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Anabela Mota Ribeiro

Ana Vidigal

20.07.21

Menina Limpa, Menina Suja é o nome da exposição antológica de Ana Vidigal no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. A mostra conta a história de uma menina bem comportada que aprendeu com Mae West que quando era boa, era boa, quando era má, era muito melhor.

Ana Vidigal vai fazer 50 anos. Pinta há 30. As suas peças têm títulos como Secura de Boca Depois de Arfar, Sempre Gostei de uma Flechada de Cupido, For All the Girls I Loved Before. Os assuntos do coração podem ser, são quase sempre, os seus assuntos. Interessam-lhe os “estragos emocionais” quando fala de um acontecimento que é eminentemente político – por exemplo, a guerra colonial.

Faz parte do blogue Jugular. É feminista. Posta coisas que quer dizer, mais do que tudo, em imagens. Mas a política e a arte são campos que não gosta de misturar.

Gosta de artistas como Louise Bourgeois ou Sophie Calle. Gosta de poesia. 

Trabalha sobre sedimentos, despojos, memórias, cartas, fotografias, a vida. Pinta quem é como outros escrevem quem são. Pinta sobre os vestígios de uma vida obsessivamente guardada, reconfigurada. O seu trabalho artístico, de certa forma, é um abrir de caixas, caixas, caixas. Faz um “trabalho paralelo” mais experimental que durante muito tempo não expôs na sua galeria de sempre, a 111. Muito disso, está na exposição da Gulbenkian, a inaugurar a 22 de Julho.

A entrevista aconteceu em casa. Tudo acontece em casa. Um mundo, uma infância, uma memória palpável confluem num único espaço. A casa tem vista para o rio, o bairro faz parte da geografia da família há mais de 20 anos. O atelier e a casa estão construídos em círculo; mais do que comunicantes, parecem umbilicais. Como na obra de Ana Vidigal, aliás. Um alimenta-se do outro. Existe por causa do outro. Um é sintoma do outro.

É filha de uma família conservadora, de homens e mulheres licenciados há pelos menos duas gerações. Há na casa vestígios desse conforto e finesse. Nas louças antigas, numa cómoda de extremo bom gosto. O pai é arquitecto, a mãe é mãe. Ana é pintora e nunca lhe passou pela cabeça ser mãe. Isso seria outra vida, outra pessoa.

 

Foi educada para ser uma menina limpa que podia sujar-se de vez em quando?

Hum. Fui educada para ser uma menina limpinha. Tudo se transforma em 1974. A minha mãe, que foi educada para casar e ter filhos, pensou que o quadro anterior ao 25 de Abril se poderia manter; eu percebi rapidamente que a revolução me iria permitir, um dia que fosse autónoma, fazer aquilo que muito bem entendesse.

 

O que é ser limpinha? A sujidade está relacionada com uma certa prevaricação em relação ao modelo instituído?

A menina limpa corresponde ao modelo de uma família conservadora. Uma família de mulheres que estudaram, mas não trabalharam. Todas as minhas amigas de infância e adolescência casaram e tiveram filhos. Sou a única que exerço uma profissão que não me dá disponibilidade para mais nada. Sou uma menina de colégio de freiras. Andei até aos 15 anos, até 1976, nas Doroteias.

 

O 25 de Abril afectou a vida da família? Houve uma mudança radical, no sentido de a família achar que algumas das suas prerrogativas deixavam de existir, que era preciso reequacionar tudo?

Não. O meu pai não tinha qualquer actividade política, nem à esquerda nem à direita. Tinha sido chamado para fazer a tropa pela segunda vez. Isso foi a primeira desestabilização na família. Ele tinha 30 e poucos anos quando teve de ir para a Guiné e nós ficámos cá sozinhos com a nossa mãe. Quando foi o 25 de Abril, a mãe respirou de alívio: os meus irmãos já não seriam mobilizados. Era um sentimento muito presente nas famílias portuguesas: ou as famílias se desfaziam porque os homens fugiam para não ir à tropa; ou se desfaziam porque iam para a guerra e morriam.

