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Anabela Mota Ribeiro

Tozé Brito

23.07.21

Tozé Brito tem 50 anos. É casado e tem duas filhas. É administrador em Portugal da Universal, companhia líder no mercado discográfico. É, além disso, ou antes disso, escritor de canções. Dos Gemini ao Victor Espadinha, das Doce ao Carlos do Carmo. Antes destas canções, houve outras. As primeiras têm 35 anos. O primeiro disco do seu grupo Pop Five foi editado há precisamente 35 anos. Canções, são mais que as mães. Todas cantaroláveis, recorrendo ao kitsch que ficou na moda no fim dos 90. A revisitação dessas canções é um interessante ponto de partida para a revisitação de certo Portugal. Que deixou de existir, mas de que todos ainda se lembram.

A vida deste rapaz dava um livro.

 

A maior parte das pessoas desconhece a sua relação com a escrita. São seus os primeiros textos do Estebes, personagem do Herman.

Conhecemo-nos nos anos 70, quando escrevi música para revistas do Parque Mayer. Quando o Herman fez na Rádio Comercial o «Re-beu-beu Pardais ao Ninho», apetecia-lhe falar de futebol, de que não percebia absolutamente nada. Eu sou fã de futebol, joguei quando era miúdo. Estendi o convite a um amigo meu, o António Tavares Telles, e começámos a escrever. Como as coisas funcionaram bem, quando fez «O Tal Canal» pediu-nos para continuar a escrever os textos.

 

Como é que era, juntavam-se uma noitada e iam escrevendo?

O António Tavares Telles e eu, o mais possível. Esperávamos pelas quartas feiras e era uma risota pegada. Não sei se está por dentro de futebol ou não...

 

Não.

Ao fim de semana há os jogos do campeonato português, ou Liga, como agora se chama, e a meio da semana os europeus. Depois de acabarem os jogos, às onze e pico, ficávamos a escrever até às quatro, até à hora a que as coisas estivessem prontas. Quando o Herman fazia os programas, metade do que tínhamos escrito ia para o ar e outra metade não sabíamos de onde vinha! Os nossos textos eram a estrutura sobre a qual trabalhava. E depois partia para as pomadas, para as loucuras todas.

 

A caracterização do boneco é do Herman?

Concordámos em manter o sotaque do norte. É ele que aparece com o casaco aos quadrados, com aquela gravata, com aquelas patilhas. Nós rebolávamos!

 

A escrita é uma paixão. Há anos imaginava que iria retirar-se aos 50 para escrever um livro. E então? Fez 50 anos em Agosto.

A vontade de escrever vem dos 20 anos. Até à ida para Londres, onde vivi dois anos, a música absorvia 90% do meu tempo, a literatura era residual. Em Londres, eu que saí daqui convencido de que era bom músico, ao cabo de uma semana apeteceu-me vender a viola e nunca mais tocar! Percebi que estava na quarta divisão europeia, bastava passar pelo metropolitano e parar uns minutos. A música deixou de ser o elemento fulcral da minha vida. Era tradutor durante o dia e estudante à noite na faculdade de Psicologia-Sociologia. Saio de Portugal em 72.

 

Um Portugal bolorento.

Fascista, com censura actuante. Dá-se uma viragem. No curso, os meus professores eram marxistas, todos. A minha introdução é completamente politizada, revolucionária. É a primeira vez que leio um livro, sei lá, de Henry Miller, que depois tem uma influência incrível na minha vida. É um assombro. Passo a devorar livros e a ficar apaixonado pela ideia de também escrever. Ideia que já não me apaixona porra nenhuma, desculpe o termo. Cheguei à conclusão de que está tudo mais que dito, que o que poderia escrever não acrescentaria coisa nenhuma. A não ser ao meu prazer pessoal.

 

O seu livro, é para publicar?

Não é para ficar na gaveta. Mas perdi a ilusão que se tem aos 20 anos de que se vai escrever uma obra que acrescenta. Li o «Ulysses» do James Joyce e reduzi-me à minha insignificância. Escrevo o que sinto, não pretendo ir mais longe. É um livro de pequenas histórias, aforismos, poemas. O que dá unidade é o facto de pertencerem a uma sequência, a um caminho.

 

É resultado das várias vidas que foi tendo? Aos 50 anos já viveu imenso.

Em termos autobiográficos, se quisesse escrever o que vivi... Aos 15 anos gravei o meu primeiro disco com o Pop Five. Há 35 anos que ando metido nestas vidas.

