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Anabela Mota Ribeiro

Ricardo Bak Gordon

20.07.21

É um arquitecto que tem um encantamento pelo mundo construído por não-arquitectos. Que fala da beleza da imperfeição. Que aponta para a erosão da parede ao lado.

Ganhou recentemente o prémio FAD, o prémio ibérico de arquitectura (ex aequo com Mansilla e Tuñón), com as casas construídas no interior de um quarteirão em Campo de Ourique. Foi também com esse projecto que o ano passado esteve representado na Bienal de Veneza (com Aires Mateus, Álvaro Siza e Carrilho da Graça).

Ricardo Bak Gordon nasceu em Lisboa em 1967. Estudou no Porto, em Milão, em Lisboa. Dá aulas no Instituto Superior Técnico. Trabalha num atelier cujo projecto de iluminação é uma obra de Pedro Cabrita Reis. São amigos. Encontrámo-nos em sua casa, debaixo de uma tangerineira, num dos últimos dias deste verão indiano. O jardim está circundado por prédios com as cores cálidas que têm os edifícios de Lisboa. Não é muito diferente das já famosas casas de Santa Isabel com que levanta o problema do que fazer no interior dos quarteirões abandonados. Que é um modo de falar de cidades no interior da cidade.

É um dramático que jorra tinta para o papel!, na descrição do amigo brasileiro Paulo Mendes da Rocha, que escolheu o atelier de Bak Gordon para acompanhar o projecto do novo Museu dos Coches. A arquitectura que ele faz é como ele é?

 

Seria mais fácil se tivesse um papel à frente e começasse a desenhar? Pergunto se o desenho é a sua forma preferencial de comunicação.

Não especialmente. A minha forma de comunicação preferencial é a palavra. O desenho é um dos instrumentos de investigação da arquitectura, um dos primeiros (outros instrumentos: as maquetes, os desenhos rigorosos, as fotomontagens). O desenho nunca nos vai dar nada que a cabeça não esteja a suscitar. O território onde se pensa a arquitectura é a cabeça.

 

É conhecido o seu gosto pelo desenho, a força que os seus desenhos têm. A relação com artistas plásticos deixa também perceber a importância deste instrumento. Com Cabrita Reis, por exemplo.  

A relação com o Cabrita Reis é muito longa. Vem desde o tempo em que andava na escola. Fazia desenhos técnicos para as obras dele, que eram muito arquitectónicas. Somos muito amigos, fiz várias casas para ele e para a família. Estimula-me. 

A investigação ocupa um grande espaço no trabalho da arquitectura. O desenho acompanha-me muito nesse processo. A descoberta vem do desenho.

 

Como descreveria os seus desenhos?

Os meus desenhos acabam por exprimir muito da minha personalidade. São radicais, dramáticos. O Paulo Mendes da Rocha, grande amigo meu, o arquitecto brasileiro com quem estou a trabalhar [na obra do Museu dos Coches], quando me vê desenhar, diz assim: “Está despejando tinta para cima do papel!”. Os desenhos dele são totalmente diferentes. Os meus desenhos, em geral, têm tamanhos imensos, um metro. Deito o rolo de papel em cima da mesa em que estou a trabalhar, corto e começo a desenhar. É uma coisa muito gestual, física, ligada ao corpo. Não é, de facto, um desenho de precisão, delicado.

 

É um dramático?

Bastante. A maneira como trabalho – que não é muito diferente da maneira como tenho levado a vida, não de forma consciente, porque ela vai andando em paralelo – se não é dramática, é proto-dramática. É muito intensa, com altos e baixos, com grandes euforias e grandes ansiedades. Faz parte da maneira de ser. Nem sei como é que seria se não fosse assim.

 

Isso reflecte-se, de algum modo, na sua arquitectura?

Não creio. Estou a lembrar-me de uma amiga que me dizia: “Como é que um tipo tão bruto faz coisas tão delicadas?”. O que se reflecte, e isso assumo, é uma dramaturgia poética, um ambiente que (gosto de acreditar) consegue induzir alguma reflexão para lá do que é mais imediato, e que procuro que todos os trabalhos contenham. Isso sim, há-de vir da minha perspectiva de olhar para as coisas, e de pensar.

 

Tendo essa delicadeza e depuração, tem também, e isto é consensual nas apreciações que são feitas à sua obra, uma sensualidade e vitalidade. Um temperamento mais quente, inflamado, traz à arquitectura uma temperatura diferente?

A temperatura tem a ver com a intensidade das decisões, com um radicalizar, tanto quanto possível, a experiência de um lugar. É disso que se trata: fazer com que as pessoas, perante uma determinada arquitectura, um determinado lugar, uma determinada experiência de um lugar, possam sentir essa activação, e que ela possa ser radical. Três exemplos de projectos: a casa do Pedro Cabrita Reis no Algarve, a Escola Garcia de Orta, no Porto, a fábrica de azeite no Alentejo. Todas elas, em contextos e equações diversificadas, tentam um nível de afirmação – que não é para se afirmarem a elas próprias – que active a experiência do lugar.

A Escola Garcia de Orta tem uma praça vermelha coberta que é o grande centro da escola. É uma praça bastante dramática. Ninguém passa da aula de Matemática para a de Filosofia, no intervalo, sem se deixar contaminar por aquele lugar.

 

Interpelar o outro – é o que pretende com as suas obras?

Gosto de falar da arquitectura como uma posição num caminho, a meia distância entre uma coisa técnica e racional e uma componente poética indispensável. Não acho que os arquitectos sejam artistas, recuso essa ideia. Mas o arquitecto não pode abdicar de uma componente poética no trabalho, sob pena de ter um nível de comunicação muito reduzido. Resolve problemas práticos, mas não usa os meios que tem ao seu alcance para criar uma segunda comunicação.

 

Um poeta, dois poetas de que goste especialmente.

Quando comecei a estudar arquitectura fui para o Porto viver. Levava quatro livros, os heterónimos de Fernando Pessoa e Fernando Pessoa, propriamente dito. Foi a primeira vez que saí de casa, os dias no Porto eram diferentes dos de Lisboa – pelo menos imagino-os eu hoje, ainda, desse modo – mais cinzentos e pesados. Talvez houvesse uma certa nostalgia, uma certa dramaturgia associada àquela experiência do Inverno, à primeira vez que vamos embora, ao esforço de viver num quarto (na casa de uma velhota). Lia imenso Fernando Pessoa e encontrava muitas relações. Vou lendo outras coisas. O Herberto [Hélder], o poema sobre a loucura, “Se eu quisesse, enlouquecia”.

 

A poesia está no modo como se olha?

Está no modo como se sente. Estamos a conversar frente a uma parede cheia de informação, toda suja pelo Inverno, tem limos, bocados de tinta que já saíram; não pense que não vem aqui muita gente que diz: “Só falta pintar estas paredes”. E fico arrepiado. Jamais me passaria pela cabeça pintá-las de branco.

 

A erosão que sofreram é visível.

É o tempo. O tempo é um construtor fundamental. E não é de espaços, é de nós. As coisas acumuladas por onde andámos, as viagens que viajámos, as pessoas com que nos cruzámos, há aí um processo de construção e esse património é requisitado quase todos os dias sem que se tenha consciência disso. Às vezes, sim, para o trabalho.

 

Fale-me do seu património afectivo.

Os meus filhos. E a minha mãe, e o meu pai, toda a minha família. Vejo nos meus filhos um processo natural de continuidade que respeito muito.

 

O seu pai é Gordon. Conte a história que fez de si meio estrangeiro.

Tenho tendência a dizer que sou 100 por cento português. O que é facto é que sou, do lado do meu pai, originário da Lituânia. Tive avôs paternos que eram judeus lituanos e que vieram para Portugal nos anos 30, antes da Segunda Guerra, durante o período das invasões russas e da Polónia. Fixaram-se nos Açores. O meu pai já nasceu em Portugal. Era médico, também já morreu. Além de ser médico pintava muito, tinha uma perspectiva bastante sui generis da vida. Cresci com a minha mãe, que é portuguesa, com quem fiquei desde muito cedo – eu, o meu irmão e ela, formámos um trio – uma vez que o meu pai se separou da minha mãe. Do lado do meu pai recordo-me de coisas exóticas. As refeições religiosas em casa dos meus avós, as festas. A única coisa que tenho estrangeira é o nome. Sou um cidadão português que está disponível para pensar e experimentar os lugares todos que há no mundo.

 

Como foi a mudança dos Açores para o continente? Como era a vida então?

O meu pai nasceu nos Açores e veio em pequeno para Lisboa. Os meus avós eram comerciantes, como bons judeus. Tinham uma loja na Avenida Almirante Reis que ainda existe e que se chama Gordon & Bakayte. O nome Bak era um nome feminino, lituano, que variava consoante o estado civil. Chama-se Gordon & Bakayte porque era a minha avó enquanto casada com o Gordon. Eu sou Bak Gordon.

 

Em que língua é que o seu pai falou consigo?

Falou em português, mas falava com a minha avó em iídiche, a língua dos judeus da Europa de Leste. Tenho amigos, como o Daniel Blaufuks, que têm uma origem semelhante.

 

A cultura da sua casa foi marcadamente judaica?

Não. Os meus avós tinham alguma actividade religiosa. O meu pai não tinha nenhuma. A minha mãe, que não é judia, é católica, também não tem actividade religiosa.

 

Fez uma obra na sinagoga de Lisboa. Não tenho ideia que a comunidade judaica, que é fechada, encomendasse uma intervenção naquele espaço a um arquitecto com o qual não sentisse afinidade.

Deu-me muito prazer. Fiz a remodelação do projecto da sinagoga do Rato numa altura em que se celebravam os 100 anos da sinagoga. A arquitectura não é uma coisa estanque, tive uma actividade paralela, durante muitos anos, na El Al, as linhas aéreas de Israel, e havia uns trabalhos ligados a cada um dos voos, feitos por jovens judeus da comunidade local, para falarem a língua. (Só deixei a El Al quando assinei um importante contrato, o da residência da embaixada de Portugal em Brasília.) Acabei o curso, tinha atelier e mantinha um part-time ligado à comunidade. Tinha até mais proximidade do que tenho hoje, estava próximo todas as semanas.

 

O que é que fazia exactamente?

Fazia um trabalho que tem a ver com segurança de aeronáutica. Fazia perguntas aos passageiros que viajavam para Israel, verificava o catering, se ninguém punha nada de estranho, variava. Além de trabalharmos em Portugal, uma vez por semana, também viajávamos para ajudar outros voos, noutros aeroportos. Em 1990, estive em Amesterdão, fazia turnos da meia-noite às oito da manhã, na pista, com 20 graus negativos, a tomar conta de um 747 de carga. Amesterdão era o maior terminal de carga de Israel para a Europa durante a Guerra do Golfo. Mas isso são coisas que se vão fazendo na vida. Até por uma questão de equilíbrio financeiro. Foi muito engraçado.

 

O que é que aprendeu nesses anos?

O rigor. Mas o rigor aprendi-o com a minha mãe, que nos passou o sentido do trabalho como sendo primordial. Dar o máximo que se pode dar nas coisas em que nos empenhamos – ser profissional. E aprendi a estar alerta. O que se passou na Europa na Segunda Guerra Mundial é mais uma lição, mesmo para nós que não a vivemos. Perceber quão vulnerável pode ser a nossa hipotética estabilidade. A estabilidade somos nós que a construímos; temos de a respeitar todos os dias, e temos de estar preparados para que a vida em qualquer momento possa dar uma cambalhota. Tenho tido imensas felicidades na minha vida profissional e familiar, mas também tenho tido cambalhotas radicais na minha vida afectiva, e vou lidando com elas com esse ensinamento de que é sempre possível reposicionar-me.

 

Essa experiência junto da comunidade judaica, era uma maneira de se sentir próximo das raízes do seu pai?

Admito que sim. Quando fui convidado para a El Al o que me interessava era arranjar um part-time, e tinha amigos da comunidade.

 

Mas foi escolhido porque era o neto daqueles senhores, e era o filho daquele homem.

Nunca reneguei, de modo algum. No projecto da sinagoga, empenhei-me imenso. A sinagoga foi construída num período em que os templos que não fossem católicos não podiam ter fachada sobre a rua (era uma imposição governamental). É colocada no interior de quarteirão, onde está, e quase ninguém a conhece. Insisti muito para que se quebrasse parcialmente esse carácter de isolamento, desde logo do ponto de vista físico, que se permitisse que as pessoas passassem no passeio e vissem o edifício.

 

Era uma forma de abrir a comunidade à cidade e vice-versa.

Um primeiro passo de formiga nesse sentido. Fiz um portão novo, um vidro muito pequenino, blindado, à prova de bala, que era a semente dessa possibilidade de partilha. No dia da inauguração da obra esse vidro foi tapado com papel pardo pelos agentes de segurança da comunidade, e ainda hoje lá está, e nunca ninguém viu nada lá para dentro. Nem sequer tenho vontade de discutir a questão de a segurança se sobrepor. Mas este exemplo é paradigmático de que aquele território tem ainda muitos problemas que a arquitectura não pode ajudar.

 

Alguns dos seus edifícios mais marcantes acontecem em espaços que não são visíveis a partir da rua. Como se o coração dos edifícios estivesse recôndito, e fosse preciso um esforço para aceder a isso. O lugar onde estamos, o jardim de sua casa, é também um oásis no interior do edifício.

Podia responder a essa pergunta dizendo que raramente os arquitectos escolhem os programas em que vão trabalhar e as solicitações em que se vão envolver. A encomenda aparece e trabalhamos (salvo em casos extremos em que se está verdadeiramente contra uma vontade ou uma decisão de um promotor, e não se avança). Percebo a pergunta, é interessante falar sobre isso. Fala de quando uma casa se encerra para o exterior e se abre para o interior.

 

O que queria dizer é que o seu imaginário parece mais voltado para o interior do que para a fachada.

Não diria isso. As pessoas têm da arquitectura uma ideia enviesada e, se se propõe uma construção que não se vê e que não comunica com o mundo exterior, podem ter a tentação de perguntar se aquilo é apenas um muro. Mas a arquitectura não tem tanto a ver com uma imagem, mas com a construção de um lugar. Se estamos a falar de uma casa é mais importante que se construa o lugar. A casa é o lugar último do homem, o mais privado, em que nos recolocamos face ao mundo.

 

É inevitável, introduzindo este tema, ir dar às Casas de Santa Isabel, projecto com o qual esteve representado na Bienal de Veneza em 2010. Encaixou duas casas numa espécie de terreno baldio, que existe entre vários prédios.

No ocidente, na Europa, vivemos em cidades que são formadas pela trilogia rua, praça e quarteirão. Estes interiores de quarteirão são uma espécie de cidade dentro da cidade. São lugares que as pessoas desconhecem e que podiam ser muito bem utilizados, porque multiplicavam as possibilidades de habitar a cidade. Acontece na maioria dos casos que estes quarteirões são lugares abandonados, maciços, pavimentados, com coisas clandestinas lá dentro. Há uma série de condicionantes sobre este tema. O facto de serem terrenos non aedificandi, o facto de as pessoas dizerem que têm de ser áreas permeáveis… Naquele caso concreto tratava-se de um logradouro com cerca de 1000 metros quadrados onde existiam uns pavilhões precários construídos há mais de 50 anos.

 

Projectou duas casas, uma de habitação para o proprietário, e outra para alugar, numa área de 400 metros quadrados. Acabei por lançar o trabalho com base no desenho dos vazios e na ideia de uma paisagem nova, que não se limitasse a ser pertença da casa, mas que, do ponto de vista do desenho da cidade e das famílias que habitam aquele miolo de quarteirão, seria para todos. Com as arquitectas paisagísticas Filipa Cardoso Menezes e Catarina Assis Pacheco, fez-se este desenho de paisagem. A casa acabou por ser redefinidora de todo o quarteirão.

Havia outras questões. Como operar naquele palco? Quando estamos com uma periferia muito verticalizada sentimo-nos mais ou menos num palco. Entendi que havia dois gestos obrigatórios para responder eficazmente a essa aparente opressão. Agora vê-se que não é opressão nenhuma.

 

Fala do problema da privacidade.

Decidi que a casa havia de ter uma única cota e de ser relativamente esmagada, de forma a contrastar dramaticamente com toda a verticalidade da envolvente. E construir a casa toda num único material, o betão armado aparente, o mais robusto, capaz de estar mano-a-mano com toda a pré-existência da envolvente. Embora fosse muito horizontal, era muito poderoso. Ninguém me falou da falta de privacidade, não creio que seja um tema. Também estamos num lugar onde…

 

… desde que começámos a entrevista veio uma vizinha à janela, alguém tossiu, e foi tudo.

Queria comprar este andar que tem o jardim e o rés-do-chão; como não tinha capital para comprar o prédio todo arranjei amigos que foram comprando os outros pisos. No dia em que decidi fazer este tanque, esta piscina, alguém me disse: “Não vais ter coragem de ir para a piscina no meio de Lisboa, com os prédios à volta”. Eu sempre tive a convicção de que quem se ia meter para dentro eram os vizinhos quando me vissem a tomar banho. E assim foi. Tomo banho aqui todos os dias.

O sucesso que a casa [de Santa Isabel] teve permite-me falar deste assunto muito sério. Agora que se fala tanto de reabilitação, como é que podemos reactivar estes interiores de quarteirão? O que é facto é que os espaços estão construídos, abandonados, sujos, estão impróprios do ponto de vista da salubridade.

 

Em São Paulo impressiona a sucessão de camadas de edifícios que é possível vislumbrar a partir da fachada principal. É um desenho, um redesenho da paisagem, que vamos percebendo à medida que o olhar avança.