 

Há uma peça que evoca esse período em que o seu pai esteve na guerra. É uma cama feita com as cartas que os seus pais trocaram. Chama-se Penélope.

Fiz essa peça para a exposição Um Oceano Inteiro para Nadar. Eu queria pegar no assunto da guerra colonial. Sempre me fez impressão que não trabalhássemos isso (nomeadamente nas artes plásticas). Os americanos trataram a guerra do Vietname ainda ela estava a decorrer. Duvido que haja alguém da minha geração que não tenha tido um pai, um tio, um irmão em contacto com a guerra colonial. Há uma peça que sempre me impressionou muito e que foi exposta em 1973 na Sociedade Nacional de Belas Artes (nem sei como é que aquilo passou na censura); uma peça da Clara Menéres, Jaz Morto e Arrefece (que é umverso do poema do Pessoa O Menino de Sua Mãe). É um soldado morto, hiper-realista, uma crítica fortíssima à guerra colonial. Mas não me interessou tomar posições políticas. Eu tinha seis anos, sabia lá se era contra ou a favor! Posso ter a minha posição agora. O que eu queria da peça é que ela me relacionasse com essa altura.

 

E se pensa nessa altura, pensa em quê?

A força da guerra tem a seguinte expressão: a ausência do meu pai, a presença constante em cartas. Não falei com os meus pais sobre isto, nem vou falar; não sei se combinaram quantas vezes se escreveriam, mas sei do nervoso da minha mãe quando estava para chegar o aerograma (mais frequente do que as cartas).

 

Temeu por ele?

Mesmo miúda, percebi que podia não voltar. Tive essa noção de que se morria na guerra. Ninguém me escondeu isso. Os nossos desenhos estavam cheios de bandeiras portuguesas, carros de combate. Os meus irmãos e eu sempre desenhámos muito, sempre tivemos acesso a lápis, canetas, papel. Fazíamos desenhos para mandar para o nosso pai.

 

É curioso que desenhassem bandeiras e não a casa, a família. Não lhe devolviam nos desenhos o que era o vosso quotidiano.

Desenhávamos coisas directamente relacionadas com a guerra. Mas não sei se a guerra era para nós um fantasma. Se calhar gostávamos imenso que o nosso pai participasse naquela ideia heróica que tínhamos da guerra. Os pais iam para a guerra defender a Pátria – era isso que nos era incutido. O que abordei, quando falei nas minhas peças da guerra colonial, foram os estragos emocionais.

 

Voltando à peça: leu as cartas? Porque é que decidiu tratar esse tema a partir daquelas cartas?

Nunca li as cartas. Gosto muito desse tipo de materiais. As cartas fascinam-me. Porque têm uma parte exterior e uma parte interior.

 

Nesse sentido, são caixas. Elemento nuclear do seu trabalho.

Sim, as cartas são caixas. Nunca li aquelas cartas por uma questão de respeito e pudor. A minha mãe deu-me as cartas, mas sabia que nunca iria usá-las de modo a expor a intimidade dela com o meu pai. Já exponho, de certa maneira, quando mostro que aquele casal manteve aquela correspondência tão assídua. Interessa-me saber que dentro daqueles envelopes está uma vida. Mas é uma coisa que não se pode violar.

 

Os envelopes, na colcha que cobre a cama, estão dentro de uma segunda caixa. Como se formassem uma colcha de patchwork.

Estão dentro de uma segunda caixa, ou seja, de sacos plásticos. Os próprios sacos plásticos estão agrafados uns aos outros, e a própria carta tem um agrafo no meio. Mesmo que tirem os agrafos de fora, danificam a carta para a tirar daquele envelope.

 

São sucessivas formas de obstruir o acesso àquele conteúdo.

