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Anabela Mota Ribeiro

Daniel Oliveira

27.07.21

O que é que interessa o que o Daniel acha? A pergunta é dele. Daniel Oliveira é um dos mais reconhecidos opinion makers da sua geração. Truculento, convencido, raivoso. Político, e antes jornalista. Colunista do Expresso. Comentador da SIC Notícias. Alinhado, com muito gosto. O filho de Herberto Helder que não queria ser conhecido como o filho de Herberto Helder.

Um esclarecimento feito a Daniel Oliveira e que fica para os leitores: não ouvi nenhuma das pessoas que temos em comum. Evitei a sugestão. O que levava para a entrevista era a curiosidade pelo seu percurso, que conhecia mal, apesar de nos termos cruzado profissionalmente. Conhecia o boneco, como ele lhe chama. Pela primeira vez, iria conceder uma entrevista pessoal. O que o deixava nervoso. Embora se tenha falado de política o tempo todo. É possível entrevistar Daniel Oliveira e falar do Bloco de Esquerda, de que foi destacado dirigente, sem uma vez apontar o nome de Francisco Louçã? É. Sem fazer disso uma questão. Se é uma entrevista pessoal, que fique o que deve ficar além da espuma dos dias. Entendimento tácito sobre o assunto.

Afirmou-se no espaço público nos jornais e na blogosfera. Escreve para o Expresso. Na SIC Notícias, é comentador do Eixo do Mal. É um homem da sombra que não resiste ao (eventual) protagonismo da boca de cena. Não jura que não venha a ser um oportunista.

 

 

Quando era pequeno, quem é que era o seu herói?

Ui. Público? Privado? Há os idealizados e os reais. Tinha uma referência: o meu padrasto, Manuel Gusmão. Foi responsável, com a minha mãe e o meu irmão mais velho, pela minha formação cultural e política. Era um herói não reconhecido, como são sempre os que estão ao nosso lado. Foi fundamental para muitas das escolhas que fiz, para [a definição] dos meus interesses. O meu herói público – se calhar isto é deprimente… [riso] – era o Álvaro Cunhal.

Eu ligava muito a política. Anormalmente para a minha idade. Não-anormalmente tendo em conta a época. Tinha quatro anos quando foi o 25 de Abril.

 

Achei que ia responder Lenine. Cunhal, apesar de tudo, estava próximo.

Nunca tive um grande fascínio pela União Soviética. Nem quando fui militante do PC. Na adolescência, os meus heróis (e tinha sobretudo heróis políticos) eram heterodoxos. O Tito e o Berlinguer. Do Tito arrependo-me, do Berlinguer, não. Tinha simpatia por desalinhados. Em criança, não. Em criança, ia para a escola com um emblema do Ho Chi Minh.

 

Quem é que lhe punha ao peito o emblema?

Ninguém. Tinha um interesse que era influenciado pela minha família (o meu padrasto foi deputado à Constituinte, a minha mãe era sindicalista). Fui para os pioneiros [organização do PC para crianças] e a minha mãe achava mal. Eram militantes. Os militantes do PCP, em princípio, são alinhados. Mas eram, do ponto de vista cultural, heterodoxos. E liberais, do ponto de vista dos costumes.

 

Ambiente severo?

Severidade emocional. Não havia uma severidade moral. Financeira, havia por uma questão de necessidade, não por princípio. Não nasci numa família abastada. Nasci numa família intelectual sem dinheiro.

 

Uma família para quem o dinheiro era uma coisa despicienda?

Para quem ele não existia.

 

Mas a vida não era funcionalizada ao dinheiro, como acontecia com muitos dos proletários que defendiam, para quem o dinheiro era a questão central.

É verdade. A minha mãe era funcionária dos Correios, teve quatro filhos; apesar de ser um quadro superior, recebia muito mal. Nunca fui pobre, mas não era sequer de classe média. Não havia luxos, havia livros. Os nossos projectos de vida, meus e dos meus irmãos, o modo como a minha mãe os via, não era em função do dinheiro. As primeiras calças de ganga que tive foi tarde.

 

A discussão é gratuita. E essa havia em abundância na sua casa. Resultava dos livros e do pensar.

Havia. A família materna, com que vivi e cresci, tinha duas espinhas dorsais de identificação: a política e a música erudita. É um clã. Não é uma família muito grande, mas é uma família alargada. Sempre foi, e manteve-se. E muito homogénea. Éramos 13, 14, 15, 16 militantes do PC, só na família. Ainda hoje, a diversidade vai entre o Bloco [de Esquerda] e o PC – é pouca. Arrisco-me a dizer que sou a pessoa mais à direita na família [riso].

A minha avó era professora do Conservatório. Fui o único que não andou no Conservatório em toda a família.

 

Porquê?

Não tenho qualquer talento musical. Gosto de cantar, cantar entre amigos. Tinha uma voz muito rouca. Boa para cantar fado. A minha família não ligava. Eu gostava muito.

 

Era considerado um toque de marialvismo…

Era. O fado tinha uma conotação que não tem hoje. As pessoas achavam graça quando eu cantava fado. Era um miúdo bem disposto, gostava de fazer rir. Um bocado teatreiro. 

 

E sempre era uma forma de conquistar um espaço seu.

A família tinha talento para duas coisas que me esmagavam. É deprimente cantar o Parabéns a Você ao lado deles, porque são todos muito afinados. A minha mãe cantou no Coro Gulbenkian. Uma vez circulou uma partitura e percebi o que era ser analfabeto. Não sabia lê-la. Também tinham todos jeito de mãos. Provavelmente procurava os meus nichos de mercado. Não era tanto revolta.

 

Qual foi a sua forma de rebelião? Em algum momento, de alguma forma, todos nos rebelamos contra a família.

Em coisas pequenas. Na forma como vestia. Era mais betinho. Também foi uma influência de ter estudado no Pedro Nunes. Sempre fui muito provocador. Mas isso é da minha natureza. A rebelião era permanente desse ponto de vista. Entrei aos 12 anos para a Juventude Comunista. Quando falo da minha vida política, ela começou talvez demasiado cedo. Talvez não.

 

Foi há 30 anos.    

Para mim não foi mau. Foi um espaço de socialização como outro qualquer. Há pessoas que saem com amigos, que bebem copos, que vão para os clubes, para os escuteiros, e há pessoas que se envolvem na política.

 

Também era o espírito de um tempo.

Com certeza. E o espírito da minha família. Nunca fui muito disciplinado. A política deu-me alguma disciplina. Capacidade de falar em público. De discutir. Deu-me um interesse direcionado. Tinha algumas características para uma adolescência perdida. Era um aluno irregular, com períodos péssimos e outros em que estava entre os melhores da turma. A escola não me interessava assim tanto. A política deu-me foco, permitiu-me ser consequente. Não ser diletante.

 

Era um pecado burguês, ser diletante?

Continua a ser um pecado horrível. Há coisas em que sei que ficou uma cultura comunista. O que é bom no ter tido esta formação é que é um travão. Detesto a diletância. Detesto-a e muitas vezes identifico-a em mim. A diletância e a inconsequência marcam parte do que faço.

 

As características que apontou, e que adquiriu na política, são fundamentais para a sua afirmação enquanto opinion maker.

A inconsequência também faz parte do trabalho do opinion maker. Falamos de tudo. Um estrangeiro, que não me conhecia, quando ainda não era um opinion maker, perguntou-me: “Você só se interessa por tudo ou interessa-se por alguma coisa?”. Uma pergunta acertadíssima. O problema é que, tendencialmente, só me interesso por tudo. Tenho paixões por coisas diferentes, novas. Inconsequentes. Aí, a política deu-me, mais do que disciplina, um sentido de dever. Enorme. Brutal. Asfixiante, às vezes.

 

Que se traduz em quê?

O que é que estou aqui a fazer? Para que é que trabalho? Qual é a função do que faço? Se tenho palco, para que é que o devo usar? A favor de quem? Sou incapaz de olhar para o palco que me dão e pensar: “Agora vou dizer o que acho, e pronto”. Fui dando provas de que sou uma pessoa livre, que pensa pela sua cabeça. Mas não acho que pensar pela minha cabeça e dizê-lo chega.

 

Esteve quase sempre ligado a grupos políticos. O PC, a Plataforma de Esquerda, e com uma maior exposição pública no Bloco. Mesmo que dê provas de que pensa pela sua cabeça, tem a noção de que é considerado alinhado?

E quero ser. Vejo-me como uma voz alinhada. No dia em que disserem que sou independente, fico triste. Não o quero ser na vida. Quero ser comprometido. Mesmo que venha a não ser de partido nenhum. Como opinador: o que é que interessa o que o Daniel acha? Não é que represente um partido. Fiz sempre por não representar um partido nas minhas opiniões. Mas quando escrevo tenho um compromisso com uma área política.

 

O Bloco?

Não é o Bloco. É mais ampla do que o Bloco. Para simplificar, vai de sectores do PC a sectores do PS. Sou um social democrata. Coisa que a maior parte das pessoas do Bloco não é. Estou comprometido com essa área enquanto forem essas as minhas convicções. Mais do que comprometido politicamente, é um comprometimento social. Costumava dizer (e já não estou a falar como opinador) que numa guerra entre patrão e sindicato, escolho o sindicato, mesmo que o sindicato não tenha razão. O patrão já tem muitos porta-vozes. Não precisa de mim para nada. (Isto é uma metáfora. Até já critiquei sindicatos.) O que quero dizer: eu, com razão, sem razão, enganando-me, acertando, sinto que tenho um privilégio.

 

O privilégio de ser ouvido, de ter uma tribuna.

Um privilégio nunca merecido, obra do acaso, da sorte, de algum talento, seguramente; mas há milhares de pessoas que têm opiniões como eu e que conseguem expressá-las como eu e que teriam direito a ter espaço. Aproveito o privilégio, para usar aquela frase horrível do MR[PP], não para dar voz a quem não tem voz. Não tenho esse direito, de achar que sou porta-voz. Ninguém me elegeu para isso. Mas para tentar, numa agenda mediática completamente distorcida, puxar um bocado para o outro lado. No dia em que não cumprir este dever, não tenho legitimidade para escrever num jornal. Serei apenas mais um.