O caso mais paradigmático talvez não seja o Brasil. Ainda que em São Paulo os lotes tenham escalas generosas, o que permite uma sucessão de construção de espaços diversificados dentro do lote, e de espaços verdes e exteriores. Berlim é um caso paradigmático. No interior dos quarteirões estão a aparecer lojas, cafés, uma creche. É preciso não ter preconceitos e repensar a cidade como um organismo vivo. As regras que se aplicam num dia não têm que ficar congeladas eternamente. As cidades são como nós, vão evoluindo, vão-se substituindo, renovando. É uma óptima altura para reflectir sobre as nossas cidades, se conseguirmos afastar-nos dos enredos em que andamos sempre metidos – de não pode ser assim, os compromissos que existem, os interesses instalados.

 

Talvez não por acaso Prenzlauer Berg é um dos bairros da Europa onde nascem mais crianças.

Berlim é uma cidade jovem, com capacidade de atrair pessoas novas, capazes de ter um olhar crítico sobre as coisas. E aqui também vai havendo. Estive no Japão há 15 dias e fiquei impressionado. Tóquio talvez seja a cidade do mundo que visitei com maior heterogeneidade morfológica. A variação do ritmo da cidade, as avenidas de arranha-céus, escritórios e centros comerciais, na rua ao lado casinhas abertas com a bicicleta cá fora em que ninguém fecha a porta... Estamos em Lisboa, olhamos para a nossa cidade sobre o Tejo, com um ar de musa, deitada no lombo da topografia... E depois há a luz. Há uma série de temas na arquitectura que são as suas ferramentas de trabalho: a luz, a escala, a proporção, a tensão matérica.

 

Le Corbusier fez uma célebre definição de arquitectura…

Que a arquitectura é o espaço debaixo da luz. Nem sei exactamente como é. Quando se cria uma definição está-se a deixar de lado uma quantidade de outras coisas que também o são. Prefiro dizer que a luz é um elemento fundamental. Nós temos uma luz maravilhosa, as sombras são muito precisas. A penumbra, a luz, o clarão, tudo isso também é como somos.

 

Como é que eram os espaços da sua infância, como é que os reconhecia?

Vivi em casa da minha mãe, num apartamento no Restelo, com áreas generosas, uma casa convencional, de uma família de classe média. A minha mãe é médica. Tenho memórias de construção de lugares meus. O primeiro espaço só meu (porque partilhava um quarto com o meu irmão) foi uma varanda encerrada. Passou a ser o meu lugar único. E não tinha nada a ver com a arquitectura, tinha a ver com a ideia de que precisamos de um espaço. Às vezes nem é um espaço físico, constrói-se dentro de nós. O que se passava ali? Tudo o que se passa na cabeça de um adolescente a meio do liceu. Nada de muito especial, e tudo naquela época, o mundo todo vivido intensamente.

 

Uma questão também importante, a da dinâmica com o espaço envolvente. Hoje, a rua pode ser um lugar ameaçador. Não o era.

O Restelo era um lugar onde se vinha para a rua brincar. Percorri liceus infinitamente até que fui para a [escola] António Arroio. Cada vez que mudava de liceu a minha geografia urbana também mudava. Mudavam os autocarros, mudavam os lugares. Sempre tive consciência de que os bairros da cidade eram heterogéneos. Vai-se andando pela cidade e há muitas cidades, muitos ambientes que são feitos pelo esqueleto da cidade, por aquilo que é construído, e pela coisa real que são as caras das pessoas, os carros, o modo como estão parados, as mercearias que havia naquele tempo, escuras.

 

Lugares imperfeitos, vivos, pré-existentes.

Há uma imperfeição no mundo sem a qual não podemos viver. Ninguém pode fechar-se num mundo perfeito, idílico, artificial. Na arquitectura passa-se o mesmo. Nos trabalhos que faço interessam-me coisas substanciais e intensas, mas nunca me vai encontrar a matar-me no desafio da perfeição, do rigor do material e do pormenor. É sempre mais o desafio da construção de um espaço, ligado ao mundo.

 

Essa revelação dos lugares despertou em si o desejo de ser arquitecto?

Perguntam-me muitas vezes quando é que descobri que queria ser arquitecto. Comecei a dar uma resposta que é aquela que imagino que seja mais verídica. Uma vez fui a casa de um amigo do meu irmão que vivia numa casa modernista, uma casa de arquitecto, dos anos 70. Tive a noção de que alguma coisa era diferente, que todo o espaço era pensado de uma maneira diferente.

Fui agora ver o filme do João Canijo, Sangue do Meu Sangue, que é extraordinário, e ali tem tantas coisas para falar… A dimensão da casa, o contacto permanente entre as pessoas, a possibilidade de os espaços estarem sempre sobre o próximo, e ser quase todo o mesmo…

 

A arquitectura traduz e serve aquele quadro familiar, e potencia aquelas relações.

No meu dia-a-dia essa questão, muito para lá do trabalho que faço, interessa-me. Vou reconfigurando e analisando como é que os espaços e as pessoas se enformam mutuamente.

 

Estudou no Porto, em Milão e em Lisboa. O seu sentido estético passa muito por estas escolas?

O Porto para mim foi uma grande descoberta. Havia uma elegância e uma seriedade com que as coisas aconteciam. A escola era um lugar de grande respeito pelo trabalho e de grande sensibilidade. A cidade parecia-me mais densa que a vida mais leve de Lisboa. Em Milão, a escola era um território totalmente contaminado, com milhares de pessoas, com acesso a conferências, livros. Não havia livrarias de arquitectura em Portugal.

 

Quem é hoje, o que faz hoje, pode ser lido como uma síntese desse percurso, dessas vivências?

O meu processo tem momentos fundamentais, mas nunca os reconheço. Como é que chegamos a fazer o que fazemos e a ser quem somos? É a indução. Quando digo indução, digo uma informação ou um estímulo que contamina o próximo, e assim sucessivamente. Vejo sempre, quer os trabalhos, quer a vida, como um processo de continuidade serena que tem picos de perturbação. Consigo olhar para trás e ver que já acreditei em coisas muito diferentes, próprias das várias idades. Já me comportei de maneiras muito diferentes. É sempre um processo em contínuo, de ir andando pelo mundo, pela vida, ir absorvendo. E ir fazendo uma outra actividade que tem a ver com a síntese, que é uma actividade fundamental da arquitectura e da vida, para perceber o que é essencial.

 

Ainda o Porto: venera Álvaro Siza. Desde sempre se refere a ele como a figura…

O melhor arquitecto do mundo. Assim dito de chofre, só para arrumarmos com essa parte.

 

Foi seu professor? Fale-me do impacto que teve em si a escola do Porto.

Não, foi o Fernando Távora. Naquela época, a escola do Porto tinha um prestígio extraordinário e a figura tutelar era o Álvaro Siza. Mas Álvaro Siza é muito maior que a escola do Porto. Tem uma perspectiva única e fundida com a sua personalidade, a sua biografia, no modo como olha e responde às solicitações.

 

Outro mestre seu: Paulo Mendes da Rocha. Como surge a colaboração no projecto do Museu dos Coches?

Em 1997 ganhei o meu primeiro concurso internacional, para fazer a residência da embaixada em Brasília. O Paulo Mendes da Rocha era a pessoa que mais admirava entre os arquitectos brasileiros e procurei-o. Foi muito generoso. É um jovem de 83 anos. A nossa convivência permite-me estar próximo de uma pessoa muito livre, acutilante, crítica. Não se perde com a pequenez do imediato. Convidou-me para ser o local architect do projecto do Museu dos Coches. É uma obra muito interessante, que vem rematar a frente turístico-monumental de Belém e que tem uma noção de integração num espaço público muito apurada. Antes de visitar o museu, ou mesmo que não o visitemos, encontramos um edifício que dialoga com as várias possibilidades que ali existem.

 

Quis ser um artista? E voltamos a pensar na importância do desenho e na relação com os artistas plásticos.

No momento em que fui para a António Arroio sabia que queria ser arquitecto. Não me passou pela cabeça praticar a arte como modo de vida. Agora, estar próximo da arte, ser interessado pela arte… Quase sempre, quando faço uma conferência, tenho imagens de obras de arte com as quais coloco problemas de arquitectura. Ainda ontem à noite, encontrei uma peça da Lygia Clark que me vai servir para falar de arquitectura. No outro dia foi uma peça de um artista italiano incrível, de que gosto imenso, e de que nunca me lembro o nome…, que fazia uns talhes nas telas.

 

Lucio Fontana?

Sim. Nunca me lembro dos nomes de coisa nenhuma. Gosto imenso daquele tipo que faz as peças côncavas, um inglês-indiano... Anish Kapour. Mostro imenso as peças do Kapour aos meus alunos. A arquitectura tem muito a ver com “resignificar” os lugares a partir da introdução de alguma coisa nesse mesmo lugar.

 

Faça um auto-retrato. O espaço, seria como? Em que material?

Podia ser um espaço relativamente abstracto, de modo que estivesse potencialmente capaz de ser transformado. E havia de ser confortável, e havia de me sentir lá bem. O espaço para o meu auto-retrato é este onde estamos. É um casulo que tem imensos assuntos que me interessam. Quando aqui cheguei, esta tangerineira já cá estava. Uma simples árvore permitiu a construção de uma quantidade de lugares na sua órbita. Muito antes de esta mesa chegar, já sabia que me havia de sentar debaixo desta tangerineira a conversar.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011

 

 

João Luís Carrilho da Graça

20.07.21

“Quando me perguntam o que é a arquitectura, digo sempre que, tal como o design, trabalha para resolver problemas. Só que não se esgota nisso. Para além de resolvermos o problema, resolvemo-lo de uma certa maneira; e a maneira como o resolvemos é que é o fundamental”.

João Luís Carrilho da Graça, arquitecto, 57 anos. Prémio Pessoa em 2008.

 

“Paisagem” é o título desta exposição. Que distinção faz entre território e paisagem?

Durante muitos anos usei o termo território. Ultimamente tenho cedido a paisagem, depois de longas discussões com os meus amigos arquitectos paisagistas. Chegámos à conclusão de que são praticamente sinónimos. Do ponto de vista deles, território é um termo mais técnico, frio. Para mim, era mais abrangente. Quando se falava em paisagem, eu tinha a ideia de que havia um ponto de vista, alguém que observava.

 

É um arquitecto com uma relação fortíssima com o território. É um aspecto sempre sublinhado quando se fala da sua obra.

A paisagem (ou território) é uma maneira de ver o mundo como suporte, como ponto de partida para os projectos, com todas as suas características. As geográficas, a topografia, a maneira como os edifícios, ao implantarem-se, podem criar situações interessantes – só com essa operação de se implantarem de uma certa maneira, num certo ponto do território. Outro aspecto é o clima, a maneira como o sol [incide], as temperaturas. A geologia; que depois permite um certo tipo de cultura (plantas, animais, formas de vida).

 

Por que é que paisagem é uma palavra tão essencial no seu vocabulário enquanto criador?

É como o conceito de campo em arte. É um reconhecimento do que existe. Que pode ser entendido de muitas maneiras e é cruzado com o programa do que se quer construir. Quando construímos num sítio alteramo-lo profundamente. É uma operação que, por mais cuidadosa que seja, contém em si uma certa violência.

 

Violência?

Escavamos o solo. Quando queremos fazer um edifício, mesmo que não tenha pisos subterrâneos, começamos por abrir buracos para as fundações. É uma operação intencional e forte.

 

É uma descrição como a de uma cirurgia. Como se a terra fosse um corpo.

Mas é um pouco isso.

 

A paisagem não é nunca uma folha branca. Se calhar é o grande desafio: como é que o diálogo se faz.

Será que o território também é importante se for um deserto, se for uma ilha? Para mim é sempre importantíssimo. Mesmo que seja um deserto, há pontos de tensão e de caminho, de atravessamento. O que se for construir deve estar em sintonia com o que já existe.

 

Como estabelecer o diálogo, a sintonia?

Não é uma sintonia de sublinhar ou de atender só ao que existe. É uma sintonia dialéctica, mesmo que seja para estabelecer contraposições.

 

Pensemos em dois edifícios: o teatro de Poitiers e a Escola Superior de Comunicação Social em Benfica. São ambos impositivos; a maneira como se inserem na paisagem é marcante, e altera radicalmente o que lá estava.

O da Escola de Comunicação, admito que seja impositivo. Foi dos primeiros projectos que construí. O que o torna mais forte, na sua presença descarnada, é a ausência de espaços exteriores. Durante estes 20 anos não se conseguiram plantar árvores nem completar o espaço; isso dá-lhe um ar mais impositivo do que eu gostaria. [Gostaria de] lê-lo no meio das árvores.

Em relação ao de Poitiers, naquele rebordo da plataforma do centro histórico já há edifícios grandes. Mesmo ao lado está o Banco de França e a Prefeitura. Embora o terreno urbanisticamente não estivesse à espera de receber um equipamento tão importante, uma das minhas preocupações, e talvez uma das razões por que ganhei o concurso, é uma delicadeza na relação com aquele universo. A reconstrução dessa plataforma talvez tenha a ver com o espírito da arquitectura portuguesa: de um certo cuidado e delicadeza na maneira como se intervém.

 

Alguns dos seus projectos mais famosos são grandes edifícios. O Pavilhão do Conhecimento na EXPO, o Museu do Oriente, a Igreja de Portalegre. Assina outros de uma escala completamente diferente, como a ponte pedonal de Aveiro ou uma habitação na qual fez uma pequena intervenção. Por que é estes pequenos projectos são desafiadores?

Todos os projectos se medem com as pessoas que os utilizam, que os sentem, que os visitam. Muitas vezes, é mais sedutor trabalhar numa pequena escala do que num edifício grande. Os problemas, por estranho que pareça, nem são assim tão diferentes. Ou seja, tem de se chegar a equilíbrios e a situações razoáveis. Sobretudo em projectos grandes, gosto de não perder a possibilidade de desenhar todos os detalhes, de definir as situações de pequena escala. Não consigo dizer que prefiro fazer edifícios grandes ou pequenos. São complementares. Uns permitem um certo tipo de experiências e outros, outras.

 

Voltemos à exposição. Gostava que apresentasse cada um dos projectos que a compõem por palavras suas – querendo com isto dizer: como os criou, como os vê.

Vou começar pela ponte da Covilhã, de que gosto imenso. Foi um desafio lançado por sugestão do Nuno Teotónio Pereira, que fez um plano para a Covilhã, pensando que era possível – e vai ser – que a cidade passe a ser vivida a pé, introduzindo algumas pontes pedonais e elevadores. A ponte do Vale da Carpinteira (projectei três e esta é a maior) tem uma ressonância fantástica! De um lado, temos a Serra da Estrela; aquela encosta por ali acima com uma força espantosa. Depois, o Vale da Carpinteira desce suavemente para a Cova da Beira, vai até ao Fundão. Pelo meio, o próprio Vale da Carpinteira; é profundo, com antigas fábricas, planos inclinados em granito onde punham a lã a secar, uma série de muros e uma vegetação quase selvática. Quando descemos ao vale, parece que mudamos de continente.

 

E de tempo?

E de tempo. O conceito da ponte é este: temos um andamento ondulado em toda aquela geografia e topografia, com ruas sinuosas, estradas, etc. Normalmente as pontes, porque são para comboios ou para automóveis, com um sentido viário, ou porque têm um sentido de economia muito estrito, são rectas. Neste caso, como o vale é extremamente coleante, a ponte fica a desenhar-se no ar com uma forma curvilínea – que eu acho muito sexy [risos]…

 

É um belo adjectivo para uma ponte!

[A ponte] tem uma enorme elegância, tem 200 e tal metros de comprimento. O vale no seu ponto mais alto tem cerca de 70 metros até ao tabuleiro da ponte. É como se fosse um edifício radical, com um conteúdo que é só a passagem. Essa constituição joga, cenograficamente, com a Serra da Estrela e o vale da Cova da Beira, a pousar neste Vale da Carpinteira.

 

Passemos ao projecto seguinte. O Convento de São Francisco, em Coimbra.

Já teve várias utilizações, a última era uma fábrica. Quando comecei a minha intervenção já tinham retirado essas marcas industriais. Foi tão massacrado que foi tornado essencial. O programa começou por ser um centro de congressos, entretanto foi derivando para centro cultural. O edifício está entre Santa Clara-a-Nova, lá em cima, e, em baixo, Santa Clara-a-Velha, na entrada do Portugal dos Pequenitos. Está um bocado perdido naquele nó viário. O pedido da Câmara era fazer um envasamento ao edifício com esse volume do parque de estacionamento, e criar uma praça que funcionasse à semelhança de outras praças de Coimbra. No convento de São Francisco há uma praça que fica aberta à cidade, virada para o rio Mondego, com uma vista bonita. O edifício é restaurado e posto a funcionar de uma maneira polivalente, com flexibilidade. Ao lado constrói-se uma sala de espectáculos impecável, com 1100 lugares. Em resumo, há o restauro do edifício existente, a construção da sala, do estacionamento e o sentido de conjunto que tudo isto vai fazer.

 

Que fio condutor usou?

O da paisagem. O projecto parece que emana directamente deste conjunto de conceitos. Um conjunto monumental fortíssimo, o rio Mondego, a cidade do outro lado, aquela encosta.

 

Avançamos para o terceiro projecto da exposição. O Centro Cívico do Planalto do Ingote.

Este Planalto do Ingote tem vistas interessantes, como é normal num ponto alto, e nele está construído um bairro social, o Bairro da Rosa. Tem fortes problemas sociais de todos os tipos, (droga, etc). A ideia da Câmara é construir um conjunto de valências e de espaços, agrupando várias entidades, que façam um sentido conjunto, e que criem uma centralidade no meio do bairro.

 

O seu projecto, que ganhou o concurso, está a agora a ser desenvolvido.

[Propõe] a criação de uma acrópole, com um sentido cívico marcante, um sentido social decidido, em que há espaços públicos. Há um teatro que vai com certeza chamar pessoas de todo o lado, e que pode participar em festivais e em programas que se venham a organizar. Há um grande polidesportivo, há residências para vários tipos de situações problemáticas (como para a terceira idade).