Sim. Uma das coisas que mais me incomodaram foi o roubo de uma das cartas, numa exposição em Coimbra. Se algum dia alguém danificar uma peça minha, não me incomodo com essa possibilidade – são coisas que acontecem. Retoca-se, restaura-se, resolve-se. Mas aquele roubo chocou-me. Não foi por danificarem a obra – tenho mais cartas. Foi por violarem e desrespeitarem a intimidade dos meus pais. Aquilo não tem interesse para ninguém! Porquê?  

   

Essa cama é o lugar da ausência do pai, é o lugar do amor, do sexo. A peça representa também a filha que se mete na cama dos pais?

Não sinto que tenha sido eu a meter-se na cama dos pais – tanto quanto tenho consciência disso. Apesar de o ambiente ser conservador, os meus pais eram um casal que tinham manifestações de afecto. Tenho amigos que nunca viram os pais fazer uma festa um ao outro. Lembro-me dos meus pais de mão dada, a dançar. E sempre tivemos acesso ao quarto dos pais; logicamente batíamos à porta antes de entrar, mas tínhamos acesso. Uma das coisas que vi foi o quarto vazio. A minha mãe estava lá sozinha. E nunca nos deixou dormir lá. O quarto vazio foi a expressão mais notória da ausência do meu pai durante aqueles dois anos e meio. Porque o resto da minha vida foi normal. A minha mãe ia pôr-nos à escola, levava-nos à ginástica, íamos para casa dos avós ao fim de semana, íamos para a praia das Maçãs nas férias.

 

O que materializa é uma cama, que tem determinada simbologia.

Não é uma criança de sete anos que faz esta peça. Seria diferente se fosse uma toalha de mesa. A conotação da cama é fortíssima. Fala-se dos homens que foram para a guerra, mas fala-se pouco das mulheres que ficaram à espera dos seus maridos, que podiam voltar ou não.

 

E por isso a peça se chama Penélope, e não Ulisses?

Exactamente. Há uma ausência de vida de casal em todas essas mulheres. Hoje, mulher adulta, penso na violência de ser separada dois anos e meio da pessoa que amo… Não havia skype, nem a facilidade das viagens. A minha mãe nunca pôde ir, porque o meu pai estava no mato. O meu pai, como oficial, teve direito a duas viagens à – como se dizia – metrópole. Levou máquinas fotográficas e de filmar para a guerra. Mandava os filmes para a minha mãe e a minha mãe mandava-os revelar em Madrid. Acho que ainda me lembro da morada do laboratório… [Calle] Irún 15, Madrid 8. A Kodak mandava-nos os filmes revelados nuns pacotinhos amarelos; só foram vistos quando o meu pai voltou. Se ele não tivesse voltado, o que é que faríamos àquilo?

 

Usou um dos filmes numa peça.

Quando fiz o Void [para o Project Room da Arte Lisboa 2007], também sobre a guerra colonial, passei um filme em super 8 que o meu pai fez na Guiné. O filme passava numa recriação do meu quarto de infância que estava nessa peça. No quarto estavam também fotografias onde aparece o meu pai. Mas às fotografias nós tínhamos acesso fácil durante esse período. É daí que vêm as bandeiras, os carros de combate, os aquartelamentos.

 

Void é outra das peças da exposição. Dela fazem parte babetes que eram do seu irmão. Que relação têm com a guerra colonial?

No Void, a janela do meu quarto dá para uma imagem do quarto do meu pai, em Nova Lamego. Ainda tenho comigo as coisas que estavam nesse quarto: a caixa das cartas da minha mãe, a ventoinha, fotografias. Lembrei-me que o meu irmão Nuno, nessa altura, ainda comia de babete; e a minha mãe lia-nos as cartas que o pai nos enviava enquanto jantávamos. O que é que as cartas diziam? Nada assustador. Coisas como: o pai ficou muito contente porque a Ana teve bom na escola. Pus as imagens serigrafadas do meu pai nos babetes. Porque o babete está junto ao peito. Nunca falei sobre isto com os meus irmãos. Nunca nos perguntámos: o que é que tu sentiste? O meu pai foi ver a peça, leu tudo o que estava nos babetes, e não fez nenhum comentário. Alguns dos babetes têm cartas originais da minha avó para o meu pai, e de primos. Essas li.