 

Como é que concilia esse comprometimento e sentido de dever com a liberdade que disse sentir que tem?

É possível. É aliás a única maneira. O comprometimento que não é livre não é comprometimento – é obediência. O comprometimento tem de ser crítico. Penso pela minha cabeça e a minha cabeça está comprometida. Colunistas e opinadores que não fazem parte de uma cultura política são borboletas. Dizem uma coisa hoje, outra amanhã e nada daquilo bate certo. Tenho uma linha de raciocínio, que não é estática, mas que é coerente. É a minha coerência que me permite ser livre. Não recebo ordens para dizer o que quero dizer. Concordarei com 60% das coisas que o Bloco defende. O que é imenso. Há poucas pessoas individualmente com quem concordo em 60%. Não deixo é aparecer 40% com os quais não concordo. Não entro em guerras permanentes com o Bloco. Não faço da minha liberdade uma bandeira.

 

Ultimamente a divergência entre o que pensa e o que o Bloco defende tem aparecido mais.

Tem. Acho que estou a defender, mais coisa menos coisa, o que sempre defendi. O Bloco tem tido algumas derivas que me agradam menos. Não faço disso um drama.

 

Depois de ter saído da Comissão Política, sente-me mais livre para exprimir essa dissidência, o desacordo em relação às derivas do Bloco?

Minto se disser que não. Ser dirigente de um partido [e ser opinador] – e isso pesou para deixar de ser dirigente, por opção própria – [resultava] numa situação injusta para todos. Quando escrevia a minha opinião, muitas pessoas que me liam achavam que aquilo era a opinião do Bloco. Era injusto para o Bloco porque muitas vezes não era; era a oposta. E às vezes havia um desconforto com o que eu escrevia (não que alguma vez alguém da direcção do Bloco me tenha chamado a atenção).

 

Um dirigente pode ser opinador?

Um dirigente pode ser tudo, menos jornalista e juiz e mais duas ou três actividades. Jornalista no activo, ou numa redacção, ou de política. Já critiquei decisões do Bloco em que estive envolvido. Havia qualquer coisa que roçava a deslealdade. Por outro lado, não podia ser desleal com os leitores e dar uma opinião que não era a minha. Percebi que não estava a conseguir gerir bem a situação e que tinha de fazer uma escolha. Só passei a ser comentador nessa altura. Até lá, era um colunista alinhado politicamente. Já só pessoas muito distraídas me vêem como dirigente político. Não sou, e tenho uma actividade partidária mínima. 

 

Não ter actividade política era sequer uma possibilidade, aos 12 anos, quando iniciou o seu percurso político?

Não. Continua a não ser. A minha grande opção, do ponto de vista profissional, não era a política. Decidi que ia ser jornalista na quarta classe. Adorava política internacional. Ofereciam-me o guia do Terceiro Mundo, uma espécie de Atlas político (alinhado politicamente, é claro). Ser funcionário de um partido não estava no meu horizonte. Nunca pensei que viria a ser dirigente partidário.

 

Porque não?

Gosto de estar num partido, mas não sou um homem de partido. Sou um individualista. Sou demasiado egocêntrico, vaidoso, autocentrado. O que torna difícil a convivência num partido. É sempre uma enorme tensão entre o sentido de dever e a minha natureza.

 

Ainda mais para uma pessoa que aponta como ídolo Álvaro Cunhal.

Era um ego-maníaco. Era um autoritário. De uma inteligência superior. Ainda mantenho uma razoável admiração por ele. Mas mandava no partido. Como não acredito em partidos assim, não há espaço para ego-maníacos.

 

Gosta de estar no grupo, nos partidos. Ao mesmo tempo, quer ser protagonista nessa peça que é representada.

Pois. Talvez. Não sei se alguma vez fiz essa escolha. Se era capaz de viver no absoluto anonimato? Era. Nunca quis ser famoso. Os miúdos querem ser reconhecidos; nunca tive isso. Não vou dizer que nunca quis ser protagonista. Todos somos um pouco vaidosos. Se não quisesse nenhum protagonismo, não entrava num programa de televisão. Mas nunca foi um objectivo da minha vida. Ter importância nas coisas, foi. Gosto muito de ter um papel na sombra. Um papel determinante na sombra. E tive. Em vários momentos.

 

Isso é ser o ideólogo?

Ideólogo, estratega, táctico.

 

É o reconhecimento da sua inteligência?

Isso chega-me. Até porque sei que o protagonismo é fácil. É tão mais fácil! Para ser reconhecido basta aparecer. “Gosto muito de o ver na televisão.” Não é: “Gosto muito do que diz”. É preciso ter talentos de comunicação. Não é preciso ser especialmente inteligente. O meu boneco [televisivo] é sempre um bocadinho mais estúpido do que eu. A maior parte dos bonecos das pessoas que conheço são mais estúpidos do que elas.

 

Partes boas do reconhecimento?

Fazerem-nos sentir importantes. Desde que não percamos a noção de que essa importância é falsa… Não terei direito a uma nota de rodapé de uma nota de rodapé de uma nota de rodapé da história de qualquer coisa. Não sou deslumbrado. Gosto de falar de mim, mas isso não é novo. [riso] Mesmo quando ninguém sabia quem eu era gostava de falar de mim. Pelo contrário, a exposição pública reduziu a minha vaidade. Pôs-me no meu lugar. De repente ficamos inseguros.

 

Voltemos ao momento em que se jogam as grandes cartas. Houve um momento em que quis ter uma menção numa nota de rodapé? Um papel mais executor.

Não. Não sei se aguento essa responsabilidade. Uma das razões porque acabei por ser comentador é por que o papel de protagonista tem um lado que me estimula e um lado que me assusta.

 

E se a decisão for errada? – é isso?

Com certeza. É sinal de alguma fraqueza. No Bloco tive um papel relevante mas escondido, e sempre peneirado pelos outros. Tinha um papel nas decisões, mas não final e determinante. Não tenho assim tanta confiança na minha razão. É preciso ter uma grande autoconfiança (e eu tenho alguma) para se decidir o futuro de tanta gente. Sendo um grupo, permite que essa responsabilidade seja dispersa. A decisão colectiva tende a ser mais acertada. Várias cabeças juntas anulam as coisas realmente estúpidas. Não é humildade. É ter a noção dos nossos limites.

 

Em português curto e grosso: é uma questão de tomates?

Acho que os tenho bastante. Se há qualidade que acho que tenho é a coragem.

 

Afronta poderosos. A zanga com o clã Soares dos Santos é apenas um dos casos.

A coragem tem sempre um grau de inconsciência. O que é que me pode acontecer? Nada de especial. Ficar sem emprego. Acho que me consigo virar. Se não corro o risco de passar fome, chega.

 

Vou perguntar de outra maneira: o que é o torna vulnerável?

A melhor maneira? Não me importar de ser vulnerável. Há um lado de arrogância na coragem. Tenho-o. Não me preocupa a minha respeitabilidade (no sentido mais bacoco do termo). “É muito interessante, muito inteligente, muito culto…” Como se a cultura fosse um Ferrari que se anda a mostrar por Portugal. Estou-me nas tintas para isso. O dinheiro: gosto de viver bem. Não vivo com excessos. Na Índia entrei no lobby do Taj Mahal e não me apetecia ficar ali. Há um luxo a partir do qual não me sinto confortável.

 

Advém uma culpa de um conforto excessivo?

Sim.

 

Viver numa casa com jardim, como esta, e provindo de uma família como a sua…

… não há dia nenhum que não me ocorra que sou um privilegiado. Até porque não há dia nenhum em que não escreva sobre a desigualdade em Portugal, a pobreza. Não sinto uma culpa que tento permanentemente expiar. Vivo exclusivamente do dinheiro do meu trabalho. Não exploro ninguém, não tiro dinheiro a ninguém. Mas sei que há muita gente que trabalha muito e que tem pouco. Nas opções privadas tento não ser contraditório, mas sou. Não consigo ser coerente entre o que apregoo e o que faço. Como quase toda a gente. Os que conseguem, assustam-me.

 

O que é que muda significativamente quando vive com mais dinheiro ou menos dinheiro?

Perde-se liberdade. O que não quero é ter um nível de vida que me tire a liberdade. Não me endividar excessivamente (as minhas dívidas são as da generalidade das pessoas – comprei casa).

Não consigo perceber porque é que a tantas pessoas que escrevem falta coragem. De que é que têm medo? Há uma coisa que me afecta: se alguém me chama cobarde. É pior do que tudo. Há um lado de vaidade que me move na minha coragem.

 

Como é que lida com o seu erro?

Depende do erro. Estou a rever textos, vou publicar em livro algumas crónicas. Mil e tal textos. Encontro ali muitos, muitos erros. [Leio os textos] com alguma distância, com naturalidade. E até com um riso trocista em relação a mim próprio. “Daniel, és tão exagerado” “Tens alguns ódios de estimação que te cegam”.

 

O que é que o cega?

Nalguns casos, paixão. Sentir que tenho um dever de combate, que me tira o distanciamento necessário para perceber o que está em jogo. Evito escrever sobre pessoas que conheço bem. Já escrevi mal sobre pessoas de quem gosto e conheço. Já escrevi bem de pessoas que não suporto pessoalmente. É mais o que representam. Pessoas como [Alexandre] Soares dos Santos: não tenho nenhum ódio pessoal, não o conheço. Mas há nele uma arrogância social que me tira do sério. Ou mexe nas minhas raízes comunistas ou não sei o que é.

 

É um self made man, Soares dos Santos.

Não tenho especial respeito pelos self made men. Respeito pessoas que escreveram livros que mudaram a vida de outros ao lê-los. Respeito pessoas que se envolveram politicamente e ajudaram a mudar a vida dos outros. Não é preciso ser um génio para ficar rico.

 

Se fosse tão fácil assim, mais pessoas estariam ricas.      