 

A intervenção social é uma linha de trabalho essencial?

É extremamente importante que a arquitectura consiga cumprir essa função social. Estamos num mundo com um nível de desequilíbrio tão elevado que ninguém pode trabalhar com consciência sem ter isso em linha de conta.

 

Há anos, deu como definição de utopia qualquer coisa como: “Construir em sintonia com o que acontece no mundo”.

De preferência com o que acontece de maneira positiva. O mundo está permanentemente em convulsão e é bom que consigamos ajudar a resolver problemas, e não criar outros.

 

Cita frequentemente a distinção entre as cidades europeias e as cidades americanas feita por Baudrillard. A cidade europeia é aquela que nos seduz e onde tudo desagua. A cidade americana provoca um impacto do domínio do fascínio, e é fragmentada.

O ideal é que consigamos fascinar, e não seduzir. O texto explica que a cidade tradicional europeia é construída como um cenário, um espaço teatral; o observador está sempre imerso na cidade, conduzido pelas ruas, perante alçados, a chegar a uma praça. Podemos imaginar sequências, enredos, clímaxes, pontes fortes e fracos. Estamos num espaço teatralizado ou teatralizável, onde é possível a sedução. A cidade americana já está fragmentada. Já há edifícios enormes ao lado de casas pequenas. Não há esta ideia da rua corredor ou da sequência teatralizada. Baudrillard diz que aí só é possível o fascínio.

 

Porque é que esta é a posição que prefere?

Se nós, arquitectos, não precisarmos de enredo, de encantamento e sedução para comunicarmos, e se conseguirmos construir edifícios fascinantes, isto teoricamente é mais forte. Na prática, temos de partir do real, temos de construir com o real, e ter em conta o sentido da sequência – como se fosse cinematográfica – para perceber como é que o espaço é percepcionado e como é que os edifícios vão ser vividos.

 

Que dramas aí são vividos.

Exacto.

 

Do cinema e teatro passamos para a arte e literatura. É interessante que nos seus textos apareçam frequentemente fragmentos de Herberto Hélder. Apetece dizer: o que é que a poesia tem que ver com isto?, o que é que a arte tem que ver com isto?

Há muitos anos, numa das primeiras participações que tive numa bienal, em Paris, escolhi como divisa um fragmento de um poema do Herberto Hélder: “Como se um nervo cosesse as partes pungentes e selvagens da carne”. O que acontece com a arquitectura é esta capacidade de produzir conhecimento e de estabelecer comunicação num território próprio. É um processo de conhecimento e comunicação, de uma maneira sintética, tal como com a poesia ou a música.

 

Sente uma especial afinidade com as artes visuais, e aqui incluo as artes plásticas, o cinema, a fotografia.

Interesso-me bastante por tudo isso de uma maneira anárquica e desorganizada, e de uma maneira vital. Sinto necessidade permanente de utilizar e de consumir música, arte... Mas não é por ser arquitecto; acho que é por ser um ser humano.

 

Como é que isso aparece naquilo que faz? Como é que podemos denotar essa importância vital que a arte, a literatura, a música, o cinema têm no seu quotidiano?

Somos feitos desse conjunto de memórias e conhecimentos que vamos absorvendo, e reflectimos isso. Temos necessidade de perceber o que se está a passar à nossa volta. Como é que as outras pessoas estão a resolver esses problemas. Como é que lidam com a realidade. Que processos de afinidade é que existem. Como é que podemos encontrar caminhos que possam ter o mesmo significado. Basicamente, o que é fundamental é sentirmo-nos à vontade a trabalhar, e para isso temos que perceber que funcionamos em sintonia. Essa sintonia só se adquire através de processos de vivência intensos e contínuos. 

 

Joseph Beuys é um artista de que gosta especialmente; há outros igualmente importantes no seu imaginário.

Há muitos. Estive há uns meses numa exposição antológica do Joseph Beuys em Berlim e fiquei impressionado. Quando voltei para Lisboa tinha que fazer uma sessão numa livraria e propus que fosse à volta da obra do Joseph Beuys. É um mágico, um artista genial.

 

E sensorial.

E sensorial. Tocou em matérias e possibilidades extremamente importantes.

 

Sublinho o lado sensorial porque, sendo um mágico, é ao mesmo tempo “físico”.

É, apesar de ter uma posição “religiosa” na relação com o mundo. Os espanhóis Tuñon y Mansilla, que ganharam o ano passado o Prémio Mies van der Rohe, e de cujo trabalho gosto muito, põem em todas as fotomontagens que fazem dos seus projectos, uma figura do Joseph Beuys! Dir-se-ia que tem um ar provinciano, mas [passa] pelo reconhecimento da importância que a arte ou a poesia ou o cinema pode ter para os arquitectos.

 

Outros artistas de que goste especialmente e que queira nomear.

Mais contemporâneos e próximos de nós, por exemplo, o Lawrence Weiner. Foi o Julião Sarmento que mo apresentou, até pessoalmente. À medida que fui conhecendo a obra fiquei fascinado! E outro é o Julião Sarmento, nosso amigo. É incontornável.

 

Participou na peça de Julião Sarmento/John Baldessari/ Lawrence Weiner “Drift”. Gostou da experiência? É passar um pouco para o outro lado do espelho…

Gostei! Foi uma experiência única, não se repetiu. Achei piada e gostei de ver, depois, o resultado da montagem. Parte de um ponto de vista territorial; mostra-nos sempre a linha do horizonte, que é o mar, que permite unir sítios à volta do mundo muito diferentes.

 

Gostava de chamar à atenção para o quadro do Pedro Casqueiro, que tem na sua sala, além do de João Louro. As fotografias das suas caixas, das suas zonas de trabalho, coincidem com esta imagem de Casqueiro. A forma deste quadro é rectangular, que é também a forma primordial do seu trabalho enquanto arquitecto.

Tenho este quadro há imensos anos, desde 80 e tal. É o pagamento do projecto que fiz da Galeria Módulo. O Mário Teixeira da Silva, em vez de me pagar em dinheiro, pagou-me com este quadro. Esteve sempre no meu ateliê, toda a gente que o visita vê o quadro, os meus colaboradores conhecem o quadro, está publicado. Muitas pessoas que chegam de fora pensam que fui eu que o pintei! [risos]

 

Tal é a afinidade…

Exactamente. É uma malha que quer ser ortogonal mas que está cheia de imperfeições e contradições; as cores, a maneira como tudo isto é construído, tem uma ressonância arquitectónica. Mas há outras formas de arte e outros trabalhos com as quais tenho afinidade.

 

Fale-me da peça de João Louro que também está na sua sala de trabalho.

O cenário que fiz para “Olhos nos olhos”, o programa da Maria João Seixas [na RTP2], era parecido. São dois planos, uma espécie de dois espelhos negros, que reflectiam as pessoas que estavam a conversar. Esta blind image, perturbadoramente, vira-nos para nós próprios. A ideia do reflexo, e a sua importância na construção e desconstrução do espaço, é muito importante.

 

Consegue explicar mais detalhadamente a relação com Herberto Hélder e Julião Sarmento?

A poesia do Herberto Hélder e a prática artística do Julião Sarmento, que têm coisas em comum, também têm a ver com a minha actividade. Gosto da calma e discrição que se sente no discurso (da arquitectura, da arte, da poesia), que esconde ou mostra uma realidade fortíssima, poderosíssima, que é mais perturbadora do que aquilo que estamos a receber como primeiro impacto.

Na obra do Julião Sarmento, qualquer dos quadros e vídeos parecem superficiais (pela forma como o tema é abordado) ou parecem sofisticadíssimos; mas são sempre equívocos, e talvez mágicos. São inexplicáveis. Não sabemos por que é que exercem uma tão poderosa atracção e nos estão a revelar coisas que não estão presentes ou a esconder outras.

 

É uma forma de lidar com o desconhecido.

Gosto da ideia de que lidamos com mistérios que nunca conseguiremos resolver, e que estamos, de uma maneira calma, e eventualmente codificada, a lidar com todas estas realidades tumultuosas.

 

Isso, na sua arquitectura, tem alguma coisa que ver com as surpresas, com uma irregularidade inesperada?

As surpresas terão mais a ver com os aspectos cenográficos, de sedução, que correm como se fossem um discurso paralelo. A presença, umas vezes brutal (há bocado falava de violência porque acho que isto é uma actividade de alto risco, não são coisas imediatas e simples); a presença dos edifícios, da massa construída, o seu impacto sobre a nossa sensibilidade, tem um carácter a que Miguel Ângelo chamava terrebilitá. Tem a ver com isto que estava a tentar explicar: reconhecer a força e o poder daquilo com que estamos a trabalhar, mesmo que se revista com discursos aparentemente superficiais.

 

Volto a falar da forma rectangular para falar de contentores, de receptáculos. Portanto, do que acolhe, do que pode acolher.

A propósito de uma das primeiras obras que construí, o Paulo Varela Gomes dizia que nos meus projectos as questões técnicas e os programas eram como o tema na pintura antiga. (O tema neste sentido: uma Adoração, uma Visitação…). Achei um pouco equívoco, porque sempre pensei que a adequação ao programa e a uma série de coordenadas mensuráveis, que a sociedade me pedia, eram o fundamental. [O que Paulo Varela Gomes dizia], se fosse possível, era interessante, mas era um pouco fantasioso.

 

Qual o sentido que isso agora lhe faz?

Mesmo que seja a um nível inconsciente, temos coisas para dizer que não conseguimos contornar. Acabamos por dizê-las a propósito do que quer que seja. A questão da ortogonalidade: gosto de usar formas e sistemas de construção simples, porque reconheço uma enorme complexidade geométrica e real no mundo. É interessante se conseguirmos propor os tais recipientes, receptáculos, contentores, de uma maneira simples. Custa-me recorrer a formas caprichosas ou pitorescas – não sinto necessidade. Tento encontrar os melhores receptáculos para os programas, e não me importo que a relação com tudo o que nos envolve seja forte, ou por contraste ou por oposição.

Esta exigência de uma grande atenção à paisagem, à realidade, que às vezes é quase sufocante e cansativa, é talvez um álibi que me permite ganhar liberdade neste confronto. Ou seja, se estiver seguro do que estou a pisar e da maneira como o edifício se relaciona com a realidade, sinto liberdade para poder afirmar, chocar, construir.

 

 

A acompanhar uma exposição do artista no CAV em 2008

 

Francisco e Manuel Aires Mateus

20.07.21

“Lembro-me sempre de jantares em que o Francisco consegue fazer a festa total, e de fases em que está bastante recatado”.

“É verdade que na adolescência o Manuel era uma pessoa mais séria e eu era completamente selvagem. Coisa que se veio a equilibrar com algum esforço”. Quem são eles?, como fazem o que fazem? Os Aires Mateus são dois, mas são um.

A entrevista permite encontrar famílias que se desintegraram no pós-25 de Abril, meninas que pertencem à casta das pianistas frustradas mas que dão a volta, a espiritualidade e a religiosidade, os anos 80 em Lisboa (uma certa desbunda), a porosidade social no bairro dos Olivais, como é que um livro ou a memória se traduzem num edifício, onde é que o virtuosismo e a subversão de um complementa o trabalho e o rigor de outro, as inseguranças de um que são diferentes das inseguranças do outro, um tempo em que o que a consciência permitia era fazer coisas belas, a casa-ponto de viragem para a qual se constrói um corpo, respeitando o lugar, a estrutura, o que existia, o terror de aquele ter sido o último projecto de que se foi capaz.

A entrevista permite conhecer Manuel (1963) e Francisco (1964) Aires Mateus e os Aires Mateus. Os percursos individuais e o discurso artístico da dupla de arquitectos.

São reputados, premiados. Dão aulas na Academia di Architettura de Mendrizio, na Suíça, e na Faculdade de Arquitectura de Lisboa. As aulas não são de um ou de outro, mesmo que sejam dadas por um ou por outro; são a expressão da entidade que os dois formam. Assinaram projectos como a Biblioteca e Centro de Artes de Sines ou a sede da Orquestra Metropolitana de Lisboa (com Gonçalo Byrne, com quem trabalharam).

Entrevista ao fim da tarde, no atelier de Manuel. Só porque a entrevista lhe começou por ser pedida a ele? Francisco está perto. Às vezes falam um com o outro – “Qual é a casa da tua infância?”. Mas é raro. A cumplicidade não é uma questão. A competição, dizem, nunca existiu.

Depois da conversa falou-se da importância da luz numa casa de banho (acordar todos os dias com má cara por causa da luz não é uma boa ideia), viram-se fotografias de casas, trocaram-se afinidades.

São casados. Têm filhos. Mas tudo isso está na entrevista. O melhor é entrar…  

 

Porque é que são os dois arquitectos?

Francisco – Não é nada de muito estranho. A nossa mãe é pintora, o pai é arquitecto. Havia na vida normal da família uma aproximação à arte. É mais extraordinário a nossa irmã, que acaba em enfermagem, psicologia e medicina de catástrofe. Depois de termos estado na [escola] António Arroio, tornou-se claro que era arquitectura.

 

Há apenas um ano de diferença entre os dois.

Manuel – Nunca nos demos com as mesmas pessoas nem com os mesmos grupos. Não é que não nos déssemos muito os dois. Dormíamos no mesmo quarto, tínhamos muitas coisas em conjunto.  

 

Por que razão fora de casa se davam com pessoas diferentes? Um ano é praticamente insignificante.

Manuel – Quando tínhamos dez anos a diferença era maior. Tinha uma série de amigos muito reservados, metidos em casa. Líamos, ouvíamos música.

Francisco – O Manuel tinha um grande amigo que era um ano mais velho; e dois anos, quando se tem 12, faz uma certa diferença. Este grande amigo, Vítor Gameiro Pais, era aquilo a que chamávamos um intelectual.

Manuel – Um tipo com uma grande consciência política. À esquerda, obviamente.

 

Obviamente, porquê? Quando tinham essa idade, estamos a falar do pós-revolução.

Manuel – Sim, ou imediatamente anterior. Muito politizado, para um miúdo, só se notaria se fosse muito radicalmente à esquerda. Esse meu amigo era uma pessoa com uma enorme formação cultural, na literatura, no cinema.

Francisco – Tinha os interesse de uma pessoa mais velha. Eu andava com um grupo mais normal, mais populoso, mais imberbe, mais sujeito às parvoeiras da vida.

 

O que é que liam, o que é que viam? Quem eram essas pessoas com quem se davam? Tudo isso acaba por vos formar enquanto indivíduos. E acaba também por fundar um imaginário, que transparece no que fazem.

Manuel – Há uma influência muito grande: a nossa mãe. Deixou de pintar quando nascemos, esteve muitos anos sem pintar, voltou a pintar durante um breve período, e a escrever. Foi quem se encarregou da nossa formação de forma mais directa. Tivemos os ciclos do [Carl T.] Dreyer! Isto com 13 ou 14 anos. Éramos obrigados…

Francisco – Sim, éramos obrigados.

Manuel – Éramos obrigados a ir ao ballet. Até ter visto o [Merce] Cunningham (nunca me esquecerei dele a atravessar o palco da Gulbenkian, a andar), odiava o ballet, mas ia. Cada coisa que a Gulbenkian fazia, íamos.

Francisco – Era uma enorme novidade a ideia de que um bailarino podia não se ver como um bailarino.

Manuel – O meu pai tinha a música.

 

Melómano?

Manuel – Sobretudo tinha um gosto pela música clássica. Jazz também, como convinha a um arquitecto. Tinha o seu grupo de amigos que iam ao Hot [Club].

Francisco – A condizer com o bigode. Nos anos 70 convinha ter um bigode e ir ao Hot.

 

O que é que era o cinema do Dreyer para um miúdo de 12 anos naquela altura? O que é que fica da experiência?

Manuel – Já não faço ideia.

Francisco – Não havia nenhuma espécie de academismo. Não era uma formação consistente e consciente. Não me lembro de a minha mãe ter as preocupações que tenho com as minhas filhas.

 

Por exemplo.

Francisco – Estar preocupado se elas lêem, se lêem coisas boas. Acho que tenho que as formar com aquele instrumento. A nossa mãe não. Tinha os livros para quando quiséssemos ler. Eu lia pouquíssimo. Um dos primeiros livros que li foi a Rua Mântuleasa, do Mircea Eliade.

Manuel – E [Jorge Luís] Borges. O pai tinha a loucura do Borges, que conheço de sempre. Mas nunca fomos treinados.

 

Como disseram que eram obrigados, facilmente caímos na tentação de pensar que era uma coisa quase formatada.

Manuel – A minha mãe achava que não devíamos desperdiçar oportunidades quando as coisas apareciam. Estamos a falar de um tempo em que as coisas não apareciam como hoje. Estamos a falar de um tempo em que não havia bibliotecas nas casas. Não se chegava aos ateliês e havia livros de arquitectura.

Francisco – Não se saía com sacos de livros da Fnac.

 

Não tiveram a noção nunca de que estavam a ser treinados para serem vencedores?

Manuel – Nem nunca fomos, nem isso é uma palavra que nos interesse.

 

Mas são vencedores.

Francisco – Tínhamos, de um modo latente, a ideia de que nada se consegue sem esforço. Que o esforço leva a melhorar, e que a nossa melhoria como pessoas é um bem em si. Mas não no sentido de vencedores porque somos melhores do que.

Manuel – Respondermos à nossa responsabilidade era uma tarefa, é uma tarefa. Ainda hoje penso que é a maneira como devemos olhar para a vida.

 

São arquitectos de sucesso, triunfaram, mesmo que não fosse esse o propósito inicial. A dupla é muito reconhecida, e não só em Portugal. São uma referência para a vossa geração e a subsequente. Isto não cai do céu.