 

De que coisas falam?

As coisas mais banais. Os meus avós moravam numa quinta em Alverca; quando foram as cheias de 1967, a cascata ficou destruída. Numa das cartas, a minha avó descreve a reconstrução da cascata. Seria importante saber que a cascata tinha sido reconstruída? A minha avó falava de um conjunto de conchas que tinha trazido do Lido – nunca mais me esqueço disto porque eu não sabia onde era o Lido e fui ver. O Lido de Veneza. Acho que não conseguimos imaginar o que é ter um filho na guerra. Eu imaginei que essas cartas diriam coisas como: que saudades tenho tuas.

 

Imaginou que seriam uma expressão do sentimento e não um relato do dia-a-dia.

Isso. O que me surpreendeu foi o detalhe; como se fosse uma conversa com uma pessoa que está aqui ao lado; e impressionou-me não haver uma parte mais sentimental.

 

Isto que diz é uma porta de entrada para uma coisa central na sua obra: o facto de ser uma respingadora. Apanha tudo, colecta, recicla, incorpora, recontextualiza. São despojos da sua vida. E sobre uma grande parte deles, pinta.

Ser respingadora, guardar, procurar, seduz-me. Não sei se a minha avó paterna procurava. Mas guardava tudo. A vantagem das pessoas que têm casas grandes é que podem dar-se ao luxo de guardar a vida. Na casa de Alverca havia o sótão, que era habitável, e havia as arrecadações. Muito do material que tenho hoje são coisas que a minha avó tinha religiosamente guardadas. Revistas, vestidos, brinquedos. A própria infância e adolescência dela estava guardada em caixas.

 

A partir delas, é possível reconstituir a história da família e a história individual dos seus elementos?

Sem dúvida. Isso acontece mais na família do meu pai. Mas do lado da minha mãe, o meu avô gostava de fotografar. A minha mãe tem hoje 75 anos e tem álbuns desde que nasceu até se casar – o que não era muito comum naquela geração. Tenho fotografias da minha mãe na Exposição do Mundo Português.

 

As primeiras caixas da sua vida, antes das caixas que aparecem na sua obra, são essas caixas da infância, da relação com a avó.

Ah, sim. A minha avó deixava-me abrir tudo. O meu bisavô esteve na Primeira Guerra Mundial e nas Campanhas de Moçambique; havia uma unha de leão dessas campanhas. Estava guardada numa caixa que dizia: “Uma unha de leão que o meu pai trouxe das campanhas de Moçambique”. Eu gostava imenso dessa unha! Já não sei o que é que lhe fiz. Mas tenho aqui uma coisa desse género. [levanta-se e mostra uma peça antiga] “Cartilha. Corta massas. Pertenceu à trisavó da Aninhas – que sou eu – Dona Maria da Conceição Vidigal”. Encontrei isto numa caixa. A minha avó, quando nasci, devia estar tão entusiasmada por ter uma neta que me deu o corta massas. Reconheço perfeitamente a letra dela.

 

Porque é que se concentra nestas coisas?

Acho que tem a ver com o meu lado de miúda curiosa. “Deixa cá ver o que é que está dentro da caixa…” Nunca me foi proibido mexer nas caixas.

 

Ao espreitar para dentro da caixa, sacia-se a curiosidade. Mas depois impõe-se saber a que categoria aquilo pertence. Nas coisas que têm importância, nas que não têm importância. E enquanto artista, importa saber como é que as incorpora no seu discurso.

