessivamente (as minhas dívidas são as da generalidade das pessoas – comprei casa).

Não consigo perceber porque é que a tantas pessoas que escrevem falta coragem. De que é que têm medo? Há uma coisa que me afecta: se alguém me chama cobarde. É pior do que tudo. Há um lado de vaidade que me move na minha coragem.

 

Como é que lida com o seu erro?

Depende do erro. Estou a rever textos, vou publicar em livro algumas crónicas. Mil e tal textos. Encontro ali muitos, muitos erros. [Leio os textos] com alguma distância, com naturalidade. E até com um riso trocista em relação a mim próprio. “Daniel, és tão exagerado” “Tens alguns ódios de estimação que te cegam”.

 

O que é que o cega?

Nalguns casos, paixão. Sentir que tenho um dever de combate, que me tira o distanciamento necessário para perceber o que está em jogo. Evito escrever sobre pessoas que conheço bem. Já escrevi mal sobre pessoas de quem gosto e conheço. Já escrevi bem de pessoas que não suporto pessoalmente. É mais o que representam. Pessoas como [Alexandre] Soares dos Santos: não tenho nenhum ódio pessoal, não o conheço. Mas há nele uma arrogância social que me tira do sério. Ou mexe nas minhas raízes comunistas ou não sei o que é.

 

É um self made man, Soares dos Santos.

Não tenho especial respeito pelos self made men. Respeito pessoas que escreveram livros que mudaram a vida de outros ao lê-los. Respeito pessoas que se envolveram politicamente e ajudaram a mudar a vida dos outros. Não é preciso ser um génio para ficar rico.

 

Se fosse tão fácil assim, mais pessoas estariam ricas.      

O que me interessa é o que estas pessoas fizeram pelo sítio onde vivem. Irrita-me o paternalismo. Quanto mais pobre e desigual é o país pior são as suas elites económicas. Acham que tudo lhes é devido. Que tudo o que têm é direito seu. Que não devem nada à comunidade. A maior parte é ignorante. Confesso: sou snob em relação à nossa elite económica.

 

Vamos tergiversar: frequentou o ISCTE mas não concluiu a licenciatura. Foi uma escolha? Foi uma forma acintosa de dizer que não precisava do canudo para se afirmar?

O meu percurso académico é bastante atribulado. Não acabei sequer o liceu quando era suposto acabar. Interrompi os estudos para ser estafeta.

 

São devaneios de menino.

De menino, não. Que não tinha dinheiro.

 

Sabia que não morria à fome. Tinha sempre garantida a rede mínima por trás.

À fome não morria, como a maior parte das pessoas não morrem. Foi um período atribulado.

 

Foi nessa altura que foi trabalhar para O Século? Tinha 18 anos?

Quando fui para estafeta, tinha 17 e fui para a Sábado. Tinha muita vontade de trabalhar. Tinha a possibilidade de entrar para um jornal por via familiar – não quis. Tinha uma necessidade enorme de afirmação. De saber que o que conseguia não o devia a ninguém. Depois fui para O Século, depois para o Diário de Lisboa. Depois para a tropa, onde acabei o liceu. A escola não me entusiasmava e não me chegava.

 

O que sustentava a singularidade da família era serem intelectuais. São precisas ferramentas.

A minha mãe nunca ligou ao curso. Achava que não devíamos ser o melhor aluno, porque o melhor aluno é odiado. Valorizava o trabalho.

 

Não foi uma forma de insubmissão ter ido para estafeta?

Não. A faculdade, basicamente, não gostei. Já era jornalista. O curso era para me dar prazer, para orientar leituras. A disciplina [leccionada] pelo Paulo Pedroso foi a única de que gostei. Fui copy numa agência de publicidade durante um ano. Foi um tempo de experimentação. Hoje existe a ideia de que se deve acabar o liceu, fazer o curso, escolher uma carreira… Não olhei assim para a vida, e não olho.

 

O desarrumo é bem vindo?

É. Não é abrir um restaurante hoje e amanhã estudar ciência política, e no dia seguinte dedicar-me à astrofísica. Tudo isto tinha balizas de interesses. E, é preciso dizê-lo, sustentando-me a mim próprio. Mudou um pouco a partir do momento em que tive uma filha.

Depois fui para Praga. Tinha 24 anos.

 

Como é que foi dar a Praga, onde tinha estado na adolescência? Eram ainda coisas do comunismo?

Não. O meu irmão vivia em Praga. Na publicidade ganhei bem e consegui juntar dinheiro. Queria levar uma vida frugal e ler. Isso sim, foi um devaneio. Não acho mal se o fizermos com o nosso dinheiro e não com o dos paizinhos.

Já lá tinha ido no tempo do comunismo, em 1984. Abalou muito as minhas convicções políticas.

 

Em 1998 ganhou o prémio Gazeta Revelação com um trabalho sobre a Primavera de Praga.

A primeira visita que fiz ao estrangeiro foi à então Checoslováquia, num grupo de filhos de sindicalistas. Para um campo de pioneiros. Foi um embate. Cresci intelectualmente muito cedo e emocionalmente muito tarde. Por um lado, tinha interesses que não eram habituais. Por outro, brincava com soldadinhos às escondidas.

 

O que é que foi chocante em Praga?

A disciplina. A falta de liberdade. O que vem nos comentários dos jornais: uma escola a sério, disciplina, exames na quarta classe. O que muitas pessoas querem da escola para os seus filhos foi o que me fez afastar do comunismo. A disciplina como um valor e não como um instrumento. Desse ponto de vista, aquilo era o sonho pequeno-burguês. Tinha alguma estabilidade económica. O direito ao mínimo. Coisas que ainda hoje valorizo. E tinha o resto. O anular da individualidade. Do risco. Mais do que ter ficado chocado, aborreceu-me mortalmente. Rapidamente comecei a instaurar o sistema capitalista, porque comecei a trocar autocolantes coloridos (que lá não havia) por carradas de chocolate. Capitalismo especulativo! [riso] Logo a seguir fiz a escola de quadros do PC.

 

O que era, para um miúdo de 14 anos, fazer a escola de quadros do PC, como fez?

Era uma vivenda onde o PC fazia cursos de formação política. Em regime de internato. No meu caso foi uma semana.

 

Davam-lhes uns livros para ler?

Aulas, discussões, trabalhos. Era dirigido a jovens. Que eu saiba, fui a pessoa mais nova [a frequentá-lo]. Foi desinteressante. Em 1984 estava longe a queda do muro, mas havia a Polónia, o Afeganistão..., e eu estava mesmo à espera que me explicassem tudo. Fizeram o pior que podem fazer a um adolescente com as minhas características: tratarem-me por parvo. Assumir que as minhas dúvidas eram resultado de ouvir as pessoas erradas, fazer as leituras erradas. Percebi que as respostas evidentes eram as que tinha na minha cabeça mas que não queria verbalizar. Começo a ter um pensamento desalinhado. Até aí, era um indefectível.

 

Há uma emancipação em relação à família? Foi o começo de um cisma?

Com a família, não. A minha mãe e a minha tia eram do PC, mas não eram muito alinhadas. Já saíram quase todos do PC. Claro que as minhas dúvidas eram mais radicais. Também tinha a ver com a idade. Não tive nenhuma má reacção da família quando saí, ao contrário do que é habitual – eu sei – em famílias PC.  

 

Saiu em 1989. Com a queda do Muro?

Uma semana antes da queda. Fui entregar o cartão, à noite, que foi recebido com razoável alívio. Eu já tinha tentado sair, mas era doloroso. Era um corte com a minha mundividência, mais do que com a minha família. A minha desculpa: num congresso da Juventude Comunista houve uma purga, e de uma pessoa especificamente, o Rogério Moreira.

 

Teve alguma relação directa com Cunhal?

Não. Deu-me uma vez uma festa na cabeça porque cantei no coro dos pioneiros. Pronto, este é o momento em que toda a minha credibilidade vai por água abaixo! Posso dizer que algumas vezes fiz as primeiras partes dos comícios do Cunhal.

 

Parece que está a descrever uma festa religiosa.

Há muito de religioso no PC, como toda a gente sabe. A presença física de Cunhal era magnetizante. E era um mito. Eu era um miúdo, era impressionável.

 

Quando é que cresceu emocionalmente?

Fui crescendo. Há coisas que ainda estão por fazer. Um grande salto foi a puberdade. Outro foi começar a trabalhar. Ter uma filha. Ter uma filha foi seguramente o mais importante. O peso brutal de ter uma pessoa que depende mesmo de mim... Deixou-me em pânico. É preciso ser muito maluco para ter um filho. Depois, corre bem. Corre bem para nós. Para eles, nunca corre bem. Façamos o que fizermos, estamos a fazer mal.

 

Ela é “a filha do Daniel Oliveira”?

Não, não. Não liga nenhuma. Passa pela televisão e nem olha. Nunca exibi, nunca apareci em revistas. Só se ela quiser é que sabem que sou o pai dela. Nunca me deu um sinal de que a minha visibilidade a marcava, tolhia ou diminuía.

 

Pôs como condição para esta entrevista não falar do seu pai. Porquê?

O meu pai mantém, por opção própria, uma reserva absoluta em relação à sua vida. Não quer existir publicamente para além do que faz e do que escreve. Eu respeito e não questiono esta escolha. Admiro. É mais difícil do que aparecer. Habituei-me desde cedo a que houvesse a tentação de eu ser o buraco da fechadura. Aprendi, com erros e acertos, que só há forma de lidar com isso: com o mesmo absoluto do meu pai. A minha fronteira é a dele. Não falo sequer da minha relação com o meu pai, ainda que o meu pai nunca me tenha pedido para não falar.

 

Pode, apesar da limitação, explicar como é que lidou com o peso de ser filho de um mito, e de como construiu um espaço à margem disso?

Houve uma altura da minha vida em que houve necessidade de afirmação. Se não quero que a minha filha seja “a filha do Daniel Oliveira”, muito menos quero ser eu “o filho do Herberto Helder”. O peso é muito maior. Não estou no mesmo campeonato. Fiz um grande esforço [para que não se soubesse]. Nos primeiros três anos da minha vida profissional ninguém sabia. Tinha a vida facilitada: o meu pai não faz vida pública. O meu nome, sendo dele, é um apelido que não usa. Porque é que durante anos uma pessoa deve esconder quem é o pai? Não sei se era natural. Sei que foi bom para mim. Permitiu-me mais rapidamente resolver esse problema na minha vida pública e profissional. Dedico-me à política, ao comentário. Coisas que seguramente o meu pai não quereria fazer. Acho que as pessoas que tiveram pais com importância pública percebem isto. Se é difícil ser filho de uma figura pública, ser filho de um mito ainda é mais. Porque a curiosidade das pessoas é muito maior. E porque o mito só tem qualidades.

 

E hoje?

Não é assim. Tenho uma relação pacificada e fácil com o facto de ser filho do meu pai. Nunca tentei acompanhar o patamar em que está. Uma vantagem. Como não é atingível, não está nos nossos objectivos. Ajuda a reduzir o deslumbramento. Afinal, tudo o que estamos a fazer não é assim tão importante. Tenho absoluta consciência da minha irrelevância pública.

 

A confiança que adquiriu em si fê-lo permitir-se deixar crescer a barba? Ficar mais parecido com o seu pai.

Sou muito, muito parecido fisicamente com o meu pai. Com a barba, fico ainda mais parecido. Se calhar, isso sempre pesou para não deixar crescer a barba. Gosto de ser parecido com o meu pai. É normal, quando chegamos a uma certa idade, gostarmos de ser parecidos com os nossos pais. Gosto de olhar para ele e ver-me. Mas acho que a razão por que deixei crescer a barba foi mais prosaica. Emagreci, a barba ficava-me melhor, gostei.

 

Está uns vinte quilos mais magro.

Agora, só quinze.

 

Porquê estas grandes oscilações? Coisa imprevista numa pessoa tão política, num intelectual.

Aparecer na televisão fez com que o corpo ganhasse importância. Tornou-me mais vaidoso fisicamente.

 

Desvalorizar a aparência era comum no PC a que pertencia.

Sim. Mas depois havia o João Amaral, que era um galã e que vestia muitíssimo bem. Sim, gosto de coisas boas e não tenho vergonha disso. E sou homem, superficial. Gosto de mulheres bonitas.

 

Não são umas mulheres bonitas quaisquer. As relações que lhe são conhecidas são com mulheres de personalidade vincada, com percurso profissional reconhecido.

Odeio bibelôs. Não procuro companheiras – como se diz na esquerda. Não sou capaz de ter uma relação próxima com alguém que não me estimule intelectualmente e que não tenha vida própria. Admirei, e admiro, todas as mulheres com quem tive relações, a todos os níveis. Tem a ver com o modelo feminino em que cresci.

 

É muito filho da educação que teve?

Sou. A minha mãe teve uma importância central na minha educação como pessoa. Um metro e meia de extraordinária força, intelectual, pessoal, emocional, que me marcou. Eu não choro. Nunca chorei à frente de pessoas que não fossem muito, muito, muito íntimas. Não quero responsabilizar só a minha mãe. Outro herói: Hemingway. Há quem ache que sou um pouco machista. Na minha adolescência eu queria ser como o Hemingway. Comecei a gostar de tourada por causa dele, por uma razão meramente literária. Gosto, e não me fica nada bem.

 

Hemingway encarna um lado aventuroso e sedutor.

Tem isso tudo. E uma imagem de masculinidade, de firmeza e força, que me ficou como virtude e como defeito. Tenho dificuldade em publicamente demonstrar os meus sentimentos. Sinto-me nu. (Há um ambiente piegas no espaço público. As pessoas põem frases espirituosas no Facebook, e dizem que estão apaixonadas ou tristes. Odeio isso.) Acho que devemos manter uma fachada. E acho que não devemos carregar os outros com o nosso sofrimento.

 

Falou quase nada de livros ou autores. A relação com as palavras começa cedo. O exercício retórico que domina a sua actividade profissional faz-se de palavras.

A leitura é para mim tão importante que sou o contrário de um citador. Só digo por palavras de outros se não conseguir dizer [pelas minhas]. As nossas leituras, devemos ter com elas a relação que temos com o dinheiro: só se explicitam quando tem de ser.

Na minha infância, a relação com as palavras não passava muito pelos livros. A política tomou conta de tudo (mesmo no caso do meu padrasto). Não sobrou espaço. Provavelmente, até se liam maus livros na minha casa porque eram de camaradas! 

 

Que coisas leu e que foram marcantes?

Não consigo dizer. Consigo falar de autores que me marcaram numa frase específica. Recentemente li o Anna Karenina. Adorei.

 

É um livro de que as meninas gostam. Imaginei que fosse gostar mais de gostar do Guerra e Paz.

Estou a ler agora.

 

Como é que se tornou um dos opinion makers mais proeminentes da sua geração? 

É tão difícil perceber. Não era nada o que tinha [previsto]. Faço projectos. Apesar de achar que as coisas não têm que ter um percurso clássico, não gosto de as deixar ao acaso. Não gosto de me deixar ir em nada. De sentir que não fui eu que escolhi.

 

A imagem que passou ao longo da entrevista foi a de pouco ter sido escolhido.

Eu sei. Mas foi tudo escolhido. De forma emotiva.

 

Persiste na escolha?

Se me interessa. Senão, abandono. Foi o que fiz com Praga, com a publicidade, com o curso. Toda a vida julguei que ia ser sempre jornalista. Posso dizer que ainda era o que gostava de ser. Não gostava de ser nas condições em que é possível ser. O trabalho do jornalista, em 99% dos casos, é pouco autónomo. Não estou a falar de liberdade de opinião. Estou a falar de liberdade de escolha. É um trabalho muito proletarizado.

 

Porque é que abandonou o jornalismo?

Abandonei por opção. Lembro-me do momento. Estava numa inauguração de uma autoestrada no Alentejo, atrás do Jorge Coelho. Olhei à minha volta. “O que é que estou aqui a fazer? O que é que isto me interessa?”. Decidi que não ia passar a minha vida a fazer aquilo. Preferia servir cafés. Pelo menos, não exigia nada intelectualmente de mim. (Ainda uso muitos neurónios para coisas que não têm importância nenhuma. Mas menos. É a vida.) Tinha um convite para ir trabalhar para o Bloco. Fui e avisei que só ia ficar quatro anos e que não iria ser assessor de imprensa. Claro está que ao fim de seis meses era assessor de imprensa.

 

O jornalismo ficou arrumado?

Não quer dizer que não volte. Mas não há lugar. O que gosto de fazer é reportagem, e teria de ser o melhor repórter do país para conseguir voltar e fazer só reportagem. Não sou o melhor repórter do país. 

 

Paralelamente, o Barnabé, e depois O Arrastão, foram determinantes para o seu reconhecimento no espaço público. Sintomático de um geração, também.

Não consigo não escrever. Depois convidaram-me para escrever no Expresso e na mesma semana para o Eixo do Mal. Aí sim, fui escolhido. A minha vida mudou. Nem eu sabia quanto.

 

É sobretudo o dinheiro, a visibilidade? O poder.

É outro poder, com o qual tive de aprender a lidar. A visibilidade muda mais do que parece.

 

As pessoas que o reconhecem na rua estão à espera de uma cartilha?

Sim. Mas não faço nenhum esforço para corresponder ao que esperam. Perde-se privacidade. É mais difícil ter vidas duplas, triplas. Também não é nada de insuportável. O mais importante que muda: o espelho torna-se enorme. O olhar dos outros sobre nós é-nos devolvido com muito mais frequência e obviamente distorcido. Com violência. Tenho uma carapaça muito boa.

 

Percebeu que a tinha ou adquiriu-a?

Tinha. Era natural em mim.

 

É belicoso?

A discutir, sou. Mesmo nas relações pessoais. Mais do que as pessoas vêem na televisão. Por entusiasmo. Não sou nada conflituoso. Sou uma pessoa bem disposta grande parte do tempo. Tenho crises de mau feitio fortes e espaçadas. Tenho um grande prazer em discutir. Vem da família. Discutimos todos assim. Aos gritos. Com paixão. Como se fosse a última discussão das nossas vidas. As pessoas que vêem a minha família ficam aflitas, julgam que estamos quase à estalada. Cinco segundos depois parece que a discussão não existiu. Estamos a comer e a mandar piadas uns aos outros. É muito, muito raro ter uma zanga com uma pessoa. É muito difícil melindrar-me, magoar-me. Dou quase sempre um desconto. Sou bruto. Gosto de pessoas brutas. Desconfio de pessoas demasiado simpáticas. Fico desconcertado com elogios.

 

Não sabe se estão a sério?

Se estiverem a sério, ainda fico mais! Tenho um lado exuberante e um lado tímido. Vivo melhor com a crítica.

 

Com a patada, sabe como reagir?

Sei. Sei desviar-me. A patada pública: presto-me a isso. Sou truculento nos meus textos. É normal que as pessoas o sejam comigo. As pessoas não me conhecem. É do boneco que estão a falar. O boneco não sou eu. Tem partes de mim, fui eu que o escolhi, não é completamente à parte. A generalidade das pessoas que me conhecem publicamente e depois pessoalmente ficam espantadas.

 

Acha que vão ficar espantadas com o que aqui conta de si, com o que deixa entrever?

Não sei. Acho que se espantam porque sou mais simpático do que imaginam. Tenho sentido de humor.

 

Faz autoironia, e sabe que isso é uma arma.

Ah, faço. Sempre a usei. Os meus amigos diziam que eu era convencido. Sou. Combati isso. Percebi que não resultava. O melhor era começar logo a fazer piadas sobre o assunto. Torna o convencimento menos patético. A vaidade é sempre um bocadinho patética. Às vezes sou pateta. Por exemplo, cito-me demasiado a mim próprio. Faço coisas que sempre disse que nunca faria. A autoironia é um bom contrato que faço com os outros. É uma maneira de dizer “desculpa lá”. Depois, o que as pessoas vêem na televisão são as minhas sobrancelhas com um ar agressivo, sinceramente indignado. Fico espantado: como é que ainda consigo indignar-me?

 

Boa questão. Alguma coisa morreu em si?

Do fundamental, nada. Trinta anos de militância política, 24 anos de actividade mediática, e ainda não fui atingido pelo vírus do cinismo. Vou tentar descrever o fenómeno fisicamente: os meus pulmões ainda se enchem de indignação ou de entusiasmo ou de paixão pelas coisas como há 20 anos. Há uma pessoa que diz que mesmo no cinema só choro com injustiça. [riso] Não choro com cenas românticas. Não é por não me tocarem. É que há um lado em mim que ainda sente aquela coisa de que o Sérgio Godinho fala, “a raiva a crescer-me nos dentes”.

 

É também ressentimento?

Não. Ainda sinto uma profunda tristeza perante a miséria, perante a desgraça evitável. Ainda não posso nem sei ficar calado. Significa que ainda tenho o sentido do dever. Digo “ainda” porque ninguém sabe o que é a que vida nos faz. O que é que o conforto nos faz. O que é que o egoísmo nos faz.

 

O que é que o reconhecimento nos faz.

O que é que o reconhecimento nos faz. O que é que a proximidade da morte nos faz. Não faço juras. Não juro que não venha a ser um oportunista. Mas não estou mal, aos 42 anos.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012

Isabel do Carmo e Isabel Lindim

27.07.21

Isabel Lindim é filha de Isabel do Carmo. Desde sempre é a Bli. Nasceu no começo de 1972, quando a mãe já era médica-endocrinologista e fundadora das Brigadas Revolucionárias. Hoje, quando olha para as fotografias do Verão Quente de 75, vê na cara da mãe a preocupação. A derrota aconteceria no 25 de Novembro. Foi há 40 anos.

 A Bli é a filha. Isabel como a mãe, nunca chamada assim. A Bli é tão parecida com a mãe quando a mãe tinha a idade que ela tem hoje que chegamos a duvidar quem é quem. O discurso, a atitude distingue-as. A filha nunca terá a energia da mãe, confessa. A energia de quem tem a urgência de mudar o mundo. Mas a filha é tão de esquerda quanto a mãe e fascinada pelo tempo em que a mãe e Carlos Antunes fundaram as Brigadas Revolucionárias, militaram no PRP, Portugal era uma folha que parecia em branco. Por isso mergulhou nos arquivos em 2007, fez o site www.memoriando.net, com Alfredo Caldeira continuou o trabalho em www.casacomum.org, editou o livro Mulheres de Armas (2012) sobre a acção das mulheres nas Brigadas Revolucionárias. É jornalista.

Isabel do Carmo é natural do Barreiro. É especialista em endocrinologia e nutrição. É provável que aqueles que a consultam, e que nasceram depois das década de 70, não saibam do seu passado político, ou que esteve presa anos, da sua longa greve da fome. Os da sua geração lembram-se bem. Dela e de Carlos Antunes, co-fundador das Brigadas, seu companheiro durante 25 anos.

