Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Cristina Branco (tournée na Holanda)

22.07.21

Quem é esta cantora que os europeus admiram e os portugueses (quase) desconhecem?

Um dia telefonaram a Cristina Branco, «Olha, vens na “Visão”», a “Visão” citando a “Time”, a “Time” falando da música que se produzia na Europa, Bjork, U2 e Cristina Branco.

A fadista de Almeirim tem um contrato assinado com a Universal francesa. É uma clara aposta da companhia. Em Portugal tem editado um único disco, «Corpo Iluminado». Os quatro anteriores conheceram sucesso sobretudo entre os holandeses e os franceses. Na Holanda, o disco dedicado ao poeta Jacob Slauerhoff foi disco de platina. Em França, «Murmúrios» e «Post-Scriptum» foram premiados pelo Monde de la Musique.

 

As pessoas seguram um copo de vinho ou uma chávena de chá. Ocupam o passeio, rente às escadas de acesso ao De Kleine Komedie. O sol caminha para as oito da noite, o dia fora irregular. Indiferente à chuva miúda que caiu pela manhã, o domingo seguiu plácido, com homens e mulheres passeando-se pelas ruas, usufruindo da distensão temporal que é possível experimentar num domingo. Na cara das pessoas, banhadas pela luz dourada do fim de dia, não resta sinal da crispação sentida nos últimos dias. As eleições aconteceram há apenas quatro dias, a morte do líder do partido de direita há pouco mais de uma semana. Mas no cruzamento da rua com o canal, não há senão uma calma prazenteira. Dali a pouco, sem particular sobressalto, depositam sobre o balcão os copos vazios e dirigem-se à sala. Do outro lado da estrada, o Amstel, o canal que percorre Amesterdão e do qual a cidade herdou o nome. E no lado oposto, a Praça Rembrandt e as suas esplanadas apinhadas.

Eu assitira ao ensaio de som cerca de duas horas antes. Deambulara pelas ruas limítrofes e regressava à sala para assistir ao concerto. Interrogava-me sobre o sentido da portugalidade, num domingo à tarde, na cidade de Amesterdão. Que essência moveria a massa de pessoas que canta com Cristina Branco «Tudo isto é fado»? Quinhentas pessoas nessa noite, outras tantas na seguinte. (O público de segunda feira foi o mais diligente; a procura extraordinária de bilhetes obrigou a um segundo concerto, catalogado, por razões de agenda, para esse domingo.)

Ambos os públicos sabiam muito bem ao que iam. Otto, o técnico da sala, fala-me do público do De Kleine Komedie como um público extremamente crítico e conhecedor. «Em Alkmaar, [cidade onde estaríamos na quarta-feira], haverá entre o público quem não conheça a Cristina Branco, haverá quem olhe para o cartaz e pense “É uma mulher bonita, porque não ouvi-la?”. Mas não no De Kleine Komedie».

A sala resiste, belíssima, aos seus 220 anos, é tida como templo do cabaré, género nunca muito popular entre nós, mas ainda com expressão em países como a Holanda ou a Alemanha. Otto fala do nervosismo que os músicos experimentam quando sobem ao palco, receosos da plateia.

Sim, a plateia sabe muito bem ao que vai. Na segunda-feira José Melo, o manager de Cristina, entrega-lhe em mão a carta de um fã, que vem pela terceira vez, que espera ouvi-la cantar o «Fado das sedes». A carta vem escrita num inglês impecável, é curta e extremamente amável. O «Fado das sedes» não será cantado. O alinhamento é razoavelmente rígido, e para os encores estão previstas «Maria Lisboa» e «Tudo isto é fado».

Primeiro dia.

O que mais impressiona na casa de José Melo são as janelas imensas rasgadas sobre a rua. Quando Cristina Branco conheceu as casas holandesas, gostou desta transparência. Pareceu-lhe que, à semelhança das casas, os holandeses dispensavam cortinas, revelavam-se sem artifícios. Volvidos cinco anos sobre a sua apresentação na Holanda, sente-se aqui como em casa. «Se vivesse noutro país que não Portugal, seria aqui. Eu adoro isto.»