Sempre gostei muito do aspecto táctil das coisas, do papel amarelecido. E gostei sempre das formas, das imagens, do traço. Através destas coisas chego a quem sou.

 

São traços da sua genealogia sentimental?

Sim. Sempre tive uma grande identificação com essa minha avó.  

 

Era por se sentir a preferida dela?

Era capaz. Na família do meu pai não havia raparigas; durante muito tempo fui a única da minha geração. Havia uma semelhança física – toda a gente dizia que éramos muito parecidas. Se fosse viva teria 110 anos e foi uma mulher que antes de casar deu aulas (tinha tirado o magistério primário). Casou tarde. O meu pai nasceu quando ela tinha 32 ou 33 anos. Dizia-me sempre: “Casei aos 30 anos. E se soubesse o que sei hoje nem teria casado”. O meu avô era médico. Quando reparou na minha avó, estava sempre a dizer que os meninos tinham que ser vacinados…

 

O que é que a sua avó dizia das coisas que fazia, enquanto artista?

Gostava imenso. Ficava um bocadinho furiosa por lhe ir às caixas e colar as coisas que ali estavam. Nunca me hei-de esquecer que a minha avó me comprou um trabalho na minha primeira exposição. Não tinha necessidade: eu tinha-lho dado. Está agora na casa dos meus pais.

 

Comprou para a ajudar?

Ela ajudava-me sem ser dessa maneira. Quis dar-me a entender que dava valor ao meu trabalho.

 

Curioso entender o que ali estava, nas suas peças. Não era a expressão artística a que ela estava habituada.

De maneira nenhuma. A minha avó pintava. (Esqueci-me de dizer isto – o meu ponto em comum mais importante com a minha avó. Como é que me esqueci?) A grande ligação do meu pai com ela vem daí; vai para arquitectura porque tinha jeito para desenho e por influência da minha avó. A minha avó queria ir para Belas Artes, mas o meu bisavó, militar, pediu que não fosse. Continuou a pintar, depois de casada. A minha afinidade com ela começava aí: gostarmos de desenhar, os blocos, as canetas.

 

Os cadernos, que parecem pequenas caixas onde ficam registados pedaços do dia, do ano, estão também presentes na exposição. Não são cadernos limpos, ordenados. Parecem diários onde se compacta informação, matéria que se trabalha, objectos.

A minha avó gostava deles. Mesmo que não se parecessem com aquilo a que estava habituada. Sempre senti na minha família que as pessoas gostam que o outro seja feliz a fazer aquilo que gosta. Isso dá uma força…

 

Quando é que disse que queria ser artista?

Desde sempre! E nunca ninguém me disse que não podia ser pintora. Pelos 15 anos, tenho a leve sensação de a minha mãe ter querido que tirasse o curso de arquitectura. Mas eu, linhas direitas… [riso] Não tem nada, nada a ver com a minha cabeça.

 

Falemos na base sobre a qual pinta. Uma espécie de palimpsesto onde cabem cartas, papéis, objectos, memórias. Porque não uma tela em branco?

Nunca pensei nisso. Sempre quis fazer assim. Na Escola de Belas Artes aceitavam que eu trabalhasse com aqueles materiais. Uma vez, alguém me disse: “Se não tiveres papéis para colar, não consegues fazer um trabalho?”. Que disparate – pensei. E fiz uma série em que não aparecia uma única colagem. Não me trouxe nada de novo.

 

Sentiu-se nua?

Não.

 

Sentiu-se vazia?

Sim. Quando utilizo colagens, há sempre qualquer coisa que me dá uma certa excitação. Se ando há 30 anos a fazer colagens? Não sei se isto passa para as pessoas, nem estou muito preocupada, mas quando faço colagens há qualquer coisa que me provoca entusiasmo.

 

É a excitação infantil de abrir a caixa?