 

No Portugal de então, menos mediatizado, era extraordinário um grupo de miúdos gravar discos, fazer concertos.

A aventura custou-me problemas gravíssimos com o meu pai, que achava que eu devia ser advogado, médico, engenheiro. Estamos a falar de um Portugal específico, em meados dos anos 60.

 

E do Porto.

E de uma família como a minha, classe média, onde não havia sonhos de grandeza, onde não havia tacanhez de espírito. O meu pai não era diferente dos outros pais: sonhava para mim um futuro um bocadinho melhor que o dele. Não é o dele não fosse brilhante, tanto assim que chegou a presidente da companhia de seguros onde trabalhava. Mas penou muito para lá chegar. Quando lhe disse que queria gravar um disco: «Estamos a falar de gravar um disco nas horas vagas?».

 

A música aparece quando?

Comecei a aprender piano aos oito anos, que largo passados três. «Que coisa horrorosa, não consigo levar o piano para lado nenhum, quero estar com os meus amigos e não consigo tocar». Passo para a viola.

 

Muito mais fácil para fazer serenatas na praia.

Vai-se para qualquer lado, leva-se a namorada e tudo bem. Gravo o primeiro disco aos 15 anos com o Pop Five, onde era baixista.

 

Bebiam nos Beatles, imagino.

Nos Beatles, nos Stones e em toda a música inglesa que chegava cá, com atraso, mas que chegava. Zona Motown, Otis Redding, blues. Coisas que ouvíamos no «Em Órbita» também nos influenciaram.

 

Juntavam-se para ouvir o «Em Órbita»?

Gravávamos o «Em Órbita» todas as noites, numa revox. Depois, na sala de ensaios do Pop Five, passávamos a fita e tentávamos reproduzir o que ouvíamos. E tentávamos compor à imagem do que íamos ouvindo. O grupo torna-se conhecido também em Lisboa. Era raríssimo um grupo do Porto fazer espectáculos no Espelho de Água (onde agora é o T-Club).

 

Qual era o vosso circuito?

Fundamentalmente o estudantil e os arraiais do Porto. Os estudos foram descurados, houve alguma fricção familiar. Depois, o bom senso do meu pai fê-lo perceber que não valia a pena remar contra a maré. Deu-me abertura para fazer o que gostava e aos 18 anos transfiro-me para Lisboa, para o Quarteto 1111, como músico profissional.

 

Hesitou?

Estava preparado, como todos os músicos em Portugal, para me aguentar uns anos e acabar num casino qualquer. Para ter tido menos sucesso do que tive. Porque tive, com os 1111, os Green Windows, os Gemini, com músicas diferentes, com motivações diferentes. Em alguns destes grupos com uma atitude puramente mercantilista em que assumi que queria ganhar dinheiro rapidamente. Tinha casado, tinha filhas e não fazia parte dos meus planos continuar a contar os tostões e a viver com dificuldades. Não os renego de forma nenhuma. Não estava a dizer a mim mesmo: «Estás aqui a vender a alma ao diabo»

 

O Pop Five ia à televisão? Havia programas vocacionados para a música?

Pouquíssimos. Havia o Zip-Zip, que foi o primeiro onde o Pop Five foi.

 

Como era na escola com os colegas? E com as raparigas?

Era a parte agradável da questão. Constatei que a minha aceitação no sexo feminino subiu em flecha. Tinha 16 anos: o caminho é mesmo este!

 

Era assim tão importante?

Era, era. Vivi uma época em que namorar significava «Vale tudo menos tirar a virgindade». Quando venho para o 1111, instalo-me em Cascais, e encontro uma realidade diferente. Havia turismo, havendo turismo havia estrangeiras, havendo estrangeiras havia sexo. Raparigas da minha idade, de culturas distintas, abertas a divertirem-se. Isto à mistura com o aparecimento das drogas... Imagine a loucura.

 

Conte lá do primeiro charro.

Foi em Cascais. Bate-me tudo aos 18 anos: não dormir, não ter cuidado com a saúde, fazer experiências. Chego aos 20 de rastos, e peço ajuda a um médico. Experimentámos tudo: começámos com charros e acabámos com drogas pesadas. Muitos dos meus amigos ficaram agarrados. Tive sorte. Os meus companheiros de 1111 tinham mais 7, 8, 9 anos que eu. O Zé Cid teria 27, o Michel 28, eram adultos; quando entrava por essas zonas e disparatava um bocado, eram os primeiros a chamar-me à atenção. «Experimenta, mas não passes disso.»