O que a seguir vão ler resume duas horas e meia de gravação. É um recuo no tempo, ao Verão de 75, à leitura de Isabel do Carmo do que então se passou (por exemplo, no 25 de Novembro), às memórias de Bli e ao que hoje compreende a partir do trabalho que investigação a que se tem dedicado.  

 

Quando olha para as imagens de 75, e era uma criança pequena, porque nasceu no começo de 72, o que é que vê?

Bli Lindim – As memórias que tenho são do jornal, o Revolução. Lembro-me de estar com muita gente à volta, tanto em casa como no jornal. Também passávamos algum tempo no partido.

 

O jornal era porquê?

Isabel – Era o Revolução, de que fui directora, e que o PRP [Partido Revolucionário do Proletariado] editou. Semanário. Um belo grafismo. Tivemos o gosto de o José Augusto França dizer que os nossos cartazes eram os mais bonitos das paredes de Lisboa. Essencialmente dava eco às lutas dos trabalhadores. Os jornais mais institucionais eram o eco das super-estruturas políticas, do governo provisório, e muito menos das lutas sociais.

 

Como é que percebeu – logo depois da revolução – que era indispensável ter um veículo?

Isabel – Raramente tínhamos acesso à televisão por causa do sectarismo dos partidos, que controlavam a televisão. Também fazíamos comícios. O PRP, considerado um pequeno partido, fazia um comício no Campo Pequeno, na Praça de Touros. Os jornais tinham uma grande força, eram muito lidos, e os revolucionários uma novidade. Fazíamos venda militante, directa, pelas ruas. Cada número tinha um editorial escrito por mim.

 

Já fez o exercício de ler editorial após editorial e perceber a cronologia e a substância desses dias?

Isabel – Sim. Não me envergonho do que escrevi. Li quando a Bli organizou o Memoriando [site/arquivo www.memoriando.net]. E quando na [livraria] Ler Devagar fizemos sessões que se referiam ao passado.

 

Que mulher é que era, sectária?

Isabel – Não. Não suporto o sectarismo. Nos anos 60 éramos todos sectários, uns mais do que outros. Nós, a esquerda, a oposição. Depois do 25 de Abril o sectarismo era mais forte porque havia mais possibilidades de expressão. Durante a ditadura, tal como as organizações, o sectarismo era clandestino.

Típico é o sectarismo dos anos 60. Há a Checoslováquia, o Maio de 68. Aparece a dissidência sino-soviética, aparecem as organizações maoístas – com as quais nunca me identifiquei –, as organizações trotskistas. E outros como nós, que não éramos nem maoístas nem trotskistas. Há uma explosão de organizações que reflectem aquilo que em Inglaterra se chama de Nova Esquerda. Esses grupos como que descobriam a verdade. Como se até aí estivessem envolvidos num discurso convencional e convencionado pela esquerda.

 

Ou seja, pelo Partido Comunista. Em Portugal, especificamente, a oposição era o PC.

Isabel – Sim. O facto de estas organizações descobrirem a sua verdade, e não lhe darem um carácter relativo e transitório que ela tinha, fazia com que houvesse muito proselitismo. Havia qualquer coisa de seita: não se podia fugir dali. O PC tinha apoios na União Soviética e uma estrutura diferente das pequenas organizações. E expulsava do céu, do paraíso da esquerda, os pequenos partidos!

 

Mergulhou nisto que é a sua história, ainda que enviesada, no livro Mulheres de Armas (2012), que incide sobre a acção das mulheres nas Brigadas Revolucionárias. Porquê?

Bli – Tinha especial curiosidade sobre a cisão de algumas pessoas com este sectarismo e com o começo das Brigadas Revolucionárias. As acções: a maior parte das pessoas que as praticaram só teve actividade nas Brigadas Revolucionárias. Algumas vinham de ambientes onde havia liberdade, chegaram aqui para estudar e depararam-se com situações terríveis. Os cavalos, a polícia a entrar pela universidade, a bater nas pessoas. Isto coincidiu com o conhecerem pessoas que tinham ideias concretas sobre o que se poderia fazer para abalar o regime. Isto tinha que ser contado, não é? As pessoas têm que ter noção de que existiram organizações, a ARA [Acção Revolucionária Armada, do PCP], a LUAR, [Liga de Unidade e Acção Revolucionária] e os Católicos Progressistas, que tiveram acções muito importantes anteriores ao 25 de Abril. Não foram só os militares que quebraram com o regime. Ele já estava abalado.

 

Debruçou-se sobre as fracturas anteriores ao epílogo que foi o golpe dos militares?

Bli – Sim. No início fui também ao arquivo militar do exército. Há relatos de militares, percebe-se que aquelas acções [das organizações citadas] tinham efeito. Eram exercidas em quartéis. Não conheço muitas pessoas da minha idade que conheçam essa história. Conhecem a minha mãe como figura política, e não só, mas a história das Brigadas ficou escondida.

 

E o sectarismo, encontrou-o na leitura dos editoriais?

Bli – Não. No Revolução, de todo. [Sobressai] a necessidade de defender a luta operária e os agricultores, de lhes dar voz. Não vejo ataque político. Gosto da imagem que tinham, muito vanguardista.

 

A vanguarda no grafismo tinha que ver com a relação da Isabel com o Ernesto de Sousa (artista, crítico de arte, fundador do movimento cineclubista)? Viveram juntos, antes de a Isabel casar com o pai da Bli. Mais tarde vive com Carlos Antunes.

Isabel – As pessoas relacionadas com o Ernesto de Sousa acabaram por ser os nossos gráficos. O Carlos Antunes tinha vivido na horrível estética do estalinismo.

 

Uma estética dominada pelo carácter hegemónico do edifício bruto, do colectivo sobre o indivíduo (que isolado parece pequeno, frágil).

Isabel – A expressão estética tem que ver sempre com as outras. A arquitectura, imperial, não é muito diferente da arquitectura fascista-nazi. O estalinismo era aquele naturalismo soviético falso. As pessoas que eram desenhadas: era uma idealização de um proletariado que não existia.

 

Quando o conheceu, Carlos Antunes tinha abandonado essa estética estalinista?

Isabel – Sim. É importante as pessoas coincidirem nessas questões. Eu tinha vivido cinco anos com o Ernesto de Sousa. Era muito jovem, teve influência na minha formação. Ele era mais velho 19 anos. Foi um choque muito grande na família.

 

O primeiro choque, imagino, foi viverem sem um casamento.

Bli – Eu ouvi a minha avó falar sobre isso [risos]. A minha avó é uma personagem de um filme italiano.

Isabel – A minha mãe não era católica praticante, o meu pai não era católico. Tinham casado pelo civil nos anos 30, o que era uma proeza. Mas a obediência às normas era muito forte. A minha irmã não casou pela igreja, mas fez uma cerimónia de registo civil como se fosse pela igreja. Vestida de noiva, com menina das alianças. Eu saí totalmente das normas e foi traumático.

Bli – Depois melhorou porque casaste realmente, com um médico.

 

Com o seu pai, Orlando Lindim Ramos?

Bli – Sim.

 

Casou em que ano?

Isabel – Não me lembro [risos]. O Orlando tinha estado cinco anos preso em Peniche. Algum tempo depois conheci-o e casámos. Isso era completamente aceite. O que não era bem aceite era fugir às normas sociais, de regulamentação do relacionamento sexual.

 

A dificuldade era com o que tocava o campo sexual?

Isabel – Era. E as mulheres portuguesas foram muito marcadas por isso. Muito mais do que aquilo que se diz, muito mais do que as pessoas contam.

 

Era o medo da gravidez antes do casamento?

Isabel – Era a perda da honra. Estou a falar de uma família no Barreiro, em que as pessoas tinham cultura. Quando estas coisas se passavam nas áreas rurais, a rapariga era estigmatizada para o resto da vida.

Bli – Não consigo imaginar-me nesses contextos. Eu tive o contrário. Compreensão e apoio em todas as minhas opções. Mesmo quando eram as más.

 

De todos os actos de transgressão, ou lidos como tal, da sua mãe, qual é que mexeu mais com a família?

Bli – Quando foi presa. Não é bem uma transgressão, é uma consequência. As actividades políticas nunca foram objecto de crítica em casa. Contudo, quando foi presa foi um grande choque. Eu tinha cinco anos. Lembro-me de estar em casa da minha tia e de me dizerem: “A tua mãe vai estar presa durante um tempo, ficas aqui connosco”. Era um prédio de família. A minha tia vivia no primeiro andar, a minha avó no segundo. Foi durante a primária. Ainda bem que foi no Barreiro, porque fui muito acarinhada por toda a gente.

 

Vamos voltar há 40 anos e ao começo da entrevista. Quando vê imagens daquele tempo, o que vê na cara da sua mãe?

Bli – Era muito bonita. A partir de 75, vejo uma certa preocupação. Que só passou quando saíram da prisão, em 82. Ver uma fotografia de 82 e uma de 76..., é uma mudança impressionante.

 

Como é que era o sorriso dela?

Bli – Em 76 não havia muitos sorrisos.

Isabel – O 25 de Novembro de 75 foi a contra-revolução. O projecto de uma sociedade nova baseada no poder popular, com um poder económico-social diferente, tinha sido derrotado. O que não queria dizer que psicologicamente nos sentíssemos derrotados. Embora conheça muita gente que nunca se recompôs do 25 de Novembro.

 

Era uma questão de vida ou de morte? Uma parte deles morreu com a derrota do 25 de Novembro?

Isabel – Sim. Havia um projecto revolucionário, com muita esperança. Com muita fantasia, naturalmente. Algumas pessoas viram que o trajecto seria as coisas acabarem neste tipo de sociedade, da desigualdade e do domínio financeiro.

 

Nas suas fotografias antigas, vê esta preocupação que a Bli identifica? Sisuda.

Isabel – Vejo, vejo. A seguir ao 25 de Abril é uma alegria. Porque a ditadura tinha caído. Porque podia circular nas ruas, gritar, falar. E depois o fenómeno de organização das pessoas, espontâneo. A ocupação das casas, dos campos. Portugal era um país de castas antes do 25 de Abril. Havia pessoas que estavam abaixo do zero. E de repente tinham o direito de falar. Esta alegria não transparece nos livros de análise política mais institucionais, em que só se fala dos governos, dos ministros, das influências políticas.

 

Quer contar uma história de uma pessoa que nunca teve oportunidade de falar e que se manifestou?

Isabel – Aquelas senhoras que eram chamadas de criadas iam às assembleias onde estavam os médicos, os professores de faculdade, e falavam. Nós tínhamos uns assomos de organização nas associações de estudantes, havia regras de comportamento. Essas pessoas, não. Estou a lembrar-me dessas senhoras, as tais que vestem bata azul, a levantarem-se. Nos primeiros dias havia militares do MFA a dirigir as assembleias, e sabiam tanto das assembleias como estas pessoas que estou a descrever. Elas queriam era levantar-se e expressar os seus desejos, a sua revolta, aquilo que estava mal. Muito comovente. Isto ninguém me tira.

Bli – Toda a pesquisa que fiz foi anterior ao 25 de Abril. Algumas mulheres disseram que no pós 25 de Abril já não tinham vontade nem forças para continuar. Viveram aquele ano de efervescência e com o 25 de Novembro quebraram. O que me atrai é ouvir as histórias. Perceber o dia-a-dia de uma pessoa que, dentro de uma malinha, tem um explosivo para rebentar em tal dia.

 

Conte detalhadamente. Para se perceber o que é que representou o 25 de Novembro temos que ouvir mais sobre o antes, e até sobre a preparação do explosivo na malinha.

Bli – Tentei saber o que é que estas mulheres sentiam. O que é que as motivava a participar naquelas acções, tão corajosas? E não eram só as que carregavam bombas. Estou a falar das que davam a casa para clandestinos se esconderem. Não é fácil para essas pessoas lembrarem-se do dia-a-dia. Algumas conseguiam descrever os momentos de medo. Preparavam uma bomba sem experiência alguma sobre o assunto. Uma mãe estava com o filho num dia em que houve um erro técnico e uma explosão de que resultaram duas vítimas. Ela estava a dar apoio, dentro de num Mini, com o filho, perto da estação de Santa Apolónia. Tinha mais explosivos no carro. Disfarçada de peruca. Aconteceu uma explosão no porta-bagagens, mas eles não ficaram feridos.

 

Estas mulheres eram, mais do que tudo, estudantes?

Bli – As mais novas, estudantes, eram demasiado destemidas. Os elementos mais velhos que participavam nas acções – e o Carlos Antunes, também – tinham que lhes dizer: “Cuidado, não se pode mesmo falar destas coisas”. Elas tinham vontade de contar! Sentiam aquela coisa: “Estes colegas são pessoas esclarecidas sofrem com a repressão na universidade, posso contar com eles”. Depois havia as outras mulheres que já trabalhavam, que tinham filhos. Essas sentiam o medo na pele, mesmo.

 

A seguir a 74, e durante aquele ano tão cheio, quais foram os grandes acontecimentos, os momentos de fractura?

Isabel – Fractura, não houve. Todos os dias havia manifestações, grandes e pequenas. Comícios. E contacto com jornalistas, éramos objecto de curiosidade. E contacto com grupos estrangeiros. Depois do 25 de Abril, o PRP passou a protagonizar a acção, as Brigadas desapareceram. Já não era o momento de acções. Era o momento de outro tipo de luta.

 

Desapareceu a vertente militarizada dessas acções e concentrou-se a acção na ideologia e na política. Era isto?

Isabel – Completamente.

Bli – E na produção de documentos.

Isabel – Caramba, uma pessoa poder escrever, poder dizer o que pensa. E isso de um dia para o outro. Algumas pessoas das Brigadas tiveram resistência a esta mudança. Pessoas que pensaram: “Esta não é a nossa revolução”.

 

Desde o princípio? Porquê?

Isabel – Nos primeiros dias. Não era a nossa revolução. Tínhamos contribuído para ela, bastante, porque as acções tinham enfraquecido o regime. Mas não era a revolução socialista. [Esta resistência] tem pouca expressão. A maior parte da organização vem para a rua, para as manifestações, faz cartazes, bandeiras.

 

Estava entre o grupo que disse que aquela não era a revolução socialista ou pertencia aos moderados?

Isabel – Fui eu que redigi o primeiro comunicado a saudar a revolução e a dizer que as formas de luta iam ser outras. Para mim foi claro desde as primeiras horas. Não era a nossa revolução, mas era a revolução da liberdade.

Bli – Eu gostava de saber como era o dia-a-dia nesse ano e meio. Insisto nisto. Gosto da história da vida privada.

Isabel – A história da vida privada é que não havia vida privada [risos]. Habitávamos transitoriamente aqui e acolá, os três, o Carlos Antunes, a Bli e eu. Nunca tivemos casa. Inicialmente havia uma casa clandestina que se manteve depois do 25 de Abril, e onde estávamos com outras pessoas. Depois habitámos a sede do PRP.

 

Porque é que não tinham casa? Porque isso era uma preocupação burguesa, porque não havia dinheiro e havia coisas mais urgentes a fazer?

Isabel – Não era uma questão ideológica. Eu até gostaria de ter uma casinha e estar lá sossegada com a Bli.

Bli – Sossegada não acredito que gostasses.

Isabel – Foi mais prático assim. Havia a sede do PRP, uma casa ocupada na Rua Castilho que tinha um quintal. Nós passámos a habitar no sótão. Saíamos dali para as reuniões, para as manifestações. Tínhamos um quarto, uma casa de banho. Não sei bem como é que comíamos. A Bli tinha uma caminha ao lado.

Bli – Tomávamos banhinho? Tínhamos uma banheira? [risos]

Isabel – Como havia ocupação de casas, [os proprietários] retiravam banheiras, sanitas e bacias, para as casas não serem habitáveis. Neste caso, a porta não foi arrombada. O COPCON foi com as Chaves do Areeiro e abriu a porta. Para nos instalarmos tivemos que comprar sanitas, banheiras e bacias. Havia higiene.

 

Diz que era prático porque não se perdia tempo. Descreve um sentimento de urgência. Era assim que era sentido?

Isabel – Sim. Era a perspectiva de haver um poder revolucionário e um poder na base de uma nova estrutura – que não a representação democrática parlamentar. Mais do que isso, seria a constituição de conselhos, de comissões, de onde emanava uma representação para o poder central. Era esta a nossa concepção, que ainda tenho um pouco. Havia a urgência de implantar isso como base económica e social e lutar contra as desigualdades.

 

Se fossem governo…

Isabel – Nunca seríamos governo. O que sentíamos é que tínhamos muitas forças contra nós. A força da América, que queria aqui uma democracia e não uma coisa avançada, revolucionária. As outras democracias também não desejavam ver no extremo da Europa um braseiro revolucionário. E sobretudo a União Soviética não queria que se instalasse aqui um poder revolucionário que abalaria toda a sua política externa.

 

Não tinham aliados?

Isabel – Não.

 

Eram um bando de quantos?

Isabel – Era muito grande. A UDP tinha uma grande estrutura, também. Tínhamos sede em todos os concelhos. No Barreiro tínhamos várias sedes. Agora sou cabeça de lista em Setúbal pelo Tempo de Avançar, vou fazer reuniões. No outro dia, no meio do Alentejo, fui a uma herdade e aparece uma pessoa a dizer que era do PRP.

Bli – Essas pessoas passaram para outros partidos?

Isabel – Muitas passaram para o Bloco de Esquerda. Estiveram um tempo sem estar organizadas.

 

Vale a pena ir atrás e pensar na sua dissidência em relação ao PC e na fundação do PRP. É um corte com uma força organizada que durante décadas representou a oposição.

Isabel – A maior divergência talvez fosse a descoberta do que era o estalinismo. Vivíamos entre dois focos de informação manipulada, pela ditadura e pelo PC. Quando metíamos um bocadinho a cabeça fora de água (algumas pessoas iam a França, traziam publicações), começávamos a ver o que era a repressão naqueles países, o que tinha sido. Quando li a descrição dos processos de Moscovo, tive um choque enorme, enorme. Como se tivesse andado enganada até aí.

 

Leu isso em Paris, onde esteve seis meses a fazer um estágio de Medicina?

Isabel – Li em Portugal.

Bli – Às escondidas.

Isabel – Quando li a vida do Trotsky, tive a mesma sensação. Retrata a perseguição feita ao Trotsky, o assassinato. Ainda hoje não percebo como é que há pessoas que branqueiam o estalinismo, ou que não dizem que rejeitam aquilo.

 

Tem amigos comunistas?

Isabel – Ainda tenho. E sou capaz de me organizar com eles, episodicamente, para coisas concretas. São boas pessoas, mas penso que apagam um bocado [esta realidade].

 

Saiu formalmente em 70.

Isabel – Sim. Mas fui-me afastando.

Bli – O Marcello Caetano foi em 68. O grande ditador caiu, o fantasma foi-se embora, mas afinal as mudanças não foram muitas.

 

Isso acicatou ânimos?

Bli – Sim. Falo das Brigadas. Havia muitas pessoas que nada tinham que ver com o Partido Comunista. Em 69 começaram a perceber que não ia haver alteração.

 

Há uma data certa para a fundação das Brigadas?

Bli – Em 70, em Paris. Há documentos manuscritos em que se começa a delinear as Brigadas Revolucionárias e as suas acções. Uma pessoa, que conhecia o Carlos Antunes, guardou cinco caixas com documentos dessa altura. Passaportes falsos, bilhetes de identidade, descrições das reuniões. De Paris vêm para cá. O primeiro explosivo vem de avião. Hoje não conseguiam fazer estas coisas!

 

A fundação das Brigadas acontece na sequência da saída do PC?

Isabel – O Carlos Antunes e eu fundámos as Brigadas. Estou em Paris de Outubro de 69 a Março de 70. Como acontece sempre nestas saídas do PC, fizemos muito para ver se as coisas mudavam por dentro. E se por dentro se constituía uma organização armada. Começámos a ver que isso era impossível. A ruptura com o PC dá-se nesses meses. A fundação das Brigadas, também.

 

Até onde estavam dispostos a ir na luta armada? Isso estava determinado à partida?

Isabel – Ficou decidido que não se tirava a vida a ninguém. E assim foi.

 

Existe um documento com isso ou era um acordo tácito?

Isabel – Foi verbalizado com certeza entre nós. Temos muito poucas coisas escritas. Uma das nossas decisões era não escrever. Não escrever por razões conspirativas. E não escrever porque estávamos fartos de documentos. Não há direito a tirar vida a uma pessoa, mesmo que esta pessoa seja um inimigo. É a mesma filosofia que faz com que sejamos contra a pena de morte. Houve uma discussão inicial com o Nuno Bragança, que defendia que se tirasse a vida aos “pides”.

Bli – Todas as pessoas que ouvi nas entrevistas tinham isto muito presente. Havia organizações de luta armada noutros países onde havia vítimas. [Em Portugal] os explosivos eram postos nos quartéis e os prédios ao lado eram avisados.

Isabel – Avisados para não se assustarem, não era que a bomba fosse atingir o prédio.

Bli – Na Praça de Londres ainda houve um buraco na cozinha de um vizinho.

Isabel – Aí fui eu fazer o reconhecimento e decidir o sítio onde ela [a bomba] era posta. Era numa casa de banho que era capaz de ficar encostada a outra casa de banho.

 

O princípio era não matar ninguém. Sabiam que a bomba tinha um determinado alcance. Mas havia riscos. O procedimento era rigoroso?

Isabel – Muito rigoroso. Só não foi rigoroso quando explodiram as duas que mataram dois camaradas.

 

Foi quando? O que aconteceu?

Bli – Em 73. Era onde estavam as listas dos soldados que iam para a guerra. Como na maioria das acções, no quartel da Graça, na Rua Rodrigo da Fonseca, o grande objectivo sempre foi contrariar a Guerra Colonial.

 

A primeira grande acção foi o ataque à base da NATO, na Fonte da Telha. Quer destacar outra acção?

Isabel – O recuperar dos mapas em Dezembro de 72. Uma pessoa teve que se meter na sala [dos Serviços Cartográficos do Exército] onde estavam os mapas durante não sei quantas horas, e outros estavam à espera, cá fora. Carregaram cerca de 200 mapas, pesadíssimos, que chegaram a África, aos movimento de libertação PAIGC, MPLA e FRELIMO.

 

Há um vocabulário que diz respeito a uma acção, a um grupo, a um tempo. Disse recuperar (os mapas) e não roubar.

Isabel – Roubar tinha uma conotação negativa.

Bli – Mas não é bem recuperação porque nunca foram deles.

Isabel – O que se considerava era que as coisas pertenciam aos revolucionários, ao povo, à oposição, e que só estavam transitoriamente em mãos erradas. Como o dinheiro dos bancos.