É. E é uma coisa que se vai perdendo, mas que se reconhece quando surge. Não é que percamos a espontaneidade; mas com o tempo tornamo-nos mais conscientes. E ficamos mais cobardes – refiro-me à parte técnica. O bom é quando não paro. “Se estragar um mês de trabalho, estraguei”. Mas com a minha idade, paramos. Nem que seja com uma desculpa estúpida (“Agora estou muito cansada, vou descansar”). São mecanismos de defesa para não arriscar tudo. Como trabalho completamente sozinha, é um diálogo interno. Quando se é novo, às vezes é bom parar. Quando se tem a minha idade, o bom é quando não se pára. A menina limpa trabalha de uma maneira e a menina suja trabalha de outra.

 

Ou seja?

Tenho essa dualidade. Paro, não paro. Estrago, não estrago. Se possível, as minhas exposições estão marcadas com um ano e meio de antecedência. Para poder dar-me ao luxo de estragar o trabalho de um mês, começar tudo de novo. Cada vez demoro mais tempo a pintar. Pensei que seria ao contrário. Não sei porque é assim. Eu era muito rápida, muito rápida. Uma das razões por que trabalhava com acrílico era não ter paciência para que o óleo secasse. E agora posso estar quatro, cinco meses à volta de um trabalho. Não é por preguiça nem por falta de tempo.

 

É por não saber como resolvê-los?

Não. É poder fazer sem pressa. E ir errando. É a única maneira de andar para a frente. Com 30 anos de trabalho, tenho fórmulas certas. Não as quero. Não me levam a lado nenhum. Detesto repetir-me.

 

O seu trabalho tem um lado doméstico fortíssimo; uma das bases é a sua casa do passado. E no presente, o atelier é contíguo à sala de estar. Como se a casa fosse um mundo.

E é. O trabalho de atelier é extraordinariamente solitário. Eu faço tudo, raramente recorro à ajuda de terceiros. Não tenho tido necessidade de ter assistentes. Tenho todo o tempo do mundo para mim, o trabalho flui, não tenho pressas. Posso passar uma semana metida em casa sem ver ninguém. 

 

O sótão de Alverca é a infância, o lugar mítico onde volta recorrentemente. Porquê a necessidade de tudo se passar em casa?

Isto tudo é construído e reconstruído por mim. Quando vou lá atrás, à memória, trago-a para aqui, para o presente, reconstruo-a. Isto é um casulo. De onde eu saio, mas onde deixo entrar pouca gente. Não deixo que ninguém me observe quando estou a trabalhar. Mesmo as pessoas que me são mais próximas. Podem estar, e eu lavo os pincéis… Se estivesse alguém, não poderia hesitar como hesito. Distraio-me com o movimento, a luz, as pombas a pousar na janela. Por vezes fecho as portadas e acendo a luz. Fica tudo mais…

 

Uterino? Revê-se nesta palavra?

Pode dizer isso. Mas é mais um casulo. Um bicho, uma lagarta que ali está a trabalhar, fiozinho a fiozinho. Tenho a noção que o casulo só é habitável se eu sair. Tenho que ver, ver, ver, ter contacto, saber o que estão a fazer as outras pessoas; mas depois digerir essa informação, recolher, trabalhar sozinha. Sou eu e o trabalho, o trabalho e eu.

 

E o trabalho é sobre si e a sua vida. Como Flaubert, “o trabalho sou eu?” É uma expressão e um sintoma do que aí se passa.

É. Esta casa é circular. Passo do atelier para a casa em redondo. Vou de um lado ao outro com grande facilidade.

 

A casa e a família aparecem também na série Jogo Americano. Se vemos aqueles individuais, vemos uma família à mesa? A família é uma partícula elementar do meu discurso?

Não.

 

O que vê, então, naqueles individuais? Delimitação de território no espaço da família?

Não. Vejo conjugalidade. O que aparece é uma dupla. Nas minhas peças, a modalidade é essa. Não passa disso, não traz outras pessoas, não arrasta a família. A conjugalidade pode ser comigo própria. Ou seja, eu ao espelho.