 

Como é que o José Cid o convida para o 1111?

Estava a tocar na Festa do Lago, em Penafiel. Havia um lago enorme, esvaziado no Verão, um palco num canto, um palco no outro, dois grupos que alternavam. O 1111 a tocar de um lado, o Pop Five do outro, milhares de pessoas a dançar no meio. O baixista do 1111 estava mobilizado para o ultramar e o Zé Cid andava desesperado à procura de um substituto. Em cima do palco, percebo que tenho todo o 1111 à minha frente, a ouvir-me com muita atenção. No fim da festa, o Zé vem ter comigo «Estamos a precisar de um baixista, sei que tu vives no Porto e que nós estamos em Lisboa, como é que pode ser?».

 

Musicalmente o que é que o 1111 significava? Havia os Sheiks, o Conjunto João Paulo, e outros grupos congéneres.

A primeira canção portuguesa, e única, que alguma vez passou no «Em Órbita» foi «A Lenda del Rei D.Sebastião». Era essa a importância do 1111, finalmente um grupo diz que cantar em português faz sentido. Os Sheiks, com todo o respeito, faziam aquilo que nós fazíamos, cantavam em inglês. É aí que começo a abrir os olhos em termos políticos e a ver o país em que vivia.

 

Chegou a estar na tropa?

Havia um serviço chamado Alerta Estar, sediado em Lisboa, onde estavam os músicos, os actores, os artistas de circo. Para quê? Para formar companhias que iam dar espectáculos às tropas em Angola, em Moçambique. O Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo, passaram todos por lá. Convenci-me de que ia para o Alerta Estar. Esqueci-me de um pequeno pormenor: o 1111 tinha discos proibidos pela censura. Soube que tinha fichas na Pide, que podia ser um elemento subservivo no Alerta Estar.

 

E parte para Inglaterra. Foi a salto?

Um agente da Pide passou-me para Espanha. Com dez contos no bolso, passavam-nos para o lado de lá. Saí pela fronteira de Valença, de janelas abertas. Fui a ouvir um relato do Benfica, num domingo à tarde. O meu pai e a minha mãe acompanharam-me até Madrid onde apanhei um avião. Instalei-me em Londres por dois anos.

 

Porquê Londres?

A minha mulher, a Tessa, é inglesa. Casei um mês antes de ir para a tropa. Estava habituado a uma vida confortável. Quando chego a Londres, o dinheiro não chega. O meu pai marca-me entrevistas com agentes de seguros e arranjo trabalho como tradutor.

 

Nunca tocou no metro?

Não. Trabalho como tradutor das nove às cinco, saio a correr para a faculdade (com aulas das seis às dez), chego a casa às onze e meia, levanto-me às seis e meia para repetir o circuito. Uma casa mínima, um frigorífico. O Inverno de 72 foi dos mais rigorosos em Londres, metia moedas de dez pences para ter aquecimento, cada moeda durava uma hora. Foi um choque. Aos fins de semana, para me divertir, pegava na viola e tocava em pubs. E bebia uns copos de borla, que era, no fundo, a paga. 

 

Esteve dois anos sem vir a Portugal.

Só vim depois do 25 de Abril. Chorava constantemente de saudade, do mar, do sol, da comida, dos amigos e dos pais. Esperei que a minha filha Ana nascesse, e vim. Uma vez cá, ainda fiz tropa. Apanhei todas as datas, o 11 de Março e o 25 de Novembro. Fui para Tavira, depois Queluz, depois Mafra, depois fui saneado porque estava numa unidade do Copcon.

 

Reingressa no 1111 e retoma a ligação à música. Funda os Green Windows.

Os Green Windows nascem em 72 para um festival. O 1111 não faz dinheiro para viver, decidimos mantê-lo, mas criar um outro grupo. Um produtor inglês, que estava cá, foi ao Museu das Janelas Verdes, achou graça ao nome e baptizou-nos de Green Windows. O nome mais idiota que ouvi! Era o Mike, o Zé, o Moniz Pereira, eu, e as nossas mulheres. Duram até 76 quando acabo com os Green Windows para começar os Gemini.

 

Lembro-me bem das canções dos Gemini.