Manuel – É tão estranho… Tudo o que se consegue coloca-nos num novo patamar de incapacidade, de responsabilidade. Temos construído coisas que nos dão uma grande felicidade. Mas uma vez conseguidas, colocam-nos perante novos desafios. É muito efémero, passa logo, não temos descanso. Vivemos aterrorizados com a ideia de estarmos esgotados.

 

Aterrorizados, esgotados? Não têm 50 anos.

Manuel – O terror de haver um esgotamento das nossas possibilidades artísticas. Os projectos atingem-se com grande sofrimento, não têm esse lado de prazer que as pessoas, olhando de fora, vêem. Quando há aquele breve momento de felicidade que advém da solução, de repente há uma angústia de que aquele tenha sido o último que se foi capaz de fazer. Porque há-de haver um, que é esse.

 

Isso foi sempre assim?

Francisco – Ao princípio é tudo inconsciente, quando se é miúdo.

Manuel – O mundo, muito rapidamente, porque tem grande dificuldade em posicionar as pessoas, quer etiquetar, quer arranjar um sistema para pôr as pessoas num determinado lugar. Isso dá jeito à crítica, à encomenda, à sociedade. É dos maiores riscos que há na arquitectura. Uma pessoa começar a sentir-se obrigado a fazer [de determinada maneira]. Lembro-me sempre de ter ouvido o [Richard] Meier dizer: “Até gostava de fazer coisas diferentes, mas sou tão caro que tenho que ser reconhecido. O meu trabalho tem que se reconhecer imediatamente”.

 

Ter uma identidade artística tão vincada, ostensiva, que justifique o dinheiro que lhe pagam.

Manuel – E com isso se cerceia qualquer nível de liberdade, qualquer nível de investigação. Para nós é muito importante reivindicar a possibilidade de errar. É a única maneira de acertar, de se ser único – e não decantar coisas de outros tempos. Vivemos este medo de nos fecharmos, de começarmos a bloquear. E vivemos convencidos de que temos de fugir, de nos manter livres. Este pânico (de que um dia nos vão conseguir agarrar, amordaçar e obrigar-nos a fazer aquilo que reconhecem no nosso trabalho) é um terror.

 

Nesse sentido, o projecto da casa com o chão de areia, na Comporta (2009/10), que fez parte da representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza, e que é uma coisa completamente diferente do que tinham feito até aqui, o que é que representou?

Manuel – A casa do chão de areia aparece em condições especiais. Não faria sentido uma casa com chão de areia em Campo de Ourique. Na verdade, apareceu numa visita à Tate Modern numa exposição do Cildo Meireles. Uma das instalações era uma sala em pó de talco com uma vela na ponta. O visitante descalçava-se e andava em cima do pó de talco até chegar à vela. Era uma sensação… reveladora, qualquer coisa de muito diferente. A casa do chão de areia foi construída numa procura de reinventar a tradição. Aceitá-la (a tradição daquela construção em madeira e palha), mas reinventá-la. Também tinha uma outra relação: nós somos dali, o nosso pai é dali. Uma coisa que sempre conhecemos era que as casas de trabalho viram a nascente, as casas de lazer viram a poente. Naquele projecto mexíamos no tempo, virando as casas que estavam a nascente, que eram de trabalhadores, a poente. E mexíamos na maneira como se queria usar o tempo da casa. Correu-se o risco, calculado, e acabou por ser uma lição, como são estas coisas que constituem saltos.

 

Qual foi a lição?

Manuel – Para responder, temos de voltar atrás no nosso percurso profissional. Temos dois tempos muito claros. Um primeiro tempo, do boom português. Fazíamos muitos concursos, ganhámos alguns e construímos. Obras grandes, do Estado, em que o nosso grande fito era essencialmente fazer coisas bonitas.

Francisco – Não havia consciência para muito mais.

Manuel – Fazíamos coisas que pretendiam ser imagens. Ao mesmo tempo percebemos coisas, ganhámos destreza, aprendemos a linguagem, aprendemos a construir.

 

Fizeram a mão.

Manuel – Sim. Numa determinada fase ficámos sem trabalho. E depois ficámos com obras substancialmente mais pequenas, casas. Uma casa que marca para nós um ponto de charneira: a casa de Alenquer. Desenhámos a recuperação tradicional de uma casa, um projecto correcto para se fazer no campo, numa vila histórica; quando começámos a obra, ruiu tudo, as paredes não tinham capacidade de carga.

Francisco – Ficaram as paredes exteriores, só.

Manuel – O que era uma casa banal transformou-se numa ruína lindíssima. E decidimos mudar o projecto completamente. Começámos a ter outra consciência da realidade, e outro afecto [pelo que existia].

 

Passaram a funcionar com o que já existia.

Manuel – E a perceber o valor do material, a perceber o valor do tempo.

Francisco – Houve ali muitas descobertas. Há campos com os quais começámos a trabalhar que estavam para além daquilo que eram as nossas preocupações. O Manuel explicou a ideia da casa da Comporta, através do processo de inversão do tempo (porque ele se inverte nas aberturas das casas, na materialidade, no processo construtivo): seriam temas que não nos passariam pela cabeça antes. A partir da casa de Alenquer passámos a abrir bastante mais o campo de percepção do que é que estava ali, do projecto que temos pela frente. Abriram-se possibilidades.

 

Essa maturidade era só artística ou também pessoal?

Manuel – Não há uma sem a outra, penso que são a mesma coisa. O que percebemos ali foi a liberdade com que é possível operar. É a pessoa dizer: “Tenho um campo de liberdade, posso, e mais, devo usá-lo”. Um projecto é uma infinita condição de possibilidades que podemos e devemos usar. E usamos. O que não acontecia antes. Tínhamos uma espécie de esquema, queríamos fazer uma arquitectura...

Francisco – Dizendo sempre que não.

 

Uma arquitectura bela.

Manuel – Sim. Nunca mais isso nos ocorreu.

 

Como se estivessem subordinados à estética?

Manuel – O centro passou a ser a maneira como se pode experimentar, a maneira como se pode viver, possibilidades de uso. E os projectos são muito mais interessantes.

Francisco – Quase acho que há assim uns projectos que não são nossos... Fazem parte de um período propedêutico, de uma fase em que andávamos guiados por um sentido estético, de algum controlo das proporções. Agora experimentamos isto, agora experimentamos aquilo.

Manuel – Que é essencial para aprender a construir.

Francisco – É evidente. Mas nada cosia estes diversos projectos. Eram apostas vagamente sedimentadas no lugar, no programa, em coisas muito práticas, e em que não éramos muito maus. Há projectos de que gostamos muito, independentemente de serem extraordinários ou não. Gostamos muito porque nos fizeram perceber determinados temas. Mas tenho a sensação que é uma coisa que está ali, é um património, vejo-o de longe.

 

Usemos a metáfora de livros numa estante; agora podem pegar neles com uma descontracção superior àquela que teriam quando achavam que só alguns livros é que estavam certos.

Manuel – Há uma descoberta muito importante, que é perceber que posso navegar pela história com uma total liberdade. Não tem que ser cronológico; posso andar para a frente, para trás, misturar tempos. Ou na teoria, ou nas influências, em qualquer ponto da cultura. Há uma noção que a arquitectura tem, a de que serve um propósito. A arquitectura não é um campo branco, só existe com um fim. Essa noção de um fim, que muitas vezes é utilizada como uma desculpa para uma incapacidade, é uma enorme libertação. Hoje, é mais clara a maneira como conseguimos trabalhar porque a arquitectura constrói-se a partir de uma necessidade, de um lugar e de umas condições, económicas, físicas, tecnológicas. Isto forma a arquitectura. E parte de uma outra coisa: o que conseguimos transportar para este problema. Nunca poderemos sair de uma destas condições, nunca poderemos usar condições que não temos, um lugar que não temos; mas podemos utilizá-las de maneira completamente diferente. E isto transforma a arquitectura numa arte com tantas possibilidades... No fundo é uma necessidade de ancoragem a uma realidade, e simultaneamente uma possibilidade quase infinita de interpretação.

 

Francisco, que rebelde era?

Francisco – Tive sempre as notas que era preciso ter, nem mais nem menos.

Manuel – Às vezes, um bocadinho menos.

 

O Manuel era o bom aluno e o bem comportado?

Francisco – Sim, sim, claramente.

 

E isso era uma forma de se afirmar em relação ao irmão mais velho?

Francisco – Não tenho muito essa ideia. Vivíamos nos Olivais, que foi um bairro subitamente ocupado por pessoas da mesma geração, que tiveram obviamente filhos da mesma idade. Cada prédio tinha 20, 30 pessoas da mesma idade, gerava grupos por prédios, por ruas, por bairros.

Manuel – Os arquitectos mudaram-se para lá, muitos intelectuais foram para lá.

 

Que recorte social era o dos Olivais quando se mudaram?

Francisco – Muito variado. Havia cruzamento de ruas de habitação social com ruas de classe média-alta. Havia muitos funcionários da TAP, quadros da indústria, de Alverca. Éramos assaltados com alguma regularidade, fomo-nos habituando a negociar todas estas coisas, a fazer amigos de outras classes sociais e a ter uma relação normal com esse mundo. Por muito que me digam que socialmente a experiência falhou em muitos aspectos, parece-me que foi bastante rica. Até na medida em que não provocou segregações por bairro, como depois aconteceu em Chelas, por exemplo, onde se faz uma guetização da população. Havia grandes bandos de miúdos que estavam constantemente na rua.

 

A escola que frequentavam era também ali? Escola pública?

Francisco – Sim. Havia menos aulas, havia menos disciplinas parvas para fechar as crianças dentro das escolas porque os pais não estão para as aturar.

Manuel – Não tínhamos actividades, saíamos da escola e íamos para a rua. Para onde quiséssemos. Íamos para casa jantar. Tínhamos muito tempo livre, só tínhamos aulas de manhã.

Francisco – O meu grupo fazia várias coisas, e às tantas degenerou numa banda Pop, os Radar Kadafi.

Manuel – O Francisco era baterista dos Radar Kadafi.

Francisco – Entretanto, o Paulo Varela Gomes, que também andava por ali porque era namorado de uma amiga, começou a escrever uns artigos sobre nós (ainda os Radar Kadafi estavam embrionários). Gravámos discos, fizemos não sei quantos concertos; mas a banda girava mais à volta de uma consciência e de uma proposta estética do que musical.

 

Eram os anos 80 em Lisboa, tudo era uma experiência pós-moderna.

Francisco – Exactamente. À nossa volta, a maioria das bandas tinha nomes do tipo “A Velha Guarda”. Uma malta muito deprimida, tudo muito pesado, muito Joy Division. Nós resolvemos que isso estava tudo mal e que tínhamos era de cantar a vida de uma maneira alegre e optimista. Um dos concertos era o “Estendal Lusitano” – era o que nós éramos.

 

Havia um especial orgulho nessa lusitanidade? Aconteceu com os Heróis do Mar, do Pedro Ayres, por exemplo.

Francisco – Era uma certa moda. A determinada altura o Pedro Ayres era nosso agente. Mesmo o Miguel Esteves Cardoso, que escreveu letras para os Sétima Legião, andava muito à volta disto. Uma certa afirmação da lusitanidade, uma esperança. Havia convites para tocar em Espanha, um renascimento cultural português. Depois havia que escolher um caminho. Já estava a acabar a faculdade, e claramente não sou um músico, nunca fui. Gosto muito de tocar bateria, sempre me dei bem com aquela coisa de ter um estendal à minha frente que me protege…

Manuel – Do público.

Francisco – De qualquer coisa. Aquilo era demasiadamente uma brincadeira. Foi muito giro.

 

O Francisco foi mais popular enquanto criança e enquanto adolescente? Isso o que é que provocou em si?

Manuel – Nunca tivemos essa sensação. Gostava muito deste lado do Francisco. Aliás, ria. Não era só esta coisa, eram as motas que deixava desmanchadas no meio do quarto. Eu não tinha nada a ver com isto. Na verdade não tenho nada para apresentar.

 

Não foi um rebelde com estas ou outras causas?

Manuel – Terei sido um rebelde noutras coisas. Houve um momento, por um factor muito preciso, a morte do meu avô paterno, em que a minha vida mudou. Era um outro pai para mim. Tinha 14 anos. Não sei por que reacção, comecei a centrar-me na ideia de estudar. No princípio de cada ano estudava a matéria, entrava nas aulas a saber rigorosamente do que ia tratar o ano todo. Era um aluno obsessivo. Isso não é bom.

 

Não granjeia popularidade junto dos outros.

Manuel – A ideia do marrão não é simpática. Mas não era propriamente um marrão, sempre fui um tipo da noite. Tive muitos anos em que saía todas as noites. Estabelecemos uma regra com a minha mãe: pelos 17 anos, avisávamos se fossemos jantar, e depois avisávamos se fossemos dormir. Vivíamos numa geração em festa e estávamos sempre em festa. Mas nunca coincidimos. Fomos coincidindo cada vez mais quando começámos a trabalhar com o Gonçalo Byrne. Eu já trabalhava com o Gonçalo Byrne e o Francisco entra. Depois quando começámos o ateliê, juntos. Depois quando começámos a dar aulas, juntos. (Foi muito bom quando o Francisco, passados 15 anos, se juntou. Levou muito tempo a convencer o Francisco, que não queria.) Estes são os filões que nos vão juntando. Fiz o liceu, com médias muito altas.

 

Intimamente era uma espécie de tributo ao seu avô, achava que ele esperava isso de si?

Manuel – Não sei se posso ser tão directo. Senti que havia qualquer coisa que tinha que fazer.

 

Ou então passou a ser um homenzinho, cresceu.

Manuel – Ou isso. Quando olho para trás penso que tudo aquilo era banal, e mais ou menos desinteressante, tirando pequeníssimos momentos fugazes da minha educação na escola e na faculdade. Houve alguns professores extraordinários que apanhei, mas não foram tantos que tivesse valido a pena ser tão esforçado. Foi uma condição, não uma condição de que pudesse fugir.

 

Qual dos dois é mais inseguro?

Francisco – Sou eu.

Manuel – Sim.

Francisco – Até gosto de Lexotan [riso].

Manuel – Somos inseguros em coisas diferentes.

Francisco – No aspecto profissional não tenho dúvidas nenhumas de que sou mais inseguro.

Manuel – Terei outras inseguranças.

Francisco – Francamente, às vezes fico aterrorizado.

Manuel – Eu também.

Francisco – Às vezes pergunto-me porque é que me vão entrevistar a mim. Outro dia tivemos uma entrevista com o Hans-Ulrich Obrist em Veneza, deitámo-nos às duas e meia da manhã, tínhamos de estar cedo com ele. Claro que não fomos para a cama às dez da noite com uma infusão, fomos um pouco mais tarde e com outras infusões, muitas. Tínhamos que acordar às oito da manhã para ir para o Arsenale, acordei às cinco da manhã e não dormi mais. Pensei: “Há aqui um erro de casting. Este homem é o curator mais famoso do mundo neste momento e vai-me entrevistar a mim! Peguei no envelope errado.”

Manuel – O lado da comunicação, fui sempre mais eu que o assegurei; fazia as conferências, dava as aulas. Não sei se é uma questão de timidez.  

Francisco – Não tenho timidez nenhuma, é insegurança.

 

Insegurança porque olhou para ele como o bom aluno, o irmão mais velho, a referência?

Francisco – Não, esta minha insegurança é uma luta comigo próprio. Tenho sempre a sensação de que devia estar a fazer uma série de coisas que não faço.

 

O Manuel é mais focado, e o Francisco, nessa dispersão entre os Radar Kadafi e a vida boémia, acaba por não se concentrar da mesma maneira?

Francisco – Talvez.

Manuel – O Francisco é muito virtuoso. Toca, desenha, pinta. Em miúdo, o Francisco precisava de ir de férias, desenhava quatro t-shirts, vendia os desenhos e ia de férias. Fazia aquilo em cinco minutos. Ou ia pintar um bar porque precisava de dinheiro para fazer o InterRail, ou tocava. Sempre desenhou muito melhor que eu.

Francisco – Só tarde é que comecei a pôr um travão nisto. Esta facilidade ou está devidamente sedimentada ou não tem interesse nenhum.

 

Pode ser inimiga do rigor e da progressão?

Francisco – E da investigação e do trabalho, de tudo. Mas continuo a valorizar muito o instinto.

Manuel – Isso é uma coisa diferente. Esta grande facilidade do Francisco de abrir hipóteses sempre foi muito usada por nós. Mas essa facilidade tem que ser tratada com muito cuidado. Pode ser perigosa.

 

Então, no seu caso, não era tão virtuoso mas era mais trabalhador? Foi olhando para si assim?

Manuel – Nunca percebi muito bem. A única coisa que faço na vida, e fiz, é arquitectura. Não tenho qualquer abrangência. Sou praticamente surdo, não tenho relação com nada a não ser com aquilo que me sirva para trabalhar na arquitectura. Já não me lembro de não ser arquitecto. Nunca me interessou mais nada. Tenho uma vida normal, vou ao teatro, ao cinema, leio, gosto de tudo o que toda a gente gosta. Mas isso só me interessa quando é convertível em arquitectura.

 

Porque é que não tem a mesma insegurança que o Francisco disse imediatamente que tinha?

Manuel – Tenho imensas inseguranças.

Francisco – Já chegam as outras [riso].

Manuel – Francamente na arquitectura, não tenho. Tenho o tal terror de estar esgotado, de não conseguir fazer melhor, e a consciência de que podia fazer dez vezes melhor todos os dias. Mas não é uma insegurança. Quando olho, só vejo o que tenho que fazer, não vejo o que fiz.

 

Conseguiu compartimentar as coisas. Esta é a zona de insegurança, esta é a zona da arquitectura.

Manuel – Não festejo nada na arquitectura. O que me move são os problemas. Onde é que não estou a conseguir chegar? O que é que ainda não percebemos? Não são problemas práticos, são problemas criativos.

 

Começaram por trabalhar no ateliê de Gonçalo Byrne. Não sei se era amigo dos vossos pais...

