Ricardo Bak Gordon
É um arquitecto que tem um encantamento pelo mundo construído por não-arquitectos. Que fala da beleza da imperfeição. Que aponta para a erosão da parede ao lado.
Ganhou recentemente o prémio FAD, o prémio ibérico de arquitectura (ex aequo com Mansilla e Tuñón), com as casas construídas no interior de um quarteirão em Campo de Ourique. Foi também com esse projecto que o ano passado esteve representado na Bienal de Veneza (com Aires Mateus, Álvaro Siza e Carrilho da Graça).
Ricardo Bak Gordon nasceu em Lisboa em 1967. Estudou no Porto, em Milão, em Lisboa. Dá aulas no Instituto Superior Técnico. Trabalha num atelier cujo projecto de iluminação é uma obra de Pedro Cabrita Reis. São amigos. Encontrámo-nos em sua casa, debaixo de uma tangerineira, num dos últimos dias deste verão indiano. O jardim está circundado por prédios com as cores cálidas que têm os edifícios de Lisboa. Não é muito diferente das já famosas casas de Santa Isabel com que levanta o problema do que fazer no interior dos quarteirões abandonados. Que é um modo de falar de cidades no interior da cidade.
É um dramático que jorra tinta para o papel!, na descrição do amigo brasileiro Paulo Mendes da Rocha, que escolheu o atelier de Bak Gordon para acompanhar o projecto do novo Museu dos Coches. A arquitectura que ele faz é como ele é?
Seria mais fácil se tivesse um papel à frente e começasse a desenhar? Pergunto se o desenho é a sua forma preferencial de comunicação.
Não especialmente. A minha forma de comunicação preferencial é a palavra. O desenho é um dos instrumentos de investigação da arquitectura, um dos primeiros (outros instrumentos: as maquetes, os desenhos rigorosos, as fotomontagens). O desenho nunca nos vai dar nada que a cabeça não esteja a suscitar. O território onde se pensa a arquitectura é a cabeça.
É conhecido o seu gosto pelo desenho, a força que os seus desenhos têm. A relação com artistas plásticos deixa também perceber a importância deste instrumento. Com Cabrita Reis, por exemplo.
A relação com o Cabrita Reis é muito longa. Vem desde o tempo em que andava na escola. Fazia desenhos técnicos para as obras dele, que eram muito arquitectónicas. Somos muito amigos, fiz várias casas para ele e para a família. Estimula-me.
A investigação ocupa um grande espaço no trabalho da arquitectura. O desenho acompanha-me muito nesse processo. A descoberta vem do desenho.
Como descreveria os seus desenhos?
Os meus desenhos acabam por exprimir muito da minha personalidade. São radicais, dramáticos. O Paulo Mendes da Rocha, grande amigo meu, o arquitecto brasileiro com quem estou a trabalhar [na obra do Museu dos Coches], quando me vê desenhar, diz assim: “Está despejando tinta para cima do papel!”. Os desenhos dele são totalmente diferentes. Os meus desenhos, em geral, têm tamanhos imensos, um metro. Deito o rolo de papel em cima da mesa em que estou a trabalhar, corto e começo a desenhar. É uma coisa muito gestual, física, ligada ao corpo. Não é, de facto, um desenho de precisão, delicado.
É um dramático?
Bastante. A maneira como trabalho – que não é muito diferente da maneira como tenho levado a vida, não de forma consciente, porque ela vai andando em paralelo – se não é dramática, é proto-dramática. É muito intensa, com altos e baixos, com grandes euforias e grandes ansiedades. Faz parte da maneira de ser. Nem sei como é que seria se não fosse assim.
Isso reflecte-se, de algum modo, na sua arquitectura?
Não creio. Estou a lembrar-me de uma amiga que me dizia: “Como é que um tipo tão bruto faz coisas tão delicadas?”. O que se reflecte, e isso assumo, é uma dramaturgia poética, um ambiente que (gosto de acreditar) consegue induzir alguma reflexão para lá do que é mais imediato, e que procuro que todos os trabalhos contenham. Isso sim, há-de vir da minha perspectiva de olhar para as coisas, e de pensar.