Não me envergonhe

 

São uma espécie de Abba à portuguesa. Podemos dizer que as canções são pirosas, mas passados 20 anos toda a gente as sabe cantar. Passaram a ser grupos de culto.

O Zé Cid é o grande líder do 1111, e continua a ser dos Green Windows. Em 75 começa uma carreira a solo. Decidimos que o Verão de 76 era o último Verão de espectáculos. «Pensando em ti», a primeira canção dos Gemini, sai em Dezembro de 76.

 

O grupo era composto por si, pelo Mike Sargent, pela Fá e pela Teresa Miguel, mais tarde recuperadas para as Doce. Usavam camisas contrastantes com o fato.

E golas gigantescas e calças à boca de sino. Misturámos Abba, fórmula testadíssima e com sucesso no mundo todo (dois homens e duas mulheres), com o disco sound da Donna Summer e dos Bee Gees. A Saturday Night Fever nascia na altura. Diverti-me loucuras, mas nunca gostei do que estava a cantar. Assumo-o sem problema. Foi a primeira vez que um grupo me deu o dinheiro suficiente para comprar uma casa. Pequenina, um andarzinho. Até aí, era comer, pagar a renda, pagar electricidade, água e gás, tirar umas feriazinhas de duas semanas. Dou a entrada para a casa, compro um mini.

 

Só comprou carro nessa altura?

Só. A boleia era muito uma coisa dos anos 70, andávamos todos pendurados uns nos outros! A loucura de sair de uma discoteca às três da manhã e dizer: «Vamos tomar o pequeno almoço ao Algarve!»... Eram cinco horas de caminho, às oito estávamos em Albufeira a tomar pequeno almoço.

 

Em 78 entra como AR [responsável por artistas e reportório] na Polygram. Nos bastidores, passa a descobrir pessoas, escrever-lhes as canções, produzir-lhes os discos, gerir as carreiras. As Doce são o exemplo mais emblemático da sua vocação. Como é que nasce o grupo?

Em 79 o Mike e eu tomámos a decisão de acabar com os Gemini. Ao fim de três anos o grupo esgotava-se. Tinha-nos dado o dinheiro que queríamos ganhar, o prazer que queríamos ter, a fama que nenhum outro nos tinha dado. Tinha começado em cima com o «Pensando em Ti», aguenta-se, vai à Eurovisão, onde leva uma pancada muito grande. Mas estar em frente a 500 milhões de pessoas... Entra-se em palco e sente-se que se tem a bandeira portuguesa estampada na testa.

 

Que canção era?

Uma coisa horrorosa, que me perdoem os autores, chamada «Dai-li, Dai-li, Dou».

 

Papagaio voa! Pois.

Começámos a desacelerar e a pensar noutras aventuras. (O meu disco com o Paulo de Carvalho é de 79.) E, no «Califa», um restaurante em Benfica onde íamos muitas vezes, quando falávamos da dissolução do grupo, tínhamos duas senhoras à frente, a Teresa e a Fá. Olhámos uns para os outros. «Porque não um grupo só com mulheres?»

 

Não havia girls bands ou boys bands.

Nem lá fora. Tínhamos feito uma experiência embrionária com as Cocktail. Nasce comigo, com a Rita Ribeiro, com a Maria Viana e com a Fernanda, que é a Ágata. A canção chamava-se «O que passou, passou».

 

Eram projectos festivaleiros?

Criados para o festival da canção, a montra onde experimentávamos fórmulas. Com as Doce, alargámos a quatro mulheres e pensámos capitalizar a parte visual. As Doce assumiram mostrar as pernas: «Estamos aqui, vestidas como estamos, qual é o problema?». Isto acoplado às canções que tinham uma dose de sensualidade e atrevimento que não era habitual, «Ok, ok, põe-me ko».

 

Quando andava na escola primária, as minhas amiguinhas e eu achávamos que pôr ko significava pôr grávida!

Essa é incrível! Nem a mim me passou pela cabeça! A ideia era «Dá cabo de mim, faz de mim o que quiseres».

 

Como é que arranjaram as outras duas? Dizia-se que a Fá e a Teresa eram os motores.

A Lena [Coelho] canta tão bem como a Fá e a Teresa. Era uma miudinha de 16 anos, linda de morrer, tinha passado pelas Cocktail, substituído por uns meses a Teresa nos Gemini. Tínhamos uma morena assumidamente morena, a Lena, uma morena meio termo, a Fá, uma ruiva, a Teresa. Fomos à procura de uma loura que minimamente cantasse.