Bli – Assaltos não eram bem assaltos: era a recuperação.

 

Quando é que a Isabel deixou de pensar assim e de usar essas palavras?

Isabel – Essas coisas têm épocas. Quando deixámos de as fazer [risos].

 

Isto é uma narrativa que tem palavras específicas e que conta uma história. Para si, dizer: “Vou recuperar um dinheiro que é do povo”, fazia-lhe sentido?

Isabel – Aquilo tinha um significado do ponto de vista político. Empregava-se muito a palavra assalto. O assalto não era roubo. A minha mãe teve um grande regozijo com os assaltos aos bancos de Alhos Vedros, perto do Barreiro.

 

Esse foi perpetrado por si?

Isabel – Não. Foi pelo Carlos Antunes. Nunca fiz assaltos.

Bli – Nenhum dos assaltos nem nenhuma das acções [foram feitas pela minha mãe].

Isabel – Transportei explosivos.

 

Porque é que não fez assaltos ou acções?

Isabel – Era muito conhecida, já nessa altura. E tinha uma vida legal muito estruturada. Era médica no Hospital Santa Maria.

 

É verdade que durante estes anos, uma vez por semana dava consultas no Barreiro?

Isabel – É.

 

Já era endocrinologista?

Isabel – Já era, felizmente. Ainda durante a ditadura fiz o exame da especialidade.

 

Conte mais porque é que nunca abandonou a Medicina, mesmo que só a praticasse uma vez por semana.

Isabel – Porque o meu projecto era ser médica. O meu projecto não era ter actividade política para o resto da vida. Tudo isto eram coisas transitórias. Fui sempre ao Barreiro fazer consulta em pleno processo revolucionário. Era complicado mas ia.

 

Como é que ia, de carro, de autocarro, de barco?

Isabel – Umas vezes de barco, outras vezes de carro. Tinha um Fiat 600.

 

Como é que tinha cabeça para fazer consulta? Hoje parece inconciliável, esse frenesim.

Isabel – Sou muito organizada de cabeça. Achei sempre que a Medicina tinha que ver com a política. É o contacto directo com as pessoas. Tenho a facilidade de estar sempre a fazer trabalho de campo e de investigação, que é ouvir os doentes. Não impingia aos doentes a minha maneira de ver a política, como também não impingia aos alunos, na faculdade.

 

Porque é que teve a Bli no meio deste turbilhão?

Isabel – Desejava ardentemente ter um filho. Foi tudo muito calculado. Primeiro fiz a especialidade, depois tive a Bli.

 

Estar tão empenhada politicamente não a fez sequer hesitar, adiar o projecto de ter um filho?

Isabel – Não. Os meus filhos sofreram muito com a minha actividade política. Tenho algum remorso a esse respeito. Quando vejo o que a Bli e o irmão dão às filhas..., a vida delas é um paraíso comparado com a vida que eles tiveram comigo. Instabilidade, não habitarem casas normais, não ter acesso às coisas. Tínhamos muito pouco dinheiro.

 

Por isso insisto em saber porque não adiou. Tinha noção de que a clandestinidade era uma possibilidade.

Isabel – E a prisão. É um caminho de coerência. Pensava o que pensava da ditadura, tinha que lutar contra ela. Isso fazia-me correr riscos. Mas também queria uma vida como mulher, com filhos. Então é andar para a frente, ter os filhos e fazer a luta.

Bli – Houve alturas em que tive que estar escondida com a minha mãe em casas.

 

O que é que lhe contaram sobre esse período na clandestinidade?

Bli – Estive em Sesimbra em 73, mesmo antes do 25 de Abril. Tinha um ano e meio e estava sempre a mexer-me.

Isabel – Na casa da Dra. Laura Ayres.

 

Não saíram de casa durante meses?

Bli – Não.

Isabel – Havia cães no exterior e ela queria ir ver os cães.

Bli – Devia ser muito complicado. Para a minha mãe, não para mim.

 

O que é que fazia com ela?

Isabel – Brincava, dava-lhe de banho, dava-lhe de comer. Havia um camarada meu... (Pseudónimo: Nuno. A Bli conhece bem. O Zé Ribeiro. Ele próprio pôs ao filho o nome de Nuno.

 

Como a Isabel pôs ao seu filho o pseudónimo do Carlos Antunes, Sérgio.

Isabel – Exacto.)

Bli – O Nuno de vez em quando aparecia para me levar um bocadinho à rua.

 

Quem é que lhe conta estas experiências de que não pode ter memória?

Bli – A minha mãe, sobretudo. E o Nuno. E agora estas pessoas que entrevistei [para o livro e o trabalho de arquivo]. Deu-me um enorme prazer.

 

Foi dessa vez que acabou por entregar a Bli à sua irmã?

Isabel – Foi. As histórias relacionadas com os filhos são as mais traumáticas. Nunca me separei do Sérgio. Da Bli separei-me várias vezes. Ela foi para casa da minha irmã e esteve lá até ao 25 de Abril. A minha irmã era uma querida, muito carinhosa.

Bli – Não tenho qualquer tipo de trauma. Tinha muito afecto. A minha tia tomou conta de mim apesar dos cinco filhos que tinha. Não senti nenhum vazio.

 

Decidiu que aquilo não era vida para a miúda.

Isabel – Foi isso. E sabia lá que é que se ia passar nos tempos mais próximos?

 

Não podia fazer outra coisa senão estar escondida e viver na clandestinidade?

Isabel – Claro. Muitas vezes, nos clandestinos do Partido Comunista, o pai é que era o clandestino e a mãe era uma clandestina relativa. Não era conhecida e podia sair à rua com os filhos.

 

Tinha contacto com o seu pai nessa primeira infância?

Bli – Até ao 25 de Abril, sim. Esteve na Argélia até ao 25 de Abril. Esteve uns seis meses na rádio Voz da Liberdade. Depois do 25 de Abril houve uma cisão familiar e estive uns anos sem o ver.

Isabel – Separámo-nos no 25 de Abril.

Bli – Voltei a vê-lo quando tinha nove anos. E gostei muito, foi uma alegria muito grande.

 

Voltando a 74, 75: a Bli andou sempre com a Isabel. Sensação de medo e do perigo, teve? Tem algum eco disso?

Bli – Nunca tive. Tinha imensas pessoas a darem-me atenção, a brincar comigo.

Isabel – Não tinha família em Lisboa, não tinha onde a deixar. Uma vez, um camarada do MPLA que viria a ser ministro dos Negócios Estrangeiros, o Venâncio, veio ter comigo à sede do PRP. A Bli vê pela primeira vez uma pessoa africana. “Porque é que este camarada é castanho?”

 

E dizia camarada? Tratavam-se todos por camarada?

Bli – Sim. Foi a primeira palavra que aprendi a escrever.

 

Quando é que percebeu que iam ser derrotados?

Isabel – Percebi antes do 25 de Novembro. Vê-se bem pela cara que tenho nos dias que precederam o 25 de Novembro. Houve uma possibilidade de as coisas irem no sentido revolucionário. Em Agosto de 75. É nessa altura que os sininhos começam a tocar para aqueles que não queriam o processo revolucionário. Nesse mês começa-se a organizar o movimento militar do 25 de Novembro, com o general Eanes, o Vasco Lourenço... Estou a dizer isto com a distância de 40 anos. Sou amiga do Vasco Lourenço. Há coisas por esclarecer. É um movimento organizado contra os revolucionários. A esquerda militar e civil não está organizada – nem para fazer um golpe de esquerda (como muitas vezes de fala), nem para resistir a este, ainda que a esquerda militar estivesse presente nos principais quartéis.

 

Quando a si, onde é que estava o PC?

Isabel – Em Setembro, Outubro há conversações com o PC. A base do PC era revolucionária. Alguns estavam armados, com armas do PRP. A direcção do PC queria aquilo que a União Soviética determinasse que tinha que ser. Dá-se uma negociação do PC, nomeadamente com Álvaro Cunhal, com Melo Antunes que consistiu em não deixar o processo revolucionário ir para a frente, não resistir ao processo militar do 25 de Novembro. Em troca: o PC ser respeitado, não ser proibido. Foi um negócio. Um negócio em que nós fomos peões.

 

Nós, quem?

Isabel – As pessoas que estavam no processo revolucionário. Percebia-se que isto ia acabar assim. E acabou.

 

Quem é que eram os vossos grandes inimigos?

Isabel – A direita.

 

É um pouco vasto. E a definição de direita então e hoje não coincide. Convém lembrar que chamar a alguém “social democrata” era um insulto.

Isabel – É extraordinário. Nos discursos do PPD havia camponeses e operários e posições muito mais à esquerda. Mas o que queriam era a manutenção de uma estrutura económico-social de sistema capitalista. O inimigo era a extrema-direita. Spínola era o líder da extrema-direita. Depois era uma escadinha por aí fora.

 

E o Partido Socialista?

Isabel – [No 25 de Novembro] o Partido Socialista fez a opção de se juntar à direita contra o processo revolucionário, sob a justificação de que o PC queria tomar o poder. O PC não queria processo revolucionário nenhum. Esta estratégia é muito clara nos documentos que revelam que Kissinger e Brejnev fazem a sua partilha do mundo. Portugal ficava para o lado americano e Angola para o soviético. Entre o Verão Quente e 25 de Novembro, joga-se isto.

 

Passados 40 anos, quem é que acha que tinha poder?

Isabel – Os militares tinham muito poder. Os militares que se juntaram à direita (não estou a dizer que eram de direita, mas que se juntaram à direita), porque acharam que era a táctica correcta, tinham poder. Os militares revolucionários tinham também muito poder. O forte de Almada, Estremoz, Setúbal, várias unidades em Lisboa, o próprio COPCON, tinham lideranças de esquerda. Mas não o usaram. E foram depois presos.

 

Tinha a imagem de a sua mãe ser poderosa?

Bli – Mais tarde, sim. Mesmo quando estava presa. Era uma pessoa muito admirada. Lembro-me de me orgulhar porque até pessoas de direita (falo de PPD e CDS) a admiravam. O Francisco Lucas Pires apoiou-a quando foi a greva da fome e quando saiu da prisão. Foi nessa altura que comecei a ter alguma consciência política. Tinha 11 anos, 12.

 

Falemos das suas prisões. A primeira vez foi quando?

Isabel – Antes do 25 de Abril, duas vezes. Uma vez a Bli ainda não existia e na outra tinha oito meses.

Bli – Foste presa comigo ao colo.

Isabel – Tinhas uma touca azul. Foi na sequência da morte do [estudante] Ribeiro Santos. Encontraram um manuscrito meu na Ordem dos Médicos e identificaram a letra. Era para ser distribuído a todos os médicos e dizia que o Ribeiro Santos tinha sido morto. O pai dele era médico.

 

Nas suas prisões, foi batida?

Isabel – Nunca apanhei. Nunca fui torturada. Mas foram prisões com violência, espalhafato. Uma grande imposição de poder.

 

Sonha com isso?

Isabel – Não. Os meus maus sonhos são de não ter casa. E uma vez ou outra, as perseguições, o risco da prisão.

Depois do 25 de Abril fui presa em 78. O meu filho Sérgio tinha uns meses. O pior foi a separação da Bli, mais uma vez. O Sérgio ficou sempre comigo. Ela foi ver-me, com o Cal Brandão, nosso advogado, ao Porto. Estive quase sempre em Custóias. A Bli atirou-se para o chão e chorou. A dizer que queria ficar com a mãe.

Bli – Não me lembro de nada disto.

Isabel – Mas de certeza que ficou.

 

Não pôde ficar com os dois filhos consigo porquê?

Bli – Eu não podia ficar porque tinha mais de três anos. Apesar de o meu irmão ter continuado quase até aos cinco. Passei lá períodos de férias. Clandestina.

Isabel – No final da visita, em vez de voltar com a família, ficava na cadeia connosco. Com a cumplicidade das guardas, sobretudo da chefe das guardas, que era uma senhora muito inteligente. O director fechava os olhos.

Bli – Divertia-me imenso. Com as prostitutas e as contrabandistas. Além de me contarem as histórias das coisas que faziam, pintavam-me as unhas. Aprendi a fazer crochet. Sessões de teatro.

Falava-se muito da minha mãe em casa, na escola. Na escola chegou a fazer-se um concurso de cartazes pela amnistia dos presos políticos. A professora era fantástica, a Dina. Espero que leia esta entrevista. Foi uma pessoa muito importante para mim.

 

“Amnistia pelos presos políticos”: era assim que eram considerados? Foram presos por acções que tiveram que ver com as Brigadas.

Isabel – Nós não tínhamos estatuto de preso político. Mas éramos considerados assim. Entre nós, com certeza. E também na sociedade. Excepto a direita que achava que éramos delinquentes, terroristas. Dentro das cadeiras, tínhamos o respeito de ser pessoas que estavam ali por razões políticas.

 

Lembra-se das cartas que lhe mandou quando ela estava na greve da fome?

Bli – Não. Lembro-me de ter algum receio. Fui visitá-la ao hospital com o aviso de que podia perder a vida. Porque iria até ao fim. Vi-a muito magra, muito magra.

 

Quantos dias esteve?

Isabel – Trinta. Podia ter perdido a vida. O Bobby Sands [guerrilheiro do IRA] foi até aos 50.

Bli – Tiveste soro?

Isabel – Não. Só quando nos hospitalizaram em Santa Maria. Aguenta-se mais a beber água. Se a pessoa não beber água, vai-se embora ao fim de menos dias.

 

Alguma vez pediu à sua mãe para comer?

Bli – Não! Nem a minha tia, ao ler as cartas, deixaria que essas chegassem à minha mãe. Uma vez tentei também fazer greve da fome. Mas só aguentei umas duas horas.

Isabel – Fizemos 24 horas de greve da fome com as presas comuns. Pelo cumprimento do estatuto do preso preventivo.

Bli – A minha mãe nunca me deixaria fazer mais [do que duas horas], mas deve ter apreciado que eu tenha tido vontade de me juntar.

 

Alguém a tentou convencer a comer?

Isabel – Não me lembro de ninguém. O meu pai mandou-me uma carta lindíssima. “Tens de considerar. A Thatcher tinha um coração de ferro e deixou morrer o Bobby Sands. Mas lembra-te também no orgulho que temos, nas pessoas que na América Latina fizeram greve da fome.”

 

Pensou nalgum momento que ia morrer?

Isabel – Pensei em todos os momentos. A partir de determinada altura, eu sabia (enquanto médica) que podíamos morrer. Fazíamos análises. Quando via os níveis a que estava o potássio... o coração podia parar.

 

Teve consciência aguda do que estava a fazer. Disse-me uma vez que não há heróis, há causas irreversíveis. É isso?

Isabel – Como é que se pode voltar atrás? Um belo dia acordar e arrepender-me de ter feito esta luta? Não seria possível. Há questões de dignidade que são mais importantes.

 

Que é que aprendeu mais do que tudo com as histórias da sua mãe nos anos quentes?

Bli – Que é importante lutar. Lutar. Sempre com transparência. Tenho muita admiração pelo percurso da minha mãe. Nunca houve cedências a jogos políticas. Sempre houve uma defesa de todos os cidadãos. Nunca houve um interesse senão o de lutar pela igualdade, contra a injustiça. Para que não haja pessoas violentadas. Comecei a trabalhar nisto com 30 e tal anos. Como é que era o meu dia a dia com 30 e tal anos e como é que era o da minha mãe?

 

Sempre a compreendeu?

Bli – Sempre. Nunca sequer pus em causa as actividades e opções políticas. Nem posso dizer políticas. São cívicas. É a primeira vez que vejo a minha mãe ligada a um partido desde que saiu da prisão. Acho admirável que consiga continuar. Eu nunca vou ter esta energia. O que mais admiro nela? A coerência. E nunca ter cristalizado no tempo.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015

 

 

 

 

 

 

Tozé Brito

23.07.21

Tozé Brito tem 50 anos. É casado e tem duas filhas. É administrador em Portugal da Universal, companhia líder no mercado discográfico. É, além disso, ou antes disso, escritor de canções. Dos Gemini ao Victor Espadinha, das Doce ao Carlos do Carmo. Antes destas canções, houve outras. As primeiras têm 35 anos. O primeiro disco do seu grupo Pop Five foi editado há precisamente 35 anos. Canções, são mais que as mães. Todas cantaroláveis, recorrendo ao kitsch que ficou na moda no fim dos 90. A revisitação dessas canções é um interessante ponto de partida para a revisitação de certo Portugal. Que deixou de existir, mas de que todos ainda se lembram.

A vida deste rapaz dava um livro.

 

A maior parte das pessoas desconhece a sua relação com a escrita. São seus os primeiros textos do Estebes, personagem do Herman.

Conhecemo-nos nos anos 70, quando escrevi música para revistas do Parque Mayer. Quando o Herman fez na Rádio Comercial o «Re-beu-beu Pardais ao Ninho», apetecia-lhe falar de futebol, de que não percebia absolutamente nada. Eu sou fã de futebol, joguei quando era miúdo. Estendi o convite a um amigo meu, o António Tavares Telles, e começámos a escrever. Como as coisas funcionaram bem, quando fez «O Tal Canal» pediu-nos para continuar a escrever os textos.

 

Como é que era, juntavam-se uma noitada e iam escrevendo?

O António Tavares Telles e eu, o mais possível. Esperávamos pelas quartas feiras e era uma risota pegada. Não sei se está por dentro de futebol ou não...

 

Não.

Ao fim de semana há os jogos do campeonato português, ou Liga, como agora se chama, e a meio da semana os europeus. Depois de acabarem os jogos, às onze e pico, ficávamos a escrever até às quatro, até à hora a que as coisas estivessem prontas. Quando o Herman fazia os programas, metade do que tínhamos escrito ia para o ar e outra metade não sabíamos de onde vinha! Os nossos textos eram a estrutura sobre a qual trabalhava. E depois partia para as pomadas, para as loucuras todas.

 

A caracterização do boneco é do Herman?

Concordámos em manter o sotaque do norte. É ele que aparece com o casaco aos quadrados, com aquela gravata, com aquelas patilhas. Nós rebolávamos!

 

A escrita é uma paixão. Há anos imaginava que iria retirar-se aos 50 para escrever um livro. E então? Fez 50 anos em Agosto.

A vontade de escrever vem dos 20 anos. Até à ida para Londres, onde vivi dois anos, a música absorvia 90% do meu tempo, a literatura era residual. Em Londres, eu que saí daqui convencido de que era bom músico, ao cabo de uma semana apeteceu-me vender a viola e nunca mais tocar! Percebi que estava na quarta divisão europeia, bastava passar pelo metropolitano e parar uns minutos. A música deixou de ser o elemento fulcral da minha vida. Era tradutor durante o dia e estudante à noite na faculdade de Psicologia-Sociologia. Saio de Portugal em 72.

 

Um Portugal bolorento.

Fascista, com censura actuante. Dá-se uma viragem. No curso, os meus professores eram marxistas, todos. A minha introdução é completamente politizada, revolucionária. É a primeira vez que leio um livro, sei lá, de Henry Miller, que depois tem uma influência incrível na minha vida. É um assombro. Passo a devorar livros e a ficar apaixonado pela ideia de também escrever. Ideia que já não me apaixona porra nenhuma, desculpe o termo. Cheguei à conclusão de que está tudo mais que dito, que o que poderia escrever não acrescentaria coisa nenhuma. A não ser ao meu prazer pessoal.

 

O seu livro, é para publicar?

Não é para ficar na gaveta. Mas perdi a ilusão que se tem aos 20 anos de que se vai escrever uma obra que acrescenta. Li o «Ulysses» do James Joyce e reduzi-me à minha insignificância. Escrevo o que sinto, não pretendo ir mais longe. É um livro de pequenas histórias, aforismos, poemas. O que dá unidade é o facto de pertencerem a uma sequência, a um caminho.

 

É resultado das várias vidas que foi tendo? Aos 50 anos já viveu imenso.

Em termos autobiográficos, se quisesse escrever o que vivi... Aos 15 anos gravei o meu primeiro disco com o Pop Five. Há 35 anos que ando metido nestas vidas.

 

No Portugal de então, menos mediatizado, era extraordinário um grupo de miúdos gravar discos, fazer concertos.

A aventura custou-me problemas gravíssimos com o meu pai, que achava que eu devia ser advogado, médico, engenheiro. Estamos a falar de um Portugal específico, em meados dos anos 60.

 

E do Porto.

E de uma família como a minha, classe média, onde não havia sonhos de grandeza, onde não havia tacanhez de espírito. O meu pai não era diferente dos outros pais: sonhava para mim um futuro um bocadinho melhor que o dele. Não é o dele não fosse brilhante, tanto assim que chegou a presidente da companhia de seguros onde trabalhava. Mas penou muito para lá chegar. Quando lhe disse que queria gravar um disco: «Estamos a falar de gravar um disco nas horas vagas?».

 

A música aparece quando?

Comecei a aprender piano aos oito anos, que largo passados três. «Que coisa horrorosa, não consigo levar o piano para lado nenhum, quero estar com os meus amigos e não consigo tocar». Passo para a viola.

 

Muito mais fácil para fazer serenatas na praia.

Vai-se para qualquer lado, leva-se a namorada e tudo bem. Gravo o primeiro disco aos 15 anos com o Pop Five, onde era baixista.

 

Bebiam nos Beatles, imagino.

Nos Beatles, nos Stones e em toda a música inglesa que chegava cá, com atraso, mas que chegava. Zona Motown, Otis Redding, blues. Coisas que ouvíamos no «Em Órbita» também nos influenciaram.

 

Juntavam-se para ouvir o «Em Órbita»?

Gravávamos o «Em Órbita» todas as noites, numa revox. Depois, na sala de ensaios do Pop Five, passávamos a fita e tentávamos reproduzir o que ouvíamos. E tentávamos compor à imagem do que íamos ouvindo. O grupo torna-se conhecido também em Lisboa. Era raríssimo um grupo do Porto fazer espectáculos no Espelho de Água (onde agora é o T-Club).

 

Qual era o vosso circuito?

Fundamentalmente o estudantil e os arraiais do Porto. Os estudos foram descurados, houve alguma fricção familiar. Depois, o bom senso do meu pai fê-lo perceber que não valia a pena remar contra a maré. Deu-me abertura para fazer o que gostava e aos 18 anos transfiro-me para Lisboa, para o Quarteto 1111, como músico profissional.

 

Hesitou?

Estava preparado, como todos os músicos em Portugal, para me aguentar uns anos e acabar num casino qualquer. Para ter tido menos sucesso do que tive. Porque tive, com os 1111, os Green Windows, os Gemini, com músicas diferentes, com motivações diferentes. Em alguns destes grupos com uma atitude puramente mercantilista em que assumi que queria ganhar dinheiro rapidamente. Tinha casado, tinha filhas e não fazia parte dos meus planos continuar a contar os tostões e a viver com dificuldades. Não os renego de forma nenhuma. Não estava a dizer a mim mesmo: «Estás aqui a vender a alma ao diabo»

 

O Pop Five ia à televisão? Havia programas vocacionados para a música?