 

Estava a ocorrer-me o desejo da sua mãe, de a ver casada de vestido branco… Nunca quis uma situação de conjugalidade?

Já tive situações de conjugalidade. O que nunca quis, e desde miúda, foi ter filhos. A minha avó perguntava: “Então, quantos netinhos – que seriam bisnetos – é que me vai dar esta menina?”. Eu respondia sempre “Ne-nhum!”. Por uma razão: sempre achei, e se calhar mal, que a minha mãe não trabalhava porque tomava conta dos filhos. Que a minha mãe se tinha sacrificado por nós. E muito bem; fomos muito apoiados, tivemos infâncias felicíssimas, douradas, sem dramas. A minha mãe ia buscar-nos ao colégio, a seguir ia ao ginásio clube português… Era miúda e pensava: “Olha eu a ficar este tempo todo à espera… Não quero isto.”

 

O que isso revela é que sempre foi claro para si que se queria afirmar pelo trabalho, e não pela família.

Sem dúvida. Não estava disposta a sacrificar nada pelo meu trabalho. Os meus exemplos eram os de pintores e pintoras, de quem eu não tinha uma história de família. Para mim, eram aquelas pessoas, não eram aquelas pessoas em família. A maior parte deles não tinha filhos. A dedicação era exclusiva.

 

Quem eram essas figuras que a inspiravam?

Com dez, 12 anos, eram referências clássicas. Como a Vieira da Silva, que não teve filhos.

 

Não deixa de ser curioso que tenha fotografias das suas sobrinhas espalhadas pela casa, e que o universo delas, que é forçosamente diferente do seu, alimente também o seu trabalho.

Incorporo também as referências que elas me trazem, do cinema e do entretenimento. Sou como uma esponja. Sugo tudo. Cheguei às Powerpuff Girls por elas. São umas bonecas muito feministas! [riso]

 

Em muitas peças, faz inserção de texto. Pode misturar uma frase de Baudelaire ou de Clarice Lispector com um excerto de texto de uma fotonovela, do Simplesmente Maria. Nunca consegue desfazer-se da palavra, da narrativa?

A frase, a palavra encanta-me. Penso muitas vezes: “Como gostaria de ter escrito isto”, “Como esta pessoa disse isto tão bem”. Uma palavra pode ser muito concreta. E há um jogo, uma subtileza que a palavra proporciona. Pode ser uma contradição entre os termos: o texto que insiro e o que lá está pintado. Sendo artista plástica e tendo um discurso não figurativo, o espectador pode interpretar aquilo como entender. Não resisto a recortar essas palavras e a jogar com elas, com as formas, ao que é possível fazer formalmente com elas.

 

Joga muito com a ambiguidade e com a ironia. E algumas inserções de texto são panfletárias. A obra de arte é também uma arma, para veicular aquilo que pensa?

Não, não acho isso. Quando uso essas coisas panfletárias é para me divertir a mim própria. Até me assusto quando diz que as coisas podem ser panfletárias!

 

Estou a trazer este assunto e a pensar num trabalho que esteve em Serralves, com frases feministas. Como a da Mae West: “Quando sou boa, sou boa, quando sou má, sou muito melhor”.

Essas peças têm um conteúdo político. Mas não quero usar a minha forma de expressão como arma política. Aquelas frases são políticas, mas são ao mesmo tempo muitíssimo irónicas. É mais por esse lado que me interessam. Sei que quando me pedem apoio político para alguma coisa é por ter o trabalho que tenho. Mas são campos separados. A parte feminista é política, claro, mas é basicamente porque sou mulher. É como mulher, vinda de um determinado meio, que o faço; como se gozasse comigo própria.

 

Goza com aquilo que era suposto que tivesse sido o seu destino social? Mulher bem casada e com filhos?

Sim, gozo com esse destino que era suposto que cumprisse.