Tendo essa delicadeza e depuração, tem também, e isto é consensual nas apreciações que são feitas à sua obra, uma sensualidade e vitalidade. Um temperamento mais quente, inflamado, traz à arquitectura uma temperatura diferente?
A temperatura tem a ver com a intensidade das decisões, com um radicalizar, tanto quanto possível, a experiência de um lugar. É disso que se trata: fazer com que as pessoas, perante uma determinada arquitectura, um determinado lugar, uma determinada experiência de um lugar, possam sentir essa activação, e que ela possa ser radical. Três exemplos de projectos: a casa do Pedro Cabrita Reis no Algarve, a Escola Garcia de Orta, no Porto, a fábrica de azeite no Alentejo. Todas elas, em contextos e equações diversificadas, tentam um nível de afirmação – que não é para se afirmarem a elas próprias – que active a experiência do lugar.
A Escola Garcia de Orta tem uma praça vermelha coberta que é o grande centro da escola. É uma praça bastante dramática. Ninguém passa da aula de Matemática para a de Filosofia, no intervalo, sem se deixar contaminar por aquele lugar.
Interpelar o outro – é o que pretende com as suas obras?
Gosto de falar da arquitectura como uma posição num caminho, a meia distância entre uma coisa técnica e racional e uma componente poética indispensável. Não acho que os arquitectos sejam artistas, recuso essa ideia. Mas o arquitecto não pode abdicar de uma componente poética no trabalho, sob pena de ter um nível de comunicação muito reduzido. Resolve problemas práticos, mas não usa os meios que tem ao seu alcance para criar uma segunda comunicação.
Um poeta, dois poetas de que goste especialmente.
Quando comecei a estudar arquitectura fui para o Porto viver. Levava quatro livros, os heterónimos de Fernando Pessoa e Fernando Pessoa, propriamente dito. Foi a primeira vez que saí de casa, os dias no Porto eram diferentes dos de Lisboa – pelo menos imagino-os eu hoje, ainda, desse modo – mais cinzentos e pesados. Talvez houvesse uma certa nostalgia, uma certa dramaturgia associada àquela experiência do Inverno, à primeira vez que vamos embora, ao esforço de viver num quarto (na casa de uma velhota). Lia imenso Fernando Pessoa e encontrava muitas relações. Vou lendo outras coisas. O Herberto [Hélder], o poema sobre a loucura, “Se eu quisesse, enlouquecia”.
A poesia está no modo como se olha?
Está no modo como se sente. Estamos a conversar frente a uma parede cheia de informação, toda suja pelo Inverno, tem limos, bocados de tinta que já saíram; não pense que não vem aqui muita gente que diz: “Só falta pintar estas paredes”. E fico arrepiado. Jamais me passaria pela cabeça pintá-las de branco.
A erosão que sofreram é visível.
É o tempo. O tempo é um construtor fundamental. E não é de espaços, é de nós. As coisas acumuladas por onde andámos, as viagens que viajámos, as pessoas com que nos cruzámos, há aí um processo de construção e esse património é requisitado quase todos os dias sem que se tenha consciência disso. Às vezes, sim, para o trabalho.
Fale-me do seu património afectivo.
Os meus filhos. E a minha mãe, e o meu pai, toda a minha família. Vejo nos meus filhos um processo natural de continuidade que respeito muito.
O seu pai é Gordon. Conte a história que fez de si meio estrangeiro.