Pouquíssimos. Havia o Zip-Zip, que foi o primeiro onde o Pop Five foi.

 

Como era na escola com os colegas? E com as raparigas?

Era a parte agradável da questão. Constatei que a minha aceitação no sexo feminino subiu em flecha. Tinha 16 anos: o caminho é mesmo este!

 

Era assim tão importante?

Era, era. Vivi uma época em que namorar significava «Vale tudo menos tirar a virgindade». Quando venho para o 1111, instalo-me em Cascais, e encontro uma realidade diferente. Havia turismo, havendo turismo havia estrangeiras, havendo estrangeiras havia sexo. Raparigas da minha idade, de culturas distintas, abertas a divertirem-se. Isto à mistura com o aparecimento das drogas... Imagine a loucura.

 

Conte lá do primeiro charro.

Foi em Cascais. Bate-me tudo aos 18 anos: não dormir, não ter cuidado com a saúde, fazer experiências. Chego aos 20 de rastos, e peço ajuda a um médico. Experimentámos tudo: começámos com charros e acabámos com drogas pesadas. Muitos dos meus amigos ficaram agarrados. Tive sorte. Os meus companheiros de 1111 tinham mais 7, 8, 9 anos que eu. O Zé Cid teria 27, o Michel 28, eram adultos; quando entrava por essas zonas e disparatava um bocado, eram os primeiros a chamar-me à atenção. «Experimenta, mas não passes disso.»

 

Como é que o José Cid o convida para o 1111?

Estava a tocar na Festa do Lago, em Penafiel. Havia um lago enorme, esvaziado no Verão, um palco num canto, um palco no outro, dois grupos que alternavam. O 1111 a tocar de um lado, o Pop Five do outro, milhares de pessoas a dançar no meio. O baixista do 1111 estava mobilizado para o ultramar e o Zé Cid andava desesperado à procura de um substituto. Em cima do palco, percebo que tenho todo o 1111 à minha frente, a ouvir-me com muita atenção. No fim da festa, o Zé vem ter comigo «Estamos a precisar de um baixista, sei que tu vives no Porto e que nós estamos em Lisboa, como é que pode ser?».

 

Musicalmente o que é que o 1111 significava? Havia os Sheiks, o Conjunto João Paulo, e outros grupos congéneres.

A primeira canção portuguesa, e única, que alguma vez passou no «Em Órbita» foi «A Lenda del Rei D.Sebastião». Era essa a importância do 1111, finalmente um grupo diz que cantar em português faz sentido. Os Sheiks, com todo o respeito, faziam aquilo que nós fazíamos, cantavam em inglês. É aí que começo a abrir os olhos em termos políticos e a ver o país em que vivia.

 

Chegou a estar na tropa?

Havia um serviço chamado Alerta Estar, sediado em Lisboa, onde estavam os músicos, os actores, os artistas de circo. Para quê? Para formar companhias que iam dar espectáculos às tropas em Angola, em Moçambique. O Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo, passaram todos por lá. Convenci-me de que ia para o Alerta Estar. Esqueci-me de um pequeno pormenor: o 1111 tinha discos proibidos pela censura. Soube que tinha fichas na Pide, que podia ser um elemento subservivo no Alerta Estar.

 

E parte para Inglaterra. Foi a salto?

Um agente da Pide passou-me para Espanha. Com dez contos no bolso, passavam-nos para o lado de lá. Saí pela fronteira de Valença, de janelas abertas. Fui a ouvir um relato do Benfica, num domingo à tarde. O meu pai e a minha mãe acompanharam-me até Madrid onde apanhei um avião. Instalei-me em Londres por dois anos.

 

Porquê Londres?

A minha mulher, a Tessa, é inglesa. Casei um mês antes de ir para a tropa. Estava habituado a uma vida confortável. Quando chego a Londres, o dinheiro não chega. O meu pai marca-me entrevistas com agentes de seguros e arranjo trabalho como tradutor.

 

Nunca tocou no metro?

Não. Trabalho como tradutor das nove às cinco, saio a correr para a faculdade (com aulas das seis às dez), chego a casa às onze e meia, levanto-me às seis e meia para repetir o circuito. Uma casa mínima, um frigorífico. O Inverno de 72 foi dos mais rigorosos em Londres, metia moedas de dez pences para ter aquecimento, cada moeda durava uma hora. Foi um choque. Aos fins de semana, para me divertir, pegava na viola e tocava em pubs. E bebia uns copos de borla, que era, no fundo, a paga. 

 

Esteve dois anos sem vir a Portugal.

Só vim depois do 25 de Abril. Chorava constantemente de saudade, do mar, do sol, da comida, dos amigos e dos pais. Esperei que a minha filha Ana nascesse, e vim. Uma vez cá, ainda fiz tropa. Apanhei todas as datas, o 11 de Março e o 25 de Novembro. Fui para Tavira, depois Queluz, depois Mafra, depois fui saneado porque estava numa unidade do Copcon.

 

Reingressa no 1111 e retoma a ligação à música. Funda os Green Windows.

Os Green Windows nascem em 72 para um festival. O 1111 não faz dinheiro para viver, decidimos mantê-lo, mas criar um outro grupo. Um produtor inglês, que estava cá, foi ao Museu das Janelas Verdes, achou graça ao nome e baptizou-nos de Green Windows. O nome mais idiota que ouvi! Era o Mike, o Zé, o Moniz Pereira, eu, e as nossas mulheres. Duram até 76 quando acabo com os Green Windows para começar os Gemini.

 

Lembro-me bem das canções dos Gemini.

Não me envergonhe

 

São uma espécie de Abba à portuguesa. Podemos dizer que as canções são pirosas, mas passados 20 anos toda a gente as sabe cantar. Passaram a ser grupos de culto.

O Zé Cid é o grande líder do 1111, e continua a ser dos Green Windows. Em 75 começa uma carreira a solo. Decidimos que o Verão de 76 era o último Verão de espectáculos. «Pensando em ti», a primeira canção dos Gemini, sai em Dezembro de 76.

 

O grupo era composto por si, pelo Mike Sargent, pela Fá e pela Teresa Miguel, mais tarde recuperadas para as Doce. Usavam camisas contrastantes com o fato.

E golas gigantescas e calças à boca de sino. Misturámos Abba, fórmula testadíssima e com sucesso no mundo todo (dois homens e duas mulheres), com o disco sound da Donna Summer e dos Bee Gees. A Saturday Night Fever nascia na altura. Diverti-me loucuras, mas nunca gostei do que estava a cantar. Assumo-o sem problema. Foi a primeira vez que um grupo me deu o dinheiro suficiente para comprar uma casa. Pequenina, um andarzinho. Até aí, era comer, pagar a renda, pagar electricidade, água e gás, tirar umas feriazinhas de duas semanas. Dou a entrada para a casa, compro um mini.

 

Só comprou carro nessa altura?

Só. A boleia era muito uma coisa dos anos 70, andávamos todos pendurados uns nos outros! A loucura de sair de uma discoteca às três da manhã e dizer: «Vamos tomar o pequeno almoço ao Algarve!»... Eram cinco horas de caminho, às oito estávamos em Albufeira a tomar pequeno almoço.

 

Em 78 entra como AR [responsável por artistas e reportório] na Polygram. Nos bastidores, passa a descobrir pessoas, escrever-lhes as canções, produzir-lhes os discos, gerir as carreiras. As Doce são o exemplo mais emblemático da sua vocação. Como é que nasce o grupo?

Em 79 o Mike e eu tomámos a decisão de acabar com os Gemini. Ao fim de três anos o grupo esgotava-se. Tinha-nos dado o dinheiro que queríamos ganhar, o prazer que queríamos ter, a fama que nenhum outro nos tinha dado. Tinha começado em cima com o «Pensando em Ti», aguenta-se, vai à Eurovisão, onde leva uma pancada muito grande. Mas estar em frente a 500 milhões de pessoas... Entra-se em palco e sente-se que se tem a bandeira portuguesa estampada na testa.

 

Que canção era?

Uma coisa horrorosa, que me perdoem os autores, chamada «Dai-li, Dai-li, Dou».

 

Papagaio voa! Pois.

Começámos a desacelerar e a pensar noutras aventuras. (O meu disco com o Paulo de Carvalho é de 79.) E, no «Califa», um restaurante em Benfica onde íamos muitas vezes, quando falávamos da dissolução do grupo, tínhamos duas senhoras à frente, a Teresa e a Fá. Olhámos uns para os outros. «Porque não um grupo só com mulheres?»

 

Não havia girls bands ou boys bands.

Nem lá fora. Tínhamos feito uma experiência embrionária com as Cocktail. Nasce comigo, com a Rita Ribeiro, com a Maria Viana e com a Fernanda, que é a Ágata. A canção chamava-se «O que passou, passou».

 

Eram projectos festivaleiros?

Criados para o festival da canção, a montra onde experimentávamos fórmulas. Com as Doce, alargámos a quatro mulheres e pensámos capitalizar a parte visual. As Doce assumiram mostrar as pernas: «Estamos aqui, vestidas como estamos, qual é o problema?». Isto acoplado às canções que tinham uma dose de sensualidade e atrevimento que não era habitual, «Ok, ok, põe-me ko».

 

Quando andava na escola primária, as minhas amiguinhas e eu achávamos que pôr ko significava pôr grávida!

Essa é incrível! Nem a mim me passou pela cabeça! A ideia era «Dá cabo de mim, faz de mim o que quiseres».

 

Como é que arranjaram as outras duas? Dizia-se que a Fá e a Teresa eram os motores.

A Lena [Coelho] canta tão bem como a Fá e a Teresa. Era uma miudinha de 16 anos, linda de morrer, tinha passado pelas Cocktail, substituído por uns meses a Teresa nos Gemini. Tínhamos uma morena assumidamente morena, a Lena, uma morena meio termo, a Fá, uma ruiva, a Teresa. Fomos à procura de uma loura que minimamente cantasse.

 

Especulava-se que a Laura Diogo cantava com o microfone desligado.

Não é verdade. Não tinha uma voz que se comparasse às outras, os microfones das outras estavam mais alto, mas ela precisava do microfone ligado nem que fosse para, no meio das canções, dizer: «Cantem, dancem, saltem».

 

Tudo isso era ensinado por si?

Trabalhámos sempre em equipa. Eram as quatro, o Mike, o António Pinho, o Nuno Rodrigues e eu a escrever. E o José Carlos, o costureiro, peça fundamental neste puzzle. As meninas tinham a particularidade e a força de parar o país. Quando as Doce iam à televisão, no dia seguinte falava-se dos fatos que tinham levado como se fosse uma coisa do outro mundo.

 

Nos anos 80 escreveu canções para toda a gente.

Vou do Carlos do Carmo, para quem escrevi com o Ary dos Santos, das experiências mais bonitas que me aconteceram... Eu pegava na guitarra. «Cá vai uma sequência de acordes». Ele batia com os dedos na mesa, contava as sílabas, tomava notas. Dez minutos depois: «Olha isto»! Do Carlos do Carmo à Dina, do Tony de Matos à Adelaide Ferreira.

 

Tinha uma noção clara do que era a fórmula musical, do que era uma canção?

Essa noção era fundamental, julgo que a tive sempre. É um ofício como outro qualquer, não vamos fazer disto uma arte. Nunca fui capaz de escrever para uma pessoa que não conhecesse. Pediam-me canções por telefone e eu pedia um encontro, uma conversa, para perceber o que é que a pessoa gostava de cantar, por onde queria ir. Em 80% dos casos, as canções que escrevi encaixaram como uma luva nas pessoas que as iam cantar. Produzi-os a todos, como produzi as Doce, o Victor Espadinha.

 

O «Recordar é Viver» foi escrito por si?

Música e letra. O Victor estava desempregado, tinham-no marginalizado no teatro por questões sindicais. Conheço-o através da amizade das nossas mulheres, ambas inglesas. «O que é que posso fazer?, preciso de ganhar dinheiro». O timbre da voz dele é riquíssimo. Pensei, «Ele não canta, tenho de o pôr a falar».

 

E o Joe Dassin estava a fazer sucesso.

Peguei nas três primeiras notas do «L’Été Indien» e pu-las ao contrário. Tão simples quanto isto. Se puser a canção ao espelho, são as mesmas notas, com o mesmo ritmo, tocadas ao contrário. A partir das três notas invertidas, nasceu o «Recordar é Viver».

 

Nesses anos, só em direitos de autor, deve ter ganho uma pipa de massa.

Foi a altura em que ganhei mais dinheiro como autor. Mas a percentagem retida para os autores é curta. Nos concertos, dos Gemini especialmente, já cobrávamos um cachet muito alto. Na ordem dos 120 contos. Deduzíamos despesas, pagávamos o que tínhamos a pagar. No fim, calmamente, levávamos 15, 20 contos para casa. Por espectáculo. Há 20 anos era muito dinheiro. Começávamos a trabalhar em Junho, terminávamos em Setembro. Íamos às Festas da Senhora da Agonia, da Senhora de não sei quê. Entregavam-nos o dinheiro num saco de plástico, contávamos as notas de vinte e cinquenta escudos até perfazer os cem contos de cachet. E andávamos armados na carrinha porque foram várias as vezes que nos tentaram barrar o caminho com troncos de árvore. Os managers davam uns tiros para o ar!

 

Tinham manager?

As estruturas eram muito pequenas. Tínhamos um técnico para as luzes e o som, um roadie e um manager. Eram outros tempos, muito mais divertidos. Os músicos têm hoje a guitarra afinada antes de entrar em palco, tocam duas canções e passam a guitarra ao roadie que a afina com o aparelho e os auscultadores. Nós afinávamos de ouvido! Enquanto um de nós falava, contava a história da canção e tal, o outro afinava a guitarra. Quantas vezes me aconteceu partir uma corda do baixo, o Zé Cid ficar sozinho no piano a inventar uma abertura, e eu correr lá trás e substituir a corda.

 

O mercado é actualmente dominado por multinacionais, o grau de exigência é enorme, a tolerância ao fracasso é reduzida. Como é que consegue conjugar isto com as suas características pessoais, com o gosto de falar com as pessoas, de as acompanhar

Aprendi a lidar com isso. A princípio tive dificuldade. Vinha de ser AR, de defender os artistas contra os administradores. Os meus artistas todos, um catálogo fabuloso. Realmente criei um catálogo. A Emi teve anos em que perdeu a batalha. Fui buscar o Carlos do Carmo, o Paredes, o Sérgio Godinho, o Jorge Palma.

 

Era das pessoas mais poderosas do meio, sem dúvida.

Como continuo a ser. A Universal é hoje a maior companhia do mundo, é líder de mercado. Em música portuguesa não é porque cheguei há um ano. Dê-me mais dois ou três anos. O convite para dirigir a Universal era irrecusável, convites destes aparecem uma vez na vida. Senti que não podia nem devia dizer que não. Há coisas que não fazia por dinheiro nenhum. Coisas em que sentisse que não tinha estado a ser honesto para comigo, que não era feliz, que me estava a vender.

 

Não sentia que se estava a vender quando fazia canções para ganhar dinheiro?

É legítimo ganhar dinheiro. Agora, não é legítimo ganhar dinheiro de uma forma desonesta. Como me propuseram muitas vezes.

 

Como assim?

Estou num negócio onde é muito fácil baterem à porta e dizerem: «Quero gravar um disco, você disponibiliza-me cinco mil contos, eu gravo com dois mil e os outros três são seus». Dou-lhe a minha palavra que nunca aceitei um tostão para fazer coisas deste tipo, nem nunca abri portas porque me pagaram por fora.

 

Esse jogo de bastidores é muito associado ao meio.

Existe em todas as profissões, existe na música. Sei onde se passam. Eu não consigo dormir se não estiver bem comigo. Tenho de me confessar, de ir à igreja ao domingo e limpar a consciência.

 

Mas vai mesmo?

Sou católico praticante. Desde há seis, sete anos. Sou católico por baptismo e cristão por convicção. Não conheço moral mais perfeita do que a que o cristianismo me transmite. Fiz um percurso lógico, lendo desesperadamente filósofos cristãos, cientistas. «O Homem que não Acreditava no Céu», do francês Jean Guitton, em que este mantém uma conversa com um filósofo ateu, deu-me pistas incríveis. Punha uma questão em termos radicais e concretos: de um lado é o acaso, do outro é o mistério. Foi a frase em que encravei e que não me deixou dormir: «Ou se acredita que tudo o que existe, existe por acaso, ou...». Entre o acaso e o mistério, prefiro o mistério. Era disto que andava à procura há muitos anos. «Por onde é que entro?». A fé não se escolhe, não se compra, é-nos dada. Aceito mais facilmente a ideia de que há uma força criadora por detrás de tudo isto do que a ideia de que tudo isto resulta de um acaso. E é tão claro para mim que Deus existe como estar aqui sentado consigo. Sou dez vezes mais feliz desde que descobri o meu lado espiritual. Que não tem nada a ver com o lado religioso, onde há pontos de discordância incríveis em relação à minha Igreja.

 

Qual é o fio condutor? Consegue identificar o projecto da sua vida? Partamos do princípio de que cada um tem uma missão.

A minha primeira missão é ser pai e marido. Logo a seguir é ser amigo.

 

Isso é ser amor.

É. Em 29 anos de casamento, nem todos os dias são felizes, evidentemente. Passei por muitos problemas, mas prevaleceu sempre um sentido: sentir-me um elo de uma corrente. Via os meus pais e de alguma maneira sentia que fazia parte dessa corrente. Vivia distraído para o facto de a continuação da corrente passar pelas minhas filhas. Tenho irmãos por quem dava a vida, como dava pelas minhas filhas e pela minha mulher. Pelos meus amigos, não sei se dava a vida, mas dava tudo o que tenho. Foram estes valores que em determinado momento me deram sentido à vida. É aí que percebo qual é a minha missão

 

O seu pai e sua mãe, ao longo dos muitos anos de canções, tinham particular orgulho em vê-lo em cima de um palco?

Secreto, secreto. Os meus pais tinham medo do meu futuro. Começaram a dizer que gostavam da minha música quando cheguei a casa e disse: «Estou na Polygram, tenho um emprego como toda a gente».

 

Do que é que o seu pai se poderia orgulhar mais em si?

Da mesma coisa de que se orgulharia nos meus irmãos. De ser uma pessoa honrada, honesta, íntegra, que respeita os valores que me ensinou. Uma questão de honra.

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2001

 

Cristina Branco (tournée na Holanda)

22.07.21

Quem é esta cantora que os europeus admiram e os portugueses (quase) desconhecem?

Um dia telefonaram a Cristina Branco, «Olha, vens na “Visão”», a “Visão” citando a “Time”, a “Time” falando da música que se produzia na Europa, Bjork, U2 e Cristina Branco.

A fadista de Almeirim tem um contrato assinado com a Universal francesa. É uma clara aposta da companhia. Em Portugal tem editado um único disco, «Corpo Iluminado». Os quatro anteriores conheceram sucesso sobretudo entre os holandeses e os franceses. Na Holanda, o disco dedicado ao poeta Jacob Slauerhoff foi disco de platina. Em França, «Murmúrios» e «Post-Scriptum» foram premiados pelo Monde de la Musique.

 

As pessoas seguram um copo de vinho ou uma chávena de chá. Ocupam o passeio, rente às escadas de acesso ao De Kleine Komedie. O sol caminha para as oito da noite, o dia fora irregular. Indiferente à chuva miúda que caiu pela manhã, o domingo seguiu plácido, com homens e mulheres passeando-se pelas ruas, usufruindo da distensão temporal que é possível experimentar num domingo. Na cara das pessoas, banhadas pela luz dourada do fim de dia, não resta sinal da crispação sentida nos últimos dias. As eleições aconteceram há apenas quatro dias, a morte do líder do partido de direita há pouco mais de uma semana. Mas no cruzamento da rua com o canal, não há senão uma calma prazenteira. Dali a pouco, sem particular sobressalto, depositam sobre o balcão os copos vazios e dirigem-se à sala. Do outro lado da estrada, o Amstel, o canal que percorre Amesterdão e do qual a cidade herdou o nome. E no lado oposto, a Praça Rembrandt e as suas esplanadas apinhadas.

Eu assitira ao ensaio de som cerca de duas horas antes. Deambulara pelas ruas limítrofes e regressava à sala para assistir ao concerto. Interrogava-me sobre o sentido da portugalidade, num domingo à tarde, na cidade de Amesterdão. Que essência moveria a massa de pessoas que canta com Cristina Branco «Tudo isto é fado»? Quinhentas pessoas nessa noite, outras tantas na seguinte. (O público de segunda feira foi o mais diligente; a procura extraordinária de bilhetes obrigou a um segundo concerto, catalogado, por razões de agenda, para esse domingo.)

Ambos os públicos sabiam muito bem ao que iam. Otto, o técnico da sala, fala-me do público do De Kleine Komedie como um público extremamente crítico e conhecedor. «Em Alkmaar, [cidade onde estaríamos na quarta-feira], haverá entre o público quem não conheça a Cristina Branco, haverá quem olhe para o cartaz e pense “É uma mulher bonita, porque não ouvi-la?”. Mas não no De Kleine Komedie».

A sala resiste, belíssima, aos seus 220 anos, é tida como templo do cabaré, género nunca muito popular entre nós, mas ainda com expressão em países como a Holanda ou a Alemanha. Otto fala do nervosismo que os músicos experimentam quando sobem ao palco, receosos da plateia.

Sim, a plateia sabe muito bem ao que vai. Na segunda-feira José Melo, o manager de Cristina, entrega-lhe em mão a carta de um fã, que vem pela terceira vez, que espera ouvi-la cantar o «Fado das sedes». A carta vem escrita num inglês impecável, é curta e extremamente amável. O «Fado das sedes» não será cantado. O alinhamento é razoavelmente rígido, e para os encores estão previstas «Maria Lisboa» e «Tudo isto é fado».

Primeiro dia.

O que mais impressiona na casa de José Melo são as janelas imensas rasgadas sobre a rua. Quando Cristina Branco conheceu as casas holandesas, gostou desta transparência. Pareceu-lhe que, à semelhança das casas, os holandeses dispensavam cortinas, revelavam-se sem artifícios. Volvidos cinco anos sobre a sua apresentação na Holanda, sente-se aqui como em casa. «Se vivesse noutro país que não Portugal, seria aqui. Eu adoro isto.»