O que me interessa é o que estas pessoas fizeram pelo sítio onde vivem. Irrita-me o paternalismo. Quanto mais pobre e desigual é o país pior são as suas elites económicas. Acham que tudo lhes é devido. Que tudo o que têm é direito seu. Que não devem nada à comunidade. A maior parte é ignorante. Confesso: sou snob em relação à nossa elite económica.

 

Vamos tergiversar: frequentou o ISCTE mas não concluiu a licenciatura. Foi uma escolha? Foi uma forma acintosa de dizer que não precisava do canudo para se afirmar?

O meu percurso académico é bastante atribulado. Não acabei sequer o liceu quando era suposto acabar. Interrompi os estudos para ser estafeta.

 

São devaneios de menino.

De menino, não. Que não tinha dinheiro.

 

Sabia que não morria à fome. Tinha sempre garantida a rede mínima por trás.

À fome não morria, como a maior parte das pessoas não morrem. Foi um período atribulado.

 

Foi nessa altura que foi trabalhar para O Século? Tinha 18 anos?

Quando fui para estafeta, tinha 17 e fui para a Sábado. Tinha muita vontade de trabalhar. Tinha a possibilidade de entrar para um jornal por via familiar – não quis. Tinha uma necessidade enorme de afirmação. De saber que o que conseguia não o devia a ninguém. Depois fui para O Século, depois para o Diário de Lisboa. Depois para a tropa, onde acabei o liceu. A escola não me entusiasmava e não me chegava.

 

O que sustentava a singularidade da família era serem intelectuais. São precisas ferramentas.

A minha mãe nunca ligou ao curso. Achava que não devíamos ser o melhor aluno, porque o melhor aluno é odiado. Valorizava o trabalho.

 

Não foi uma forma de insubmissão ter ido para estafeta?

Não. A faculdade, basicamente, não gostei. Já era jornalista. O curso era para me dar prazer, para orientar leituras. A disciplina [leccionada] pelo Paulo Pedroso foi a única de que gostei. Fui copy numa agência de publicidade durante um ano. Foi um tempo de experimentação. Hoje existe a ideia de que se deve acabar o liceu, fazer o curso, escolher uma carreira… Não olhei assim para a vida, e não olho.

 

O desarrumo é bem vindo?

É. Não é abrir um restaurante hoje e amanhã estudar ciência política, e no dia seguinte dedicar-me à astrofísica. Tudo isto tinha balizas de interesses. E, é preciso dizê-lo, sustentando-me a mim próprio. Mudou um pouco a partir do momento em que tive uma filha.

Depois fui para Praga. Tinha 24 anos.

 

Como é que foi dar a Praga, onde tinha estado na adolescência? Eram ainda coisas do comunismo?

Não. O meu irmão vivia em Praga. Na publicidade ganhei bem e consegui juntar dinheiro. Queria levar uma vida frugal e ler. Isso sim, foi um devaneio. Não acho mal se o fizermos com o nosso dinheiro e não com o dos paizinhos.

Já lá tinha ido no tempo do comunismo, em 1984. Abalou muito as minhas convicções políticas.

 

Em 1998 ganhou o prémio Gazeta Revelação com um trabalho sobre a Primavera de Praga.

A primeira visita que fiz ao estrangeiro foi à então Checoslováquia, num grupo de filhos de sindicalistas. Para um campo de pioneiros. Foi um embate. Cresci intelectualmente muito cedo e emocionalmente muito tarde. Por um lado, tinha interesses que não eram habituais. Por outro, brincava com soldadinhos às escondidas.

 

O que é que foi chocante em Praga?

A disciplina. A falta de liberdade. O que vem nos comentários dos jornais: uma escola a sério, disciplina, exames na quarta classe. O que muitas pessoas querem da escola para os seus filhos foi o que me fez afastar do comunismo. A disciplina como um valor e não como um instrumento. Desse ponto de vista, aquilo era o sonho pequeno-burguês. Tinha alguma estabilidade económica. O direito ao mínimo. Coisas que ainda hoje valorizo. E tinha o resto. O anular da individualidade. Do risco. Mais do que ter ficado chocado, aborreceu-me mortalmente. Rapidamente comecei a instaurar o sistema capitalista, porque comecei a trocar autocolantes coloridos (que lá não havia) por carradas de chocolate. Capitalismo especulativo! [riso] Logo a seguir fiz a escola de quadros do PC.

 

O que era, para um miúdo de 14 anos, fazer a escola de quadros do PC, como fez?

Era uma vivenda onde o PC fazia cursos de formação política. Em regime de internato. No meu caso foi uma semana.

 

Davam-lhes uns livros para ler?

Aulas, discussões, trabalhos. Era dirigido a jovens. Que eu saiba, fui a pessoa mais nova [a frequentá-lo]. Foi desinteressante. Em 1984 estava longe a queda do muro, mas havia a Polónia, o Afeganistão..., e eu estava mesmo à espera que me explicassem tudo. Fizeram o pior que podem fazer a um adolescente com as minhas características: tratarem-me por parvo. Assumir que as minhas dúvidas eram resultado de ouvir as pessoas erradas, fazer as leituras erradas. Percebi que as respostas evidentes eram as que tinha na minha cabeça mas que não queria verbalizar. Começo a ter um pensamento desalinhado. Até aí, era um indefectível.

 

Há uma emancipação em relação à família? Foi o começo de um cisma?

Com a família, não. A minha mãe e a minha tia eram do PC, mas não eram muito alinhadas. Já saíram quase todos do PC. Claro que as minhas dúvidas eram mais radicais. Também tinha a ver com a idade. Não tive nenhuma má reacção da família quando saí, ao contrário do que é habitual – eu sei – em famílias PC.  

 

Saiu em 1989. Com a queda do Muro?

Uma semana antes da queda. Fui entregar o cartão, à noite, que foi recebido com razoável alívio. Eu já tinha tentado sair, mas era doloroso. Era um corte com a minha mundividência, mais do que com a minha família. A minha desculpa: num congresso da Juventude Comunista houve uma purga, e de uma pessoa especificamente, o Rogério Moreira.

 

Teve alguma relação directa com Cunhal?

Não. Deu-me uma vez uma festa na cabeça porque cantei no coro dos pioneiros. Pronto, este é o momento em que toda a minha credibilidade vai por água abaixo! Posso dizer que algumas vezes fiz as primeiras partes dos comícios do Cunhal.

 

Parece que está a descrever uma festa religiosa.

Há muito de religioso no PC, como toda a gente sabe. A presença física de Cunhal era magnetizante. E era um mito. Eu era um miúdo, era impressionável.

 

Quando é que cresceu emocionalmente?

Fui crescendo. Há coisas que ainda estão por fazer. Um grande salto foi a puberdade. Outro foi começar a trabalhar. Ter uma filha. Ter uma filha foi seguramente o mais importante. O peso brutal de ter uma pessoa que depende mesmo de mim... Deixou-me em pânico. É preciso ser muito maluco para ter um filho. Depois, corre bem. Corre bem para nós. Para eles, nunca corre bem. Façamos o que fizermos, estamos a fazer mal.

 

Ela é “a filha do Daniel Oliveira”?

Não, não. Não liga nenhuma. Passa pela televisão e nem olha. Nunca exibi, nunca apareci em revistas. Só se ela quiser é que sabem que sou o pai dela. Nunca me deu um sinal de que a minha visibilidade a marcava, tolhia ou diminuía.

 

Pôs como condição para esta entrevista não falar do seu pai. Porquê?

O meu pai mantém, por opção própria, uma reserva absoluta em relação à sua vida. Não quer existir publicamente para além do que faz e do que escreve. Eu respeito e não questiono esta escolha. Admiro. É mais difícil do que aparecer. Habituei-me desde cedo a que houvesse a tentação de eu ser o buraco da fechadura. Aprendi, com erros e acertos, que só há forma de lidar com isso: com o mesmo absoluto do meu pai. A minha fronteira é a dele. Não falo sequer da minha relação com o meu pai, ainda que o meu pai nunca me tenha pedido para não falar.

 

Pode, apesar da limitação, explicar como é que lidou com o peso de ser filho de um mito, e de como construiu um espaço à margem disso?

Houve uma altura da minha vida em que houve necessidade de afirmação. Se não quero que a minha filha seja “a filha do Daniel Oliveira”, muito menos quero ser eu “o filho do Herberto Helder”. O peso é muito maior. Não estou no mesmo campeonato. Fiz um grande esforço [para que não se soubesse]. Nos primeiros três anos da minha vida profissional ninguém sabia. Tinha a vida facilitada: o meu pai não faz vida pública. O meu nome, sendo dele, é um apelido que não usa. Porque é que durante anos uma pessoa deve esconder quem é o pai? Não sei se era natural. Sei que foi bom para mim. Permitiu-me mais rapidamente resolver esse problema na minha vida pública e profissional. Dedico-me à política, ao comentário. Coisas que seguramente o meu pai não quereria fazer. Acho que as pessoas que tiveram pais com importância pública percebem isto. Se é difícil ser filho de uma figura pública, ser filho de um mito ainda é mais. Porque a curiosidade das pessoas é muito maior. E porque o mito só tem qualidades.

 

E hoje?

Não é assim. Tenho uma relação pacificada e fácil com o facto de ser filho do meu pai. Nunca tentei acompanhar o patamar em que está. Uma vantagem. Como não é atingível, não está nos nossos objectivos. Ajuda a reduzir o deslumbramento. Afinal, tudo o que estamos a fazer não é assim tão importante. Tenho absoluta consciência da minha irrelevância pública.

 

A confiança que adquiriu em si fê-lo permitir-se deixar crescer a barba? Ficar mais parecido com o seu pai.

Sou muito, muito parecido fisicamente com o meu pai. Com a barba, fico ainda mais parecido. Se calhar, isso sempre pesou para não deixar crescer a barba. Gosto de ser parecido com o meu pai. É normal, quando chegamos a uma certa idade, gostarmos de ser parecidos com os nossos pais. Gosto de olhar para ele e ver-me. Mas acho que a razão por que deixei crescer a barba foi mais prosaica. Emagreci, a barba ficava-me melhor, gostei.