Tenho tendência a dizer que sou 100 por cento português. O que é facto é que sou, do lado do meu pai, originário da Lituânia. Tive avôs paternos que eram judeus lituanos e que vieram para Portugal nos anos 30, antes da Segunda Guerra, durante o período das invasões russas e da Polónia. Fixaram-se nos Açores. O meu pai já nasceu em Portugal. Era médico, também já morreu. Além de ser médico pintava muito, tinha uma perspectiva bastante sui generis da vida. Cresci com a minha mãe, que é portuguesa, com quem fiquei desde muito cedo – eu, o meu irmão e ela, formámos um trio – uma vez que o meu pai se separou da minha mãe. Do lado do meu pai recordo-me de coisas exóticas. As refeições religiosas em casa dos meus avós, as festas. A única coisa que tenho estrangeira é o nome. Sou um cidadão português que está disponível para pensar e experimentar os lugares todos que há no mundo.
Como foi a mudança dos Açores para o continente? Como era a vida então?
O meu pai nasceu nos Açores e veio em pequeno para Lisboa. Os meus avós eram comerciantes, como bons judeus. Tinham uma loja na Avenida Almirante Reis que ainda existe e que se chama Gordon & Bakayte. O nome Bak era um nome feminino, lituano, que variava consoante o estado civil. Chama-se Gordon & Bakayte porque era a minha avó enquanto casada com o Gordon. Eu sou Bak Gordon.
Em que língua é que o seu pai falou consigo?
Falou em português, mas falava com a minha avó em iídiche, a língua dos judeus da Europa de Leste. Tenho amigos, como o Daniel Blaufuks, que têm uma origem semelhante.
A cultura da sua casa foi marcadamente judaica?
Não. Os meus avós tinham alguma actividade religiosa. O meu pai não tinha nenhuma. A minha mãe, que não é judia, é católica, também não tem actividade religiosa.
Fez uma obra na sinagoga de Lisboa. Não tenho ideia que a comunidade judaica, que é fechada, encomendasse uma intervenção naquele espaço a um arquitecto com o qual não sentisse afinidade.
Deu-me muito prazer. Fiz a remodelação do projecto da sinagoga do Rato numa altura em que se celebravam os 100 anos da sinagoga. A arquitectura não é uma coisa estanque, tive uma actividade paralela, durante muitos anos, na El Al, as linhas aéreas de Israel, e havia uns trabalhos ligados a cada um dos voos, feitos por jovens judeus da comunidade local, para falarem a língua. (Só deixei a El Al quando assinei um importante contrato, o da residência da embaixada de Portugal em Brasília.) Acabei o curso, tinha atelier e mantinha um part-time ligado à comunidade. Tinha até mais proximidade do que tenho hoje, estava próximo todas as semanas.
O que é que fazia exactamente?
Fazia um trabalho que tem a ver com segurança de aeronáutica. Fazia perguntas aos passageiros que viajavam para Israel, verificava o catering, se ninguém punha nada de estranho, variava. Além de trabalharmos em Portugal, uma vez por semana, também viajávamos para ajudar outros voos, noutros aeroportos. Em 1990, estive em Amesterdão, fazia turnos da meia-noite às oito da manhã, na pista, com 20 graus negativos, a tomar conta de um 747 de carga. Amesterdão era o maior terminal de carga de Israel para a Europa durante a Guerra do Golfo. Mas isso são coisas que se vão fazendo na vida. Até por uma questão de equilíbrio financeiro. Foi muito engraçado.
O que é que aprendeu nesses anos?
O rigor. Mas o rigor aprendi-o com a minha mãe, que nos passou o sentido do trabalho como sendo primordial. Dar o máximo que se pode dar nas coisas em que nos empenhamos – ser profissional. E aprendi a estar alerta. O que se passou na Europa na Segunda Guerra Mundial é mais uma lição, mesmo para nós que não a vivemos. Perceber quão vulnerável pode ser a nossa hipotética estabilidade. A estabilidade somos nós que a construímos; temos de a respeitar todos os dias, e temos de estar preparados para que a vida em qualquer momento possa dar uma cambalhota. Tenho tido imensas felicidades na minha vida profissional e familiar, mas também tenho tido cambalhotas radicais na minha vida afectiva, e vou lidando com elas com esse ensinamento de que é sempre possível reposicionar-me.