Quando cantou na Holanda pela primeira vez, tinha 23 anos. Pouco antes aparecera no programa da manhã da RTP. José Melo seguia-a com atenção. O seu nome constava de uma lista de novos talentos fornecida por Custódio Castelo. Tinha experiência zero, um vinil de Amália «Rara e Inédita», deslumbrava-se ante a possibilidade de cantar o fado. «Cristina Branco Live in Holland», editado localmente, retrata a aventura.   

Sábado, na casa de janelas imensas do Melo, Miguel Carvalhinho tem o avental posto, a feijoada quase pronta, Custódio corta meloas em pedaços. Fernando Maia e Alexandre Silva têm consigo as suas mulheres, chegadas nesse dia para ficar até quarta-feira. As carnes da feijoada foram trazidas por elas. Bem como o vinho que se bebe ao jantar. Há três semanas que o grupo está fora de casa.

No dia seguinte, de manhã cedo, encontraríamos o Miguel no parque dos museus. Voltámo-nos, «Bom dia», e era ele a fazer jogging, a anular o excesso da noite anterior. Meia hora depois, distinguimos ao longe as figuras de Cristina e Custódio; corriam, também.

Viver fora de casa implica disciplina e obstinação. O casal (estão juntos há seis anos) vive temporariamente num hotel de charme, duas ruas abaixo do Concert Gebouw, uma sala esplendorosa, cuja acústica é considerada das melhores da Europa. (Está já esgotado o concerto de Cristina, a 18 de Agosto. A mãe vai de Portugal para a ver. Barbara Hendricks canta a 25 de Julho). Os músicos que vão ao Concert Gebouw, sobretudo clássicos, instalam-se habitualmente neste hotel. Cristina conta que acorda com os pássaros das árvores em frente e com as escalas que os músicos ensaiam. Faz do pequeno apartamento a sua casa; faz uso da cozinha e distribui flores pelos cantos. As malas são a catrefada de coisas possível. Ou seja, tudo. No fim de semana seguinte iria por dois dias a Heindoven, dormiria num outro hotel, e levaria consigo uma nova mala, com o essencial de dois dias na vida de uma mulher. Ou seja, tudo.

A vida é arrastada como uma mala, puxava por um fio. Esta é a vida que ela gosta de ter. Não foi a que sonhou ter porque não sonhou que pudesse ser cantora. Era suposto ser jornalista, tinha o curso quase completo quando um dia saltou para um palco improvisado, num sítio que era pouco mais que um tasco para os lados de Almeirim. Antes disso, acedia a cantar fado para o avô. De quem fala com paixão, olhos humedecidos. Que lhe mudou a vida ao oferecer-lhe um vinil de Amália Rodrigues.

O avô não chegou a saber do seu sucesso.  

«Ah, vais usar esse vestido?, gosto muito». O vestido repousa sobre a tábua de engomar. Foi desenhado para Cristina pela dupla Manuel Alves/ José Manuel Gonçalves. Outras opções permanecem dependuradas nos cabides do camarim: a saia vermelha com o blazer preto, o vestido preto bordado a flores (lindíssimo, que não chegou a usar em nenhum dos espectáculos), o vestido preto que usou apenas uma vez porque tem a impressão que a faz gorda. 

Ainda no De Kleine Komedie, segunda feira. Pelas sete da tarde, desce ao camarim. O ensaio de som fora minucioso. Rejubilo quando a ouço interpretar Amália: «Perdida de amores/Perdida entre temores/ (...) Ai de mim, perdida/ Se deixas de ser quem és». Minutos antes de entrarem em palco, ouço-os novamente neste fado, afinando o tom, aquecendo o timbre. Mas, em cima do palco, «Se deixas de ser quem és» não chega a ser cantado.

O espectáculo são cerca de vinte canções; abre com um instrumental que arrebata a plateia, avança com «Meu limão de amargura», termina com as já citadas «Maria Lisboa» e «Tudo isto é fado». O corpo do espectáculo acompanha o disco «Corpo Iluminado», o único de Cristina Branco editado em Portugal. Recorre a temas escritos pelo poeta holandês Slauerhoff e anuncia o disco novo (a gravar em Setembro para lançar no ano que vem, chamar-se-á «Nu») com poemas de Eugénio de Andrade e Vinícius de Moraes. O repertório tradicional do fado quase não consta.

Cristina regressa ao camarim. Tem uma bem sucedida predilecção pelos acessórios da casa Vuitton: do porta fatos, à bolsa da maquilhagem, dos berloques para o cabelo à mala de todos os dias, tudo leva o monograma LV. «Ah, gosto muito desse vestido», comenta o Melo; traz consigo a lista do Firenzi, o ristorante italiano que fica paredes meias com o De Klein Komedie. «Se comesse agora alguma coisa, acho que vomitava.» Para a ceia, escolhe uma pasta com frutos do mar.

Agora são sete da tarde e ela dedica-se a engomar o vestido preto. Daí a pouco mais de uma hora, o palco será seu.

Custódio comprou esta guitarra em 1980. Nos primeiros seis anos esteve parada, «o som era verde», dependurada entre chouriços no fumeiro. Desde então, é a guitarra principal, extensão perfeita de si. «Acontecer uma coisa à minha guitarra é o mesmo que me acontecer a mim.»

O que é que faz do som de Custódio Castelo um som tão particular?

Estamos no ristorante do lado e peço licença para tocar a ponta dos seus dedos. Parecem ainda fervilhantes, dedilharam cerca de duas horas. Explica-me que o som resulta diferente porque prime as cordas de forma diferente; fá-lo com a polpa dos dedos, rente à unha, numa entrega dolorosa, milimétrica. A unha falsa, que lima e ajusta antes de cada espectáculo, e que ela assina para dar sorte, ficou para trás. Ao jantar, ela está a seu lado. Usam a aliança de casamento no polegar, «É o único sítio onde não incomoda».

Custódio acaricia a guitarra, pega-lhe delicadamente, sente-lhe as formas bojudas. Cristina tem uma dicção perfeita. Canta bem e diz bem porque entende o que as palavras querem dizer, sintetiza o Miguel. Por exemplo, quando ela canta «a vida» poderia cantar «o fado» que seria igual. Quanto mais se entranha no fado mais a sua alma se manifesta.

Os outros são os outros. Os outros são o Miguel, o Maia, o Alexandre. E o Melo. Vivem juntos desde há cinco anos, em tournée permanente. Olhar para a agenda de 2002 concretiza o que acabo de dizer:

Janeiro - Férias

Fevereiro - Itália

Março - França

Maio - Holanda

Junho - França, Angola e Suiça

Julho - Itália

Agosto - Bélgica, Córsega, Holanda

Setembro - Gravação do álbum novo

Setembro e Outubro - Tour pelos Estados Unidos e Canadá

Novembro - Noruega, Alemanha e Holanda

Dezembro - França e Suiça

Regressam a casa em vésperas de Natal.

Qual vida própria? A vida própria de um músico é a sua música. Uma vida errante.

«Olha bem as caretas que eu faço a cantar». Como se não fosse bem ela mas uma outra que ali está em frente, articulando gestos e sons na televisão. (Um casal com quem falei no final do concerto em Alkmaar, aludiu ao facto: «Uma coisa é ouvir o disco, outra coisa é ver na cara tudo o que as palavras querem dizer».) Os holandeses gostam da sua beleza clássica, da expressividade que lhe assoma ao rosto. É uma beleza portuguesa. 

A língua que Cristina usa em cima do palco é o inglês. Por vezes traduz sumariamente o sentido ou o título de uma canção. Não parece muito relevante o que significam exactamente as palavras que canta, ainda que a escolha dos poetas seja primorosa. As palavras vertem sentimentos, e di-los com a voz e com o corpo.

             

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2002.

Ricardo Bak Gordon

20.07.21

É um arquitecto que tem um encantamento pelo mundo construído por não-arquitectos. Que fala da beleza da imperfeição. Que aponta para a erosão da parede ao lado.

Ganhou recentemente o prémio FAD, o prémio ibérico de arquitectura (ex aequo com Mansilla e Tuñón), com as casas construídas no interior de um quarteirão em Campo de Ourique. Foi também com esse projecto que o ano passado esteve representado na Bienal de Veneza (com Aires Mateus, Álvaro Siza e Carrilho da Graça).

Ricardo Bak Gordon nasceu em Lisboa em 1967. Estudou no Porto, em Milão, em Lisboa. Dá aulas no Instituto Superior Técnico. Trabalha num atelier cujo projecto de iluminação é uma obra de Pedro Cabrita Reis. São amigos. Encontrámo-nos em sua casa, debaixo de uma tangerineira, num dos últimos dias deste verão indiano. O jardim está circundado por prédios com as cores cálidas que têm os edifícios de Lisboa. Não é muito diferente das já famosas casas de Santa Isabel com que levanta o problema do que fazer no interior dos quarteirões abandonados. Que é um modo de falar de cidades no interior da cidade.

É um dramático que jorra tinta para o papel!, na descrição do amigo brasileiro Paulo Mendes da Rocha, que escolheu o atelier de Bak Gordon para acompanhar o projecto do novo Museu dos Coches. A arquitectura que ele faz é como ele é?

 

Seria mais fácil se tivesse um papel à frente e começasse a desenhar? Pergunto se o desenho é a sua forma preferencial de comunicação.

Não especialmente. A minha forma de comunicação preferencial é a palavra. O desenho é um dos instrumentos de investigação da arquitectura, um dos primeiros (outros instrumentos: as maquetes, os desenhos rigorosos, as fotomontagens). O desenho nunca nos vai dar nada que a cabeça não esteja a suscitar. O território onde se pensa a arquitectura é a cabeça.

 

É conhecido o seu gosto pelo desenho, a força que os seus desenhos têm. A relação com artistas plásticos deixa também perceber a importância deste instrumento. Com Cabrita Reis, por exemplo.  

A relação com o Cabrita Reis é muito longa. Vem desde o tempo em que andava na escola. Fazia desenhos técnicos para as obras dele, que eram muito arquitectónicas. Somos muito amigos, fiz várias casas para ele e para a família. Estimula-me. 

A investigação ocupa um grande espaço no trabalho da arquitectura. O desenho acompanha-me muito nesse processo. A descoberta vem do desenho.

 

Como descreveria os seus desenhos?

Os meus desenhos acabam por exprimir muito da minha personalidade. São radicais, dramáticos. O Paulo Mendes da Rocha, grande amigo meu, o arquitecto brasileiro com quem estou a trabalhar [na obra do Museu dos Coches], quando me vê desenhar, diz assim: “Está despejando tinta para cima do papel!”. Os desenhos dele são totalmente diferentes. Os meus desenhos, em geral, têm tamanhos imensos, um metro. Deito o rolo de papel em cima da mesa em que estou a trabalhar, corto e começo a desenhar. É uma coisa muito gestual, física, ligada ao corpo. Não é, de facto, um desenho de precisão, delicado.

 

É um dramático?

Bastante. A maneira como trabalho – que não é muito diferente da maneira como tenho levado a vida, não de forma consciente, porque ela vai andando em paralelo – se não é dramática, é proto-dramática. É muito intensa, com altos e baixos, com grandes euforias e grandes ansiedades. Faz parte da maneira de ser. Nem sei como é que seria se não fosse assim.

 

Isso reflecte-se, de algum modo, na sua arquitectura?

Não creio. Estou a lembrar-me de uma amiga que me dizia: “Como é que um tipo tão bruto faz coisas tão delicadas?”. O que se reflecte, e isso assumo, é uma dramaturgia poética, um ambiente que (gosto de acreditar) consegue induzir alguma reflexão para lá do que é mais imediato, e que procuro que todos os trabalhos contenham. Isso sim, há-de vir da minha perspectiva de olhar para as coisas, e de pensar.

 

Tendo essa delicadeza e depuração, tem também, e isto é consensual nas apreciações que são feitas à sua obra, uma sensualidade e vitalidade. Um temperamento mais quente, inflamado, traz à arquitectura uma temperatura diferente?

A temperatura tem a ver com a intensidade das decisões, com um radicalizar, tanto quanto possível, a experiência de um lugar. É disso que se trata: fazer com que as pessoas, perante uma determinada arquitectura, um determinado lugar, uma determinada experiência de um lugar, possam sentir essa activação, e que ela possa ser radical. Três exemplos de projectos: a casa do Pedro Cabrita Reis no Algarve, a Escola Garcia de Orta, no Porto, a fábrica de azeite no Alentejo. Todas elas, em contextos e equações diversificadas, tentam um nível de afirmação – que não é para se afirmarem a elas próprias – que active a experiência do lugar.

A Escola Garcia de Orta tem uma praça vermelha coberta que é o grande centro da escola. É uma praça bastante dramática. Ninguém passa da aula de Matemática para a de Filosofia, no intervalo, sem se deixar contaminar por aquele lugar.

 

Interpelar o outro – é o que pretende com as suas obras?

Gosto de falar da arquitectura como uma posição num caminho, a meia distância entre uma coisa técnica e racional e uma componente poética indispensável. Não acho que os arquitectos sejam artistas, recuso essa ideia. Mas o arquitecto não pode abdicar de uma componente poética no trabalho, sob pena de ter um nível de comunicação muito reduzido. Resolve problemas práticos, mas não usa os meios que tem ao seu alcance para criar uma segunda comunicação.

 

Um poeta, dois poetas de que goste especialmente.

Quando comecei a estudar arquitectura fui para o Porto viver. Levava quatro livros, os heterónimos de Fernando Pessoa e Fernando Pessoa, propriamente dito. Foi a primeira vez que saí de casa, os dias no Porto eram diferentes dos de Lisboa – pelo menos imagino-os eu hoje, ainda, desse modo – mais cinzentos e pesados. Talvez houvesse uma certa nostalgia, uma certa dramaturgia associada àquela experiência do Inverno, à primeira vez que vamos embora, ao esforço de viver num quarto (na casa de uma velhota). Lia imenso Fernando Pessoa e encontrava muitas relações. Vou lendo outras coisas. O Herberto [Hélder], o poema sobre a loucura, “Se eu quisesse, enlouquecia”.

 

A poesia está no modo como se olha?

Está no modo como se sente. Estamos a conversar frente a uma parede cheia de informação, toda suja pelo Inverno, tem limos, bocados de tinta que já saíram; não pense que não vem aqui muita gente que diz: “Só falta pintar estas paredes”. E fico arrepiado. Jamais me passaria pela cabeça pintá-las de branco.

 

A erosão que sofreram é visível.

É o tempo. O tempo é um construtor fundamental. E não é de espaços, é de nós. As coisas acumuladas por onde andámos, as viagens que viajámos, as pessoas com que nos cruzámos, há aí um processo de construção e esse património é requisitado quase todos os dias sem que se tenha consciência disso. Às vezes, sim, para o trabalho.

 

Fale-me do seu património afectivo.

Os meus filhos. E a minha mãe, e o meu pai, toda a minha família. Vejo nos meus filhos um processo natural de continuidade que respeito muito.

 

O seu pai é Gordon. Conte a história que fez de si meio estrangeiro.

Tenho tendência a dizer que sou 100 por cento português. O que é facto é que sou, do lado do meu pai, originário da Lituânia. Tive avôs paternos que eram judeus lituanos e que vieram para Portugal nos anos 30, antes da Segunda Guerra, durante o período das invasões russas e da Polónia. Fixaram-se nos Açores. O meu pai já nasceu em Portugal. Era médico, também já morreu. Além de ser médico pintava muito, tinha uma perspectiva bastante sui generis da vida. Cresci com a minha mãe, que é portuguesa, com quem fiquei desde muito cedo – eu, o meu irmão e ela, formámos um trio – uma vez que o meu pai se separou da minha mãe. Do lado do meu pai recordo-me de coisas exóticas. As refeições religiosas em casa dos meus avós, as festas. A única coisa que tenho estrangeira é o nome. Sou um cidadão português que está disponível para pensar e experimentar os lugares todos que há no mundo.

 

Como foi a mudança dos Açores para o continente? Como era a vida então?

O meu pai nasceu nos Açores e veio em pequeno para Lisboa. Os meus avós eram comerciantes, como bons judeus. Tinham uma loja na Avenida Almirante Reis que ainda existe e que se chama Gordon & Bakayte. O nome Bak era um nome feminino, lituano, que variava consoante o estado civil. Chama-se Gordon & Bakayte porque era a minha avó enquanto casada com o Gordon. Eu sou Bak Gordon.

 

Em que língua é que o seu pai falou consigo?

Falou em português, mas falava com a minha avó em iídiche, a língua dos judeus da Europa de Leste. Tenho amigos, como o Daniel Blaufuks, que têm uma origem semelhante.

 

A cultura da sua casa foi marcadamente judaica?

Não. Os meus avós tinham alguma actividade religiosa. O meu pai não tinha nenhuma. A minha mãe, que não é judia, é católica, também não tem actividade religiosa.

 

Fez uma obra na sinagoga de Lisboa. Não tenho ideia que a comunidade judaica, que é fechada, encomendasse uma intervenção naquele espaço a um arquitecto com o qual não sentisse afinidade.

Deu-me muito prazer. Fiz a remodelação do projecto da sinagoga do Rato numa altura em que se celebravam os 100 anos da sinagoga. A arquitectura não é uma coisa estanque, tive uma actividade paralela, durante muitos anos, na El Al, as linhas aéreas de Israel, e havia uns trabalhos ligados a cada um dos voos, feitos por jovens judeus da comunidade local, para falarem a língua. (Só deixei a El Al quando assinei um importante contrato, o da residência da embaixada de Portugal em Brasília.) Acabei o curso, tinha atelier e mantinha um part-time ligado à comunidade. Tinha até mais proximidade do que tenho hoje, estava próximo todas as semanas.

 

O que é que fazia exactamente?

Fazia um trabalho que tem a ver com segurança de aeronáutica. Fazia perguntas aos passageiros que viajavam para Israel, verificava o catering, se ninguém punha nada de estranho, variava. Além de trabalharmos em Portugal, uma vez por semana, também viajávamos para ajudar outros voos, noutros aeroportos. Em 1990, estive em Amesterdão, fazia turnos da meia-noite às oito da manhã, na pista, com 20 graus negativos, a tomar conta de um 747 de carga. Amesterdão era o maior terminal de carga de Israel para a Europa durante a Guerra do Golfo. Mas isso são coisas que se vão fazendo na vida. Até por uma questão de equilíbrio financeiro. Foi muito engraçado.

 

O que é que aprendeu nesses anos?

O rigor. Mas o rigor aprendi-o com a minha mãe, que nos passou o sentido do trabalho como sendo primordial. Dar o máximo que se pode dar nas coisas em que nos empenhamos – ser profissional. E aprendi a estar alerta. O que se passou na Europa na Segunda Guerra Mundial é mais uma lição, mesmo para nós que não a vivemos. Perceber quão vulnerável pode ser a nossa hipotética estabilidade. A estabilidade somos nós que a construímos; temos de a respeitar todos os dias, e temos de estar preparados para que a vida em qualquer momento possa dar uma cambalhota. Tenho tido imensas felicidades na minha vida profissional e familiar, mas também tenho tido cambalhotas radicais na minha vida afectiva, e vou lidando com elas com esse ensinamento de que é sempre possível reposicionar-me.

 

Essa experiência junto da comunidade judaica, era uma maneira de se sentir próximo das raízes do seu pai?

Admito que sim. Quando fui convidado para a El Al o que me interessava era arranjar um part-time, e tinha amigos da comunidade.

 

Mas foi escolhido porque era o neto daqueles senhores, e era o filho daquele homem.

Nunca reneguei, de modo algum. No projecto da sinagoga, empenhei-me imenso. A sinagoga foi construída num período em que os templos que não fossem católicos não podiam ter fachada sobre a rua (era uma imposição governamental). É colocada no interior de quarteirão, onde está, e quase ninguém a conhece. Insisti muito para que se quebrasse parcialmente esse carácter de isolamento, desde logo do ponto de vista físico, que se permitisse que as pessoas passassem no passeio e vissem o edifício.

 

Era uma forma de abrir a comunidade à cidade e vice-versa.

Um primeiro passo de formiga nesse sentido. Fiz um portão novo, um vidro muito pequenino, blindado, à prova de bala, que era a semente dessa possibilidade de partilha. No dia da inauguração da obra esse vidro foi tapado com papel pardo pelos agentes de segurança da comunidade, e ainda hoje lá está, e nunca ninguém viu nada lá para dentro. Nem sequer tenho vontade de discutir a questão de a segurança se sobrepor. Mas este exemplo é paradigmático de que aquele território tem ainda muitos problemas que a arquitectura não pode ajudar.

 

Alguns dos seus edifícios mais marcantes acontecem em espaços que não são visíveis a partir da rua. Como se o coração dos edifícios estivesse recôndito, e fosse preciso um esforço para aceder a isso. O lugar onde estamos, o jardim de sua casa, é também um oásis no interior do edifício.

Podia responder a essa pergunta dizendo que raramente os arquitectos escolhem os programas em que vão trabalhar e as solicitações em que se vão envolver. A encomenda aparece e trabalhamos (salvo em casos extremos em que se está verdadeiramente contra uma vontade ou uma decisão de um promotor, e não se avança). Percebo a pergunta, é interessante falar sobre isso. Fala de quando uma casa se encerra para o exterior e se abre para o interior.

 

O que queria dizer é que o seu imaginário parece mais voltado para o interior do que para a fachada.

Não diria isso. As pessoas têm da arquitectura uma ideia enviesada e, se se propõe uma construção que não se vê e que não comunica com o mundo exterior, podem ter a tentação de perguntar se aquilo é apenas um muro. Mas a arquitectura não tem tanto a ver com uma imagem, mas com a construção de um lugar. Se estamos a falar de uma casa é mais importante que se construa o lugar. A casa é o lugar último do homem, o mais privado, em que nos recolocamos face ao mundo.

 

É inevitável, introduzindo este tema, ir dar às Casas de Santa Isabel, projecto com o qual esteve representado na Bienal de Veneza em 2010. Encaixou duas casas numa espécie de terreno baldio, que existe entre vários prédios.

No ocidente, na Europa, vivemos em cidades que são formadas pela trilogia rua, praça e quarteirão. Estes interiores de quarteirão são uma espécie de cidade dentro da cidade. São lugares que as pessoas desconhecem e que podiam ser muito bem utilizados, porque multiplicavam as possibilidades de habitar a cidade. Acontece na maioria dos casos que estes quarteirões são lugares abandonados, maciços, pavimentados, com coisas clandestinas lá dentro. Há uma série de condicionantes sobre este tema. O facto de serem terrenos non aedificandi, o facto de as pessoas dizerem que têm de ser áreas permeáveis… Naquele caso concreto tratava-se de um logradouro com cerca de 1000 metros quadrados onde existiam uns pavilhões precários construídos há mais de 50 anos.