 

Está uns vinte quilos mais magro.

Agora, só quinze.

 

Porquê estas grandes oscilações? Coisa imprevista numa pessoa tão política, num intelectual.

Aparecer na televisão fez com que o corpo ganhasse importância. Tornou-me mais vaidoso fisicamente.

 

Desvalorizar a aparência era comum no PC a que pertencia.

Sim. Mas depois havia o João Amaral, que era um galã e que vestia muitíssimo bem. Sim, gosto de coisas boas e não tenho vergonha disso. E sou homem, superficial. Gosto de mulheres bonitas.

 

Não são umas mulheres bonitas quaisquer. As relações que lhe são conhecidas são com mulheres de personalidade vincada, com percurso profissional reconhecido.

Odeio bibelôs. Não procuro companheiras – como se diz na esquerda. Não sou capaz de ter uma relação próxima com alguém que não me estimule intelectualmente e que não tenha vida própria. Admirei, e admiro, todas as mulheres com quem tive relações, a todos os níveis. Tem a ver com o modelo feminino em que cresci.

 

É muito filho da educação que teve?

Sou. A minha mãe teve uma importância central na minha educação como pessoa. Um metro e meia de extraordinária força, intelectual, pessoal, emocional, que me marcou. Eu não choro. Nunca chorei à frente de pessoas que não fossem muito, muito, muito íntimas. Não quero responsabilizar só a minha mãe. Outro herói: Hemingway. Há quem ache que sou um pouco machista. Na minha adolescência eu queria ser como o Hemingway. Comecei a gostar de tourada por causa dele, por uma razão meramente literária. Gosto, e não me fica nada bem.

 

Hemingway encarna um lado aventuroso e sedutor.

Tem isso tudo. E uma imagem de masculinidade, de firmeza e força, que me ficou como virtude e como defeito. Tenho dificuldade em publicamente demonstrar os meus sentimentos. Sinto-me nu. (Há um ambiente piegas no espaço público. As pessoas põem frases espirituosas no Facebook, e dizem que estão apaixonadas ou tristes. Odeio isso.) Acho que devemos manter uma fachada. E acho que não devemos carregar os outros com o nosso sofrimento.

 

Falou quase nada de livros ou autores. A relação com as palavras começa cedo. O exercício retórico que domina a sua actividade profissional faz-se de palavras.

A leitura é para mim tão importante que sou o contrário de um citador. Só digo por palavras de outros se não conseguir dizer [pelas minhas]. As nossas leituras, devemos ter com elas a relação que temos com o dinheiro: só se explicitam quando tem de ser.

Na minha infância, a relação com as palavras não passava muito pelos livros. A política tomou conta de tudo (mesmo no caso do meu padrasto). Não sobrou espaço. Provavelmente, até se liam maus livros na minha casa porque eram de camaradas! 

 

Que coisas leu e que foram marcantes?

Não consigo dizer. Consigo falar de autores que me marcaram numa frase específica. Recentemente li o Anna Karenina. Adorei.

 

É um livro de que as meninas gostam. Imaginei que fosse gostar mais de gostar do Guerra e Paz.

Estou a ler agora.

 

Como é que se tornou um dos opinion makers mais proeminentes da sua geração? 

É tão difícil perceber. Não era nada o que tinha [previsto]. Faço projectos. Apesar de achar que as coisas não têm que ter um percurso clássico, não gosto de as deixar ao acaso. Não gosto de me deixar ir em nada. De sentir que não fui eu que escolhi.

 

A imagem que passou ao longo da entrevista foi a de pouco ter sido escolhido.

Eu sei. Mas foi tudo escolhido. De forma emotiva.

 

Persiste na escolha?

Se me interessa. Senão, abandono. Foi o que fiz com Praga, com a publicidade, com o curso. Toda a vida julguei que ia ser sempre jornalista. Posso dizer que ainda era o que gostava de ser. Não gostava de ser nas condições em que é possível ser. O trabalho do jornalista, em 99% dos casos, é pouco autónomo. Não estou a falar de liberdade de opinião. Estou a falar de liberdade de escolha. É um trabalho muito proletarizado.

 

Porque é que abandonou o jornalismo?

Abandonei por opção. Lembro-me do momento. Estava numa inauguração de uma autoestrada no Alentejo, atrás do Jorge Coelho. Olhei à minha volta. “O que é que estou aqui a fazer? O que é que isto me interessa?”. Decidi que não ia passar a minha vida a fazer aquilo. Preferia servir cafés. Pelo menos, não exigia nada intelectualmente de mim. (Ainda uso muitos neurónios para coisas que não têm importância nenhuma. Mas menos. É a vida.) Tinha um convite para ir trabalhar para o Bloco. Fui e avisei que só ia ficar quatro anos e que não iria ser assessor de imprensa. Claro está que ao fim de seis meses era assessor de imprensa.

 

O jornalismo ficou arrumado?

Não quer dizer que não volte. Mas não há lugar. O que gosto de fazer é reportagem, e teria de ser o melhor repórter do país para conseguir voltar e fazer só reportagem. Não sou o melhor repórter do país. 

 

Paralelamente, o Barnabé, e depois O Arrastão, foram determinantes para o seu reconhecimento no espaço público. Sintomático de um geração, também.

Não consigo não escrever. Depois convidaram-me para escrever no Expresso e na mesma semana para o Eixo do Mal. Aí sim, fui escolhido. A minha vida mudou. Nem eu sabia quanto.

 

É sobretudo o dinheiro, a visibilidade? O poder.

É outro poder, com o qual tive de aprender a lidar. A visibilidade muda mais do que parece.

 

As pessoas que o reconhecem na rua estão à espera de uma cartilha?

Sim. Mas não faço nenhum esforço para corresponder ao que esperam. Perde-se privacidade. É mais difícil ter vidas duplas, triplas. Também não é nada de insuportável. O mais importante que muda: o espelho torna-se enorme. O olhar dos outros sobre nós é-nos devolvido com muito mais frequência e obviamente distorcido. Com violência. Tenho uma carapaça muito boa.

 

Percebeu que a tinha ou adquiriu-a?

Tinha. Era natural em mim.

 

É belicoso?

A discutir, sou. Mesmo nas relações pessoais. Mais do que as pessoas vêem na televisão. Por entusiasmo. Não sou nada conflituoso. Sou uma pessoa bem disposta grande parte do tempo. Tenho crises de mau feitio fortes e espaçadas. Tenho um grande prazer em discutir. Vem da família. Discutimos todos assim. Aos gritos. Com paixão. Como se fosse a última discussão das nossas vidas. As pessoas que vêem a minha família ficam aflitas, julgam que estamos quase à estalada. Cinco segundos depois parece que a discussão não existiu. Estamos a comer e a mandar piadas uns aos outros. É muito, muito raro ter uma zanga com uma pessoa. É muito difícil melindrar-me, magoar-me. Dou quase sempre um desconto. Sou bruto. Gosto de pessoas brutas. Desconfio de pessoas demasiado simpáticas. Fico desconcertado com elogios.

 

Não sabe se estão a sério?

Se estiverem a sério, ainda fico mais! Tenho um lado exuberante e um lado tímido. Vivo melhor com a crítica.

 

Com a patada, sabe como reagir?

Sei. Sei desviar-me. A patada pública: presto-me a isso. Sou truculento nos meus textos. É normal que as pessoas o sejam comigo. As pessoas não me conhecem. É do boneco que estão a falar. O boneco não sou eu. Tem partes de mim, fui eu que o escolhi, não é completamente à parte. A generalidade das pessoas que me conhecem publicamente e depois pessoalmente ficam espantadas.

 

Acha que vão ficar espantadas com o que aqui conta de si, com o que deixa entrever?

Não sei. Acho que se espantam porque sou mais simpático do que imaginam. Tenho sentido de humor.

 

Faz autoironia, e sabe que isso é uma arma.

Ah, faço. Sempre a usei. Os meus amigos diziam que eu era convencido. Sou. Combati isso. Percebi que não resultava. O melhor era começar logo a fazer piadas sobre o assunto. Torna o convencimento menos patético. A vaidade é sempre um bocadinho patética. Às vezes sou pateta. Por exemplo, cito-me demasiado a mim próprio. Faço coisas que sempre disse que nunca faria. A autoironia é um bom contrato que faço com os outros. É uma maneira de dizer “desculpa lá”. Depois, o que as pessoas vêem na televisão são as minhas sobrancelhas com um ar agressivo, sinceramente indignado. Fico espantado: como é que ainda consigo indignar-me?

 

Boa questão. Alguma coisa morreu em si?

Do fundamental, nada. Trinta anos de militância política, 24 anos de actividade mediática, e ainda não fui atingido pelo vírus do cinismo. Vou tentar descrever o fenómeno fisicamente: os meus pulmões ainda se enchem de indignação ou de entusiasmo ou de paixão pelas coisas como há 20 anos. Há uma pessoa que diz que mesmo no cinema só choro com injustiça. [riso] Não choro com cenas românticas. Não é por não me tocarem. É que há um lado em mim que ainda sente aquela coisa de que o Sérgio Godinho fala, “a raiva a crescer-me nos dentes”.

 

É também ressentimento?

Não. Ainda sinto uma profunda tristeza perante a miséria, perante a desgraça evitável. Ainda não posso nem sei ficar calado. Significa que ainda tenho o sentido do dever. Digo “ainda” porque ninguém sabe o que é a que vida nos faz. O que é que o conforto nos faz. O que é que o egoísmo nos faz.

 

O que é que o reconhecimento nos faz.

O que é que o reconhecimento nos faz. O que é que a proximidade da morte nos faz. Não faço juras. Não juro que não venha a ser um oportunista. Mas não estou mal, aos 42 anos.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012

Isabel do Carmo e Isabel Lindim

27.07.21

Isabel Lindim é filha de Isabel do Carmo. Desde sempre é a Bli. Nasceu no começo de 1972, quando a mãe já era médica-endocrinologista e fundadora das Brigadas Revolucionárias. Hoje, quando olha para as fotografias do Verão Quente de 75, vê na cara da mãe a preocupação. A derrota aconteceria no 25 de Novembro. Foi há 40 anos.