Quando cantou na Holanda pela primeira vez, tinha 23 anos. Pouco antes aparecera no programa da manhã da RTP. José Melo seguia-a com atenção. O seu nome constava de uma lista de novos talentos fornecida por Custódio Castelo. Tinha experiência zero, um vinil de Amália «Rara e Inédita», deslumbrava-se ante a possibilidade de cantar o fado. «Cristina Branco Live in Holland», editado localmente, retrata a aventura.   

Sábado, na casa de janelas imensas do Melo, Miguel Carvalhinho tem o avental posto, a feijoada quase pronta, Custódio corta meloas em pedaços. Fernando Maia e Alexandre Silva têm consigo as suas mulheres, chegadas nesse dia para ficar até quarta-feira. As carnes da feijoada foram trazidas por elas. Bem como o vinho que se bebe ao jantar. Há três semanas que o grupo está fora de casa.

No dia seguinte, de manhã cedo, encontraríamos o Miguel no parque dos museus. Voltámo-nos, «Bom dia», e era ele a fazer jogging, a anular o excesso da noite anterior. Meia hora depois, distinguimos ao longe as figuras de Cristina e Custódio; corriam, também.

Viver fora de casa implica disciplina e obstinação. O casal (estão juntos há seis anos) vive temporariamente num hotel de charme, duas ruas abaixo do Concert Gebouw, uma sala esplendorosa, cuja acústica é considerada das melhores da Europa. (Está já esgotado o concerto de Cristina, a 18 de Agosto. A mãe vai de Portugal para a ver. Barbara Hendricks canta a 25 de Julho). Os músicos que vão ao Concert Gebouw, sobretudo clássicos, instalam-se habitualmente neste hotel. Cristina conta que acorda com os pássaros das árvores em frente e com as escalas que os músicos ensaiam. Faz do pequeno apartamento a sua casa; faz uso da cozinha e distribui flores pelos cantos. As malas são a catrefada de coisas possível. Ou seja, tudo. No fim de semana seguinte iria por dois dias a Heindoven, dormiria num outro hotel, e levaria consigo uma nova mala, com o essencial de dois dias na vida de uma mulher. Ou seja, tudo.

A vida é arrastada como uma mala, puxava por um fio. Esta é a vida que ela gosta de ter. Não foi a que sonhou ter porque não sonhou que pudesse ser cantora. Era suposto ser jornalista, tinha o curso quase completo quando um dia saltou para um palco improvisado, num sítio que era pouco mais que um tasco para os lados de Almeirim. Antes disso, acedia a cantar fado para o avô. De quem fala com paixão, olhos humedecidos. Que lhe mudou a vida ao oferecer-lhe um vinil de Amália Rodrigues.

O avô não chegou a saber do seu sucesso.  

«Ah, vais usar esse vestido?, gosto muito». O vestido repousa sobre a tábua de engomar. Foi desenhado para Cristina pela dupla Manuel Alves/ José Manuel Gonçalves. Outras opções permanecem dependuradas nos cabides do camarim: a saia vermelha com o blazer preto, o vestido preto bordado a flores (lindíssimo, que não chegou a usar em nenhum dos espectáculos), o vestido preto que usou apenas uma vez porque tem a impressão que a faz gorda. 

Ainda no De Kleine Komedie, segunda feira. Pelas sete da tarde, desce ao camarim. O ensaio de som fora minucioso. Rejubilo quando a ouço interpretar Amália: «Perdida de amores/Perdida entre temores/ (...) Ai de mim, perdida/ Se deixas de ser quem és». Minutos antes de entrarem em palco, ouço-os novamente neste fado, afinando o tom, aquecendo o timbre. Mas, em cima do palco, «Se deixas de ser quem és» não chega a ser cantado.