Essa experiência junto da comunidade judaica, era uma maneira de se sentir próximo das raízes do seu pai?
Admito que sim. Quando fui convidado para a El Al o que me interessava era arranjar um part-time, e tinha amigos da comunidade.
Mas foi escolhido porque era o neto daqueles senhores, e era o filho daquele homem.
Nunca reneguei, de modo algum. No projecto da sinagoga, empenhei-me imenso. A sinagoga foi construída num período em que os templos que não fossem católicos não podiam ter fachada sobre a rua (era uma imposição governamental). É colocada no interior de quarteirão, onde está, e quase ninguém a conhece. Insisti muito para que se quebrasse parcialmente esse carácter de isolamento, desde logo do ponto de vista físico, que se permitisse que as pessoas passassem no passeio e vissem o edifício.
Era uma forma de abrir a comunidade à cidade e vice-versa.
Um primeiro passo de formiga nesse sentido. Fiz um portão novo, um vidro muito pequenino, blindado, à prova de bala, que era a semente dessa possibilidade de partilha. No dia da inauguração da obra esse vidro foi tapado com papel pardo pelos agentes de segurança da comunidade, e ainda hoje lá está, e nunca ninguém viu nada lá para dentro. Nem sequer tenho vontade de discutir a questão de a segurança se sobrepor. Mas este exemplo é paradigmático de que aquele território tem ainda muitos problemas que a arquitectura não pode ajudar.
Alguns dos seus edifícios mais marcantes acontecem em espaços que não são visíveis a partir da rua. Como se o coração dos edifícios estivesse recôndito, e fosse preciso um esforço para aceder a isso. O lugar onde estamos, o jardim de sua casa, é também um oásis no interior do edifício.
Podia responder a essa pergunta dizendo que raramente os arquitectos escolhem os programas em que vão trabalhar e as solicitações em que se vão envolver. A encomenda aparece e trabalhamos (salvo em casos extremos em que se está verdadeiramente contra uma vontade ou uma decisão de um promotor, e não se avança). Percebo a pergunta, é interessante falar sobre isso. Fala de quando uma casa se encerra para o exterior e se abre para o interior.
O que queria dizer é que o seu imaginário parece mais voltado para o interior do que para a fachada.
Não diria isso. As pessoas têm da arquitectura uma ideia enviesada e, se se propõe uma construção que não se vê e que não comunica com o mundo exterior, podem ter a tentação de perguntar se aquilo é apenas um muro. Mas a arquitectura não tem tanto a ver com uma imagem, mas com a construção de um lugar. Se estamos a falar de uma casa é mais importante que se construa o lugar. A casa é o lugar último do homem, o mais privado, em que nos recolocamos face ao mundo.
É inevitável, introduzindo este tema, ir dar às Casas de Santa Isabel, projecto com o qual esteve representado na Bienal de Veneza em 2010. Encaixou duas casas numa espécie de terreno baldio, que existe entre vários prédios.
No ocidente, na Europa, vivemos em cidades que são formadas pela trilogia rua, praça e quarteirão. Estes interiores de quarteirão são uma espécie de cidade dentro da cidade. São lugares que as pessoas desconhecem e que podiam ser muito bem utilizados, porque multiplicavam as possibilidades de habitar a cidade. Acontece na maioria dos casos que estes quarteirões são lugares abandonados, maciços, pavimentados, com coisas clandestinas lá dentro. Há uma série de condicionantes sobre este tema. O facto de serem terrenos non aedificandi, o facto de as pessoas dizerem que têm de ser áreas permeáveis… Naquele caso concreto tratava-se de um logradouro com cerca de 1000 metros quadrados onde existiam uns pavilhões precários construídos há mais de 50 anos.