 A Bli é a filha. Isabel como a mãe, nunca chamada assim. A Bli é tão parecida com a mãe quando a mãe tinha a idade que ela tem hoje que chegamos a duvidar quem é quem. O discurso, a atitude distingue-as. A filha nunca terá a energia da mãe, confessa. A energia de quem tem a urgência de mudar o mundo. Mas a filha é tão de esquerda quanto a mãe e fascinada pelo tempo em que a mãe e Carlos Antunes fundaram as Brigadas Revolucionárias, militaram no PRP, Portugal era uma folha que parecia em branco. Por isso mergulhou nos arquivos em 2007, fez o site www.memoriando.net, com Alfredo Caldeira continuou o trabalho em www.casacomum.org, editou o livro Mulheres de Armas (2012) sobre a acção das mulheres nas Brigadas Revolucionárias. É jornalista.

Isabel do Carmo é natural do Barreiro. É especialista em endocrinologia e nutrição. É provável que aqueles que a consultam, e que nasceram depois das década de 70, não saibam do seu passado político, ou que esteve presa anos, da sua longa greve da fome. Os da sua geração lembram-se bem. Dela e de Carlos Antunes, co-fundador das Brigadas, seu companheiro durante 25 anos.

O que a seguir vão ler resume duas horas e meia de gravação. É um recuo no tempo, ao Verão de 75, à leitura de Isabel do Carmo do que então se passou (por exemplo, no 25 de Novembro), às memórias de Bli e ao que hoje compreende a partir do trabalho que investigação a que se tem dedicado.  

 

Quando olha para as imagens de 75, e era uma criança pequena, porque nasceu no começo de 72, o que é que vê?

Bli Lindim – As memórias que tenho são do jornal, o Revolução. Lembro-me de estar com muita gente à volta, tanto em casa como no jornal. Também passávamos algum tempo no partido.

 

O jornal era porquê?

Isabel – Era o Revolução, de que fui directora, e que o PRP [Partido Revolucionário do Proletariado] editou. Semanário. Um belo grafismo. Tivemos o gosto de o José Augusto França dizer que os nossos cartazes eram os mais bonitos das paredes de Lisboa. Essencialmente dava eco às lutas dos trabalhadores. Os jornais mais institucionais eram o eco das super-estruturas políticas, do governo provisório, e muito menos das lutas sociais.

 

Como é que percebeu – logo depois da revolução – que era indispensável ter um veículo?

Isabel – Raramente tínhamos acesso à televisão por causa do sectarismo dos partidos, que controlavam a televisão. Também fazíamos comícios. O PRP, considerado um pequeno partido, fazia um comício no Campo Pequeno, na Praça de Touros. Os jornais tinham uma grande força, eram muito lidos, e os revolucionários uma novidade. Fazíamos venda militante, directa, pelas ruas. Cada número tinha um editorial escrito por mim.

 

Já fez o exercício de ler editorial após editorial e perceber a cronologia e a substância desses dias?

Isabel – Sim. Não me envergonho do que escrevi. Li quando a Bli organizou o Memoriando [site/arquivo www.memoriando.net]. E quando na [livraria] Ler Devagar fizemos sessões que se referiam ao passado.

 

Que mulher é que era, sectária?

Isabel – Não. Não suporto o sectarismo. Nos anos 60 éramos todos sectários, uns mais do que outros. Nós, a esquerda, a oposição. Depois do 25 de Abril o sectarismo era mais forte porque havia mais possibilidades de expressão. Durante a ditadura, tal como as organizações, o sectarismo era clandestino.

Típico é o sectarismo dos anos 60. Há a Checoslováquia, o Maio de 68. Aparece a dissidência sino-soviética, aparecem as organizações maoístas – com as quais nunca me identifiquei –, as organizações trotskistas. E outros como nós, que não éramos nem maoístas nem trotskistas. Há uma explosão de organizações que reflectem aquilo que em Inglaterra se chama de Nova Esquerda. Esses grupos como que descobriam a verdade. Como se até aí estivessem envolvidos num discurso convencional e convencionado pela esquerda.

 

Ou seja, pelo Partido Comunista. Em Portugal, especificamente, a oposição era o PC.

Isabel – Sim. O facto de estas organizações descobrirem a sua verdade, e não lhe darem um carácter relativo e transitório que ela tinha, fazia com que houvesse muito proselitismo. Havia qualquer coisa de seita: não se podia fugir dali. O PC tinha apoios na União Soviética e uma estrutura diferente das pequenas organizações. E expulsava do céu, do paraíso da esquerda, os pequenos partidos!

 

Mergulhou nisto que é a sua história, ainda que enviesada, no livro Mulheres de Armas (2012), que incide sobre a acção das mulheres nas Brigadas Revolucionárias. Porquê?

Bli – Tinha especial curiosidade sobre a cisão de algumas pessoas com este sectarismo e com o começo das Brigadas Revolucionárias. As acções: a maior parte das pessoas que as praticaram só teve actividade nas Brigadas Revolucionárias. Algumas vinham de ambientes onde havia liberdade, chegaram aqui para estudar e depararam-se com situações terríveis. Os cavalos, a polícia a entrar pela universidade, a bater nas pessoas. Isto coincidiu com o conhecerem pessoas que tinham ideias concretas sobre o que se poderia fazer para abalar o regime. Isto tinha que ser contado, não é? As pessoas têm que ter noção de que existiram organizações, a ARA [Acção Revolucionária Armada, do PCP], a LUAR, [Liga de Unidade e Acção Revolucionária] e os Católicos Progressistas, que tiveram acções muito importantes anteriores ao 25 de Abril. Não foram só os militares que quebraram com o regime. Ele já estava abalado.

 

Debruçou-se sobre as fracturas anteriores ao epílogo que foi o golpe dos militares?

Bli – Sim. No início fui também ao arquivo militar do exército. Há relatos de militares, percebe-se que aquelas acções [das organizações citadas] tinham efeito. Eram exercidas em quartéis. Não conheço muitas pessoas da minha idade que conheçam essa história. Conhecem a minha mãe como figura política, e não só, mas a história das Brigadas ficou escondida.

 

E o sectarismo, encontrou-o na leitura dos editoriais?

Bli – Não. No Revolução, de todo. [Sobressai] a necessidade de defender a luta operária e os agricultores, de lhes dar voz. Não vejo ataque político. Gosto da imagem que tinham, muito vanguardista.

 

A vanguarda no grafismo tinha que ver com a relação da Isabel com o Ernesto de Sousa (artista, crítico de arte, fundador do movimento cineclubista)? Viveram juntos, antes de a Isabel casar com o pai da Bli. Mais tarde vive com Carlos Antunes.

Isabel – As pessoas relacionadas com o Ernesto de Sousa acabaram por ser os nossos gráficos. O Carlos Antunes tinha vivido na horrível estética do estalinismo.

 

Uma estética dominada pelo carácter hegemónico do edifício bruto, do colectivo sobre o indivíduo (que isolado parece pequeno, frágil).

Isabel – A expressão estética tem que ver sempre com as outras. A arquitectura, imperial, não é muito diferente da arquitectura fascista-nazi. O estalinismo era aquele naturalismo soviético falso. As pessoas que eram desenhadas: era uma idealização de um proletariado que não existia.

 

Quando o conheceu, Carlos Antunes tinha abandonado essa estética estalinista?

Isabel – Sim. É importante as pessoas coincidirem nessas questões. Eu tinha vivido cinco anos com o Ernesto de Sousa. Era muito jovem, teve influência na minha formação. Ele era mais velho 19 anos. Foi um choque muito grande na família.

 

O primeiro choque, imagino, foi viverem sem um casamento.

Bli – Eu ouvi a minha avó falar sobre isso [risos]. A minha avó é uma personagem de um filme italiano.

Isabel – A minha mãe não era católica praticante, o meu pai não era católico. Tinham casado pelo civil nos anos 30, o que era uma proeza. Mas a obediência às normas era muito forte. A minha irmã não casou pela igreja, mas fez uma cerimónia de registo civil como se fosse pela igreja. Vestida de noiva, com menina das alianças. Eu saí totalmente das normas e foi traumático.

Bli – Depois melhorou porque casaste realmente, com um médico.

 

Com o seu pai, Orlando Lindim Ramos?

Bli – Sim.

 

Casou em que ano?

Isabel – Não me lembro [risos]. O Orlando tinha estado cinco anos preso em Peniche. Algum tempo depois conheci-o e casámos. Isso era completamente aceite. O que não era bem aceite era fugir às normas sociais, de regulamentação do relacionamento sexual.

 

A dificuldade era com o que tocava o campo sexual?

Isabel – Era. E as mulheres portuguesas foram muito marcadas por isso. Muito mais do que aquilo que se diz, muito mais do que as pessoas contam.

 

Era o medo da gravidez antes do casamento?

Isabel – Era a perda da honra. Estou a falar de uma família no Barreiro, em que as pessoas tinham cultura. Quando estas coisas se passavam nas áreas rurais, a rapariga era estigmatizada para o resto da vida.

Bli – Não consigo imaginar-me nesses contextos. Eu tive o contrário. Compreensão e apoio em todas as minhas opções. Mesmo quando eram as más.

 

De todos os actos de transgressão, ou lidos como tal, da sua mãe, qual é que mexeu mais com a família?

Bli – Quando foi presa. Não é bem uma transgressão, é uma consequência. As actividades políticas nunca foram objecto de crítica em casa. Contudo, quando foi presa foi um grande choque. Eu tinha cinco anos. Lembro-me de estar em casa da minha tia e de me dizerem: “A tua mãe vai estar presa durante um tempo, ficas aqui connosco”. Era um prédio de família. A minha tia vivia no primeiro andar, a minha avó no segundo. Foi durante a primária. Ainda bem que foi no Barreiro, porque fui muito acarinhada por toda a gente.

 

Vamos voltar há 40 anos e ao começo da entrevista. Quando vê imagens daquele tempo, o que vê na cara da sua mãe?