 

Projectou duas casas, uma de habitação para o proprietário, e outra para alugar, numa área de 400 metros quadrados. Acabei por lançar o trabalho com base no desenho dos vazios e na ideia de uma paisagem nova, que não se limitasse a ser pertença da casa, mas que, do ponto de vista do desenho da cidade e das famílias que habitam aquele miolo de quarteirão, seria para todos. Com as arquitectas paisagísticas Filipa Cardoso Menezes e Catarina Assis Pacheco, fez-se este desenho de paisagem. A casa acabou por ser redefinidora de todo o quarteirão.

Havia outras questões. Como operar naquele palco? Quando estamos com uma periferia muito verticalizada sentimo-nos mais ou menos num palco. Entendi que havia dois gestos obrigatórios para responder eficazmente a essa aparente opressão. Agora vê-se que não é opressão nenhuma.

 

Fala do problema da privacidade.

Decidi que a casa havia de ter uma única cota e de ser relativamente esmagada, de forma a contrastar dramaticamente com toda a verticalidade da envolvente. E construir a casa toda num único material, o betão armado aparente, o mais robusto, capaz de estar mano-a-mano com toda a pré-existência da envolvente. Embora fosse muito horizontal, era muito poderoso. Ninguém me falou da falta de privacidade, não creio que seja um tema. Também estamos num lugar onde…

 

… desde que começámos a entrevista veio uma vizinha à janela, alguém tossiu, e foi tudo.

Queria comprar este andar que tem o jardim e o rés-do-chão; como não tinha capital para comprar o prédio todo arranjei amigos que foram comprando os outros pisos. No dia em que decidi fazer este tanque, esta piscina, alguém me disse: “Não vais ter coragem de ir para a piscina no meio de Lisboa, com os prédios à volta”. Eu sempre tive a convicção de que quem se ia meter para dentro eram os vizinhos quando me vissem a tomar banho. E assim foi. Tomo banho aqui todos os dias.

O sucesso que a casa [de Santa Isabel] teve permite-me falar deste assunto muito sério. Agora que se fala tanto de reabilitação, como é que podemos reactivar estes interiores de quarteirão? O que é facto é que os espaços estão construídos, abandonados, sujos, estão impróprios do ponto de vista da salubridade.

 

Em São Paulo impressiona a sucessão de camadas de edifícios que é possível vislumbrar a partir da fachada principal. É um desenho, um redesenho da paisagem, que vamos percebendo à medida que o olhar avança.

O caso mais paradigmático talvez não seja o Brasil. Ainda que em São Paulo os lotes tenham escalas generosas, o que permite uma sucessão de construção de espaços diversificados dentro do lote, e de espaços verdes e exteriores. Berlim é um caso paradigmático. No interior dos quarteirões estão a aparecer lojas, cafés, uma creche. É preciso não ter preconceitos e repensar a cidade como um organismo vivo. As regras que se aplicam num dia não têm que ficar congeladas eternamente. As cidades são como nós, vão evoluindo, vão-se substituindo, renovando. É uma óptima altura para reflectir sobre as nossas cidades, se conseguirmos afastar-nos dos enredos em que andamos sempre metidos – de não pode ser assim, os compromissos que existem, os interesses instalados.

 

Talvez não por acaso Prenzlauer Berg é um dos bairros da Europa onde nascem mais crianças.

Berlim é uma cidade jovem, com capacidade de atrair pessoas novas, capazes de ter um olhar crítico sobre as coisas. E aqui também vai havendo. Estive no Japão há 15 dias e fiquei impressionado. Tóquio talvez seja a cidade do mundo que visitei com maior heterogeneidade morfológica. A variação do ritmo da cidade, as avenidas de arranha-céus, escritórios e centros comerciais, na rua ao lado casinhas abertas com a bicicleta cá fora em que ninguém fecha a porta... Estamos em Lisboa, olhamos para a nossa cidade sobre o Tejo, com um ar de musa, deitada no lombo da topografia... E depois há a luz. Há uma série de temas na arquitectura que são as suas ferramentas de trabalho: a luz, a escala, a proporção, a tensão matérica.

 

Le Corbusier fez uma célebre definição de arquitectura…

Que a arquitectura é o espaço debaixo da luz. Nem sei exactamente como é. Quando se cria uma definição está-se a deixar de lado uma quantidade de outras coisas que também o são. Prefiro dizer que a luz é um elemento fundamental. Nós temos uma luz maravilhosa, as sombras são muito precisas. A penumbra, a luz, o clarão, tudo isso também é como somos.

 

Como é que eram os espaços da sua infância, como é que os reconhecia?

Vivi em casa da minha mãe, num apartamento no Restelo, com áreas generosas, uma casa convencional, de uma família de classe média. A minha mãe é médica. Tenho memórias de construção de lugares meus. O primeiro espaço só meu (porque partilhava um quarto com o meu irmão) foi uma varanda encerrada. Passou a ser o meu lugar único. E não tinha nada a ver com a arquitectura, tinha a ver com a ideia de que precisamos de um espaço. Às vezes nem é um espaço físico, constrói-se dentro de nós. O que se passava ali? Tudo o que se passa na cabeça de um adolescente a meio do liceu. Nada de muito especial, e tudo naquela época, o mundo todo vivido intensamente.

 

Uma questão também importante, a da dinâmica com o espaço envolvente. Hoje, a rua pode ser um lugar ameaçador. Não o era.

O Restelo era um lugar onde se vinha para a rua brincar. Percorri liceus infinitamente até que fui para a [escola] António Arroio. Cada vez que mudava de liceu a minha geografia urbana também mudava. Mudavam os autocarros, mudavam os lugares. Sempre tive consciência de que os bairros da cidade eram heterogéneos. Vai-se andando pela cidade e há muitas cidades, muitos ambientes que são feitos pelo esqueleto da cidade, por aquilo que é construído, e pela coisa real que são as caras das pessoas, os carros, o modo como estão parados, as mercearias que havia naquele tempo, escuras.

 

Lugares imperfeitos, vivos, pré-existentes.

Há uma imperfeição no mundo sem a qual não podemos viver. Ninguém pode fechar-se num mundo perfeito, idílico, artificial. Na arquitectura passa-se o mesmo. Nos trabalhos que faço interessam-me coisas substanciais e intensas, mas nunca me vai encontrar a matar-me no desafio da perfeição, do rigor do material e do pormenor. É sempre mais o desafio da construção de um espaço, ligado ao mundo.

 

Essa revelação dos lugares despertou em si o desejo de ser arquitecto?

Perguntam-me muitas vezes quando é que descobri que queria ser arquitecto. Comecei a dar uma resposta que é aquela que imagino que seja mais verídica. Uma vez fui a casa de um amigo do meu irmão que vivia numa casa modernista, uma casa de arquitecto, dos anos 70. Tive a noção de que alguma coisa era diferente, que todo o espaço era pensado de uma maneira diferente.

Fui agora ver o filme do João Canijo, Sangue do Meu Sangue, que é extraordinário, e ali tem tantas coisas para falar… A dimensão da casa, o contacto permanente entre as pessoas, a possibilidade de os espaços estarem sempre sobre o próximo, e ser quase todo o mesmo…

 

A arquitectura traduz e serve aquele quadro familiar, e potencia aquelas relações.

No meu dia-a-dia essa questão, muito para lá do trabalho que faço, interessa-me. Vou reconfigurando e analisando como é que os espaços e as pessoas se enformam mutuamente.

 

Estudou no Porto, em Milão e em Lisboa. O seu sentido estético passa muito por estas escolas?

O Porto para mim foi uma grande descoberta. Havia uma elegância e uma seriedade com que as coisas aconteciam. A escola era um lugar de grande respeito pelo trabalho e de grande sensibilidade. A cidade parecia-me mais densa que a vida mais leve de Lisboa. Em Milão, a escola era um território totalmente contaminado, com milhares de pessoas, com acesso a conferências, livros. Não havia livrarias de arquitectura em Portugal.

 

Quem é hoje, o que faz hoje, pode ser lido como uma síntese desse percurso, dessas vivências?

O meu processo tem momentos fundamentais, mas nunca os reconheço. Como é que chegamos a fazer o que fazemos e a ser quem somos? É a indução. Quando digo indução, digo uma informação ou um estímulo que contamina o próximo, e assim sucessivamente. Vejo sempre, quer os trabalhos, quer a vida, como um processo de continuidade serena que tem picos de perturbação. Consigo olhar para trás e ver que já acreditei em coisas muito diferentes, próprias das várias idades. Já me comportei de maneiras muito diferentes. É sempre um processo em contínuo, de ir andando pelo mundo, pela vida, ir absorvendo. E ir fazendo uma outra actividade que tem a ver com a síntese, que é uma actividade fundamental da arquitectura e da vida, para perceber o que é essencial.

 

Ainda o Porto: venera Álvaro Siza. Desde sempre se refere a ele como a figura…

O melhor arquitecto do mundo. Assim dito de chofre, só para arrumarmos com essa parte.

 

Foi seu professor? Fale-me do impacto que teve em si a escola do Porto.

Não, foi o Fernando Távora. Naquela época, a escola do Porto tinha um prestígio extraordinário e a figura tutelar era o Álvaro Siza. Mas Álvaro Siza é muito maior que a escola do Porto. Tem uma perspectiva única e fundida com a sua personalidade, a sua biografia, no modo como olha e responde às solicitações.

 

Outro mestre seu: Paulo Mendes da Rocha. Como surge a colaboração no projecto do Museu dos Coches?

Em 1997 ganhei o meu primeiro concurso internacional, para fazer a residência da embaixada em Brasília. O Paulo Mendes da Rocha era a pessoa que mais admirava entre os arquitectos brasileiros e procurei-o. Foi muito generoso. É um jovem de 83 anos. A nossa convivência permite-me estar próximo de uma pessoa muito livre, acutilante, crítica. Não se perde com a pequenez do imediato. Convidou-me para ser o local architect do projecto do Museu dos Coches. É uma obra muito interessante, que vem rematar a frente turístico-monumental de Belém e que tem uma noção de integração num espaço público muito apurada. Antes de visitar o museu, ou mesmo que não o visitemos, encontramos um edifício que dialoga com as várias possibilidades que ali existem.

 

Quis ser um artista? E voltamos a pensar na importância do desenho e na relação com os artistas plásticos.

No momento em que fui para a António Arroio sabia que queria ser arquitecto. Não me passou pela cabeça praticar a arte como modo de vida. Agora, estar próximo da arte, ser interessado pela arte… Quase sempre, quando faço uma conferência, tenho imagens de obras de arte com as quais coloco problemas de arquitectura. Ainda ontem à noite, encontrei uma peça da Lygia Clark que me vai servir para falar de arquitectura. No outro dia foi uma peça de um artista italiano incrível, de que gosto imenso, e de que nunca me lembro o nome…, que fazia uns talhes nas telas.

 

Lucio Fontana?

Sim. Nunca me lembro dos nomes de coisa nenhuma. Gosto imenso daquele tipo que faz as peças côncavas, um inglês-indiano... Anish Kapour. Mostro imenso as peças do Kapour aos meus alunos. A arquitectura tem muito a ver com “resignificar” os lugares a partir da introdução de alguma coisa nesse mesmo lugar.

 

Faça um auto-retrato. O espaço, seria como? Em que material?

Podia ser um espaço relativamente abstracto, de modo que estivesse potencialmente capaz de ser transformado. E havia de ser confortável, e havia de me sentir lá bem. O espaço para o meu auto-retrato é este onde estamos. É um casulo que tem imensos assuntos que me interessam. Quando aqui cheguei, esta tangerineira já cá estava. Uma simples árvore permitiu a construção de uma quantidade de lugares na sua órbita. Muito antes de esta mesa chegar, já sabia que me havia de sentar debaixo desta tangerineira a conversar.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011

 

 

João Luís Carrilho da Graça

20.07.21

“Quando me perguntam o que é a arquitectura, digo sempre que, tal como o design, trabalha para resolver problemas. Só que não se esgota nisso. Para além de resolvermos o problema, resolvemo-lo de uma certa maneira; e a maneira como o resolvemos é que é o fundamental”.

João Luís Carrilho da Graça, arquitecto, 57 anos. Prémio Pessoa em 2008.

 

“Paisagem” é o título desta exposição. Que distinção faz entre território e paisagem?

Durante muitos anos usei o termo território. Ultimamente tenho cedido a paisagem, depois de longas discussões com os meus amigos arquitectos paisagistas. Chegámos à conclusão de que são praticamente sinónimos. Do ponto de vista deles, território é um termo mais técnico, frio. Para mim, era mais abrangente. Quando se falava em paisagem, eu tinha a ideia de que havia um ponto de vista, alguém que observava.

 

É um arquitecto com uma relação fortíssima com o território. É um aspecto sempre sublinhado quando se fala da sua obra.

A paisagem (ou território) é uma maneira de ver o mundo como suporte, como ponto de partida para os projectos, com todas as suas características. As geográficas, a topografia, a maneira como os edifícios, ao implantarem-se, podem criar situações interessantes – só com essa operação de se implantarem de uma certa maneira, num certo ponto do território. Outro aspecto é o clima, a maneira como o sol [incide], as temperaturas. A geologia; que depois permite um certo tipo de cultura (plantas, animais, formas de vida).

 

Por que é que paisagem é uma palavra tão essencial no seu vocabulário enquanto criador?

É como o conceito de campo em arte. É um reconhecimento do que existe. Que pode ser entendido de muitas maneiras e é cruzado com o programa do que se quer construir. Quando construímos num sítio alteramo-lo profundamente. É uma operação que, por mais cuidadosa que seja, contém em si uma certa violência.

 

Violência?

Escavamos o solo. Quando queremos fazer um edifício, mesmo que não tenha pisos subterrâneos, começamos por abrir buracos para as fundações. É uma operação intencional e forte.

 

É uma descrição como a de uma cirurgia. Como se a terra fosse um corpo.

Mas é um pouco isso.

 

A paisagem não é nunca uma folha branca. Se calhar é o grande desafio: como é que o diálogo se faz.

Será que o território também é importante se for um deserto, se for uma ilha? Para mim é sempre importantíssimo. Mesmo que seja um deserto, há pontos de tensão e de caminho, de atravessamento. O que se for construir deve estar em sintonia com o que já existe.

 

Como estabelecer o diálogo, a sintonia?

Não é uma sintonia de sublinhar ou de atender só ao que existe. É uma sintonia dialéctica, mesmo que seja para estabelecer contraposições.

 

Pensemos em dois edifícios: o teatro de Poitiers e a Escola Superior de Comunicação Social em Benfica. São ambos impositivos; a maneira como se inserem na paisagem é marcante, e altera radicalmente o que lá estava.

O da Escola de Comunicação, admito que seja impositivo. Foi dos primeiros projectos que construí. O que o torna mais forte, na sua presença descarnada, é a ausência de espaços exteriores. Durante estes 20 anos não se conseguiram plantar árvores nem completar o espaço; isso dá-lhe um ar mais impositivo do que eu gostaria. [Gostaria de] lê-lo no meio das árvores.

Em relação ao de Poitiers, naquele rebordo da plataforma do centro histórico já há edifícios grandes. Mesmo ao lado está o Banco de França e a Prefeitura. Embora o terreno urbanisticamente não estivesse à espera de receber um equipamento tão importante, uma das minhas preocupações, e talvez uma das razões por que ganhei o concurso, é uma delicadeza na relação com aquele universo. A reconstrução dessa plataforma talvez tenha a ver com o espírito da arquitectura portuguesa: de um certo cuidado e delicadeza na maneira como se intervém.

 

Alguns dos seus projectos mais famosos são grandes edifícios. O Pavilhão do Conhecimento na EXPO, o Museu do Oriente, a Igreja de Portalegre. Assina outros de uma escala completamente diferente, como a ponte pedonal de Aveiro ou uma habitação na qual fez uma pequena intervenção. Por que é estes pequenos projectos são desafiadores?

Todos os projectos se medem com as pessoas que os utilizam, que os sentem, que os visitam. Muitas vezes, é mais sedutor trabalhar numa pequena escala do que num edifício grande. Os problemas, por estranho que pareça, nem são assim tão diferentes. Ou seja, tem de se chegar a equilíbrios e a situações razoáveis. Sobretudo em projectos grandes, gosto de não perder a possibilidade de desenhar todos os detalhes, de definir as situações de pequena escala. Não consigo dizer que prefiro fazer edifícios grandes ou pequenos. São complementares. Uns permitem um certo tipo de experiências e outros, outras.

 

Voltemos à exposição. Gostava que apresentasse cada um dos projectos que a compõem por palavras suas – querendo com isto dizer: como os criou, como os vê.

Vou começar pela ponte da Covilhã, de que gosto imenso. Foi um desafio lançado por sugestão do Nuno Teotónio Pereira, que fez um plano para a Covilhã, pensando que era possível – e vai ser – que a cidade passe a ser vivida a pé, introduzindo algumas pontes pedonais e elevadores. A ponte do Vale da Carpinteira (projectei três e esta é a maior) tem uma ressonância fantástica! De um lado, temos a Serra da Estrela; aquela encosta por ali acima com uma força espantosa. Depois, o Vale da Carpinteira desce suavemente para a Cova da Beira, vai até ao Fundão. Pelo meio, o próprio Vale da Carpinteira; é profundo, com antigas fábricas, planos inclinados em granito onde punham a lã a secar, uma série de muros e uma vegetação quase selvática. Quando descemos ao vale, parece que mudamos de continente.

 

E de tempo?

E de tempo. O conceito da ponte é este: temos um andamento ondulado em toda aquela geografia e topografia, com ruas sinuosas, estradas, etc. Normalmente as pontes, porque são para comboios ou para automóveis, com um sentido viário, ou porque têm um sentido de economia muito estrito, são rectas. Neste caso, como o vale é extremamente coleante, a ponte fica a desenhar-se no ar com uma forma curvilínea – que eu acho muito sexy [risos]…

 

É um belo adjectivo para uma ponte!

[A ponte] tem uma enorme elegância, tem 200 e tal metros de comprimento. O vale no seu ponto mais alto tem cerca de 70 metros até ao tabuleiro da ponte. É como se fosse um edifício radical, com um conteúdo que é só a passagem. Essa constituição joga, cenograficamente, com a Serra da Estrela e o vale da Cova da Beira, a pousar neste Vale da Carpinteira.

 

Passemos ao projecto seguinte. O Convento de São Francisco, em Coimbra.

Já teve várias utilizações, a última era uma fábrica. Quando comecei a minha intervenção já tinham retirado essas marcas industriais. Foi tão massacrado que foi tornado essencial. O programa começou por ser um centro de congressos, entretanto foi derivando para centro cultural. O edifício está entre Santa Clara-a-Nova, lá em cima, e, em baixo, Santa Clara-a-Velha, na entrada do Portugal dos Pequenitos. Está um bocado perdido naquele nó viário. O pedido da Câmara era fazer um envasamento ao edifício com esse volume do parque de estacionamento, e criar uma praça que funcionasse à semelhança de outras praças de Coimbra. No convento de São Francisco há uma praça que fica aberta à cidade, virada para o rio Mondego, com uma vista bonita. O edifício é restaurado e posto a funcionar de uma maneira polivalente, com flexibilidade. Ao lado constrói-se uma sala de espectáculos impecável, com 1100 lugares. Em resumo, há o restauro do edifício existente, a construção da sala, do estacionamento e o sentido de conjunto que tudo isto vai fazer.

 

Que fio condutor usou?

O da paisagem. O projecto parece que emana directamente deste conjunto de conceitos. Um conjunto monumental fortíssimo, o rio Mondego, a cidade do outro lado, aquela encosta.

 

Avançamos para o terceiro projecto da exposição. O Centro Cívico do Planalto do Ingote.

Este Planalto do Ingote tem vistas interessantes, como é normal num ponto alto, e nele está construído um bairro social, o Bairro da Rosa. Tem fortes problemas sociais de todos os tipos, (droga, etc). A ideia da Câmara é construir um conjunto de valências e de espaços, agrupando várias entidades, que façam um sentido conjunto, e que criem uma centralidade no meio do bairro.

 

O seu projecto, que ganhou o concurso, está a agora a ser desenvolvido.

[Propõe] a criação de uma acrópole, com um sentido cívico marcante, um sentido social decidido, em que há espaços públicos. Há um teatro que vai com certeza chamar pessoas de todo o lado, e que pode participar em festivais e em programas que se venham a organizar. Há um grande polidesportivo, há residências para vários tipos de situações problemáticas (como para a terceira idade).

 

A intervenção social é uma linha de trabalho essencial?

É extremamente importante que a arquitectura consiga cumprir essa função social. Estamos num mundo com um nível de desequilíbrio tão elevado que ninguém pode trabalhar com consciência sem ter isso em linha de conta.

 

Há anos, deu como definição de utopia qualquer coisa como: “Construir em sintonia com o que acontece no mundo”.

De preferência com o que acontece de maneira positiva. O mundo está permanentemente em convulsão e é bom que consigamos ajudar a resolver problemas, e não criar outros.

 

Cita frequentemente a distinção entre as cidades europeias e as cidades americanas feita por Baudrillard. A cidade europeia é aquela que nos seduz e onde tudo desagua. A cidade americana provoca um impacto do domínio do fascínio, e é fragmentada.

O ideal é que consigamos fascinar, e não seduzir. O texto explica que a cidade tradicional europeia é construída como um cenário, um espaço teatral; o observador está sempre imerso na cidade, conduzido pelas ruas, perante alçados, a chegar a uma praça. Podemos imaginar sequências, enredos, clímaxes, pontes fortes e fracos. Estamos num espaço teatralizado ou teatralizável, onde é possível a sedução. A cidade americana já está fragmentada. Já há edifícios enormes ao lado de casas pequenas. Não há esta ideia da rua corredor ou da sequência teatralizada. Baudrillard diz que aí só é possível o fascínio.

 

Porque é que esta é a posição que prefere?

Se nós, arquitectos, não precisarmos de enredo, de encantamento e sedução para comunicarmos, e se conseguirmos construir edifícios fascinantes, isto teoricamente é mais forte. Na prática, temos de partir do real, temos de construir com o real, e ter em conta o sentido da sequência – como se fosse cinematográfica – para perceber como é que o espaço é percepcionado e como é que os edifícios vão ser vividos.

 

Que dramas aí são vividos.

Exacto.

 

Do cinema e teatro passamos para a arte e literatura. É interessante que nos seus textos apareçam frequentemente fragmentos de Herberto Hélder. Apetece dizer: o que é que a poesia tem que ver com isto?, o que é que a arte tem que ver com isto?

Há muitos anos, numa das primeiras participações que tive numa bienal, em Paris, escolhi como divisa um fragmento de um poema do Herberto Hélder: “Como se um nervo cosesse as partes pungentes e selvagens da carne”. O que acontece com a arquitectura é esta capacidade de produzir conhecimento e de estabelecer comunicação num território próprio. É um processo de conhecimento e comunicação, de uma maneira sintética, tal como com a poesia ou a música.