Projectou duas casas, uma de habitação para o proprietário, e outra para alugar, numa área de 400 metros quadrados. Acabei por lançar o trabalho com base no desenho dos vazios e na ideia de uma paisagem nova, que não se limitasse a ser pertença da casa, mas que, do ponto de vista do desenho da cidade e das famílias que habitam aquele miolo de quarteirão, seria para todos. Com as arquitectas paisagísticas Filipa Cardoso Menezes e Catarina Assis Pacheco, fez-se este desenho de paisagem. A casa acabou por ser redefinidora de todo o quarteirão.
Havia outras questões. Como operar naquele palco? Quando estamos com uma periferia muito verticalizada sentimo-nos mais ou menos num palco. Entendi que havia dois gestos obrigatórios para responder eficazmente a essa aparente opressão. Agora vê-se que não é opressão nenhuma.
Fala do problema da privacidade.
Decidi que a casa havia de ter uma única cota e de ser relativamente esmagada, de forma a contrastar dramaticamente com toda a verticalidade da envolvente. E construir a casa toda num único material, o betão armado aparente, o mais robusto, capaz de estar mano-a-mano com toda a pré-existência da envolvente. Embora fosse muito horizontal, era muito poderoso. Ninguém me falou da falta de privacidade, não creio que seja um tema. Também estamos num lugar onde…
… desde que começámos a entrevista veio uma vizinha à janela, alguém tossiu, e foi tudo.
Queria comprar este andar que tem o jardim e o rés-do-chão; como não tinha capital para comprar o prédio todo arranjei amigos que foram comprando os outros pisos. No dia em que decidi fazer este tanque, esta piscina, alguém me disse: “Não vais ter coragem de ir para a piscina no meio de Lisboa, com os prédios à volta”. Eu sempre tive a convicção de que quem se ia meter para dentro eram os vizinhos quando me vissem a tomar banho. E assim foi. Tomo banho aqui todos os dias.
O sucesso que a casa [de Santa Isabel] teve permite-me falar deste assunto muito sério. Agora que se fala tanto de reabilitação, como é que podemos reactivar estes interiores de quarteirão? O que é facto é que os espaços estão construídos, abandonados, sujos, estão impróprios do ponto de vista da salubridade.
Em São Paulo impressiona a sucessão de camadas de edifícios que é possível vislumbrar a partir da fachada principal. É um desenho, um redesenho da paisagem, que vamos percebendo à medida que o olhar avança.
O caso mais paradigmático talvez não seja o Brasil. Ainda que em São Paulo os lotes tenham escalas generosas, o que permite uma sucessão de construção de espaços diversificados dentro do lote, e de espaços verdes e exteriores. Berlim é um caso paradigmático. No interior dos quarteirões estão a aparecer lojas, cafés, uma creche. É preciso não ter preconceitos e repensar a cidade como um organismo vivo. As regras que se aplicam num dia não têm que ficar congeladas eternamente. As cidades são como nós, vão evoluindo, vão-se substituindo, renovando. É uma óptima altura para reflectir sobre as nossas cidades, se conseguirmos afastar-nos dos enredos em que andamos sempre metidos – de não pode ser assim, os compromissos que existem, os interesses instalados.
Talvez não por acaso Prenzlauer Berg é um dos bairros da Europa onde nascem mais crianças.
Berlim é uma cidade jovem, com capacidade de atrair pessoas novas, capazes de ter um olhar crítico sobre as coisas. E aqui também vai havendo. Estive no Japão há 15 dias e fiquei impressionado. Tóquio talvez seja a cidade do mundo que visitei com maior heterogeneidade morfológica. A variação do ritmo da cidade, as avenidas de arranha-céus, escritórios e centros comerciais, na rua ao lado casinhas abertas com a bicicleta cá fora em que ninguém fecha a porta... Estamos em Lisboa, olhamos para a nossa cidade sobre o Tejo, com um ar de musa, deitada no lombo da topografia... E depois há a luz. Há uma série de temas na arquitectura que são as suas ferramentas de trabalho: a luz, a escala, a proporção, a tensão matérica.