Bli – Era muito bonita. A partir de 75, vejo uma certa preocupação. Que só passou quando saíram da prisão, em 82. Ver uma fotografia de 82 e uma de 76..., é uma mudança impressionante.

 

Como é que era o sorriso dela?

Bli – Em 76 não havia muitos sorrisos.

Isabel – O 25 de Novembro de 75 foi a contra-revolução. O projecto de uma sociedade nova baseada no poder popular, com um poder económico-social diferente, tinha sido derrotado. O que não queria dizer que psicologicamente nos sentíssemos derrotados. Embora conheça muita gente que nunca se recompôs do 25 de Novembro.

 

Era uma questão de vida ou de morte? Uma parte deles morreu com a derrota do 25 de Novembro?

Isabel – Sim. Havia um projecto revolucionário, com muita esperança. Com muita fantasia, naturalmente. Algumas pessoas viram que o trajecto seria as coisas acabarem neste tipo de sociedade, da desigualdade e do domínio financeiro.

 

Nas suas fotografias antigas, vê esta preocupação que a Bli identifica? Sisuda.

Isabel – Vejo, vejo. A seguir ao 25 de Abril é uma alegria. Porque a ditadura tinha caído. Porque podia circular nas ruas, gritar, falar. E depois o fenómeno de organização das pessoas, espontâneo. A ocupação das casas, dos campos. Portugal era um país de castas antes do 25 de Abril. Havia pessoas que estavam abaixo do zero. E de repente tinham o direito de falar. Esta alegria não transparece nos livros de análise política mais institucionais, em que só se fala dos governos, dos ministros, das influências políticas.

 

Quer contar uma história de uma pessoa que nunca teve oportunidade de falar e que se manifestou?

Isabel – Aquelas senhoras que eram chamadas de criadas iam às assembleias onde estavam os médicos, os professores de faculdade, e falavam. Nós tínhamos uns assomos de organização nas associações de estudantes, havia regras de comportamento. Essas pessoas, não. Estou a lembrar-me dessas senhoras, as tais que vestem bata azul, a levantarem-se. Nos primeiros dias havia militares do MFA a dirigir as assembleias, e sabiam tanto das assembleias como estas pessoas que estou a descrever. Elas queriam era levantar-se e expressar os seus desejos, a sua revolta, aquilo que estava mal. Muito comovente. Isto ninguém me tira.

Bli – Toda a pesquisa que fiz foi anterior ao 25 de Abril. Algumas mulheres disseram que no pós 25 de Abril já não tinham vontade nem forças para continuar. Viveram aquele ano de efervescência e com o 25 de Novembro quebraram. O que me atrai é ouvir as histórias. Perceber o dia-a-dia de uma pessoa que, dentro de uma malinha, tem um explosivo para rebentar em tal dia.

 

Conte detalhadamente. Para se perceber o que é que representou o 25 de Novembro temos que ouvir mais sobre o antes, e até sobre a preparação do explosivo na malinha.

Bli – Tentei saber o que é que estas mulheres sentiam. O que é que as motivava a participar naquelas acções, tão corajosas? E não eram só as que carregavam bombas. Estou a falar das que davam a casa para clandestinos se esconderem. Não é fácil para essas pessoas lembrarem-se do dia-a-dia. Algumas conseguiam descrever os momentos de medo. Preparavam uma bomba sem experiência alguma sobre o assunto. Uma mãe estava com o filho num dia em que houve um erro técnico e uma explosão de que resultaram duas vítimas. Ela estava a dar apoio, dentro de num Mini, com o filho, perto da estação de Santa Apolónia. Tinha mais explosivos no carro. Disfarçada de peruca. Aconteceu uma explosão no porta-bagagens, mas eles não ficaram feridos.

 

Estas mulheres eram, mais do que tudo, estudantes?

Bli – As mais novas, estudantes, eram demasiado destemidas. Os elementos mais velhos que participavam nas acções – e o Carlos Antunes, também – tinham que lhes dizer: “Cuidado, não se pode mesmo falar destas coisas”. Elas tinham vontade de contar! Sentiam aquela coisa: “Estes colegas são pessoas esclarecidas sofrem com a repressão na universidade, posso contar com eles”. Depois havia as outras mulheres que já trabalhavam, que tinham filhos. Essas sentiam o medo na pele, mesmo.

 

A seguir a 74, e durante aquele ano tão cheio, quais foram os grandes acontecimentos, os momentos de fractura?

Isabel – Fractura, não houve. Todos os dias havia manifestações, grandes e pequenas. Comícios. E contacto com jornalistas, éramos objecto de curiosidade. E contacto com grupos estrangeiros. Depois do 25 de Abril, o PRP passou a protagonizar a acção, as Brigadas desapareceram. Já não era o momento de acções. Era o momento de outro tipo de luta.

 

Desapareceu a vertente militarizada dessas acções e concentrou-se a acção na ideologia e na política. Era isto?

Isabel – Completamente.

Bli – E na produção de documentos.

Isabel – Caramba, uma pessoa poder escrever, poder dizer o que pensa. E isso de um dia para o outro. Algumas pessoas das Brigadas tiveram resistência a esta mudança. Pessoas que pensaram: “Esta não é a nossa revolução”.

 

Desde o princípio? Porquê?

Isabel – Nos primeiros dias. Não era a nossa revolução. Tínhamos contribuído para ela, bastante, porque as acções tinham enfraquecido o regime. Mas não era a revolução socialista. [Esta resistência] tem pouca expressão. A maior parte da organização vem para a rua, para as manifestações, faz cartazes, bandeiras.

 

Estava entre o grupo que disse que aquela não era a revolução socialista ou pertencia aos moderados?

Isabel – Fui eu que redigi o primeiro comunicado a saudar a revolução e a dizer que as formas de luta iam ser outras. Para mim foi claro desde as primeiras horas. Não era a nossa revolução, mas era a revolução da liberdade.

Bli – Eu gostava de saber como era o dia-a-dia nesse ano e meio. Insisto nisto. Gosto da história da vida privada.

Isabel – A história da vida privada é que não havia vida privada [risos]. Habitávamos transitoriamente aqui e acolá, os três, o Carlos Antunes, a Bli e eu. Nunca tivemos casa. Inicialmente havia uma casa clandestina que se manteve depois do 25 de Abril, e onde estávamos com outras pessoas. Depois habitámos a sede do PRP.

 

Porque é que não tinham casa? Porque isso era uma preocupação burguesa, porque não havia dinheiro e havia coisas mais urgentes a fazer?

Isabel – Não era uma questão ideológica. Eu até gostaria de ter uma casinha e estar lá sossegada com a Bli.

Bli – Sossegada não acredito que gostasses.

Isabel – Foi mais prático assim. Havia a sede do PRP, uma casa ocupada na Rua Castilho que tinha um quintal. Nós passámos a habitar no sótão. Saíamos dali para as reuniões, para as manifestações. Tínhamos um quarto, uma casa de banho. Não sei bem como é que comíamos. A Bli tinha uma caminha ao lado.

Bli – Tomávamos banhinho? Tínhamos uma banheira? [risos]

Isabel – Como havia ocupação de casas, [os proprietários] retiravam banheiras, sanitas e bacias, para as casas não serem habitáveis. Neste caso, a porta não foi arrombada. O COPCON foi com as Chaves do Areeiro e abriu a porta. Para nos instalarmos tivemos que comprar sanitas, banheiras e bacias. Havia higiene.

 

Diz que era prático porque não se perdia tempo. Descreve um sentimento de urgência. Era assim que era sentido?

Isabel – Sim. Era a perspectiva de haver um poder revolucionário e um poder na base de uma nova estrutura – que não a representação democrática parlamentar. Mais do que isso, seria a constituição de conselhos, de comissões, de onde emanava uma representação para o poder central. Era esta a nossa concepção, que ainda tenho um pouco. Havia a urgência de implantar isso como base económica e social e lutar contra as desigualdades.

 

Se fossem governo…

Isabel – Nunca seríamos governo. O que sentíamos é que tínhamos muitas forças contra nós. A força da América, que queria aqui uma democracia e não uma coisa avançada, revolucionária. As outras democracias também não desejavam ver no extremo da Europa um braseiro revolucionário. E sobretudo a União Soviética não queria que se instalasse aqui um poder revolucionário que abalaria toda a sua política externa.

 

Não tinham aliados?

Isabel – Não.

 

Eram um bando de quantos?

Isabel – Era muito grande. A UDP tinha uma grande estrutura, também. Tínhamos sede em todos os concelhos. No Barreiro tínhamos várias sedes. Agora sou cabeça de lista em Setúbal pelo Tempo de Avançar, vou fazer reuniões. No outro dia, no meio do Alentejo, fui a uma herdade e aparece uma pessoa a dizer que era do PRP.

Bli – Essas pessoas passaram para outros partidos?

Isabel – Muitas passaram para o Bloco de Esquerda. Estiveram um tempo sem estar organizadas.

 

Vale a pena ir atrás e pensar na sua dissidência em relação ao PC e na fundação do PRP. É um corte com uma força organizada que durante décadas representou a oposição.

Isabel – A maior divergência talvez fosse a descoberta do que era o estalinismo. Vivíamos entre dois focos de informação manipulada, pela ditadura e pelo PC. Quando metíamos um bocadinho a cabeça fora de água (algumas pessoas iam a França, traziam publicações), começávamos a ver o que era a repressão naqueles países, o que tinha sido. Quando li a descrição dos processos de Moscovo, tive um choque enorme, enorme. Como se tivesse andado enganada até aí.

 

Leu isso em Paris, onde esteve seis meses a fazer um estágio de Medicina?

Isabel – Li em Portugal.

Bli – Às escondidas.

Isabel – Quando li a vida do Trotsky, tive a mesma sensação. Retrata a perseguição feita ao Trotsky, o assassinato. Ainda hoje não percebo como é que há pessoas que branqueiam o estalinismo, ou que não dizem que rejeitam aquilo.

 

Tem amigos comunistas?

Isabel – Ainda tenho. E sou capaz de me organizar com eles, episodicamente, para coisas concretas. São boas pessoas, mas penso que apagam um bocado [esta realidade].