Manuel – Era amigo dos nossos pais.

 

Quando se encontraram aí, foi como se se reconhecessem um ao outro de uma maneira diferente? Entretanto tinham 20 e poucos anos.

Francisco – O que tem piada é que foi uma espécie de reencontro. Na escola encontrávamo-nos, ajudei o Manuel a acabar o curso, o Manuel ajudou-me, as coisas normais. Mas mais uma vez não estávamos muito juntos. O Manuel tinha um grupo muito coeso. Eu andei sempre a saltar de turma em turma, ou a turma desmembrava-se muito. E de facto encontrámo-nos ali no ateliê do Gonçalo.

Manuel – Era inevitável.

 

Não parece nada inevitável trabalharem juntos, fazerem este percurso profissional. A vossa relação não parecia especialmente cúmplice.

Manuel – Mas era. Isso é que é difícil de explicar. Sempre cobrimos qualquer problema que houvesse entre os dois. Nunca houve a mínima competição. Nunca se nos pôs sequer a hipótese de não sermos tão cúmplices.

 

Tão cúmplices e tão ligados que se podem permitir ter mundos separados e fazer vidas paralelas?

Manuel – Sim. Nunca tivemos um problema sério que não partilhássemos. Mas não tínhamos os mesmos interesses.

Francisco – Há mais circunstâncias que reforçam isso. Desde logo, no 25 de Abril, houve uma mudança radical na nossa maneira de viver.

 

O que é que mudou na família?

Manuel – Ficámos sem dinheiro.

Francisco – Não é só isso. O nosso avô paterno era um grande latifundiário do Alentejo. A família fugiu toda para o Brasil, para Espanha, só ficou cá o meu pai, a minha mãe e nós. A coisa não foi fácil. Brigadas, auto-stops no meio da rua, pessoas ameaçadas. Até ao 25 de Novembro de 1975 não se sabia o que é que dava. Estivemos fugidos dentro de casas de pessoas para que não fossem ocupadas. Aconteceu-nos um bocadinho de tudo. Não há nada como uma boa desgraça para unir a família. Quando tinha 14, 15 anos os meus pais divorciaram-se. Podia ter sido o contrário, mas foi uma situação bastante aglutinadora do núcleo familiar.

 

A família da vossa mãe era mais de esquerda?

Manuel – Não, era igual. O grupo cultural é que não era, os nossos amigos. Acho que foi um bom equilíbrio entre os dois mundos.

Francisco – Não temos uma filiação política concreta, nem sequer uma grande intervenção política. Se calhar porque nos fomos equilibrando entre estas coisas e vendo o que é que pode estar bem de um lado e o que é que pode estar bem do outro.

 

Essa harmonização e equilíbrio entre termos opostos é uma coisa que, lendo literatura sobre as vossas obras, aparece constantemente. A harmonização do belo com a função, da estética com a ética, a relação da construção com o local. Parece ser uma marca daquilo que fazem. Isso é porque são assim enquanto indivíduos?

Francisco – Acredito muito em equilíbrios.

Manuel – Mas também acreditamos naquele lado subversivo. Soubemos escapar da banalidade. E também dos juízos de valor. Muito cedo descobrimos que a qualquer valor se contrapõem outros valores. O que interessa é somar valores, e valores diferentes para harmonizar os vários ciclos da vida. Foi uma lição que apanhámos desses tempos. Na geração dos nossos avós havia chauffeur. Nós podíamos não ter dinheiro para comprar doces. Aprendemos a viver com qualquer quotidiano, misturado com uma vida que era feita nos Olivais. Para nós, a ideia de consciência social não existia.

 

Que hoje, passados 35 anos é uma coisa muito marcada. Pertencemos a uma classe social.

Manuel – Era um problema que não se punha. Andávamos na escola oficial como toda a gente. A permeabilidade [social] era muito grande. No pós-25 de Abril vivemos sem dinheiro nenhum. Também é uma boa aprendizagem de vida.

Francisco – Quando olho para trás, penso em todas as dificuldades por que passámos, e algumas foram duras, como uma altura divertida. Certamente como um valor.

 

Quem é que ensinou que isso era um valor, a mãe e o pai?

Manuel – Havia uma máxima lá em casa, já não me lembro do nome da máxima… Era qualquer coisa que queria dizer: “Comparamo-nos materialmente com os que têm menos, e em valores espirituais com quem tem mais”. Sabíamos que nunca estávamos à altura das pessoas que nos inspiravam, e que nunca nos podíamos queixar.

 

Tiveram uma educação católica?

Francisco – Uns ligaram a isso mais do que os outros [riso]. A nossa mãe é muito espiritual, antes de ser muito católica. A determinada altura teve uma aproximação muito grande à igreja católica. Naturalmente, como manda a tradição, educam-se os filhos segundo a fé da Igreja.

Manuel – Talvez mais para mim do que para o Francisco.

 

Essa dimensão religiosa tem importância em quem são hoje?

Manuel – Tem.

Francisco – Tive umas compatibilidades espirituais com a minha mãe, divertíamo-nos com sonhos, discutíamos muito isto. A igreja católica, francamente, nunca consegui.

Manuel – A minha mãe foi secretária do padre Manuel Antunes. Isso foi muito importante na vida da minha mãe, na nossa vida e na nossa educação, indirectamente.

 

Em que período?

Francisco – Nos 80.

Manuel – Tivemos acesso à biblioteca da [revista] Brotéria.

Francisco – Era uma figura extraordinária.

 

Falam mais da vossa mãe do que do vosso pai. E falam do vosso discurso artístico. Mas a vossa forma de expressão é a arquitectura e não a pintura. O vosso pai é que era o arquitecto.

Manuel – O nosso pai fez uma coisa muito corajosa. Veio de um background muito fechado e fez um percurso autónomo. Autónomo queria dizer contra. Acho que é arquitecto por esse não-alinhamento. A arquitectura era uma forma de subsistência, a sua profissão. Tem algumas coisas interessantes, mas não é onde se encontra. O meu pai encontra-se, muito mais tarde, quando se transforma em agricultor. Toda a família se treinava em qualquer coisa (medicina, direito, no caso do meu pai, arquitectura); e acabavam agricultores. Esperemos que não nos aconteça [riso]! Não nos vai acontecer, não temos qualquer vocação. Também tinha outro lado, que é uma herança que nos deixa: era um homem prático e matemático.

Francisco – E está cada vez mais novo, como sabes.

Manuel – Sim, uma coisa de filme: agora, aos 75 anos parece ter 40. 

 

Vou usar um aforismo daqueles que se encontram nos compêndios do Pe. Manuel Antunes, de Píndaro: “Torna-te naquilo que és”. O vosso pai tornou-se naquilo que é. Naquilo que era.

Manuel – Essa admiração que temos pelo nosso pai é porque é uma pessoa que faz um percurso muito difícil, e que tem a coragem de o fazer. A minha mãe tinha um lado que vinha das pianistas frustradas. As minhas bisavós tocavam piano maravilhosamente e nunca conseguiram ser pianistas; porque não era decente, porque tinham tido um problema na mão, por qualquer razão. Apesar de vir de um meio formal, encontrou-se com maior naturalidade neste universo. Se o meu pai não tivesse tido aquela coragem, não tivesse dado aquele salto, outros saltos não seriam possíveis – dele e nossos. A pessoa conhece um mundo e descobre outro. É como as grandes viagens: de repente o mundo alarga-se. Conhecemos formas muito diferentes de viver. Isso fez-nos entender que os valores da vida são muito mais interessantes quando percebemos que não são absolutos. Os nossos pais forneceram-nos isso.

 

Como é que trabalham em dupla?

Francisco – É bastante complicado [riso].

Manuel – Montámos um escritório, começámos a dar aulas juntos, e quando vimos que o ateliê estava tornar-se grande demais, resolvemos ter dois ateliês: o de Campolide e o de Campo de Ourique. Os trabalhos são conduzidos ou em conjunto, ou por um, ou pelo outro. Sendo que há uma base de investigação, de ideia, que é discutida conjuntamente.

Francisco – Não há nenhuma decisão apriorística sobre isto. Discutimos muito mais os projectos agora do que quando estávamos juntos. Agora é preciso arranjar esse tempo, que tem que ser combinado, não é encontrado nas folgas do dia-a-dia. Por outro lado, na nossa relação, limaram-se aquelas coisas que desgastam (problemas administrativos, problemas económicos, de gestão de agenda de cada um). Desaparecem uma data de entraves para que esta relação possa ser mais frutífera. Tem corrido maravilhosamente.

 

Dão aulas juntos, também. Como é que fazem? São os Aires Mateus, e não o Francisco ou o Manuel que dão aquela cadeira.

Manuel – Temos uma cadeira juntos, exactamente.

Francisco – Estranhamente temos dois nomes plurais

Manuel – A nossa base é na Suíça italiana, onde somos efectivos. Somos dois, mas na verdade somos um.

 

O conceito de casa está presente, não só na representação portuguesa da Bienal de Veneza, onde estão, mas também na exposição da Trienal de Arquitectura do CCB, que integram. Como é que cada um recorda a casa da infância?

Manuel – Qual é a casa da nossa infância? [para o Francisco] Qual é a casa da tua infância?

Francisco – Vou retirar daqui qualquer pomposidade ou aspectos poéticos: é a casa dos Olivais. Era um apartamento normal, generoso, mas o que retenho é um tempo de enorme liberdade. O que recordo é a vida de nos deitarmos tardíssimo (a minha mãe e nós) e passarmos o domingo inteiro a beber café atrás de café, sempre fraco, para podermos beber 20 cafés cada.

 

Do que fala é da vivência da casa.

Francisco – É isso que me preocupa numa casa: a vida que está lá dentro. Aquela é a minha casa.

Manuel – Tenho mais dificuldade em responder. A casa da minha infância também é a casa dos Olivais. Manteve-se imutável. Dormíamos em duas camas, onde hoje os meus filhos dormem; tínhamos o mesmo jogo na parede, pendurado, que o meu padrinho me ofereceu, quando tinha para aí dez anos; continua lá. Tínhamos um ritual naquela casa, que era a camilha. Não era hábito as casas aquecerem-se, mas havia a coisa muito alentejana de irmos todos para a camilha, numas senhorinhas. A vivência era feita em torno disto, quase até de manhã. Outra coisa corrente: a minha mãe mudava a casa, mudávamos de quarto. Havia aquele gosto pela arte, o acervo das coisas dos amigos, daquele grupo que pertencia à [galeria] 111.

 

Francisco – Eu tinha umas encomendas para pintar painéis para as Amoreiras ou na Costa da Caparica, desmontava-se a casa toda, desaparecia a sala e ficava a pintar. A minha mãe precisava de pintar um painel enorme para a igreja do Ramalhal, desmontava-se a casa outra vez. Depois a nossa irmã cortava cabelos, eu cosia calças. Entravam pessoas que vinham apertar calças, outras cortar o cabelo. Sendo que a minha mãe era muito rígida em certos aspectos, nada disto implicava bandalheira ou falta de decoro.

Manuel – A casa eram as relações possíveis entre as pessoas. A casa era um suporte das necessidades. Era uma casa de um bom arquitecto, do Pires Martins, não bem construída, mas bem desenhada.

Francisco – Não me lembro de lhe atribuir grande qualidade arquitectónica. Mas se fosse mal desenhada, se calhar não permitia nada disto. As recordações mais físicas são as da casa de Estremoz ou do monte de Grândola. O raio de luz na janela, de manhã, o cheiro do sótão, os cascos dos cavalos dos ciganos em Estremoz. Mas isso não é uma casa.

 

Isto tudo de que estivemos a falar acaba por tornar compreensível a arquitectura que hoje fazem?, aparece no que hoje fazem?

Manuel – A liberdade na arquitectura é sermos capazes de relatar com clareza as nossas memórias. A arquitectura é como a escrita, banalíssima. É como a poesia, faz-se com letras. Não quer dizer que a possibilidade de as montar com a ordem correcta seja simples. Qualquer pessoa faz uma casa; a capacidade de tornar poéticas as suas memórias, e a liberdade de o fazer, é talvez o que define a arquitectura. As memórias são a coisa mais central que se pode estruturar num projecto de arquitectura. Experiências arquitectónicas todos temos, e tantas. O nosso problema é a consciência delas.

 

 

Publicado originalmente no Público

 

 

 

 

Ana Vidigal

20.07.21

Menina Limpa, Menina Suja é o nome da exposição antológica de Ana Vidigal no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. A mostra conta a história de uma menina bem comportada que aprendeu com Mae West que quando era boa, era boa, quando era má, era muito melhor.

Ana Vidigal vai fazer 50 anos. Pinta há 30. As suas peças têm títulos como Secura de Boca Depois de Arfar, Sempre Gostei de uma Flechada de Cupido, For All the Girls I Loved Before. Os assuntos do coração podem ser, são quase sempre, os seus assuntos. Interessam-lhe os “estragos emocionais” quando fala de um acontecimento que é eminentemente político – por exemplo, a guerra colonial.

Faz parte do blogue Jugular. É feminista. Posta coisas que quer dizer, mais do que tudo, em imagens. Mas a política e a arte são campos que não gosta de misturar.

Gosta de artistas como Louise Bourgeois ou Sophie Calle. Gosta de poesia. 

Trabalha sobre sedimentos, despojos, memórias, cartas, fotografias, a vida. Pinta quem é como outros escrevem quem são. Pinta sobre os vestígios de uma vida obsessivamente guardada, reconfigurada. O seu trabalho artístico, de certa forma, é um abrir de caixas, caixas, caixas. Faz um “trabalho paralelo” mais experimental que durante muito tempo não expôs na sua galeria de sempre, a 111. Muito disso, está na exposição da Gulbenkian, a inaugurar a 22 de Julho.

A entrevista aconteceu em casa. Tudo acontece em casa. Um mundo, uma infância, uma memória palpável confluem num único espaço. A casa tem vista para o rio, o bairro faz parte da geografia da família há mais de 20 anos. O atelier e a casa estão construídos em círculo; mais do que comunicantes, parecem umbilicais. Como na obra de Ana Vidigal, aliás. Um alimenta-se do outro. Existe por causa do outro. Um é sintoma do outro.

É filha de uma família conservadora, de homens e mulheres licenciados há pelos menos duas gerações. Há na casa vestígios desse conforto e finesse. Nas louças antigas, numa cómoda de extremo bom gosto. O pai é arquitecto, a mãe é mãe. Ana é pintora e nunca lhe passou pela cabeça ser mãe. Isso seria outra vida, outra pessoa.

 

Foi educada para ser uma menina limpa que podia sujar-se de vez em quando?

Hum. Fui educada para ser uma menina limpinha. Tudo se transforma em 1974. A minha mãe, que foi educada para casar e ter filhos, pensou que o quadro anterior ao 25 de Abril se poderia manter; eu percebi rapidamente que a revolução me iria permitir, um dia que fosse autónoma, fazer aquilo que muito bem entendesse.

 

O que é ser limpinha? A sujidade está relacionada com uma certa prevaricação em relação ao modelo instituído?

A menina limpa corresponde ao modelo de uma família conservadora. Uma família de mulheres que estudaram, mas não trabalharam. Todas as minhas amigas de infância e adolescência casaram e tiveram filhos. Sou a única que exerço uma profissão que não me dá disponibilidade para mais nada. Sou uma menina de colégio de freiras. Andei até aos 15 anos, até 1976, nas Doroteias.

 

O 25 de Abril afectou a vida da família? Houve uma mudança radical, no sentido de a família achar que algumas das suas prerrogativas deixavam de existir, que era preciso reequacionar tudo?

Não. O meu pai não tinha qualquer actividade política, nem à esquerda nem à direita. Tinha sido chamado para fazer a tropa pela segunda vez. Isso foi a primeira desestabilização na família. Ele tinha 30 e poucos anos quando teve de ir para a Guiné e nós ficámos cá sozinhos com a nossa mãe. Quando foi o 25 de Abril, a mãe respirou de alívio: os meus irmãos já não seriam mobilizados. Era um sentimento muito presente nas famílias portuguesas: ou as famílias se desfaziam porque os homens fugiam para não ir à tropa; ou se desfaziam porque iam para a guerra e morriam.

 

Há uma peça que evoca esse período em que o seu pai esteve na guerra. É uma cama feita com as cartas que os seus pais trocaram. Chama-se Penélope.

Fiz essa peça para a exposição Um Oceano Inteiro para Nadar. Eu queria pegar no assunto da guerra colonial. Sempre me fez impressão que não trabalhássemos isso (nomeadamente nas artes plásticas). Os americanos trataram a guerra do Vietname ainda ela estava a decorrer. Duvido que haja alguém da minha geração que não tenha tido um pai, um tio, um irmão em contacto com a guerra colonial. Há uma peça que sempre me impressionou muito e que foi exposta em 1973 na Sociedade Nacional de Belas Artes (nem sei como é que aquilo passou na censura); uma peça da Clara Menéres, Jaz Morto e Arrefece (que é umverso do poema do Pessoa O Menino de Sua Mãe). É um soldado morto, hiper-realista, uma crítica fortíssima à guerra colonial. Mas não me interessou tomar posições políticas. Eu tinha seis anos, sabia lá se era contra ou a favor! Posso ter a minha posição agora. O que eu queria da peça é que ela me relacionasse com essa altura.

 

E se pensa nessa altura, pensa em quê?

A força da guerra tem a seguinte expressão: a ausência do meu pai, a presença constante em cartas. Não falei com os meus pais sobre isto, nem vou falar; não sei se combinaram quantas vezes se escreveriam, mas sei do nervoso da minha mãe quando estava para chegar o aerograma (mais frequente do que as cartas).

 

Temeu por ele?

Mesmo miúda, percebi que podia não voltar. Tive essa noção de que se morria na guerra. Ninguém me escondeu isso. Os nossos desenhos estavam cheios de bandeiras portuguesas, carros de combate. Os meus irmãos e eu sempre desenhámos muito, sempre tivemos acesso a lápis, canetas, papel. Fazíamos desenhos para mandar para o nosso pai.