 

Sente uma especial afinidade com as artes visuais, e aqui incluo as artes plásticas, o cinema, a fotografia.

Interesso-me bastante por tudo isso de uma maneira anárquica e desorganizada, e de uma maneira vital. Sinto necessidade permanente de utilizar e de consumir música, arte... Mas não é por ser arquitecto; acho que é por ser um ser humano.

 

Como é que isso aparece naquilo que faz? Como é que podemos denotar essa importância vital que a arte, a literatura, a música, o cinema têm no seu quotidiano?

Somos feitos desse conjunto de memórias e conhecimentos que vamos absorvendo, e reflectimos isso. Temos necessidade de perceber o que se está a passar à nossa volta. Como é que as outras pessoas estão a resolver esses problemas. Como é que lidam com a realidade. Que processos de afinidade é que existem. Como é que podemos encontrar caminhos que possam ter o mesmo significado. Basicamente, o que é fundamental é sentirmo-nos à vontade a trabalhar, e para isso temos que perceber que funcionamos em sintonia. Essa sintonia só se adquire através de processos de vivência intensos e contínuos. 

 

Joseph Beuys é um artista de que gosta especialmente; há outros igualmente importantes no seu imaginário.

Há muitos. Estive há uns meses numa exposição antológica do Joseph Beuys em Berlim e fiquei impressionado. Quando voltei para Lisboa tinha que fazer uma sessão numa livraria e propus que fosse à volta da obra do Joseph Beuys. É um mágico, um artista genial.

 

E sensorial.

E sensorial. Tocou em matérias e possibilidades extremamente importantes.

 

Sublinho o lado sensorial porque, sendo um mágico, é ao mesmo tempo “físico”.

É, apesar de ter uma posição “religiosa” na relação com o mundo. Os espanhóis Tuñon y Mansilla, que ganharam o ano passado o Prémio Mies van der Rohe, e de cujo trabalho gosto muito, põem em todas as fotomontagens que fazem dos seus projectos, uma figura do Joseph Beuys! Dir-se-ia que tem um ar provinciano, mas [passa] pelo reconhecimento da importância que a arte ou a poesia ou o cinema pode ter para os arquitectos.

 

Outros artistas de que goste especialmente e que queira nomear.

Mais contemporâneos e próximos de nós, por exemplo, o Lawrence Weiner. Foi o Julião Sarmento que mo apresentou, até pessoalmente. À medida que fui conhecendo a obra fiquei fascinado! E outro é o Julião Sarmento, nosso amigo. É incontornável.

 

Participou na peça de Julião Sarmento/John Baldessari/ Lawrence Weiner “Drift”. Gostou da experiência? É passar um pouco para o outro lado do espelho…

Gostei! Foi uma experiência única, não se repetiu. Achei piada e gostei de ver, depois, o resultado da montagem. Parte de um ponto de vista territorial; mostra-nos sempre a linha do horizonte, que é o mar, que permite unir sítios à volta do mundo muito diferentes.

 

Gostava de chamar à atenção para o quadro do Pedro Casqueiro, que tem na sua sala, além do de João Louro. As fotografias das suas caixas, das suas zonas de trabalho, coincidem com esta imagem de Casqueiro. A forma deste quadro é rectangular, que é também a forma primordial do seu trabalho enquanto arquitecto.

Tenho este quadro há imensos anos, desde 80 e tal. É o pagamento do projecto que fiz da Galeria Módulo. O Mário Teixeira da Silva, em vez de me pagar em dinheiro, pagou-me com este quadro. Esteve sempre no meu ateliê, toda a gente que o visita vê o quadro, os meus colaboradores conhecem o quadro, está publicado. Muitas pessoas que chegam de fora pensam que fui eu que o pintei! [risos]

 

Tal é a afinidade…

Exactamente. É uma malha que quer ser ortogonal mas que está cheia de imperfeições e contradições; as cores, a maneira como tudo isto é construído, tem uma ressonância arquitectónica. Mas há outras formas de arte e outros trabalhos com as quais tenho afinidade.

 

Fale-me da peça de João Louro que também está na sua sala de trabalho.

O cenário que fiz para “Olhos nos olhos”, o programa da Maria João Seixas [na RTP2], era parecido. São dois planos, uma espécie de dois espelhos negros, que reflectiam as pessoas que estavam a conversar. Esta blind image, perturbadoramente, vira-nos para nós próprios. A ideia do reflexo, e a sua importância na construção e desconstrução do espaço, é muito importante.

 

Consegue explicar mais detalhadamente a relação com Herberto Hélder e Julião Sarmento?

A poesia do Herberto Hélder e a prática artística do Julião Sarmento, que têm coisas em comum, também têm a ver com a minha actividade. Gosto da calma e discrição que se sente no discurso (da arquitectura, da arte, da poesia), que esconde ou mostra uma realidade fortíssima, poderosíssima, que é mais perturbadora do que aquilo que estamos a receber como primeiro impacto.

Na obra do Julião Sarmento, qualquer dos quadros e vídeos parecem superficiais (pela forma como o tema é abordado) ou parecem sofisticadíssimos; mas são sempre equívocos, e talvez mágicos. São inexplicáveis. Não sabemos por que é que exercem uma tão poderosa atracção e nos estão a revelar coisas que não estão presentes ou a esconder outras.

 

É uma forma de lidar com o desconhecido.

Gosto da ideia de que lidamos com mistérios que nunca conseguiremos resolver, e que estamos, de uma maneira calma, e eventualmente codificada, a lidar com todas estas realidades tumultuosas.

 

Isso, na sua arquitectura, tem alguma coisa que ver com as surpresas, com uma irregularidade inesperada?

As surpresas terão mais a ver com os aspectos cenográficos, de sedução, que correm como se fossem um discurso paralelo. A presença, umas vezes brutal (há bocado falava de violência porque acho que isto é uma actividade de alto risco, não são coisas imediatas e simples); a presença dos edifícios, da massa construída, o seu impacto sobre a nossa sensibilidade, tem um carácter a que Miguel Ângelo chamava terrebilitá. Tem a ver com isto que estava a tentar explicar: reconhecer a força e o poder daquilo com que estamos a trabalhar, mesmo que se revista com discursos aparentemente superficiais.

 

Volto a falar da forma rectangular para falar de contentores, de receptáculos. Portanto, do que acolhe, do que pode acolher.

A propósito de uma das primeiras obras que construí, o Paulo Varela Gomes dizia que nos meus projectos as questões técnicas e os programas eram como o tema na pintura antiga. (O tema neste sentido: uma Adoração, uma Visitação…). Achei um pouco equívoco, porque sempre pensei que a adequação ao programa e a uma série de coordenadas mensuráveis, que a sociedade me pedia, eram o fundamental. [O que Paulo Varela Gomes dizia], se fosse possível, era interessante, mas era um pouco fantasioso.

 

Qual o sentido que isso agora lhe faz?

Mesmo que seja a um nível inconsciente, temos coisas para dizer que não conseguimos contornar. Acabamos por dizê-las a propósito do que quer que seja. A questão da ortogonalidade: gosto de usar formas e sistemas de construção simples, porque reconheço uma enorme complexidade geométrica e real no mundo. É interessante se conseguirmos propor os tais recipientes, receptáculos, contentores, de uma maneira simples. Custa-me recorrer a formas caprichosas ou pitorescas – não sinto necessidade. Tento encontrar os melhores receptáculos para os programas, e não me importo que a relação com tudo o que nos envolve seja forte, ou por contraste ou por oposição.

Esta exigência de uma grande atenção à paisagem, à realidade, que às vezes é quase sufocante e cansativa, é talvez um álibi que me permite ganhar liberdade neste confronto. Ou seja, se estiver seguro do que estou a pisar e da maneira como o edifício se relaciona com a realidade, sinto liberdade para poder afirmar, chocar, construir.

 

 

A acompanhar uma exposição do artista no CAV em 2008

 

Francisco e Manuel Aires Mateus

20.07.21

“Lembro-me sempre de jantares em que o Francisco consegue fazer a festa total, e de fases em que está bastante recatado”.

“É verdade que na adolescência o Manuel era uma pessoa mais séria e eu era completamente selvagem. Coisa que se veio a equilibrar com algum esforço”. Quem são eles?, como fazem o que fazem? Os Aires Mateus são dois, mas são um.

A entrevista permite encontrar famílias que se desintegraram no pós-25 de Abril, meninas que pertencem à casta das pianistas frustradas mas que dão a volta, a espiritualidade e a religiosidade, os anos 80 em Lisboa (uma certa desbunda), a porosidade social no bairro dos Olivais, como é que um livro ou a memória se traduzem num edifício, onde é que o virtuosismo e a subversão de um complementa o trabalho e o rigor de outro, as inseguranças de um que são diferentes das inseguranças do outro, um tempo em que o que a consciência permitia era fazer coisas belas, a casa-ponto de viragem para a qual se constrói um corpo, respeitando o lugar, a estrutura, o que existia, o terror de aquele ter sido o último projecto de que se foi capaz.

A entrevista permite conhecer Manuel (1963) e Francisco (1964) Aires Mateus e os Aires Mateus. Os percursos individuais e o discurso artístico da dupla de arquitectos.

São reputados, premiados. Dão aulas na Academia di Architettura de Mendrizio, na Suíça, e na Faculdade de Arquitectura de Lisboa. As aulas não são de um ou de outro, mesmo que sejam dadas por um ou por outro; são a expressão da entidade que os dois formam. Assinaram projectos como a Biblioteca e Centro de Artes de Sines ou a sede da Orquestra Metropolitana de Lisboa (com Gonçalo Byrne, com quem trabalharam).

Entrevista ao fim da tarde, no atelier de Manuel. Só porque a entrevista lhe começou por ser pedida a ele? Francisco está perto. Às vezes falam um com o outro – “Qual é a casa da tua infância?”. Mas é raro. A cumplicidade não é uma questão. A competição, dizem, nunca existiu.

Depois da conversa falou-se da importância da luz numa casa de banho (acordar todos os dias com má cara por causa da luz não é uma boa ideia), viram-se fotografias de casas, trocaram-se afinidades.

São casados. Têm filhos. Mas tudo isso está na entrevista. O melhor é entrar…  

 

Porque é que são os dois arquitectos?

Francisco – Não é nada de muito estranho. A nossa mãe é pintora, o pai é arquitecto. Havia na vida normal da família uma aproximação à arte. É mais extraordinário a nossa irmã, que acaba em enfermagem, psicologia e medicina de catástrofe. Depois de termos estado na [escola] António Arroio, tornou-se claro que era arquitectura.

 

Há apenas um ano de diferença entre os dois.

Manuel – Nunca nos demos com as mesmas pessoas nem com os mesmos grupos. Não é que não nos déssemos muito os dois. Dormíamos no mesmo quarto, tínhamos muitas coisas em conjunto.  

 

Por que razão fora de casa se davam com pessoas diferentes? Um ano é praticamente insignificante.

Manuel – Quando tínhamos dez anos a diferença era maior. Tinha uma série de amigos muito reservados, metidos em casa. Líamos, ouvíamos música.

Francisco – O Manuel tinha um grande amigo que era um ano mais velho; e dois anos, quando se tem 12, faz uma certa diferença. Este grande amigo, Vítor Gameiro Pais, era aquilo a que chamávamos um intelectual.

Manuel – Um tipo com uma grande consciência política. À esquerda, obviamente.

 

Obviamente, porquê? Quando tinham essa idade, estamos a falar do pós-revolução.

Manuel – Sim, ou imediatamente anterior. Muito politizado, para um miúdo, só se notaria se fosse muito radicalmente à esquerda. Esse meu amigo era uma pessoa com uma enorme formação cultural, na literatura, no cinema.

Francisco – Tinha os interesse de uma pessoa mais velha. Eu andava com um grupo mais normal, mais populoso, mais imberbe, mais sujeito às parvoeiras da vida.

 

O que é que liam, o que é que viam? Quem eram essas pessoas com quem se davam? Tudo isso acaba por vos formar enquanto indivíduos. E acaba também por fundar um imaginário, que transparece no que fazem.

Manuel – Há uma influência muito grande: a nossa mãe. Deixou de pintar quando nascemos, esteve muitos anos sem pintar, voltou a pintar durante um breve período, e a escrever. Foi quem se encarregou da nossa formação de forma mais directa. Tivemos os ciclos do [Carl T.] Dreyer! Isto com 13 ou 14 anos. Éramos obrigados…

Francisco – Sim, éramos obrigados.

Manuel – Éramos obrigados a ir ao ballet. Até ter visto o [Merce] Cunningham (nunca me esquecerei dele a atravessar o palco da Gulbenkian, a andar), odiava o ballet, mas ia. Cada coisa que a Gulbenkian fazia, íamos.

Francisco – Era uma enorme novidade a ideia de que um bailarino podia não se ver como um bailarino.

Manuel – O meu pai tinha a música.

 

Melómano?

Manuel – Sobretudo tinha um gosto pela música clássica. Jazz também, como convinha a um arquitecto. Tinha o seu grupo de amigos que iam ao Hot [Club].

Francisco – A condizer com o bigode. Nos anos 70 convinha ter um bigode e ir ao Hot.

 

O que é que era o cinema do Dreyer para um miúdo de 12 anos naquela altura? O que é que fica da experiência?

Manuel – Já não faço ideia.

Francisco – Não havia nenhuma espécie de academismo. Não era uma formação consistente e consciente. Não me lembro de a minha mãe ter as preocupações que tenho com as minhas filhas.

 

Por exemplo.

Francisco – Estar preocupado se elas lêem, se lêem coisas boas. Acho que tenho que as formar com aquele instrumento. A nossa mãe não. Tinha os livros para quando quiséssemos ler. Eu lia pouquíssimo. Um dos primeiros livros que li foi a Rua Mântuleasa, do Mircea Eliade.

Manuel – E [Jorge Luís] Borges. O pai tinha a loucura do Borges, que conheço de sempre. Mas nunca fomos treinados.

 

Como disseram que eram obrigados, facilmente caímos na tentação de pensar que era uma coisa quase formatada.

Manuel – A minha mãe achava que não devíamos desperdiçar oportunidades quando as coisas apareciam. Estamos a falar de um tempo em que as coisas não apareciam como hoje. Estamos a falar de um tempo em que não havia bibliotecas nas casas. Não se chegava aos ateliês e havia livros de arquitectura.

Francisco – Não se saía com sacos de livros da Fnac.

 

Não tiveram a noção nunca de que estavam a ser treinados para serem vencedores?

Manuel – Nem nunca fomos, nem isso é uma palavra que nos interesse.

 

Mas são vencedores.

Francisco – Tínhamos, de um modo latente, a ideia de que nada se consegue sem esforço. Que o esforço leva a melhorar, e que a nossa melhoria como pessoas é um bem em si. Mas não no sentido de vencedores porque somos melhores do que.

Manuel – Respondermos à nossa responsabilidade era uma tarefa, é uma tarefa. Ainda hoje penso que é a maneira como devemos olhar para a vida.

 

São arquitectos de sucesso, triunfaram, mesmo que não fosse esse o propósito inicial. A dupla é muito reconhecida, e não só em Portugal. São uma referência para a vossa geração e a subsequente. Isto não cai do céu.

Manuel – É tão estranho… Tudo o que se consegue coloca-nos num novo patamar de incapacidade, de responsabilidade. Temos construído coisas que nos dão uma grande felicidade. Mas uma vez conseguidas, colocam-nos perante novos desafios. É muito efémero, passa logo, não temos descanso. Vivemos aterrorizados com a ideia de estarmos esgotados.

 

Aterrorizados, esgotados? Não têm 50 anos.

Manuel – O terror de haver um esgotamento das nossas possibilidades artísticas. Os projectos atingem-se com grande sofrimento, não têm esse lado de prazer que as pessoas, olhando de fora, vêem. Quando há aquele breve momento de felicidade que advém da solução, de repente há uma angústia de que aquele tenha sido o último que se foi capaz de fazer. Porque há-de haver um, que é esse.

 

Isso foi sempre assim?

Francisco – Ao princípio é tudo inconsciente, quando se é miúdo.

Manuel – O mundo, muito rapidamente, porque tem grande dificuldade em posicionar as pessoas, quer etiquetar, quer arranjar um sistema para pôr as pessoas num determinado lugar. Isso dá jeito à crítica, à encomenda, à sociedade. É dos maiores riscos que há na arquitectura. Uma pessoa começar a sentir-se obrigado a fazer [de determinada maneira]. Lembro-me sempre de ter ouvido o [Richard] Meier dizer: “Até gostava de fazer coisas diferentes, mas sou tão caro que tenho que ser reconhecido. O meu trabalho tem que se reconhecer imediatamente”.

 

Ter uma identidade artística tão vincada, ostensiva, que justifique o dinheiro que lhe pagam.

Manuel – E com isso se cerceia qualquer nível de liberdade, qualquer nível de investigação. Para nós é muito importante reivindicar a possibilidade de errar. É a única maneira de acertar, de se ser único – e não decantar coisas de outros tempos. Vivemos este medo de nos fecharmos, de começarmos a bloquear. E vivemos convencidos de que temos de fugir, de nos manter livres. Este pânico (de que um dia nos vão conseguir agarrar, amordaçar e obrigar-nos a fazer aquilo que reconhecem no nosso trabalho) é um terror.

 

Nesse sentido, o projecto da casa com o chão de areia, na Comporta (2009/10), que fez parte da representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza, e que é uma coisa completamente diferente do que tinham feito até aqui, o que é que representou?

Manuel – A casa do chão de areia aparece em condições especiais. Não faria sentido uma casa com chão de areia em Campo de Ourique. Na verdade, apareceu numa visita à Tate Modern numa exposição do Cildo Meireles. Uma das instalações era uma sala em pó de talco com uma vela na ponta. O visitante descalçava-se e andava em cima do pó de talco até chegar à vela. Era uma sensação… reveladora, qualquer coisa de muito diferente. A casa do chão de areia foi construída numa procura de reinventar a tradição. Aceitá-la (a tradição daquela construção em madeira e palha), mas reinventá-la. Também tinha uma outra relação: nós somos dali, o nosso pai é dali. Uma coisa que sempre conhecemos era que as casas de trabalho viram a nascente, as casas de lazer viram a poente. Naquele projecto mexíamos no tempo, virando as casas que estavam a nascente, que eram de trabalhadores, a poente. E mexíamos na maneira como se queria usar o tempo da casa. Correu-se o risco, calculado, e acabou por ser uma lição, como são estas coisas que constituem saltos.

 

Qual foi a lição?

Manuel – Para responder, temos de voltar atrás no nosso percurso profissional. Temos dois tempos muito claros. Um primeiro tempo, do boom português. Fazíamos muitos concursos, ganhámos alguns e construímos. Obras grandes, do Estado, em que o nosso grande fito era essencialmente fazer coisas bonitas.

Francisco – Não havia consciência para muito mais.

Manuel – Fazíamos coisas que pretendiam ser imagens. Ao mesmo tempo percebemos coisas, ganhámos destreza, aprendemos a linguagem, aprendemos a construir.

 

Fizeram a mão.

Manuel – Sim. Numa determinada fase ficámos sem trabalho. E depois ficámos com obras substancialmente mais pequenas, casas. Uma casa que marca para nós um ponto de charneira: a casa de Alenquer. Desenhámos a recuperação tradicional de uma casa, um projecto correcto para se fazer no campo, numa vila histórica; quando começámos a obra, ruiu tudo, as paredes não tinham capacidade de carga.

Francisco – Ficaram as paredes exteriores, só.

Manuel – O que era uma casa banal transformou-se numa ruína lindíssima. E decidimos mudar o projecto completamente. Começámos a ter outra consciência da realidade, e outro afecto [pelo que existia].

 

Passaram a funcionar com o que já existia.

Manuel – E a perceber o valor do material, a perceber o valor do tempo.

Francisco – Houve ali muitas descobertas. Há campos com os quais começámos a trabalhar que estavam para além daquilo que eram as nossas preocupações. O Manuel explicou a ideia da casa da Comporta, através do processo de inversão do tempo (porque ele se inverte nas aberturas das casas, na materialidade, no processo construtivo): seriam temas que não nos passariam pela cabeça antes. A partir da casa de Alenquer passámos a abrir bastante mais o campo de percepção do que é que estava ali, do projecto que temos pela frente. Abriram-se possibilidades.

 

Essa maturidade era só artística ou também pessoal?

Manuel – Não há uma sem a outra, penso que são a mesma coisa. O que percebemos ali foi a liberdade com que é possível operar. É a pessoa dizer: “Tenho um campo de liberdade, posso, e mais, devo usá-lo”. Um projecto é uma infinita condição de possibilidades que podemos e devemos usar. E usamos. O que não acontecia antes. Tínhamos uma espécie de esquema, queríamos fazer uma arquitectura...

Francisco – Dizendo sempre que não.

 

Uma arquitectura bela.

Manuel – Sim. Nunca mais isso nos ocorreu.

 

Como se estivessem subordinados à estética?

Manuel – O centro passou a ser a maneira como se pode experimentar, a maneira como se pode viver, possibilidades de uso. E os projectos são muito mais interessantes.

Francisco – Quase acho que há assim uns projectos que não são nossos... Fazem parte de um período propedêutico, de uma fase em que andávamos guiados por um sentido estético, de algum controlo das proporções. Agora experimentamos isto, agora experimentamos aquilo.

Manuel – Que é essencial para aprender a construir.

Francisco – É evidente. Mas nada cosia estes diversos projectos. Eram apostas vagamente sedimentadas no lugar, no programa, em coisas muito práticas, e em que não éramos muito maus. Há projectos de que gostamos muito, independentemente de serem extraordinários ou não. Gostamos muito porque nos fizeram perceber determinados temas. Mas tenho a sensação que é uma coisa que está ali, é um património, vejo-o de longe.

 

Usemos a metáfora de livros numa estante; agora podem pegar neles com uma descontracção superior àquela que teriam quando achavam que só alguns livros é que estavam certos.

Manuel – Há uma descoberta muito importante, que é perceber que posso navegar pela história com uma total liberdade. Não tem que ser cronológico; posso andar para a frente, para trás, misturar tempos. Ou na teoria, ou nas influências, em qualquer ponto da cultura. Há uma noção que a arquitectura tem, a de que serve um propósito. A arquitectura não é um campo branco, só existe com um fim. Essa noção de um fim, que muitas vezes é utilizada como uma desculpa para uma incapacidade, é uma enorme libertação. Hoje, é mais clara a maneira como conseguimos trabalhar porque a arquitectura constrói-se a partir de uma necessidade, de um lugar e de umas condições, económicas, físicas, tecnológicas. Isto forma a arquitectura. E parte de uma outra coisa: o que conseguimos transportar para este problema. Nunca poderemos sair de uma destas condições, nunca poderemos usar condições que não temos, um lugar que não temos; mas podemos utilizá-las de maneira completamente diferente. E isto transforma a arquitectura numa arte com tantas possibilidades... No fundo é uma necessidade de ancoragem a uma realidade, e simultaneamente uma possibilidade quase infinita de interpretação.