 

Especulava-se que a Laura Diogo cantava com o microfone desligado.

Não é verdade. Não tinha uma voz que se comparasse às outras, os microfones das outras estavam mais alto, mas ela precisava do microfone ligado nem que fosse para, no meio das canções, dizer: «Cantem, dancem, saltem».

 

Tudo isso era ensinado por si?

Trabalhámos sempre em equipa. Eram as quatro, o Mike, o António Pinho, o Nuno Rodrigues e eu a escrever. E o José Carlos, o costureiro, peça fundamental neste puzzle. As meninas tinham a particularidade e a força de parar o país. Quando as Doce iam à televisão, no dia seguinte falava-se dos fatos que tinham levado como se fosse uma coisa do outro mundo.

 

Nos anos 80 escreveu canções para toda a gente.

Vou do Carlos do Carmo, para quem escrevi com o Ary dos Santos, das experiências mais bonitas que me aconteceram... Eu pegava na guitarra. «Cá vai uma sequência de acordes». Ele batia com os dedos na mesa, contava as sílabas, tomava notas. Dez minutos depois: «Olha isto»! Do Carlos do Carmo à Dina, do Tony de Matos à Adelaide Ferreira.

 

Tinha uma noção clara do que era a fórmula musical, do que era uma canção?

Essa noção era fundamental, julgo que a tive sempre. É um ofício como outro qualquer, não vamos fazer disto uma arte. Nunca fui capaz de escrever para uma pessoa que não conhecesse. Pediam-me canções por telefone e eu pedia um encontro, uma conversa, para perceber o que é que a pessoa gostava de cantar, por onde queria ir. Em 80% dos casos, as canções que escrevi encaixaram como uma luva nas pessoas que as iam cantar. Produzi-os a todos, como produzi as Doce, o Victor Espadinha.

 

O «Recordar é Viver» foi escrito por si?

Música e letra. O Victor estava desempregado, tinham-no marginalizado no teatro por questões sindicais. Conheço-o através da amizade das nossas mulheres, ambas inglesas. «O que é que posso fazer?, preciso de ganhar dinheiro». O timbre da voz dele é riquíssimo. Pensei, «Ele não canta, tenho de o pôr a falar».

 

E o Joe Dassin estava a fazer sucesso.

Peguei nas três primeiras notas do «L’Été Indien» e pu-las ao contrário. Tão simples quanto isto. Se puser a canção ao espelho, são as mesmas notas, com o mesmo ritmo, tocadas ao contrário. A partir das três notas invertidas, nasceu o «Recordar é Viver».

 

Nesses anos, só em direitos de autor, deve ter ganho uma pipa de massa.

Foi a altura em que ganhei mais dinheiro como autor. Mas a percentagem retida para os autores é curta. Nos concertos, dos Gemini especialmente, já cobrávamos um cachet muito alto. Na ordem dos 120 contos. Deduzíamos despesas, pagávamos o que tínhamos a pagar. No fim, calmamente, levávamos 15, 20 contos para casa. Por espectáculo. Há 20 anos era muito dinheiro. Começávamos a trabalhar em Junho, terminávamos em Setembro. Íamos às Festas da Senhora da Agonia, da Senhora de não sei quê. Entregavam-nos o dinheiro num saco de plástico, contávamos as notas de vinte e cinquenta escudos até perfazer os cem contos de cachet. E andávamos armados na carrinha porque foram várias as vezes que nos tentaram barrar o caminho com troncos de árvore. Os managers davam uns tiros para o ar!

 

Tinham manager?

As estruturas eram muito pequenas. Tínhamos um técnico para as luzes e o som, um roadie e um manager. Eram outros tempos, muito mais divertidos. Os músicos têm hoje a guitarra afinada antes de entrar em palco, tocam duas canções e passam a guitarra ao roadie que a afina com o aparelho e os auscultadores. Nós afinávamos de ouvido! Enquanto um de nós falava, contava a história da canção e tal, o outro afinava a guitarra. Quantas vezes me aconteceu partir uma corda do baixo, o Zé Cid ficar sozinho no piano a inventar uma abertura, e eu correr lá trás e substituir a corda.