O espectáculo são cerca de vinte canções; abre com um instrumental que arrebata a plateia, avança com «Meu limão de amargura», termina com as já citadas «Maria Lisboa» e «Tudo isto é fado». O corpo do espectáculo acompanha o disco «Corpo Iluminado», o único de Cristina Branco editado em Portugal. Recorre a temas escritos pelo poeta holandês Slauerhoff e anuncia o disco novo (a gravar em Setembro para lançar no ano que vem, chamar-se-á «Nu») com poemas de Eugénio de Andrade e Vinícius de Moraes. O repertório tradicional do fado quase não consta.

Cristina regressa ao camarim. Tem uma bem sucedida predilecção pelos acessórios da casa Vuitton: do porta fatos, à bolsa da maquilhagem, dos berloques para o cabelo à mala de todos os dias, tudo leva o monograma LV. «Ah, gosto muito desse vestido», comenta o Melo; traz consigo a lista do Firenzi, o ristorante italiano que fica paredes meias com o De Klein Komedie. «Se comesse agora alguma coisa, acho que vomitava.» Para a ceia, escolhe uma pasta com frutos do mar.

Agora são sete da tarde e ela dedica-se a engomar o vestido preto. Daí a pouco mais de uma hora, o palco será seu.

Custódio comprou esta guitarra em 1980. Nos primeiros seis anos esteve parada, «o som era verde», dependurada entre chouriços no fumeiro. Desde então, é a guitarra principal, extensão perfeita de si. «Acontecer uma coisa à minha guitarra é o mesmo que me acontecer a mim.»

O que é que faz do som de Custódio Castelo um som tão particular?

Estamos no ristorante do lado e peço licença para tocar a ponta dos seus dedos. Parecem ainda fervilhantes, dedilharam cerca de duas horas. Explica-me que o som resulta diferente porque prime as cordas de forma diferente; fá-lo com a polpa dos dedos, rente à unha, numa entrega dolorosa, milimétrica. A unha falsa, que lima e ajusta antes de cada espectáculo, e que ela assina para dar sorte, ficou para trás. Ao jantar, ela está a seu lado. Usam a aliança de casamento no polegar, «É o único sítio onde não incomoda».

Custódio acaricia a guitarra, pega-lhe delicadamente, sente-lhe as formas bojudas. Cristina tem uma dicção perfeita. Canta bem e diz bem porque entende o que as palavras querem dizer, sintetiza o Miguel. Por exemplo, quando ela canta «a vida» poderia cantar «o fado» que seria igual. Quanto mais se entranha no fado mais a sua alma se manifesta.

Os outros são os outros. Os outros são o Miguel, o Maia, o Alexandre. E o Melo. Vivem juntos desde há cinco anos, em tournée permanente. Olhar para a agenda de 2002 concretiza o que acabo de dizer:

Janeiro - Férias

Fevereiro - Itália

Março - França

Maio - Holanda

Junho - França, Angola e Suiça

Julho - Itália

Agosto - Bélgica, Córsega, Holanda

Setembro - Gravação do álbum novo

Setembro e Outubro - Tour pelos Estados Unidos e Canadá

Novembro - Noruega, Alemanha e Holanda

Dezembro - França e Suiça

Regressam a casa em vésperas de Natal.

Qual vida própria? A vida própria de um músico é a sua música. Uma vida errante.

«Olha bem as caretas que eu faço a cantar». Como se não fosse bem ela mas uma outra que ali está em frente, articulando gestos e sons na televisão. (Um casal com quem falei no final do concerto em Alkmaar, aludiu ao facto: «Uma coisa é ouvir o disco, outra coisa é ver na cara tudo o que as palavras querem dizer».) Os holandeses gostam da sua beleza clássica, da expressividade que lhe assoma ao rosto. É uma beleza portuguesa. 

A língua que Cristina usa em cima do palco é o inglês. Por vezes traduz sumariamente o sentido ou o título de uma canção. Não parece muito relevante o que significam exactamente as palavras que canta, ainda que a escolha dos poetas seja primorosa. As palavras vertem sentimentos, e di-los com a voz e com o corpo.

             

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2002.