 

É curioso que desenhassem bandeiras e não a casa, a família. Não lhe devolviam nos desenhos o que era o vosso quotidiano.

Desenhávamos coisas directamente relacionadas com a guerra. Mas não sei se a guerra era para nós um fantasma. Se calhar gostávamos imenso que o nosso pai participasse naquela ideia heróica que tínhamos da guerra. Os pais iam para a guerra defender a Pátria – era isso que nos era incutido. O que abordei, quando falei nas minhas peças da guerra colonial, foram os estragos emocionais.

 

Voltando à peça: leu as cartas? Porque é que decidiu tratar esse tema a partir daquelas cartas?

Nunca li as cartas. Gosto muito desse tipo de materiais. As cartas fascinam-me. Porque têm uma parte exterior e uma parte interior.

 

Nesse sentido, são caixas. Elemento nuclear do seu trabalho.

Sim, as cartas são caixas. Nunca li aquelas cartas por uma questão de respeito e pudor. A minha mãe deu-me as cartas, mas sabia que nunca iria usá-las de modo a expor a intimidade dela com o meu pai. Já exponho, de certa maneira, quando mostro que aquele casal manteve aquela correspondência tão assídua. Interessa-me saber que dentro daqueles envelopes está uma vida. Mas é uma coisa que não se pode violar.

 

Os envelopes, na colcha que cobre a cama, estão dentro de uma segunda caixa. Como se formassem uma colcha de patchwork.

Estão dentro de uma segunda caixa, ou seja, de sacos plásticos. Os próprios sacos plásticos estão agrafados uns aos outros, e a própria carta tem um agrafo no meio. Mesmo que tirem os agrafos de fora, danificam a carta para a tirar daquele envelope.

 

São sucessivas formas de obstruir o acesso àquele conteúdo.

Sim. Uma das coisas que mais me incomodaram foi o roubo de uma das cartas, numa exposição em Coimbra. Se algum dia alguém danificar uma peça minha, não me incomodo com essa possibilidade – são coisas que acontecem. Retoca-se, restaura-se, resolve-se. Mas aquele roubo chocou-me. Não foi por danificarem a obra – tenho mais cartas. Foi por violarem e desrespeitarem a intimidade dos meus pais. Aquilo não tem interesse para ninguém! Porquê?  

   

Essa cama é o lugar da ausência do pai, é o lugar do amor, do sexo. A peça representa também a filha que se mete na cama dos pais?

Não sinto que tenha sido eu a meter-se na cama dos pais – tanto quanto tenho consciência disso. Apesar de o ambiente ser conservador, os meus pais eram um casal que tinham manifestações de afecto. Tenho amigos que nunca viram os pais fazer uma festa um ao outro. Lembro-me dos meus pais de mão dada, a dançar. E sempre tivemos acesso ao quarto dos pais; logicamente batíamos à porta antes de entrar, mas tínhamos acesso. Uma das coisas que vi foi o quarto vazio. A minha mãe estava lá sozinha. E nunca nos deixou dormir lá. O quarto vazio foi a expressão mais notória da ausência do meu pai durante aqueles dois anos e meio. Porque o resto da minha vida foi normal. A minha mãe ia pôr-nos à escola, levava-nos à ginástica, íamos para casa dos avós ao fim de semana, íamos para a praia das Maçãs nas férias.

 

O que materializa é uma cama, que tem determinada simbologia.

Não é uma criança de sete anos que faz esta peça. Seria diferente se fosse uma toalha de mesa. A conotação da cama é fortíssima. Fala-se dos homens que foram para a guerra, mas fala-se pouco das mulheres que ficaram à espera dos seus maridos, que podiam voltar ou não.

 

E por isso a peça se chama Penélope, e não Ulisses?

Exactamente. Há uma ausência de vida de casal em todas essas mulheres. Hoje, mulher adulta, penso na violência de ser separada dois anos e meio da pessoa que amo… Não havia skype, nem a facilidade das viagens. A minha mãe nunca pôde ir, porque o meu pai estava no mato. O meu pai, como oficial, teve direito a duas viagens à – como se dizia – metrópole. Levou máquinas fotográficas e de filmar para a guerra. Mandava os filmes para a minha mãe e a minha mãe mandava-os revelar em Madrid. Acho que ainda me lembro da morada do laboratório… [Calle] Irún 15, Madrid 8. A Kodak mandava-nos os filmes revelados nuns pacotinhos amarelos; só foram vistos quando o meu pai voltou. Se ele não tivesse voltado, o que é que faríamos àquilo?

 

Usou um dos filmes numa peça.

Quando fiz o Void [para o Project Room da Arte Lisboa 2007], também sobre a guerra colonial, passei um filme em super 8 que o meu pai fez na Guiné. O filme passava numa recriação do meu quarto de infância que estava nessa peça. No quarto estavam também fotografias onde aparece o meu pai. Mas às fotografias nós tínhamos acesso fácil durante esse período. É daí que vêm as bandeiras, os carros de combate, os aquartelamentos.

 

Void é outra das peças da exposição. Dela fazem parte babetes que eram do seu irmão. Que relação têm com a guerra colonial?

No Void, a janela do meu quarto dá para uma imagem do quarto do meu pai, em Nova Lamego. Ainda tenho comigo as coisas que estavam nesse quarto: a caixa das cartas da minha mãe, a ventoinha, fotografias. Lembrei-me que o meu irmão Nuno, nessa altura, ainda comia de babete; e a minha mãe lia-nos as cartas que o pai nos enviava enquanto jantávamos. O que é que as cartas diziam? Nada assustador. Coisas como: o pai ficou muito contente porque a Ana teve bom na escola. Pus as imagens serigrafadas do meu pai nos babetes. Porque o babete está junto ao peito. Nunca falei sobre isto com os meus irmãos. Nunca nos perguntámos: o que é que tu sentiste? O meu pai foi ver a peça, leu tudo o que estava nos babetes, e não fez nenhum comentário. Alguns dos babetes têm cartas originais da minha avó para o meu pai, e de primos. Essas li.

 

De que coisas falam?

As coisas mais banais. Os meus avós moravam numa quinta em Alverca; quando foram as cheias de 1967, a cascata ficou destruída. Numa das cartas, a minha avó descreve a reconstrução da cascata. Seria importante saber que a cascata tinha sido reconstruída? A minha avó falava de um conjunto de conchas que tinha trazido do Lido – nunca mais me esqueço disto porque eu não sabia onde era o Lido e fui ver. O Lido de Veneza. Acho que não conseguimos imaginar o que é ter um filho na guerra. Eu imaginei que essas cartas diriam coisas como: que saudades tenho tuas.

 

Imaginou que seriam uma expressão do sentimento e não um relato do dia-a-dia.

Isso. O que me surpreendeu foi o detalhe; como se fosse uma conversa com uma pessoa que está aqui ao lado; e impressionou-me não haver uma parte mais sentimental.

 

Isto que diz é uma porta de entrada para uma coisa central na sua obra: o facto de ser uma respingadora. Apanha tudo, colecta, recicla, incorpora, recontextualiza. São despojos da sua vida. E sobre uma grande parte deles, pinta.

Ser respingadora, guardar, procurar, seduz-me. Não sei se a minha avó paterna procurava. Mas guardava tudo. A vantagem das pessoas que têm casas grandes é que podem dar-se ao luxo de guardar a vida. Na casa de Alverca havia o sótão, que era habitável, e havia as arrecadações. Muito do material que tenho hoje são coisas que a minha avó tinha religiosamente guardadas. Revistas, vestidos, brinquedos. A própria infância e adolescência dela estava guardada em caixas.

 

A partir delas, é possível reconstituir a história da família e a história individual dos seus elementos?

Sem dúvida. Isso acontece mais na família do meu pai. Mas do lado da minha mãe, o meu avô gostava de fotografar. A minha mãe tem hoje 75 anos e tem álbuns desde que nasceu até se casar – o que não era muito comum naquela geração. Tenho fotografias da minha mãe na Exposição do Mundo Português.

 

As primeiras caixas da sua vida, antes das caixas que aparecem na sua obra, são essas caixas da infância, da relação com a avó.

Ah, sim. A minha avó deixava-me abrir tudo. O meu bisavô esteve na Primeira Guerra Mundial e nas Campanhas de Moçambique; havia uma unha de leão dessas campanhas. Estava guardada numa caixa que dizia: “Uma unha de leão que o meu pai trouxe das campanhas de Moçambique”. Eu gostava imenso dessa unha! Já não sei o que é que lhe fiz. Mas tenho aqui uma coisa desse género. [levanta-se e mostra uma peça antiga] “Cartilha. Corta massas. Pertenceu à trisavó da Aninhas – que sou eu – Dona Maria da Conceição Vidigal”. Encontrei isto numa caixa. A minha avó, quando nasci, devia estar tão entusiasmada por ter uma neta que me deu o corta massas. Reconheço perfeitamente a letra dela.

 

Porque é que se concentra nestas coisas?

Acho que tem a ver com o meu lado de miúda curiosa. “Deixa cá ver o que é que está dentro da caixa…” Nunca me foi proibido mexer nas caixas.

 

Ao espreitar para dentro da caixa, sacia-se a curiosidade. Mas depois impõe-se saber a que categoria aquilo pertence. Nas coisas que têm importância, nas que não têm importância. E enquanto artista, importa saber como é que as incorpora no seu discurso.

Sempre gostei muito do aspecto táctil das coisas, do papel amarelecido. E gostei sempre das formas, das imagens, do traço. Através destas coisas chego a quem sou.

 

São traços da sua genealogia sentimental?

Sim. Sempre tive uma grande identificação com essa minha avó.  

 

Era por se sentir a preferida dela?

Era capaz. Na família do meu pai não havia raparigas; durante muito tempo fui a única da minha geração. Havia uma semelhança física – toda a gente dizia que éramos muito parecidas. Se fosse viva teria 110 anos e foi uma mulher que antes de casar deu aulas (tinha tirado o magistério primário). Casou tarde. O meu pai nasceu quando ela tinha 32 ou 33 anos. Dizia-me sempre: “Casei aos 30 anos. E se soubesse o que sei hoje nem teria casado”. O meu avô era médico. Quando reparou na minha avó, estava sempre a dizer que os meninos tinham que ser vacinados…

 

O que é que a sua avó dizia das coisas que fazia, enquanto artista?

Gostava imenso. Ficava um bocadinho furiosa por lhe ir às caixas e colar as coisas que ali estavam. Nunca me hei-de esquecer que a minha avó me comprou um trabalho na minha primeira exposição. Não tinha necessidade: eu tinha-lho dado. Está agora na casa dos meus pais.

 

Comprou para a ajudar?

Ela ajudava-me sem ser dessa maneira. Quis dar-me a entender que dava valor ao meu trabalho.

 

Curioso entender o que ali estava, nas suas peças. Não era a expressão artística a que ela estava habituada.

De maneira nenhuma. A minha avó pintava. (Esqueci-me de dizer isto – o meu ponto em comum mais importante com a minha avó. Como é que me esqueci?) A grande ligação do meu pai com ela vem daí; vai para arquitectura porque tinha jeito para desenho e por influência da minha avó. A minha avó queria ir para Belas Artes, mas o meu bisavó, militar, pediu que não fosse. Continuou a pintar, depois de casada. A minha afinidade com ela começava aí: gostarmos de desenhar, os blocos, as canetas.

 

Os cadernos, que parecem pequenas caixas onde ficam registados pedaços do dia, do ano, estão também presentes na exposição. Não são cadernos limpos, ordenados. Parecem diários onde se compacta informação, matéria que se trabalha, objectos.

A minha avó gostava deles. Mesmo que não se parecessem com aquilo a que estava habituada. Sempre senti na minha família que as pessoas gostam que o outro seja feliz a fazer aquilo que gosta. Isso dá uma força…

 

Quando é que disse que queria ser artista?

Desde sempre! E nunca ninguém me disse que não podia ser pintora. Pelos 15 anos, tenho a leve sensação de a minha mãe ter querido que tirasse o curso de arquitectura. Mas eu, linhas direitas… [riso] Não tem nada, nada a ver com a minha cabeça.

 

Falemos na base sobre a qual pinta. Uma espécie de palimpsesto onde cabem cartas, papéis, objectos, memórias. Porque não uma tela em branco?

Nunca pensei nisso. Sempre quis fazer assim. Na Escola de Belas Artes aceitavam que eu trabalhasse com aqueles materiais. Uma vez, alguém me disse: “Se não tiveres papéis para colar, não consegues fazer um trabalho?”. Que disparate – pensei. E fiz uma série em que não aparecia uma única colagem. Não me trouxe nada de novo.

 

Sentiu-se nua?

Não.

 

Sentiu-se vazia?

Sim. Quando utilizo colagens, há sempre qualquer coisa que me dá uma certa excitação. Se ando há 30 anos a fazer colagens? Não sei se isto passa para as pessoas, nem estou muito preocupada, mas quando faço colagens há qualquer coisa que me provoca entusiasmo.

 

É a excitação infantil de abrir a caixa?

É. E é uma coisa que se vai perdendo, mas que se reconhece quando surge. Não é que percamos a espontaneidade; mas com o tempo tornamo-nos mais conscientes. E ficamos mais cobardes – refiro-me à parte técnica. O bom é quando não paro. “Se estragar um mês de trabalho, estraguei”. Mas com a minha idade, paramos. Nem que seja com uma desculpa estúpida (“Agora estou muito cansada, vou descansar”). São mecanismos de defesa para não arriscar tudo. Como trabalho completamente sozinha, é um diálogo interno. Quando se é novo, às vezes é bom parar. Quando se tem a minha idade, o bom é quando não se pára. A menina limpa trabalha de uma maneira e a menina suja trabalha de outra.

 

Ou seja?

Tenho essa dualidade. Paro, não paro. Estrago, não estrago. Se possível, as minhas exposições estão marcadas com um ano e meio de antecedência. Para poder dar-me ao luxo de estragar o trabalho de um mês, começar tudo de novo. Cada vez demoro mais tempo a pintar. Pensei que seria ao contrário. Não sei porque é assim. Eu era muito rápida, muito rápida. Uma das razões por que trabalhava com acrílico era não ter paciência para que o óleo secasse. E agora posso estar quatro, cinco meses à volta de um trabalho. Não é por preguiça nem por falta de tempo.

 

É por não saber como resolvê-los?

Não. É poder fazer sem pressa. E ir errando. É a única maneira de andar para a frente. Com 30 anos de trabalho, tenho fórmulas certas. Não as quero. Não me levam a lado nenhum. Detesto repetir-me.

 

O seu trabalho tem um lado doméstico fortíssimo; uma das bases é a sua casa do passado. E no presente, o atelier é contíguo à sala de estar. Como se a casa fosse um mundo.

E é. O trabalho de atelier é extraordinariamente solitário. Eu faço tudo, raramente recorro à ajuda de terceiros. Não tenho tido necessidade de ter assistentes. Tenho todo o tempo do mundo para mim, o trabalho flui, não tenho pressas. Posso passar uma semana metida em casa sem ver ninguém. 

 

O sótão de Alverca é a infância, o lugar mítico onde volta recorrentemente. Porquê a necessidade de tudo se passar em casa?

Isto tudo é construído e reconstruído por mim. Quando vou lá atrás, à memória, trago-a para aqui, para o presente, reconstruo-a. Isto é um casulo. De onde eu saio, mas onde deixo entrar pouca gente. Não deixo que ninguém me observe quando estou a trabalhar. Mesmo as pessoas que me são mais próximas. Podem estar, e eu lavo os pincéis… Se estivesse alguém, não poderia hesitar como hesito. Distraio-me com o movimento, a luz, as pombas a pousar na janela. Por vezes fecho as portadas e acendo a luz. Fica tudo mais…

 

Uterino? Revê-se nesta palavra?

Pode dizer isso. Mas é mais um casulo. Um bicho, uma lagarta que ali está a trabalhar, fiozinho a fiozinho. Tenho a noção que o casulo só é habitável se eu sair. Tenho que ver, ver, ver, ter contacto, saber o que estão a fazer as outras pessoas; mas depois digerir essa informação, recolher, trabalhar sozinha. Sou eu e o trabalho, o trabalho e eu.

 

E o trabalho é sobre si e a sua vida. Como Flaubert, “o trabalho sou eu?” É uma expressão e um sintoma do que aí se passa.

É. Esta casa é circular. Passo do atelier para a casa em redondo. Vou de um lado ao outro com grande facilidade.

 

A casa e a família aparecem também na série Jogo Americano. Se vemos aqueles individuais, vemos uma família à mesa? A família é uma partícula elementar do meu discurso?

Não.

 

O que vê, então, naqueles individuais? Delimitação de território no espaço da família?

Não. Vejo conjugalidade. O que aparece é uma dupla. Nas minhas peças, a modalidade é essa. Não passa disso, não traz outras pessoas, não arrasta a família. A conjugalidade pode ser comigo própria. Ou seja, eu ao espelho.

 

Estava a ocorrer-me o desejo da sua mãe, de a ver casada de vestido branco… Nunca quis uma situação de conjugalidade?

Já tive situações de conjugalidade. O que nunca quis, e desde miúda, foi ter filhos. A minha avó perguntava: “Então, quantos netinhos – que seriam bisnetos – é que me vai dar esta menina?”. Eu respondia sempre “Ne-nhum!”. Por uma razão: sempre achei, e se calhar mal, que a minha mãe não trabalhava porque tomava conta dos filhos. Que a minha mãe se tinha sacrificado por nós. E muito bem; fomos muito apoiados, tivemos infâncias felicíssimas, douradas, sem dramas. A minha mãe ia buscar-nos ao colégio, a seguir ia ao ginásio clube português… Era miúda e pensava: “Olha eu a ficar este tempo todo à espera… Não quero isto.”