 

O mercado é actualmente dominado por multinacionais, o grau de exigência é enorme, a tolerância ao fracasso é reduzida. Como é que consegue conjugar isto com as suas características pessoais, com o gosto de falar com as pessoas, de as acompanhar

Aprendi a lidar com isso. A princípio tive dificuldade. Vinha de ser AR, de defender os artistas contra os administradores. Os meus artistas todos, um catálogo fabuloso. Realmente criei um catálogo. A Emi teve anos em que perdeu a batalha. Fui buscar o Carlos do Carmo, o Paredes, o Sérgio Godinho, o Jorge Palma.

 

Era das pessoas mais poderosas do meio, sem dúvida.

Como continuo a ser. A Universal é hoje a maior companhia do mundo, é líder de mercado. Em música portuguesa não é porque cheguei há um ano. Dê-me mais dois ou três anos. O convite para dirigir a Universal era irrecusável, convites destes aparecem uma vez na vida. Senti que não podia nem devia dizer que não. Há coisas que não fazia por dinheiro nenhum. Coisas em que sentisse que não tinha estado a ser honesto para comigo, que não era feliz, que me estava a vender.

 

Não sentia que se estava a vender quando fazia canções para ganhar dinheiro?

É legítimo ganhar dinheiro. Agora, não é legítimo ganhar dinheiro de uma forma desonesta. Como me propuseram muitas vezes.

 

Como assim?

Estou num negócio onde é muito fácil baterem à porta e dizerem: «Quero gravar um disco, você disponibiliza-me cinco mil contos, eu gravo com dois mil e os outros três são seus». Dou-lhe a minha palavra que nunca aceitei um tostão para fazer coisas deste tipo, nem nunca abri portas porque me pagaram por fora.

 

Esse jogo de bastidores é muito associado ao meio.

Existe em todas as profissões, existe na música. Sei onde se passam. Eu não consigo dormir se não estiver bem comigo. Tenho de me confessar, de ir à igreja ao domingo e limpar a consciência.

 

Mas vai mesmo?

Sou católico praticante. Desde há seis, sete anos. Sou católico por baptismo e cristão por convicção. Não conheço moral mais perfeita do que a que o cristianismo me transmite. Fiz um percurso lógico, lendo desesperadamente filósofos cristãos, cientistas. «O Homem que não Acreditava no Céu», do francês Jean Guitton, em que este mantém uma conversa com um filósofo ateu, deu-me pistas incríveis. Punha uma questão em termos radicais e concretos: de um lado é o acaso, do outro é o mistério. Foi a frase em que encravei e que não me deixou dormir: «Ou se acredita que tudo o que existe, existe por acaso, ou...». Entre o acaso e o mistério, prefiro o mistério. Era disto que andava à procura há muitos anos. «Por onde é que entro?». A fé não se escolhe, não se compra, é-nos dada. Aceito mais facilmente a ideia de que há uma força criadora por detrás de tudo isto do que a ideia de que tudo isto resulta de um acaso. E é tão claro para mim que Deus existe como estar aqui sentado consigo. Sou dez vezes mais feliz desde que descobri o meu lado espiritual. Que não tem nada a ver com o lado religioso, onde há pontos de discordância incríveis em relação à minha Igreja.

 

Qual é o fio condutor? Consegue identificar o projecto da sua vida? Partamos do princípio de que cada um tem uma missão.

A minha primeira missão é ser pai e marido. Logo a seguir é ser amigo.

 

Isso é ser amor.

É. Em 29 anos de casamento, nem todos os dias são felizes, evidentemente. Passei por muitos problemas, mas prevaleceu sempre um sentido: sentir-me um elo de uma corrente. Via os meus pais e de alguma maneira sentia que fazia parte dessa corrente. Vivia distraído para o facto de a continuação da corrente passar pelas minhas filhas. Tenho irmãos por quem dava a vida, como dava pelas minhas filhas e pela minha mulher. Pelos meus amigos, não sei se dava a vida, mas dava tudo o que tenho. Foram estes valores que em determinado momento me deram sentido à vida. É aí que percebo qual é a minha missão

 

O seu pai e sua mãe, ao longo dos muitos anos de canções, tinham particular orgulho em vê-lo em cima de um palco?

Secreto, secreto. Os meus pais tinham medo do meu futuro. Começaram a dizer que gostavam da minha música quando cheguei a casa e disse: «Estou na Polygram, tenho um emprego como toda a gente».

 

Do que é que o seu pai se poderia orgulhar mais em si?

Da mesma coisa de que se orgulharia nos meus irmãos. De ser uma pessoa honrada, honesta, íntegra, que respeita os valores que me ensinou. Uma questão de honra.

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2001