 

Francisco, que rebelde era?

Francisco – Tive sempre as notas que era preciso ter, nem mais nem menos.

Manuel – Às vezes, um bocadinho menos.

 

O Manuel era o bom aluno e o bem comportado?

Francisco – Sim, sim, claramente.

 

E isso era uma forma de se afirmar em relação ao irmão mais velho?

Francisco – Não tenho muito essa ideia. Vivíamos nos Olivais, que foi um bairro subitamente ocupado por pessoas da mesma geração, que tiveram obviamente filhos da mesma idade. Cada prédio tinha 20, 30 pessoas da mesma idade, gerava grupos por prédios, por ruas, por bairros.

Manuel – Os arquitectos mudaram-se para lá, muitos intelectuais foram para lá.

 

Que recorte social era o dos Olivais quando se mudaram?

Francisco – Muito variado. Havia cruzamento de ruas de habitação social com ruas de classe média-alta. Havia muitos funcionários da TAP, quadros da indústria, de Alverca. Éramos assaltados com alguma regularidade, fomo-nos habituando a negociar todas estas coisas, a fazer amigos de outras classes sociais e a ter uma relação normal com esse mundo. Por muito que me digam que socialmente a experiência falhou em muitos aspectos, parece-me que foi bastante rica. Até na medida em que não provocou segregações por bairro, como depois aconteceu em Chelas, por exemplo, onde se faz uma guetização da população. Havia grandes bandos de miúdos que estavam constantemente na rua.

 

A escola que frequentavam era também ali? Escola pública?

Francisco – Sim. Havia menos aulas, havia menos disciplinas parvas para fechar as crianças dentro das escolas porque os pais não estão para as aturar.

Manuel – Não tínhamos actividades, saíamos da escola e íamos para a rua. Para onde quiséssemos. Íamos para casa jantar. Tínhamos muito tempo livre, só tínhamos aulas de manhã.

Francisco – O meu grupo fazia várias coisas, e às tantas degenerou numa banda Pop, os Radar Kadafi.

Manuel – O Francisco era baterista dos Radar Kadafi.

Francisco – Entretanto, o Paulo Varela Gomes, que também andava por ali porque era namorado de uma amiga, começou a escrever uns artigos sobre nós (ainda os Radar Kadafi estavam embrionários). Gravámos discos, fizemos não sei quantos concertos; mas a banda girava mais à volta de uma consciência e de uma proposta estética do que musical.

 

Eram os anos 80 em Lisboa, tudo era uma experiência pós-moderna.

Francisco – Exactamente. À nossa volta, a maioria das bandas tinha nomes do tipo “A Velha Guarda”. Uma malta muito deprimida, tudo muito pesado, muito Joy Division. Nós resolvemos que isso estava tudo mal e que tínhamos era de cantar a vida de uma maneira alegre e optimista. Um dos concertos era o “Estendal Lusitano” – era o que nós éramos.

 

Havia um especial orgulho nessa lusitanidade? Aconteceu com os Heróis do Mar, do Pedro Ayres, por exemplo.

Francisco – Era uma certa moda. A determinada altura o Pedro Ayres era nosso agente. Mesmo o Miguel Esteves Cardoso, que escreveu letras para os Sétima Legião, andava muito à volta disto. Uma certa afirmação da lusitanidade, uma esperança. Havia convites para tocar em Espanha, um renascimento cultural português. Depois havia que escolher um caminho. Já estava a acabar a faculdade, e claramente não sou um músico, nunca fui. Gosto muito de tocar bateria, sempre me dei bem com aquela coisa de ter um estendal à minha frente que me protege…

Manuel – Do público.

Francisco – De qualquer coisa. Aquilo era demasiadamente uma brincadeira. Foi muito giro.

 

O Francisco foi mais popular enquanto criança e enquanto adolescente? Isso o que é que provocou em si?

Manuel – Nunca tivemos essa sensação. Gostava muito deste lado do Francisco. Aliás, ria. Não era só esta coisa, eram as motas que deixava desmanchadas no meio do quarto. Eu não tinha nada a ver com isto. Na verdade não tenho nada para apresentar.

 

Não foi um rebelde com estas ou outras causas?

Manuel – Terei sido um rebelde noutras coisas. Houve um momento, por um factor muito preciso, a morte do meu avô paterno, em que a minha vida mudou. Era um outro pai para mim. Tinha 14 anos. Não sei por que reacção, comecei a centrar-me na ideia de estudar. No princípio de cada ano estudava a matéria, entrava nas aulas a saber rigorosamente do que ia tratar o ano todo. Era um aluno obsessivo. Isso não é bom.

 

Não granjeia popularidade junto dos outros.

Manuel – A ideia do marrão não é simpática. Mas não era propriamente um marrão, sempre fui um tipo da noite. Tive muitos anos em que saía todas as noites. Estabelecemos uma regra com a minha mãe: pelos 17 anos, avisávamos se fossemos jantar, e depois avisávamos se fossemos dormir. Vivíamos numa geração em festa e estávamos sempre em festa. Mas nunca coincidimos. Fomos coincidindo cada vez mais quando começámos a trabalhar com o Gonçalo Byrne. Eu já trabalhava com o Gonçalo Byrne e o Francisco entra. Depois quando começámos o ateliê, juntos. Depois quando começámos a dar aulas, juntos. (Foi muito bom quando o Francisco, passados 15 anos, se juntou. Levou muito tempo a convencer o Francisco, que não queria.) Estes são os filões que nos vão juntando. Fiz o liceu, com médias muito altas.

 

Intimamente era uma espécie de tributo ao seu avô, achava que ele esperava isso de si?

Manuel – Não sei se posso ser tão directo. Senti que havia qualquer coisa que tinha que fazer.

 

Ou então passou a ser um homenzinho, cresceu.

Manuel – Ou isso. Quando olho para trás penso que tudo aquilo era banal, e mais ou menos desinteressante, tirando pequeníssimos momentos fugazes da minha educação na escola e na faculdade. Houve alguns professores extraordinários que apanhei, mas não foram tantos que tivesse valido a pena ser tão esforçado. Foi uma condição, não uma condição de que pudesse fugir.

 

Qual dos dois é mais inseguro?

Francisco – Sou eu.

Manuel – Sim.

Francisco – Até gosto de Lexotan [riso].

Manuel – Somos inseguros em coisas diferentes.

Francisco – No aspecto profissional não tenho dúvidas nenhumas de que sou mais inseguro.

Manuel – Terei outras inseguranças.

Francisco – Francamente, às vezes fico aterrorizado.

Manuel – Eu também.

Francisco – Às vezes pergunto-me porque é que me vão entrevistar a mim. Outro dia tivemos uma entrevista com o Hans-Ulrich Obrist em Veneza, deitámo-nos às duas e meia da manhã, tínhamos de estar cedo com ele. Claro que não fomos para a cama às dez da noite com uma infusão, fomos um pouco mais tarde e com outras infusões, muitas. Tínhamos que acordar às oito da manhã para ir para o Arsenale, acordei às cinco da manhã e não dormi mais. Pensei: “Há aqui um erro de casting. Este homem é o curator mais famoso do mundo neste momento e vai-me entrevistar a mim! Peguei no envelope errado.”

Manuel – O lado da comunicação, fui sempre mais eu que o assegurei; fazia as conferências, dava as aulas. Não sei se é uma questão de timidez.  

Francisco – Não tenho timidez nenhuma, é insegurança.

 

Insegurança porque olhou para ele como o bom aluno, o irmão mais velho, a referência?

Francisco – Não, esta minha insegurança é uma luta comigo próprio. Tenho sempre a sensação de que devia estar a fazer uma série de coisas que não faço.

 

O Manuel é mais focado, e o Francisco, nessa dispersão entre os Radar Kadafi e a vida boémia, acaba por não se concentrar da mesma maneira?

Francisco – Talvez.

Manuel – O Francisco é muito virtuoso. Toca, desenha, pinta. Em miúdo, o Francisco precisava de ir de férias, desenhava quatro t-shirts, vendia os desenhos e ia de férias. Fazia aquilo em cinco minutos. Ou ia pintar um bar porque precisava de dinheiro para fazer o InterRail, ou tocava. Sempre desenhou muito melhor que eu.

Francisco – Só tarde é que comecei a pôr um travão nisto. Esta facilidade ou está devidamente sedimentada ou não tem interesse nenhum.

 

Pode ser inimiga do rigor e da progressão?

Francisco – E da investigação e do trabalho, de tudo. Mas continuo a valorizar muito o instinto.

Manuel – Isso é uma coisa diferente. Esta grande facilidade do Francisco de abrir hipóteses sempre foi muito usada por nós. Mas essa facilidade tem que ser tratada com muito cuidado. Pode ser perigosa.

 

Então, no seu caso, não era tão virtuoso mas era mais trabalhador? Foi olhando para si assim?

Manuel – Nunca percebi muito bem. A única coisa que faço na vida, e fiz, é arquitectura. Não tenho qualquer abrangência. Sou praticamente surdo, não tenho relação com nada a não ser com aquilo que me sirva para trabalhar na arquitectura. Já não me lembro de não ser arquitecto. Nunca me interessou mais nada. Tenho uma vida normal, vou ao teatro, ao cinema, leio, gosto de tudo o que toda a gente gosta. Mas isso só me interessa quando é convertível em arquitectura.

 

Porque é que não tem a mesma insegurança que o Francisco disse imediatamente que tinha?

Manuel – Tenho imensas inseguranças.

Francisco – Já chegam as outras [riso].

Manuel – Francamente na arquitectura, não tenho. Tenho o tal terror de estar esgotado, de não conseguir fazer melhor, e a consciência de que podia fazer dez vezes melhor todos os dias. Mas não é uma insegurança. Quando olho, só vejo o que tenho que fazer, não vejo o que fiz.

 

Conseguiu compartimentar as coisas. Esta é a zona de insegurança, esta é a zona da arquitectura.

Manuel – Não festejo nada na arquitectura. O que me move são os problemas. Onde é que não estou a conseguir chegar? O que é que ainda não percebemos? Não são problemas práticos, são problemas criativos.

 

Começaram por trabalhar no ateliê de Gonçalo Byrne. Não sei se era amigo dos vossos pais...

Manuel – Era amigo dos nossos pais.

 

Quando se encontraram aí, foi como se se reconhecessem um ao outro de uma maneira diferente? Entretanto tinham 20 e poucos anos.

Francisco – O que tem piada é que foi uma espécie de reencontro. Na escola encontrávamo-nos, ajudei o Manuel a acabar o curso, o Manuel ajudou-me, as coisas normais. Mas mais uma vez não estávamos muito juntos. O Manuel tinha um grupo muito coeso. Eu andei sempre a saltar de turma em turma, ou a turma desmembrava-se muito. E de facto encontrámo-nos ali no ateliê do Gonçalo.

Manuel – Era inevitável.

 

Não parece nada inevitável trabalharem juntos, fazerem este percurso profissional. A vossa relação não parecia especialmente cúmplice.

Manuel – Mas era. Isso é que é difícil de explicar. Sempre cobrimos qualquer problema que houvesse entre os dois. Nunca houve a mínima competição. Nunca se nos pôs sequer a hipótese de não sermos tão cúmplices.

 

Tão cúmplices e tão ligados que se podem permitir ter mundos separados e fazer vidas paralelas?

Manuel – Sim. Nunca tivemos um problema sério que não partilhássemos. Mas não tínhamos os mesmos interesses.

Francisco – Há mais circunstâncias que reforçam isso. Desde logo, no 25 de Abril, houve uma mudança radical na nossa maneira de viver.

 

O que é que mudou na família?

Manuel – Ficámos sem dinheiro.

Francisco – Não é só isso. O nosso avô paterno era um grande latifundiário do Alentejo. A família fugiu toda para o Brasil, para Espanha, só ficou cá o meu pai, a minha mãe e nós. A coisa não foi fácil. Brigadas, auto-stops no meio da rua, pessoas ameaçadas. Até ao 25 de Novembro de 1975 não se sabia o que é que dava. Estivemos fugidos dentro de casas de pessoas para que não fossem ocupadas. Aconteceu-nos um bocadinho de tudo. Não há nada como uma boa desgraça para unir a família. Quando tinha 14, 15 anos os meus pais divorciaram-se. Podia ter sido o contrário, mas foi uma situação bastante aglutinadora do núcleo familiar.

 

A família da vossa mãe era mais de esquerda?

Manuel – Não, era igual. O grupo cultural é que não era, os nossos amigos. Acho que foi um bom equilíbrio entre os dois mundos.

Francisco – Não temos uma filiação política concreta, nem sequer uma grande intervenção política. Se calhar porque nos fomos equilibrando entre estas coisas e vendo o que é que pode estar bem de um lado e o que é que pode estar bem do outro.

 

Essa harmonização e equilíbrio entre termos opostos é uma coisa que, lendo literatura sobre as vossas obras, aparece constantemente. A harmonização do belo com a função, da estética com a ética, a relação da construção com o local. Parece ser uma marca daquilo que fazem. Isso é porque são assim enquanto indivíduos?

Francisco – Acredito muito em equilíbrios.

Manuel – Mas também acreditamos naquele lado subversivo. Soubemos escapar da banalidade. E também dos juízos de valor. Muito cedo descobrimos que a qualquer valor se contrapõem outros valores. O que interessa é somar valores, e valores diferentes para harmonizar os vários ciclos da vida. Foi uma lição que apanhámos desses tempos. Na geração dos nossos avós havia chauffeur. Nós podíamos não ter dinheiro para comprar doces. Aprendemos a viver com qualquer quotidiano, misturado com uma vida que era feita nos Olivais. Para nós, a ideia de consciência social não existia.

 

Que hoje, passados 35 anos é uma coisa muito marcada. Pertencemos a uma classe social.

Manuel – Era um problema que não se punha. Andávamos na escola oficial como toda a gente. A permeabilidade [social] era muito grande. No pós-25 de Abril vivemos sem dinheiro nenhum. Também é uma boa aprendizagem de vida.

Francisco – Quando olho para trás, penso em todas as dificuldades por que passámos, e algumas foram duras, como uma altura divertida. Certamente como um valor.

 

Quem é que ensinou que isso era um valor, a mãe e o pai?

Manuel – Havia uma máxima lá em casa, já não me lembro do nome da máxima… Era qualquer coisa que queria dizer: “Comparamo-nos materialmente com os que têm menos, e em valores espirituais com quem tem mais”. Sabíamos que nunca estávamos à altura das pessoas que nos inspiravam, e que nunca nos podíamos queixar.

 

Tiveram uma educação católica?

Francisco – Uns ligaram a isso mais do que os outros [riso]. A nossa mãe é muito espiritual, antes de ser muito católica. A determinada altura teve uma aproximação muito grande à igreja católica. Naturalmente, como manda a tradição, educam-se os filhos segundo a fé da Igreja.

Manuel – Talvez mais para mim do que para o Francisco.

 

Essa dimensão religiosa tem importância em quem são hoje?

Manuel – Tem.

Francisco – Tive umas compatibilidades espirituais com a minha mãe, divertíamo-nos com sonhos, discutíamos muito isto. A igreja católica, francamente, nunca consegui.

Manuel – A minha mãe foi secretária do padre Manuel Antunes. Isso foi muito importante na vida da minha mãe, na nossa vida e na nossa educação, indirectamente.

 

Em que período?

Francisco – Nos 80.

Manuel – Tivemos acesso à biblioteca da [revista] Brotéria.

Francisco – Era uma figura extraordinária.

 

Falam mais da vossa mãe do que do vosso pai. E falam do vosso discurso artístico. Mas a vossa forma de expressão é a arquitectura e não a pintura. O vosso pai é que era o arquitecto.

Manuel – O nosso pai fez uma coisa muito corajosa. Veio de um background muito fechado e fez um percurso autónomo. Autónomo queria dizer contra. Acho que é arquitecto por esse não-alinhamento. A arquitectura era uma forma de subsistência, a sua profissão. Tem algumas coisas interessantes, mas não é onde se encontra. O meu pai encontra-se, muito mais tarde, quando se transforma em agricultor. Toda a família se treinava em qualquer coisa (medicina, direito, no caso do meu pai, arquitectura); e acabavam agricultores. Esperemos que não nos aconteça [riso]! Não nos vai acontecer, não temos qualquer vocação. Também tinha outro lado, que é uma herança que nos deixa: era um homem prático e matemático.

Francisco – E está cada vez mais novo, como sabes.

Manuel – Sim, uma coisa de filme: agora, aos 75 anos parece ter 40. 

 

Vou usar um aforismo daqueles que se encontram nos compêndios do Pe. Manuel Antunes, de Píndaro: “Torna-te naquilo que és”. O vosso pai tornou-se naquilo que é. Naquilo que era.

Manuel – Essa admiração que temos pelo nosso pai é porque é uma pessoa que faz um percurso muito difícil, e que tem a coragem de o fazer. A minha mãe tinha um lado que vinha das pianistas frustradas. As minhas bisavós tocavam piano maravilhosamente e nunca conseguiram ser pianistas; porque não era decente, porque tinham tido um problema na mão, por qualquer razão. Apesar de vir de um meio formal, encontrou-se com maior naturalidade neste universo. Se o meu pai não tivesse tido aquela coragem, não tivesse dado aquele salto, outros saltos não seriam possíveis – dele e nossos. A pessoa conhece um mundo e descobre outro. É como as grandes viagens: de repente o mundo alarga-se. Conhecemos formas muito diferentes de viver. Isso fez-nos entender que os valores da vida são muito mais interessantes quando percebemos que não são absolutos. Os nossos pais forneceram-nos isso.

 

Como é que trabalham em dupla?

Francisco – É bastante complicado [riso].

Manuel – Montámos um escritório, começámos a dar aulas juntos, e quando vimos que o ateliê estava tornar-se grande demais, resolvemos ter dois ateliês: o de Campolide e o de Campo de Ourique. Os trabalhos são conduzidos ou em conjunto, ou por um, ou pelo outro. Sendo que há uma base de investigação, de ideia, que é discutida conjuntamente.

Francisco – Não há nenhuma decisão apriorística sobre isto. Discutimos muito mais os projectos agora do que quando estávamos juntos. Agora é preciso arranjar esse tempo, que tem que ser combinado, não é encontrado nas folgas do dia-a-dia. Por outro lado, na nossa relação, limaram-se aquelas coisas que desgastam (problemas administrativos, problemas económicos, de gestão de agenda de cada um). Desaparecem uma data de entraves para que esta relação possa ser mais frutífera. Tem corrido maravilhosamente.

 

Dão aulas juntos, também. Como é que fazem? São os Aires Mateus, e não o Francisco ou o Manuel que dão aquela cadeira.

Manuel – Temos uma cadeira juntos, exactamente.

Francisco – Estranhamente temos dois nomes plurais

Manuel – A nossa base é na Suíça italiana, onde somos efectivos. Somos dois, mas na verdade somos um.

 

O conceito de casa está presente, não só na representação portuguesa da Bienal de Veneza, onde estão, mas também na exposição da Trienal de Arquitectura do CCB, que integram. Como é que cada um recorda a casa da infância?

Manuel – Qual é a casa da nossa infância? [para o Francisco] Qual é a casa da tua infância?

Francisco – Vou retirar daqui qualquer pomposidade ou aspectos poéticos: é a casa dos Olivais. Era um apartamento normal, generoso, mas o que retenho é um tempo de enorme liberdade. O que recordo é a vida de nos deitarmos tardíssimo (a minha mãe e nós) e passarmos o domingo inteiro a beber café atrás de café, sempre fraco, para podermos beber 20 cafés cada.

 

Do que fala é da vivência da casa.

Francisco – É isso que me preocupa numa casa: a vida que está lá dentro. Aquela é a minha casa.

Manuel – Tenho mais dificuldade em responder. A casa da minha infância também é a casa dos Olivais. Manteve-se imutável. Dormíamos em duas camas, onde hoje os meus filhos dormem; tínhamos o mesmo jogo na parede, pendurado, que o meu padrinho me ofereceu, quando tinha para aí dez anos; continua lá. Tínhamos um ritual naquela casa, que era a camilha. Não era hábito as casas aquecerem-se, mas havia a coisa muito alentejana de irmos todos para a camilha, numas senhorinhas. A vivência era feita em torno disto, quase até de manhã. Outra coisa corrente: a minha mãe mudava a casa, mudávamos de quarto. Havia aquele gosto pela arte, o acervo das coisas dos amigos, daquele grupo que pertencia à [galeria] 111.

 

Francisco – Eu tinha umas encomendas para pintar painéis para as Amoreiras ou na Costa da Caparica, desmontava-se a casa toda, desaparecia a sala e ficava a pintar. A minha mãe precisava de pintar um painel enorme para a igreja do Ramalhal, desmontava-se a casa outra vez. Depois a nossa irmã cortava cabelos, eu cosia calças. Entravam pessoas que vinham apertar calças, outras cortar o cabelo. Sendo que a minha mãe era muito rígida em certos aspectos, nada disto implicava bandalheira ou falta de decoro.

Manuel – A casa eram as relações possíveis entre as pessoas. A casa era um suporte das necessidades. Era uma casa de um bom arquitecto, do Pires Martins, não bem construída, mas bem desenhada.

Francisco – Não me lembro de lhe atribuir grande qualidade arquitectónica. Mas se fosse mal desenhada, se calhar não permitia nada disto. As recordações mais físicas são as da casa de Estremoz ou do monte de Grândola. O raio de luz na janela, de manhã, o cheiro do sótão, os cascos dos cavalos dos ciganos em Estremoz. Mas isso não é uma casa.

 

Isto tudo de que estivemos a falar acaba por tornar compreensível a arquitectura que hoje fazem?, aparece no que hoje fazem?

Manuel – A liberdade na arquitectura é sermos capazes de relatar com clareza as nossas memórias. A arquitectura é como a escrita, banalíssima. É como a poesia, faz-se com letras. Não quer dizer que a possibilidade de as montar com a ordem correcta seja simples. Qualquer pessoa faz uma casa; a capacidade de tornar poéticas as suas memórias, e a liberdade de o fazer, é talvez o que define a arquitectura. As memórias são a coisa mais central que se pode estruturar num projecto de arquitectura. Experiências arquitectónicas todos temos, e tantas. O nosso problema é a consciência delas.

 

 

Publicado originalmente no Público

 

 

 

 

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