 

Saiu formalmente em 70.

Isabel – Sim. Mas fui-me afastando.

Bli – O Marcello Caetano foi em 68. O grande ditador caiu, o fantasma foi-se embora, mas afinal as mudanças não foram muitas.

 

Isso acicatou ânimos?

Bli – Sim. Falo das Brigadas. Havia muitas pessoas que nada tinham que ver com o Partido Comunista. Em 69 começaram a perceber que não ia haver alteração.

 

Há uma data certa para a fundação das Brigadas?

Bli – Em 70, em Paris. Há documentos manuscritos em que se começa a delinear as Brigadas Revolucionárias e as suas acções. Uma pessoa, que conhecia o Carlos Antunes, guardou cinco caixas com documentos dessa altura. Passaportes falsos, bilhetes de identidade, descrições das reuniões. De Paris vêm para cá. O primeiro explosivo vem de avião. Hoje não conseguiam fazer estas coisas!

 

A fundação das Brigadas acontece na sequência da saída do PC?

Isabel – O Carlos Antunes e eu fundámos as Brigadas. Estou em Paris de Outubro de 69 a Março de 70. Como acontece sempre nestas saídas do PC, fizemos muito para ver se as coisas mudavam por dentro. E se por dentro se constituía uma organização armada. Começámos a ver que isso era impossível. A ruptura com o PC dá-se nesses meses. A fundação das Brigadas, também.

 

Até onde estavam dispostos a ir na luta armada? Isso estava determinado à partida?

Isabel – Ficou decidido que não se tirava a vida a ninguém. E assim foi.

 

Existe um documento com isso ou era um acordo tácito?

Isabel – Foi verbalizado com certeza entre nós. Temos muito poucas coisas escritas. Uma das nossas decisões era não escrever. Não escrever por razões conspirativas. E não escrever porque estávamos fartos de documentos. Não há direito a tirar vida a uma pessoa, mesmo que esta pessoa seja um inimigo. É a mesma filosofia que faz com que sejamos contra a pena de morte. Houve uma discussão inicial com o Nuno Bragança, que defendia que se tirasse a vida aos “pides”.

Bli – Todas as pessoas que ouvi nas entrevistas tinham isto muito presente. Havia organizações de luta armada noutros países onde havia vítimas. [Em Portugal] os explosivos eram postos nos quartéis e os prédios ao lado eram avisados.

Isabel – Avisados para não se assustarem, não era que a bomba fosse atingir o prédio.

Bli – Na Praça de Londres ainda houve um buraco na cozinha de um vizinho.

Isabel – Aí fui eu fazer o reconhecimento e decidir o sítio onde ela [a bomba] era posta. Era numa casa de banho que era capaz de ficar encostada a outra casa de banho.

 

O princípio era não matar ninguém. Sabiam que a bomba tinha um determinado alcance. Mas havia riscos. O procedimento era rigoroso?

Isabel – Muito rigoroso. Só não foi rigoroso quando explodiram as duas que mataram dois camaradas.

 

Foi quando? O que aconteceu?

Bli – Em 73. Era onde estavam as listas dos soldados que iam para a guerra. Como na maioria das acções, no quartel da Graça, na Rua Rodrigo da Fonseca, o grande objectivo sempre foi contrariar a Guerra Colonial.

 

A primeira grande acção foi o ataque à base da NATO, na Fonte da Telha. Quer destacar outra acção?

Isabel – O recuperar dos mapas em Dezembro de 72. Uma pessoa teve que se meter na sala [dos Serviços Cartográficos do Exército] onde estavam os mapas durante não sei quantas horas, e outros estavam à espera, cá fora. Carregaram cerca de 200 mapas, pesadíssimos, que chegaram a África, aos movimento de libertação PAIGC, MPLA e FRELIMO.

 

Há um vocabulário que diz respeito a uma acção, a um grupo, a um tempo. Disse recuperar (os mapas) e não roubar.

Isabel – Roubar tinha uma conotação negativa.

Bli – Mas não é bem recuperação porque nunca foram deles.

Isabel – O que se considerava era que as coisas pertenciam aos revolucionários, ao povo, à oposição, e que só estavam transitoriamente em mãos erradas. Como o dinheiro dos bancos.

Bli – Assaltos não eram bem assaltos: era a recuperação.

 

Quando é que a Isabel deixou de pensar assim e de usar essas palavras?

Isabel – Essas coisas têm épocas. Quando deixámos de as fazer [risos].

 

Isto é uma narrativa que tem palavras específicas e que conta uma história. Para si, dizer: “Vou recuperar um dinheiro que é do povo”, fazia-lhe sentido?

Isabel – Aquilo tinha um significado do ponto de vista político. Empregava-se muito a palavra assalto. O assalto não era roubo. A minha mãe teve um grande regozijo com os assaltos aos bancos de Alhos Vedros, perto do Barreiro.

 

Esse foi perpetrado por si?

Isabel – Não. Foi pelo Carlos Antunes. Nunca fiz assaltos.

Bli – Nenhum dos assaltos nem nenhuma das acções [foram feitas pela minha mãe].

Isabel – Transportei explosivos.

 

Porque é que não fez assaltos ou acções?

Isabel – Era muito conhecida, já nessa altura. E tinha uma vida legal muito estruturada. Era médica no Hospital Santa Maria.

 

É verdade que durante estes anos, uma vez por semana dava consultas no Barreiro?

Isabel – É.

 

Já era endocrinologista?

Isabel – Já era, felizmente. Ainda durante a ditadura fiz o exame da especialidade.

 

Conte mais porque é que nunca abandonou a Medicina, mesmo que só a praticasse uma vez por semana.

Isabel – Porque o meu projecto era ser médica. O meu projecto não era ter actividade política para o resto da vida. Tudo isto eram coisas transitórias. Fui sempre ao Barreiro fazer consulta em pleno processo revolucionário. Era complicado mas ia.

 

Como é que ia, de carro, de autocarro, de barco?

Isabel – Umas vezes de barco, outras vezes de carro. Tinha um Fiat 600.

 

Como é que tinha cabeça para fazer consulta? Hoje parece inconciliável, esse frenesim.

Isabel – Sou muito organizada de cabeça. Achei sempre que a Medicina tinha que ver com a política. É o contacto directo com as pessoas. Tenho a facilidade de estar sempre a fazer trabalho de campo e de investigação, que é ouvir os doentes. Não impingia aos doentes a minha maneira de ver a política, como também não impingia aos alunos, na faculdade.

 

Porque é que teve a Bli no meio deste turbilhão?

Isabel – Desejava ardentemente ter um filho. Foi tudo muito calculado. Primeiro fiz a especialidade, depois tive a Bli.

 

Estar tão empenhada politicamente não a fez sequer hesitar, adiar o projecto de ter um filho?

Isabel – Não. Os meus filhos sofreram muito com a minha actividade política. Tenho algum remorso a esse respeito. Quando vejo o que a Bli e o irmão dão às filhas..., a vida delas é um paraíso comparado com a vida que eles tiveram comigo. Instabilidade, não habitarem casas normais, não ter acesso às coisas. Tínhamos muito pouco dinheiro.

 

Por isso insisto em saber porque não adiou. Tinha noção de que a clandestinidade era uma possibilidade.

Isabel – E a prisão. É um caminho de coerência. Pensava o que pensava da ditadura, tinha que lutar contra ela. Isso fazia-me correr riscos. Mas também queria uma vida como mulher, com filhos. Então é andar para a frente, ter os filhos e fazer a luta.

Bli – Houve alturas em que tive que estar escondida com a minha mãe em casas.

 

O que é que lhe contaram sobre esse período na clandestinidade?

Bli – Estive em Sesimbra em 73, mesmo antes do 25 de Abril. Tinha um ano e meio e estava sempre a mexer-me.

Isabel – Na casa da Dra. Laura Ayres.

 

Não saíram de casa durante meses?

Bli – Não.

Isabel – Havia cães no exterior e ela queria ir ver os cães.

Bli – Devia ser muito complicado. Para a minha mãe, não para mim.

 

O que é que fazia com ela?

Isabel – Brincava, dava-lhe de banho, dava-lhe de comer. Havia um camarada meu... (Pseudónimo: Nuno. A Bli conhece bem. O Zé Ribeiro. Ele próprio pôs ao filho o nome de Nuno.

 

Como a Isabel pôs ao seu filho o pseudónimo do Carlos Antunes, Sérgio.

Isabel – Exacto.)

Bli – O Nuno de vez em quando aparecia para me levar um bocadinho à rua.

 

Quem é que lhe conta estas experiências de que não pode ter memória?

Bli – A minha mãe, sobretudo. E o Nuno. E agora estas pessoas que entrevistei [para o livro e o trabalho de arquivo]. Deu-me um enorme prazer.

 

Foi dessa vez que acabou por entregar a Bli à sua irmã?

Isabel – Foi. As histórias relacionadas com os filhos são as mais traumáticas. Nunca me separei do Sérgio. Da Bli separei-me várias vezes. Ela foi para casa da minha irmã e esteve lá até ao 25 de Abril. A minha irmã era uma querida, muito carinhosa.

Bli – Não tenho qualquer tipo de trauma. Tinha muito afecto. A minha tia tomou conta de mim apesar dos cinco filhos que tinha. Não senti nenhum vazio.

 

Decidiu que aquilo não era vida para a miúda.

Isabel – Foi isso. E sabia lá que é que se ia passar nos tempos mais próximos?

 

Não podia fazer outra coisa senão estar escondida e viver na clandestinidade?

Isabel – Claro. Muitas vezes, nos clandestinos do Partido Comunista, o pai é que era o clandestino e a mãe era uma clandestina relativa. Não era conhecida e podia sair à rua com os filhos.

 

Tinha contacto com o seu pai nessa primeira infância?

Bli – Até ao 25 de Abril, sim. Esteve na Argélia até ao 25 de Abril. Esteve uns seis meses na rádio Voz da Liberdade. Depois do 25 de Abril houve uma cisão familiar e estive uns anos sem o ver.