Le Corbusier fez uma célebre definição de arquitectura…
Que a arquitectura é o espaço debaixo da luz. Nem sei exactamente como é. Quando se cria uma definição está-se a deixar de lado uma quantidade de outras coisas que também o são. Prefiro dizer que a luz é um elemento fundamental. Nós temos uma luz maravilhosa, as sombras são muito precisas. A penumbra, a luz, o clarão, tudo isso também é como somos.
Como é que eram os espaços da sua infância, como é que os reconhecia?
Vivi em casa da minha mãe, num apartamento no Restelo, com áreas generosas, uma casa convencional, de uma família de classe média. A minha mãe é médica. Tenho memórias de construção de lugares meus. O primeiro espaço só meu (porque partilhava um quarto com o meu irmão) foi uma varanda encerrada. Passou a ser o meu lugar único. E não tinha nada a ver com a arquitectura, tinha a ver com a ideia de que precisamos de um espaço. Às vezes nem é um espaço físico, constrói-se dentro de nós. O que se passava ali? Tudo o que se passa na cabeça de um adolescente a meio do liceu. Nada de muito especial, e tudo naquela época, o mundo todo vivido intensamente.
Uma questão também importante, a da dinâmica com o espaço envolvente. Hoje, a rua pode ser um lugar ameaçador. Não o era.
O Restelo era um lugar onde se vinha para a rua brincar. Percorri liceus infinitamente até que fui para a [escola] António Arroio. Cada vez que mudava de liceu a minha geografia urbana também mudava. Mudavam os autocarros, mudavam os lugares. Sempre tive consciência de que os bairros da cidade eram heterogéneos. Vai-se andando pela cidade e há muitas cidades, muitos ambientes que são feitos pelo esqueleto da cidade, por aquilo que é construído, e pela coisa real que são as caras das pessoas, os carros, o modo como estão parados, as mercearias que havia naquele tempo, escuras.
Lugares imperfeitos, vivos, pré-existentes.
Há uma imperfeição no mundo sem a qual não podemos viver. Ninguém pode fechar-se num mundo perfeito, idílico, artificial. Na arquitectura passa-se o mesmo. Nos trabalhos que faço interessam-me coisas substanciais e intensas, mas nunca me vai encontrar a matar-me no desafio da perfeição, do rigor do material e do pormenor. É sempre mais o desafio da construção de um espaço, ligado ao mundo.
Essa revelação dos lugares despertou em si o desejo de ser arquitecto?
Perguntam-me muitas vezes quando é que descobri que queria ser arquitecto. Comecei a dar uma resposta que é aquela que imagino que seja mais verídica. Uma vez fui a casa de um amigo do meu irmão que vivia numa casa modernista, uma casa de arquitecto, dos anos 70. Tive a noção de que alguma coisa era diferente, que todo o espaço era pensado de uma maneira diferente.
Fui agora ver o filme do João Canijo, Sangue do Meu Sangue, que é extraordinário, e ali tem tantas coisas para falar… A dimensão da casa, o contacto permanente entre as pessoas, a possibilidade de os espaços estarem sempre sobre o próximo, e ser quase todo o mesmo…
A arquitectura traduz e serve aquele quadro familiar, e potencia aquelas relações.
No meu dia-a-dia essa questão, muito para lá do trabalho que faço, interessa-me. Vou reconfigurando e analisando como é que os espaços e as pessoas se enformam mutuamente.
Estudou no Porto, em Milão e em Lisboa. O seu sentido estético passa muito por estas escolas?
O Porto para mim foi uma grande descoberta. Havia uma elegância e uma seriedade com que as coisas aconteciam. A escola era um lugar de grande respeito pelo trabalho e de grande sensibilidade. A cidade parecia-me mais densa que a vida mais leve de Lisboa. Em Milão, a escola era um território totalmente contaminado, com milhares de pessoas, com acesso a conferências, livros. Não havia livrarias de arquitectura em Portugal.
Quem é hoje, o que faz hoje, pode ser lido como uma síntese desse percurso, dessas vivências?