 

O que isso revela é que sempre foi claro para si que se queria afirmar pelo trabalho, e não pela família.

Sem dúvida. Não estava disposta a sacrificar nada pelo meu trabalho. Os meus exemplos eram os de pintores e pintoras, de quem eu não tinha uma história de família. Para mim, eram aquelas pessoas, não eram aquelas pessoas em família. A maior parte deles não tinha filhos. A dedicação era exclusiva.

 

Quem eram essas figuras que a inspiravam?

Com dez, 12 anos, eram referências clássicas. Como a Vieira da Silva, que não teve filhos.

 

Não deixa de ser curioso que tenha fotografias das suas sobrinhas espalhadas pela casa, e que o universo delas, que é forçosamente diferente do seu, alimente também o seu trabalho.

Incorporo também as referências que elas me trazem, do cinema e do entretenimento. Sou como uma esponja. Sugo tudo. Cheguei às Powerpuff Girls por elas. São umas bonecas muito feministas! [riso]

 

Em muitas peças, faz inserção de texto. Pode misturar uma frase de Baudelaire ou de Clarice Lispector com um excerto de texto de uma fotonovela, do Simplesmente Maria. Nunca consegue desfazer-se da palavra, da narrativa?

A frase, a palavra encanta-me. Penso muitas vezes: “Como gostaria de ter escrito isto”, “Como esta pessoa disse isto tão bem”. Uma palavra pode ser muito concreta. E há um jogo, uma subtileza que a palavra proporciona. Pode ser uma contradição entre os termos: o texto que insiro e o que lá está pintado. Sendo artista plástica e tendo um discurso não figurativo, o espectador pode interpretar aquilo como entender. Não resisto a recortar essas palavras e a jogar com elas, com as formas, ao que é possível fazer formalmente com elas.

 

Joga muito com a ambiguidade e com a ironia. E algumas inserções de texto são panfletárias. A obra de arte é também uma arma, para veicular aquilo que pensa?

Não, não acho isso. Quando uso essas coisas panfletárias é para me divertir a mim própria. Até me assusto quando diz que as coisas podem ser panfletárias!

 

Estou a trazer este assunto e a pensar num trabalho que esteve em Serralves, com frases feministas. Como a da Mae West: “Quando sou boa, sou boa, quando sou má, sou muito melhor”.

Essas peças têm um conteúdo político. Mas não quero usar a minha forma de expressão como arma política. Aquelas frases são políticas, mas são ao mesmo tempo muitíssimo irónicas. É mais por esse lado que me interessam. Sei que quando me pedem apoio político para alguma coisa é por ter o trabalho que tenho. Mas são campos separados. A parte feminista é política, claro, mas é basicamente porque sou mulher. É como mulher, vinda de um determinado meio, que o faço; como se gozasse comigo própria.

 

Goza com aquilo que era suposto que tivesse sido o seu destino social? Mulher bem casada e com filhos?

Sim, gozo com esse destino que era suposto que cumprisse.

 

É isso que faz quando cria uma peça como O Véu da Noiva? Uma peça co-assinada pela Ruth Rosengarten.

O Véu da Noiva é feito com o vestido de casamento da minha mãe. Não o vesti porque não cabia nele. Não teria um especial significado vesti-lo. Mas a Ruth e eu vestimos o namorado dela e a minha sobrinha com o vestido de noiva. Para os fotografar. Aquilo era um confronto entre a minha mãe que se tinha casado, eu que nunca casei, a Ruth que se casou e divorciou; e um confronto entre religião católica e a judia (da Ruth). Como eu não tinha computador na altura, fizemos tudo à moda antiga, à moda epistolar. Eu e a Ruth mandávamos as coisas pelo correio. Fizemos aquilo uma para a outra; expusemos por acaso.

 

Aspecto que também aparece em muitas obras: estar ali um interlocutor. Alguém a quem se dirige, muitas vezes no título (exemplo: Pensas que o Sexo Terá Importância?). Passa a ideia de que aquilo é feito para alguém.

A Ruth é talvez o melhor interlocutor que tive até hoje. Está Inglaterra, eu estou aqui, podemos estar meses sem falar, mas se lhe digo uma coisa, sei que ela entende o que estou a dizer. Foi a pessoa que fez uma análise do meu trabalho com a qual me identifiquei mais. Naquele momento, aquilo era um texto exacto: estava a ler e a ver-me ao espelho.

 

Esta exposição marca 30 anos de trabalho e inclui peças de todas as fases. Foi surpreendente olhar para si e para a obra numa perspectiva antológica?

Sou sempre eu que estou ali. E só sou o que sou hoje porque fui sendo, pelos anos fora, tudo o que ali está. Fui deixando aquelas marcas. Fui concretizando daquela maneira.

 

Quando vemos os peluches embrulhados em celofane, a ideia que passa é a de asfixia, opressão. A obra tem por título Des(animados). Se foi sendo aquelas coisas todas, quer dizer que aquela peça coincide com um momento biográfico em que se sentia assim?

Acho sempre que nunca chegamos àquele extremo. Que nunca podemos deixar-nos chegar àquele extremo. Ao fim e ao cabo, aqueles objectos estão mortos. Mas sim, coincide com um período menos transparente na minha vida – apesar de a fita gomada ser transparente.

 

Apesar de ser transparente, a fita está retesada. Tensa.

Mais do que asfixiados, eles estão moldados, oprimidos.

 

Há outras peças onde os acontecimentos biográficos estão de forma explícita. Como a série das casinhas, que fez quando a família vendeu a casa de Alverca, a casa mítica da sua infância.  

Descobri primeiro aquelas casas, feitas com caixas de sapatos, numa montra. Formalmente era muito bonito. São as casinhas que na Madeira se usam nos presépios. Tinham sido feitas pelo sapateiro, todo o lado plástico me interessava. Comprei-as sem pensar no que iria fazer com elas. Estiveram anos guardadas no armazém, sem que me interessassem. Até ao dia em que me interessou trabalhar o tema “casa”. Tinha a ver com a venda da casa de Alverca. Uma casa a que era impossível voltar. Soube logo o que queria fazer com as casinhas. Queria parti-las ao meio, ficar com uma parte virada para o público, outra com as entranhas à mostra.

 

Esta conversa veio a propósito de olhar para as diferentes fases e reconhecer-se sempre nelas. É essa continuidade, apesar da diversidade de fases e suportes, que está na exposição da Gulbenkian?

Esta exposição tem mais material experimental. A Isabel Carlos, [a curadora], queria mostrar esse lado mais experimental, que foi menos visto em Lisboa. Na pintura, identifico mais claramente o que são os anos 80, os anos 90, os anos 2000. O trabalho experimental surge só nos anos 90 e não está tão compartimentado, tão identificado com uma corrente, com uma época. Mas em nenhum momento tive a sensação: “Como é que eu fiz isto?”

 

O que é o “trabalho paralelo”. São as caixas onde guarda coisas, para retrabalhar mais à frente? É onde estão as coisas em banho-maria?

Não é só isso. Chamava-lhe paralelo, também, porque esse tipo de trabalho aparecia em exposições que não as da galeria 111, que é uma galeria mais conservadora. Expu-lo em sítios mais pequenos, fora de Lisboa. Não quero mostrar o meu trabalho apenas em Lisboa e no Porto. Se a câmara de não sei onde me convida para fazer uma exposição, e se tiver disponibilidade, faço. Sei de pessoas que não gostam. Eu acho que o trabalho é para ser visto, não é para ficar entre quatro paredes. Não me passava pela cabeça mostrar esse trabalho na 111, e foi o Manuel [de Brito], em 2000, que me propôs mostrá-lo na galeria. Portanto, esse trabalho era o trabalho que eu ia fazendo paralelamente ao meu trabalho de pintura. São processos de trabalho diferentes. Às vezes estava a pintar o dia todo, e depois ia para o estirador e fazia esse trabalho mais experimental. E ia arquivando. “Tenho uma série de trabalhos que nunca mostrei a ninguém. Querem expor?”. Para espanto meu, as pessoas não diziam: “Não, queremos a pintura”.

 

Uma peça que ilustra isso é Beija-me, Idiota, uma glosa ao título de Billy Wilder, Kiss me, Stupid. Trata-se da bruxa má da Branca de Neve, que expôs nas Caldas da Rainha. Qual foi a ideia?

Em relação a esse trabalho, pensei: “A única maneira de o mostrar é mandar para uma bienal; se quiserem expor, expõem.” Foi assim que mostrei as coisas. Foi recusada muitas vezes, fui aceite outras vezes. É bom para perceber que nada está adquirido. Não temos estatuto nenhum, não podemos acomodar-nos. Podemos fazer uma coisa muito boa hoje e estampar-nos amanhã. Temos que ter arcaboiço para, se cairmos ao chão, nos levantarmos outra vez.

 

Apesar de a exposição na Gulbenkian saber a consagração.

Mas sabe que vou fazer uma exposição antológica numa instituição que não tem um único trabalho meu. [riso] Tem a sua graça. A pior coisa é achar que já chegámos lá. Mesmo que realmente vá fazer uma exposição na Gulbenkian. Estagnar, achar que se está lá é, como se costuma dizer, a morte do artista.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Abril de 2011

 

Eduardo Souto de Moura

20.07.21

Eduardo Souto de Moura ganhou (quase) todos os prémios que havia para ganhar. O mais prestigiado de todos é uma espécie de Nobel e chama-se Pritzker. Foi em 2011. É um arquitecto muito culto e engraçado que pensa a desenhar. Tem atelier num bairro popular no Porto. Nesta entrevista fala-se de Siza, de Távora, do SAAL, da Michelle Obama que é bem simpática, do tempo em que era tudo materialismo dialéctico e conversa de café, do “Livro do Desassossego” que é a sua bíblia. Nasceu em 1952.

 

O que é que estava a fazer antes de eu chegar?

Estava a dar instruções para um concurso em que estou a trabalhar. É um teatro em Clermont Ferrand. Estou um bocado cansado de fazer concursos. Mas nunca fiz um teatro. Somos quatro [finalistas]. É um trabalho de equipa que envolve cenógrafos, acústicos, arquitectos. Não é fácil conciliar isto tudo. Um teatro é uma máquina, não é propriamente um exercício de composição.

 

Estranho a enfâse que deu à palavra máquina, e que contrasta com a ideia de narrativa, vida inventada que se passa no palco do teatro. A sua evocação é concreta.

É. Não tem a ver com os teatros, tem a ver com a evolução da arquitectura. Há um destino da arquitectura, por motivos sociológicos, políticos, económicos, comum a outras disciplinas, em que tudo, cada vez mais, está especializado. Dou um exemplo. Estive nos Estados Unidos a semana passada. No meio da reunião: “É legal fazer aqui uma rampa de garagem?”. Passados dez minutos vem uma advogada com uma pasta, e explica. Depois disse: “Gostava que o sentido da rua fosse aquele...”. Passada meia hora chega um especialista em trânsito.

 

Isso que conta não tem um sentido figurado?

É real. O mundo está a especializar-se. Obrigam-nos a ter uma capacidade de resposta muito directa e técnica. É evidente que tem de ser bonito, aprazível, barato (ou quase na miséria, porque hoje não há dinheiro para nada). Há um inventário de questões técnicas (onde está a contradição entre o orçamento e o que se pretende) a que temos de dar resposta.

 

Como é que ficámos reféns dessa vida segmentada? Essa sua queixa/constatação ouve-se em todo o lado.

Não sei. Sempre gostei de trabalhos colectivos. Trabalhei 13 anos no metro do Porto. Quando entrei fui motivo de chacota porque os engenheiros alemães e franceses perguntavam: “Um arquitecto para quê?” Numa primeira fase, trabalhei para conseguir ter um estatuto dentro da equipa. Estatuto: era provar que eu era conveniente.

 

Estamos a falar de um período posterior à sua licenciatura.

Sim. Confirmou-se aquela frase do Siza: “O arquitecto é um técnico que não sabe nada de nada, mas sabe um bocado de tudo”. Esse tipo de trabalho [em equipa] deu-me amparo. Não existia o conceito de “arquitectura artística” – acho que a arquitectura não é arte – em que as musas chegam, inspiram, e depois de tanta transpiração, consegue-se chegar lá. Não é nada disso. É à custa de trabalho e, hoje em dia, de muita informação.

 

Portanto em equipa sente-se amparado.

Sim, e trabalhar em equipa retira-me dúvidas metafísicas. O que é que hei-de fazer? Vou pintar de cor de rosa? Vou fazer janelas grandes? As dúvidas que há na chamada angústia do papel branco. Na equipa, acelera-se o processo. Dão informação. E por fim, preciso de entregar na próxima quarta-feira.

 

Contra a metafísica, impõe-se a realidade?

Isso mesmo.

 

Em suma, temos uma especialização crescente, uma necessidade de condensar muita informação e essa tal de musa (que algures deve aparecer para dar uma forma).

Isto é como na gastronomia: dá-se a receita e faz-se. Há uns de quem se diz: “Está muito bom”. E outros de quem se diz: “Está uma porcaria, deita fora”. É preciso sempre um clique. Qualquer coisa que não está codificada. Senão, consegue-se fazer uma construção, não se consegue fazer arquitectura. O que é a arquitectura? É a construção com uma mais valia.

 

É pomposo e foleiro dizer que essa mais valia se chama “alma”? Dizemos de um espaço que ele tem alma. Mas estou a vê-lo a banir a palavra...

Não, eu tenho alma! Fui educado da religião cristã e percebo o que quer dizer. É uma palavra bonita, por acaso. Nunca tinha pensado nisso, mas sim, é mais do que a parte física da casa.

 

É uma certa atmosfera que ela exala?

Gosto mais de atmosfera. É menos metafísico. [riso]

 

O que é que alimenta a sua musa? Artes plásticas, literatura?

Primeiro, há várias arquitecturas. A minha actividade principal é a arquitectura e procuro actualizar-se ou confirmar dúvidas minhas. Estou sempre a oscilar. Não quero usar a palavra “desassossego”, já não se pode com a palavra “desassossego”! Gosto de ler e viajar para ver outras arquitecturas. Há sempre uma polarização de dois factores, uns mais objectivos, outros mais afectivos. Os racionalistas e os expressivos. Os platónicos e os aristotélicos. Os atomistas e os epicuristas. Há sempre dois conjuntos que se reflectem numa concepção do universo – o que também acontece na arquitectura.

Fundamentalmente, para além da arquitectura, gosto de literatura.

 

Porquê?

É mais fácil. Pego num livro e pronto. Há um conjunto de escritores e temas que leio ou releio. Vou andando por ali.

É evidente que a pintura me interessa, que a escultura me interessa. Do cinema, gosto, mas vou ser directo: chego a casa tão cansado que não me apetece ir ao cinema. Resta o vídeo, e mais a rever. De vez em quando falam-me de um filme e vou. Há uns meses fui ver “A Grande Beleza”, do [Paolo] Sorrentino.

E gosto de fotografia.

 

Quais são os seus autores preferidos?

Do Pessoa, toda a gente gosta. Não estou nada de acordo com o Cesariny que dizia que tanto Pessoa já enjoa. Acho que era dor de corno. Tentaram dizer que o poeta de Amarante, o Teixeira de Pascoaes, era melhor do que o Pessoa. Aquelas coisas que se dizem. Também dizem que não sei quem é melhor do que o Siza. Que a mulher do Alvar Aalto é que fazia os projectos. É de rir. O marketing precisa de uns escândalos.

 

Leu o Pascoaes?

Li a “Arte de Ser Português”: não gostei nada. Gostei imenso do prefácio do Miguel Esteves Cardoso; é melhor do que o livro. Pessoa é um dado adquirido. Nos hotéis há bíblias. Eu vou para fora e nos hotéis leio “O Livro do Desassossego”. Tenho várias edições.

 

Aqui fica uma ideia para o próximo hotel que desenhar: que em cada quarto haja “O Livro do Desassossego”, como se fosse uma bíblia.

[riso] E porque não? Está tudo traduzido. Chego às livrarias dos sítios mais estranhos e está o Pessoa. O Herberto Helder foi uma descoberta que fiz quando era novo. Gosto e não percebo bem. Mas acho que percebo alguma coisa. Leio outra vez e acho que é por ali. Não sei porque é por ali...

 

Gostava que falasse mais da incompreensão. Não se compreende completamente, mas não se abandona. Oferece resistência, mas fica a perturbar, a germinar... Claro que isto não é válido só para o Herberto Helder.

Tenho isso no [Álvaro] Lapa, como pintor. Dizem-me: “Porque é que gostas? É um bocado infantil.” Respondi: “É essa inocência que não entendo bem que me faz gostar. Essa inocência que está num homem tão maduro e tão gasto.” Essa suspeição de que [a compreensão] é por ali, mas não tenho caminho, dá-me um incentivo.

Gosto de reler. Às vezes estou em Lisboa, não tenho nada para ler. Vou comprar um livro que já li dez vezes. “O Náufrago” do Thomas Bernhard.

 

Como é que se interessou pelo Thomas Bernhard?

Ganhei um concurso em Salzburgo. O projecto foi falsificado. Fui para tribunal e arranjaram-me uma tradutora portuguesa. Ela era namorada ou amiga do secretário do Thomas Bernhard. Um dia disse-lhe: “Isto é tudo uma vigarice. Pensei que a Áustria fosse um país... Wittgenstein, e afinal são piores do que nós!”.

 

Fizeram outro projecto a partir da sua obra?

Isso. Ela respondeu: “Tem de ler o Thomas Bernhard. Vai perceber o que é a Áustria.”. Sou um bocado obstinado ou obsessivo. Comprei logo dez livros.

Já falei do Herberto, do Thomas Bernhard, do Pessoa. Acerca do Pessoa, não há nada a dizer. Ainda agora me pediram para fazer uma instalação no Martinho da Arcada. Vou fazer um candeeiro e mudar os quartos de banho, que são horríveis. Não tenho que instalar mais nada. Instalar o quê, no Pessoa? É auto-suficiente. No Martinho da Arcada está ele próprio, a mesa, a fotografia. Eu pensei ser fotógrafo.