Isabel – Separámo-nos no 25 de Abril.

Bli – Voltei a vê-lo quando tinha nove anos. E gostei muito, foi uma alegria muito grande.

 

Voltando a 74, 75: a Bli andou sempre com a Isabel. Sensação de medo e do perigo, teve? Tem algum eco disso?

Bli – Nunca tive. Tinha imensas pessoas a darem-me atenção, a brincar comigo.

Isabel – Não tinha família em Lisboa, não tinha onde a deixar. Uma vez, um camarada do MPLA que viria a ser ministro dos Negócios Estrangeiros, o Venâncio, veio ter comigo à sede do PRP. A Bli vê pela primeira vez uma pessoa africana. “Porque é que este camarada é castanho?”

 

E dizia camarada? Tratavam-se todos por camarada?

Bli – Sim. Foi a primeira palavra que aprendi a escrever.

 

Quando é que percebeu que iam ser derrotados?

Isabel – Percebi antes do 25 de Novembro. Vê-se bem pela cara que tenho nos dias que precederam o 25 de Novembro. Houve uma possibilidade de as coisas irem no sentido revolucionário. Em Agosto de 75. É nessa altura que os sininhos começam a tocar para aqueles que não queriam o processo revolucionário. Nesse mês começa-se a organizar o movimento militar do 25 de Novembro, com o general Eanes, o Vasco Lourenço... Estou a dizer isto com a distância de 40 anos. Sou amiga do Vasco Lourenço. Há coisas por esclarecer. É um movimento organizado contra os revolucionários. A esquerda militar e civil não está organizada – nem para fazer um golpe de esquerda (como muitas vezes de fala), nem para resistir a este, ainda que a esquerda militar estivesse presente nos principais quartéis.

 

Quando a si, onde é que estava o PC?

Isabel – Em Setembro, Outubro há conversações com o PC. A base do PC era revolucionária. Alguns estavam armados, com armas do PRP. A direcção do PC queria aquilo que a União Soviética determinasse que tinha que ser. Dá-se uma negociação do PC, nomeadamente com Álvaro Cunhal, com Melo Antunes que consistiu em não deixar o processo revolucionário ir para a frente, não resistir ao processo militar do 25 de Novembro. Em troca: o PC ser respeitado, não ser proibido. Foi um negócio. Um negócio em que nós fomos peões.

 

Nós, quem?

Isabel – As pessoas que estavam no processo revolucionário. Percebia-se que isto ia acabar assim. E acabou.

 

Quem é que eram os vossos grandes inimigos?

Isabel – A direita.

 

É um pouco vasto. E a definição de direita então e hoje não coincide. Convém lembrar que chamar a alguém “social democrata” era um insulto.

Isabel – É extraordinário. Nos discursos do PPD havia camponeses e operários e posições muito mais à esquerda. Mas o que queriam era a manutenção de uma estrutura económico-social de sistema capitalista. O inimigo era a extrema-direita. Spínola era o líder da extrema-direita. Depois era uma escadinha por aí fora.

 

E o Partido Socialista?

Isabel – [No 25 de Novembro] o Partido Socialista fez a opção de se juntar à direita contra o processo revolucionário, sob a justificação de que o PC queria tomar o poder. O PC não queria processo revolucionário nenhum. Esta estratégia é muito clara nos documentos que revelam que Kissinger e Brejnev fazem a sua partilha do mundo. Portugal ficava para o lado americano e Angola para o soviético. Entre o Verão Quente e 25 de Novembro, joga-se isto.

 

Passados 40 anos, quem é que acha que tinha poder?

Isabel – Os militares tinham muito poder. Os militares que se juntaram à direita (não estou a dizer que eram de direita, mas que se juntaram à direita), porque acharam que era a táctica correcta, tinham poder. Os militares revolucionários tinham também muito poder. O forte de Almada, Estremoz, Setúbal, várias unidades em Lisboa, o próprio COPCON, tinham lideranças de esquerda. Mas não o usaram. E foram depois presos.

 

Tinha a imagem de a sua mãe ser poderosa?

Bli – Mais tarde, sim. Mesmo quando estava presa. Era uma pessoa muito admirada. Lembro-me de me orgulhar porque até pessoas de direita (falo de PPD e CDS) a admiravam. O Francisco Lucas Pires apoiou-a quando foi a greva da fome e quando saiu da prisão. Foi nessa altura que comecei a ter alguma consciência política. Tinha 11 anos, 12.

 

Falemos das suas prisões. A primeira vez foi quando?

Isabel – Antes do 25 de Abril, duas vezes. Uma vez a Bli ainda não existia e na outra tinha oito meses.

Bli – Foste presa comigo ao colo.

Isabel – Tinhas uma touca azul. Foi na sequência da morte do [estudante] Ribeiro Santos. Encontraram um manuscrito meu na Ordem dos Médicos e identificaram a letra. Era para ser distribuído a todos os médicos e dizia que o Ribeiro Santos tinha sido morto. O pai dele era médico.

 

Nas suas prisões, foi batida?

Isabel – Nunca apanhei. Nunca fui torturada. Mas foram prisões com violência, espalhafato. Uma grande imposição de poder.

 

Sonha com isso?

Isabel – Não. Os meus maus sonhos são de não ter casa. E uma vez ou outra, as perseguições, o risco da prisão.

Depois do 25 de Abril fui presa em 78. O meu filho Sérgio tinha uns meses. O pior foi a separação da Bli, mais uma vez. O Sérgio ficou sempre comigo. Ela foi ver-me, com o Cal Brandão, nosso advogado, ao Porto. Estive quase sempre em Custóias. A Bli atirou-se para o chão e chorou. A dizer que queria ficar com a mãe.

Bli – Não me lembro de nada disto.

Isabel – Mas de certeza que ficou.

 

Não pôde ficar com os dois filhos consigo porquê?

Bli – Eu não podia ficar porque tinha mais de três anos. Apesar de o meu irmão ter continuado quase até aos cinco. Passei lá períodos de férias. Clandestina.

Isabel – No final da visita, em vez de voltar com a família, ficava na cadeia connosco. Com a cumplicidade das guardas, sobretudo da chefe das guardas, que era uma senhora muito inteligente. O director fechava os olhos.

Bli – Divertia-me imenso. Com as prostitutas e as contrabandistas. Além de me contarem as histórias das coisas que faziam, pintavam-me as unhas. Aprendi a fazer crochet. Sessões de teatro.

Falava-se muito da minha mãe em casa, na escola. Na escola chegou a fazer-se um concurso de cartazes pela amnistia dos presos políticos. A professora era fantástica, a Dina. Espero que leia esta entrevista. Foi uma pessoa muito importante para mim.

 

“Amnistia pelos presos políticos”: era assim que eram considerados? Foram presos por acções que tiveram que ver com as Brigadas.

Isabel – Nós não tínhamos estatuto de preso político. Mas éramos considerados assim. Entre nós, com certeza. E também na sociedade. Excepto a direita que achava que éramos delinquentes, terroristas. Dentro das cadeiras, tínhamos o respeito de ser pessoas que estavam ali por razões políticas.

 

Lembra-se das cartas que lhe mandou quando ela estava na greve da fome?

Bli – Não. Lembro-me de ter algum receio. Fui visitá-la ao hospital com o aviso de que podia perder a vida. Porque iria até ao fim. Vi-a muito magra, muito magra.

 

Quantos dias esteve?

Isabel – Trinta. Podia ter perdido a vida. O Bobby Sands [guerrilheiro do IRA] foi até aos 50.

Bli – Tiveste soro?

Isabel – Não. Só quando nos hospitalizaram em Santa Maria. Aguenta-se mais a beber água. Se a pessoa não beber água, vai-se embora ao fim de menos dias.

 

Alguma vez pediu à sua mãe para comer?

Bli – Não! Nem a minha tia, ao ler as cartas, deixaria que essas chegassem à minha mãe. Uma vez tentei também fazer greve da fome. Mas só aguentei umas duas horas.

Isabel – Fizemos 24 horas de greve da fome com as presas comuns. Pelo cumprimento do estatuto do preso preventivo.

Bli – A minha mãe nunca me deixaria fazer mais [do que duas horas], mas deve ter apreciado que eu tenha tido vontade de me juntar.

 

Alguém a tentou convencer a comer?

Isabel – Não me lembro de ninguém. O meu pai mandou-me uma carta lindíssima. “Tens de considerar. A Thatcher tinha um coração de ferro e deixou morrer o Bobby Sands. Mas lembra-te também no orgulho que temos, nas pessoas que na América Latina fizeram greve da fome.”

 

Pensou nalgum momento que ia morrer?

Isabel – Pensei em todos os momentos. A partir de determinada altura, eu sabia (enquanto médica) que podíamos morrer. Fazíamos análises. Quando via os níveis a que estava o potássio... o coração podia parar.

 

Teve consciência aguda do que estava a fazer. Disse-me uma vez que não há heróis, há causas irreversíveis. É isso?

Isabel – Como é que se pode voltar atrás? Um belo dia acordar e arrepender-me de ter feito esta luta? Não seria possível. Há questões de dignidade que são mais importantes.

 

Que é que aprendeu mais do que tudo com as histórias da sua mãe nos anos quentes?

Bli – Que é importante lutar. Lutar. Sempre com transparência. Tenho muita admiração pelo percurso da minha mãe. Nunca houve cedências a jogos políticas. Sempre houve uma defesa de todos os cidadãos. Nunca houve um interesse senão o de lutar pela igualdade, contra a injustiça. Para que não haja pessoas violentadas. Comecei a trabalhar nisto com 30 e tal anos. Como é que era o meu dia a dia com 30 e tal anos e como é que era o da minha mãe?

 

Sempre a compreendeu?

Bli – Sempre. Nunca sequer pus em causa as actividades e opções políticas. Nem posso dizer políticas. São cívicas. É a primeira vez que vejo a minha mãe ligada a um partido desde que saiu da prisão. Acho admirável que consiga continuar. Eu nunca vou ter esta energia. O que mais admiro nela? A coerência. E nunca ter cristalizado no tempo.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015