O meu processo tem momentos fundamentais, mas nunca os reconheço. Como é que chegamos a fazer o que fazemos e a ser quem somos? É a indução. Quando digo indução, digo uma informação ou um estímulo que contamina o próximo, e assim sucessivamente. Vejo sempre, quer os trabalhos, quer a vida, como um processo de continuidade serena que tem picos de perturbação. Consigo olhar para trás e ver que já acreditei em coisas muito diferentes, próprias das várias idades. Já me comportei de maneiras muito diferentes. É sempre um processo em contínuo, de ir andando pelo mundo, pela vida, ir absorvendo. E ir fazendo uma outra actividade que tem a ver com a síntese, que é uma actividade fundamental da arquitectura e da vida, para perceber o que é essencial.
Ainda o Porto: venera Álvaro Siza. Desde sempre se refere a ele como a figura…
O melhor arquitecto do mundo. Assim dito de chofre, só para arrumarmos com essa parte.
Foi seu professor? Fale-me do impacto que teve em si a escola do Porto.
Não, foi o Fernando Távora. Naquela época, a escola do Porto tinha um prestígio extraordinário e a figura tutelar era o Álvaro Siza. Mas Álvaro Siza é muito maior que a escola do Porto. Tem uma perspectiva única e fundida com a sua personalidade, a sua biografia, no modo como olha e responde às solicitações.
Outro mestre seu: Paulo Mendes da Rocha. Como surge a colaboração no projecto do Museu dos Coches?
Em 1997 ganhei o meu primeiro concurso internacional, para fazer a residência da embaixada em Brasília. O Paulo Mendes da Rocha era a pessoa que mais admirava entre os arquitectos brasileiros e procurei-o. Foi muito generoso. É um jovem de 83 anos. A nossa convivência permite-me estar próximo de uma pessoa muito livre, acutilante, crítica. Não se perde com a pequenez do imediato. Convidou-me para ser o local architect do projecto do Museu dos Coches. É uma obra muito interessante, que vem rematar a frente turístico-monumental de Belém e que tem uma noção de integração num espaço público muito apurada. Antes de visitar o museu, ou mesmo que não o visitemos, encontramos um edifício que dialoga com as várias possibilidades que ali existem.
Quis ser um artista? E voltamos a pensar na importância do desenho e na relação com os artistas plásticos.
No momento em que fui para a António Arroio sabia que queria ser arquitecto. Não me passou pela cabeça praticar a arte como modo de vida. Agora, estar próximo da arte, ser interessado pela arte… Quase sempre, quando faço uma conferência, tenho imagens de obras de arte com as quais coloco problemas de arquitectura. Ainda ontem à noite, encontrei uma peça da Lygia Clark que me vai servir para falar de arquitectura. No outro dia foi uma peça de um artista italiano incrível, de que gosto imenso, e de que nunca me lembro o nome…, que fazia uns talhes nas telas.
Lucio Fontana?
Sim. Nunca me lembro dos nomes de coisa nenhuma. Gosto imenso daquele tipo que faz as peças côncavas, um inglês-indiano... Anish Kapour. Mostro imenso as peças do Kapour aos meus alunos. A arquitectura tem muito a ver com “resignificar” os lugares a partir da introdução de alguma coisa nesse mesmo lugar.
Faça um auto-retrato. O espaço, seria como? Em que material?
Podia ser um espaço relativamente abstracto, de modo que estivesse potencialmente capaz de ser transformado. E havia de ser confortável, e havia de me sentir lá bem. O espaço para o meu auto-retrato é este onde estamos. É um casulo que tem imensos assuntos que me interessam. Quando aqui cheguei, esta tangerineira já cá estava. Uma simples árvore permitiu a construção de uma quantidade de lugares na sua órbita. Muito antes de esta mesa chegar, já sabia que me havia de sentar debaixo desta tangerineira a conversar.
Publicado originalmente no Público em 2011