 

Isso já responde a uma pergunta que eu trazia: se não fosse arquitecto, teria sido o quê?

Se calhar, fotógrafo. Gostava de escrever, mas é muito difícil. Nunca pensei ir para arquitectura. Era miúdo. Estudava e dava explicações. Gostava de Filosofia, Física, Desenho. Os pais diziam: “Vais para isto...”. Aquelas coisas. Foi o meu irmão, que é um grande artista, pinta e tal (os meus pais, muito conservadores, nunca o deixaram ir para as Belas Artes), que me disse: “Porque é que não vais para arquitectura?”. Alínea H. Era um aluno médio e fiquei um bom aluno: exactamente porque acertei nas disciplinas.

Achei as Belas Artes, no 25 de Abril, a coisa mais divertida do mundo! Estava nas minhas sete quintas.

 

Como era?

Professores maravilhosos. Ambiente maravilhoso. Depois fechou tudo. Havia só, praticamente, uns comícios. Divertidos. Tive a sorte de trabalhar no SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local]. Não sabíamos fazer projectos. Era só materialismo dialéctico e conversa de café. Quando chegou a altura de desenhar casas, os meus colegas e eu tivemos a consciência de que não sabíamos fazer nada.

 

Estamos a falar de que ano?

  1. “Se vamos buscar um arquitecto, vamos buscar o melhor, o Siza.” Desde aí, tenho trabalhado com ele.

 

Que frase boa!, resume um tempo: “Era só materialismo dialéctico e conversa de café.”

No outro dia estava na feira de Paraty (FLIP), perguntaram-me porque é que era um arquitecto pragmático, que falava pouco do significado da minha obra. Respondi: “Realmente interessa-me fazer casas sob um ponto de vista físico. Ninguém faz amor debaixo da semiologia.” O título do jornal: “Ninguém faz amor debaixo da semiologia”.

 

Isso revela o seu sentido de humor. E cultura. E como é desprendido a falar das coisas.

Sim. Isto é mais fácil do que o que se pensa. Complicamos e sofremos. Tive um grande professor, o [Fernando] Távora. (Estou a misturar tudo. Não se importa?) Já falei do Siza, falo do Távora. Tínhamos uma formação muito teórica. A ideia, nos anos 70 (nos 60 lá fora, chega cá sempre tarde, é a história de Portugal), é que era preciso mudar o mundo para poder fazer arquitectura. Toda a gente queria fazer um homem novo para fazer uma nova arquitectura. Para fazer um homem novo era preciso mudar a sociedade. Daí o materialismo dialéctico.

 

Isso tudo foi dar onde?

Como nada é um processo linear, rapidamente apareceu uma grande desilusão. Transformei-me numa pessoa pragmática, menos ligada às ideologias. O Távora foi um professor excepcional. Na altura não o percebi bem, mas quase todos os dias, hoje, penso nele. O Távora resumia: “A arquitectura é a vida. A boa arquitectura é aquela onde as pessoas se sentem bem, dormem bem, comem bem, gostam de estar umas com as outras, fazem amor”. É descobrir a alma numa casa, como você disse.

Ao longo do tempo fui percebendo que isto é um conjunto de relações com os sítios, os materiais, as culturas, as pessoas, as técnicas de construção. É a empatia que existe entre estes factores todos que faz com que a arquitectura nasça, exista. Pronto, caiu a semiologia. Fiquei com o pragmatismo. Quando tenho de fazer um projecto sou como uma leoa.

 

Que quer dizer com isso?

Vê-se nos filmes da National Geographic as leoas no meio do capim a tentar estabelecer a estratégia. Eu tenho de fazer uma casa. Não descanso enquanto não conseguir chegar lá.

 

Procura o diálogo entre essas várias exigências e elementos. Não descansa enquanto não encontra o tom. É isso?

Gosto da palavra tom. Tenho um texto sobre a arquitectura e os croquis. Vemos uma orquestra, com o pano fechado, a ser afinada, antes de chegar o maestro. Os croquis são os sons atrás do pano. A ver que tom vamos dar. Vamos fazer mais tectónico, mais gravítico?, mais leve, mais transparente?

 

Trabalhou e estudou ao mesmo tempo. Já disse que trabalhou no SAAL, com o Siza. Que importância teve isto?

Para ser honesto, o estudar era pouco. Era mais trabalhar com o Siza. Mas aprendi muito. As aulas do Távora: íamos de carro a Ponte de Lima ver um solar, para falar do Barroco. Tive essa boa pedagogia saltando muito a parte técnica (era considerada reaccionária e tecnocrata). Suprimi essa falta trabalhando no Siza.

Olhando para trás, tive muita sorte. Um ambiente que nunca mais acontece em Portugal e na Europa. De transição. Sem ser violento.

 

Trabalhava no terreno, com as pessoas de todos os dias.

A nova pedagogia passava por abrir a escola ao exterior. E isto tudo acompanhado pelo [Joseph] Beuys: todo o homem é um artista. À noite havia seminários com as populações das ilhas, bairros operários. O povo é quem mais ordena? O Siza dizia: “Eu não sou a mão do povo.” Havia correntes que defendiam que devíamos fazer as casas como os moradores queriam. Os moradores queriam um conceito pequeno-burguês. Com toda a justiça! “Como é que vamos fazer as casas?” “Como a sua. Você não vive bem? Queremos igual.”

 

Nesse contacto com pessoas de bairros como as Fontainhas, era um menino bem.

Não há que esconder. Como toda a gente de esquerda. Ninguém vinha das populações proletárias: o Lenine, o Trotsky, o Fidel Castro, o Che Guevara. O Salazar, o Mussolini: esses vieram do povo.

 

O que é que aprendeu da vida no contacto com essas pessoas, de um meio social diferente do seu?

O meu pai era um médico conservador, monárquico. Muita religião. Tias. Asfixiante. Mas fumávamos à mesa aos 10 anos. “Vão fumar no liceu às escondidas, não é? Então comecem aqui. Fumam dois cigarros por dia.” A minha mãe saía, escandalizada. O que é certo é que comecei a fumar aos 20.

Na quinta da família, em Braga, vivi uma realidade feudal, nos anos 60. Ia nas férias. Os empregados não usavam sapatos. A missa ao domingo: tudo sentado no chão, com os pés gretados. Só havia dois bancos, para a família Moura e a família Zenha (do Salgado Zenha). Depois ficavam velhos, doentes, iam viver para debaixo de uma escada em casa do filho. E era assim a vida.

 

Tinha noção nítida das diferenças de classe, é o que está a dizer.

Tinha noção de uma grande injustiça. Isto não pode ser! Nas Belas Artes tive contacto com a miséria urbana. Aqui, num quarto 3 por 3 vivia uma família. Casos de incesto. Miséria. Um cheiro insuportável. (Não falei já muito?)

 

Estamos no seu período de formação, estudando e trabalhando ao mesmo tempo. Com pessoas como o Távora e o Siza.

Tive outros professores muito bons. O Alberto Carneiro, o escultor, foi meu professor de desenho. Coisa única! A aula era representar as emoções que tínhamos [a propósito] de ruídos e sabores. Por exemplo, tínhamos estes materiais: madeira, pedra, metal. “Lambam isso. Façam um desenho. Agora o som dos materiais.” Os cacifos, ping. Madeira seca: pof. “Desenhem”. Eu chegava a casa e contava ao meu pai. “Vai morrer de fome. Só lambe pedras.” [riso] O Alberto Carneiro era um maluco, interessante, com graça. Supostamente isto não serviu para nada.

 

E depois, serviu?

Sim. Há muitos momentos na obra, ou quando estou a desenhar, em que tenho de decidir se continuo com a pedra ou se faço em vidro... Lembro-me constantemente do Carneiro.

O Távora não nos deixava desenhar com rectas, só com curvas. Eu chegava com uma casa muito direitinha, toda a noite a desenhar – ele riscava tudo.

 

O que descreve, e desenha no papel que agora temos sobre a mesa, tem que ver com elegância, equilíbrio.

E com aproximação. Continuo a riscar os desenhos.

 

Os seus arquitectos dão-lhe os desenhos direitinhos, com rectas e risca por cima.

Tudo.

 

Curioso, há pouco, quando falou de outras disciplinas artísticas, não ter referido a dança. A sua descrição é de um certo movimento.

Ia muito ao ballet, no Rivoli. Ficava deleitado.

 

Já que fala de aproximação, deixe-me perceber o modo de trabalhar. Enquanto arquitecto, a sua prática faz-se no olhar, no pensar, na construção ou na soma destas três?

A resposta mais fácil é a soma das três. Mas a mais importante é o construir. Porque de boas intenções está o mundo cheio. E em Portugal há 20 mil arquitectos. Interessa-me o que fazem, não o que dizem.

 

E o olhar e o pensar?

São a condição necessária mas não suficiente. O que interessa é o que fica. Eu penso desenhando. Foi um hábito que adquiri com o Siza. Nós, como colaboradores, não podíamos fazer uma pergunta, uma dúvida, se não desenhássemos. Quando fazemos uma pergunta ao Siza, ele quer o grafismo. “Não estou a perceber nada. Desenhe, desenhe, para eu perceber.” Eu desenhava e ficava horrível. O facto de desenhar dá consciência da dificuldade do problema.

A arquitectura é uma actividade gráfica. Desenhamos os códigos para que a forma possa acontecer. Um projecto é um código. A arquitectura é a resposta a um problema. A resposta é mecanicista (2+2=4). Se for só 4, é construção. Se for arquitectura é 4 mais qualquer coisa (como falámos).

 

Esse algo mais, está decidido à partida?, encontra-se?

A arquitectura não é só física. Mas tudo o que acontece para além da física, não é voluntário. Não há arquitectura narrativa. Há à posteriori. Às vezes vou às casas dos clientes (quando não me zango). “Sentimo-nos bem aqui. Já reparou nisto?” Contam histórias. Eu, quando faço os riscos, não faço a transposição para aquele acontecimento. Eu faço quatro paredes. As pessoas apropriam-se [do espaço]. Põem tapetes persa, compram cómodas D. João V, convidam o Saramago e há um jantar muito agradável: isto não tem nada a ver com arquitectura! Eu tenho é de proporcionar que isto aconteça.

 

As casas são uma constante na sua obra. Como é que se desenha um espaço que propicia a intimidade?

Respondo assim: faço as casas para mim. O cliente é um heterónimo.

 

A casa do Cristiano Ronaldo é uma casa para si?

É. Imagino que sou um craque em futebol.

 

Empatia. Põe-se no lugar do outro.

Sim. O Pessoa faz a descrição [biográfica] dos seus heterónimos. Eu penso que nasci na Madeira. Faço isto porque preciso de um mediador.

O Donald Judd disse-me que não aguentava a angústia de estar a olhar para uma barra de alumínio e dizer: “Vou fazer esta peça com 1,17 ou 1,16.3?. Esta solidão em que não há nenhum motivo para decidir (em que depende só de mim), leva à exaustão.” Ele é artista plástico e queria ser arquitecto – e foi. Eu disse-lhe que queria ser fotógrafo e estava farto de ser arquitecto. Os grandes arquitectos do século XX: Corbusier, Mies van der Rohe, Gropius, Barragán: nenhum é arquitecto. É estranho, não é?

Na arquitectura tenho um sítio, regras para construir, um cliente, dinheiro, imensos limites. Muitas vezes, estes limites servem de desculpa para o que não fica bem. “Se fosse como eu queria, se houvesse mais dinheiro...” Más desculpas. No fundo, não há nenhuma actividade olímpica.

 

Voltemos ao Siza. É dificílimo o que fez: formar-se com ele, emancipar-se em relação a ele...

E continuarmos a trabalhar juntos. Parece o milagre das rosas! [riso]

 

Só a circunstância de viverem e trabalharem dois Pritzker no mesmo prédio...

Ele vive por baixo de mim, e aqui trabalha por cima.

 

Acha que ele é o melhor?

Acho que é o arquitecto mais completo. Naquele sentido de que há pouco falámos, de que é preciso ver, produzir. Tenho ideia que é o arquitecto que ganhou mais prémios no mundo. Ganhou tudo, só lhe falta o prémio Carlsberg da Dinamarca. Não ganhou esse porque ganhou o do Imperador do Japão na mesma semana.

O Siza vem sempre à baila nas entrevistas, claro. Tenho uma grande distância em relação à obra dele. Interessa-me sacar o percurso, os atalhos, a maneira como ataca os problemas, os instrumentos que escolhe, a tenacidade. Ele é que realmente é a leoa na savana. Os nossos resultados são diferentes. Temos 20 anos, duas gerações de diferença. Ele faz parte de uma geração de resistência. Eu já faço parte de uma geração e construção.

 

Pode explicar?

Os arquitectos [preferidos] da geração do Siza são os do pós-guerra. Os da minha geração são os arquitectos que me interessam para poder construir meio milhão de casas. Para reconstruir este país que estava na miséria. Por isso são arquitectos expeditos e pragmáticos, a tentar resolver os problemas do futuro.

Assisti a tudo o que o Siza fez. Às vezes dá-me a tentação de lhe roubar as fórmulas para os problemas. Ele tem um catálogo visual invejável! Janelas num segundo andar debaixo de um telhado [faz o gesto de procurar numa enciclopédia e encontrar]. Mas tenho muito pudor em ser parecido com ele. Sentir-me-ia ridículo a tentar competir com ele. Primeiro, entro em perda. Segundo, posso gostar dos resultados e não estar de acordo com os pressupostos. Terceiro, respeito-o muito. Como tal, temos vidas diferentes. E não temos nada a provar um ao outro.

 

Nem no seu caso, 20 anos mais novo?

Não, não. Eu nunca quis ser o Siza 2. No outro dia saiu um artigo sobre mim, “Domesticar as Vanguardas”. Isto é, gosto de usar as vanguardas e transformá-las em coisas ligadas ao quotidiano. Não me interessa alterar a História. Está a perceber? Eu quero usar o que a História me deu e fazer de uma maneira diferente.

 

Não parece nada ansioso ou inseguro. Foi sempre assim?

Ansioso, sou. Até chegar ao que eu quero. Sou muito egoísta. E sou ambicioso. Senão, não seria arquitecto. Se vierem prémios e tal, tudo bem. Não sou um homem dos 100 metros. Sou da maratona. (Tenho enfisema. Fumei demais.)

 

Quando é que percebeu que era um grande arquitecto?

Quando me deram o Pritzker [2011]. A sério. Eu estava ao telefone e não acreditava. Primeiro fui lá cima. “Ó Siza, ganhei o Pritzker.” Ao jantar, disse à minha mulher e às filhas. Na cerimónia, estive a falar com o Obama. Nunca pensei ver o Obama na minha vida! A Michelle é simpática. Tive como padrinhos o [Frank] Gehry e o [Richard] Rogers. É como ser escritor e ter como padrinhos o Hemingway e o Proust. De Espanha, telefonaram-me. A frase era: “Ganamos!” Não era: “Ganhaste!”.

 

Ganhou prémios importantes. No ano a seguir a se ter formado, ganhou um prémio pelo projecto da Casa das Artes - SEC no Porto. Formou-se em 80, ganhou em 81. Tinha 20 e tal anos.

Ganhei aos professores. Isso gostei. Fiz o projecto na tropa. Desenhava e a minha mulher (que era minha namorada) fazia as maquetes em corticite, com alfinetes. “Isto está horroroso!” “Não faço mais nada.”

Eu sabia que fazia coisas bem feitas. Tinha ganho prémios. Mas sou muito exigente. Sofro tanto, tanto, tanto... Vou às obras. “Isto não está bem.” Pago do meu bolso rectificações. Nunca está como eu quero.

 

A sua vida acelerou ainda mais, depois do Pritzker. Esta entrevista foi marcada com mais de um mês de antecedência. Pelo meio deu meia volta ao mundo.

Não! Estive em Washington. Em Bruxelas. Ganhei um concurso para um crematório. Tema lindíssimo. É uma máquina, mas não pode ser só queimar frangos. Tem de ter mais espiritualidade.

 

É professor. Deu aulas em algumas das universidades mais prestigiadas do mundo. Neste momento, dá aulas em Itália.

Dou aulas em Mântua. Tenho de dizer que gosto. E dá-me um certo conforto (não vou disfarçar).

 

Imaginamos que um arquitecto com o seu estatuto já não está preocupado com o dinheiro.

Não estou a dizer que sou pobre ou tenho dificuldades económicas. Lá fora pagam-me muito bem, é verdade. Se fosse só cá... Passei muitos períodos em que chegava ao fim do mês [sem dinheiro]. Agora, não.

É preciso refundar a disciplina. O que aprendi do ser arquitecto, acabou. Não dá para hoje. É um sacrifício adaptar-me. Gosto imenso de falar com gente nova. Faz calamidades, mas é muito fresca. A minha turma deste ano era constituída por 25 alunos de 15 nacionalidades. São mundos tão diferentes.

 

Como eram os seus desenhos de criança?

Andei numa escola italiana. Foi mau porque não aprendi inglês. Vejo-me aflito. Nessa escola, havia um apuro gráfico. Não se podia fazer um texto sem um desenho. A redacção “Ir a Lisboa”: era preciso fazer um desenho sobre a ida a Lisboa. Os números pares: era preciso desenhar dois patinhos. Na escola e no Siza, fui obrigada a desenhar.

 

Qual é o compartimento de que mais gosta em sua casa?

É o canto do sofá. É um canto de onde faço um círculo. Tenho uma mesa atrás, onde tenho livros, os óculos, as canetas. Um candeeiro para ler. Faço assim e tenho uns discos. À frente, a televisão. A minha mulher, ali. Tudo se passa num metro e meio. E quando vem o Siza, está a dois metros.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015