 

É isso que faz quando cria uma peça como O Véu da Noiva? Uma peça co-assinada pela Ruth Rosengarten.

O Véu da Noiva é feito com o vestido de casamento da minha mãe. Não o vesti porque não cabia nele. Não teria um especial significado vesti-lo. Mas a Ruth e eu vestimos o namorado dela e a minha sobrinha com o vestido de noiva. Para os fotografar. Aquilo era um confronto entre a minha mãe que se tinha casado, eu que nunca casei, a Ruth que se casou e divorciou; e um confronto entre religião católica e a judia (da Ruth). Como eu não tinha computador na altura, fizemos tudo à moda antiga, à moda epistolar. Eu e a Ruth mandávamos as coisas pelo correio. Fizemos aquilo uma para a outra; expusemos por acaso.

 

Aspecto que também aparece em muitas obras: estar ali um interlocutor. Alguém a quem se dirige, muitas vezes no título (exemplo: Pensas que o Sexo Terá Importância?). Passa a ideia de que aquilo é feito para alguém.

A Ruth é talvez o melhor interlocutor que tive até hoje. Está Inglaterra, eu estou aqui, podemos estar meses sem falar, mas se lhe digo uma coisa, sei que ela entende o que estou a dizer. Foi a pessoa que fez uma análise do meu trabalho com a qual me identifiquei mais. Naquele momento, aquilo era um texto exacto: estava a ler e a ver-me ao espelho.

 

Esta exposição marca 30 anos de trabalho e inclui peças de todas as fases. Foi surpreendente olhar para si e para a obra numa perspectiva antológica?

Sou sempre eu que estou ali. E só sou o que sou hoje porque fui sendo, pelos anos fora, tudo o que ali está. Fui deixando aquelas marcas. Fui concretizando daquela maneira.

 

Quando vemos os peluches embrulhados em celofane, a ideia que passa é a de asfixia, opressão. A obra tem por título Des(animados). Se foi sendo aquelas coisas todas, quer dizer que aquela peça coincide com um momento biográfico em que se sentia assim?

Acho sempre que nunca chegamos àquele extremo. Que nunca podemos deixar-nos chegar àquele extremo. Ao fim e ao cabo, aqueles objectos estão mortos. Mas sim, coincide com um período menos transparente na minha vida – apesar de a fita gomada ser transparente.

 

Apesar de ser transparente, a fita está retesada. Tensa.

Mais do que asfixiados, eles estão moldados, oprimidos.

 

Há outras peças onde os acontecimentos biográficos estão de forma explícita. Como a série das casinhas, que fez quando a família vendeu a casa de Alverca, a casa mítica da sua infância.  

Descobri primeiro aquelas casas, feitas com caixas de sapatos, numa montra. Formalmente era muito bonito. São as casinhas que na Madeira se usam nos presépios. Tinham sido feitas pelo sapateiro, todo o lado plástico me interessava. Comprei-as sem pensar no que iria fazer com elas. Estiveram anos guardadas no armazém, sem que me interessassem. Até ao dia em que me interessou trabalhar o tema “casa”. Tinha a ver com a venda da casa de Alverca. Uma casa a que era impossível voltar. Soube logo o que queria fazer com as casinhas. Queria parti-las ao meio, ficar com uma parte virada para o público, outra com as entranhas à mostra.

 

Esta conversa veio a propósito de olhar para as diferentes fases e reconhecer-se sempre nelas. É essa continuidade, apesar da diversidade de fases e suportes, que está na exposição da Gulbenkian?

Esta exposição tem mais material experimental. A Isabel Carlos, [a curadora], queria mostrar esse lado mais experimental, que foi menos visto em Lisboa. Na pintura, identifico mais claramente o que são os anos 80, os anos 90, os anos 2000. O trabalho experimental surge só nos anos 90 e não está tão compartimentado, tão identificado com uma corrente, com uma época. Mas em nenhum momento tive a sensação: “Como é que eu fiz isto?”

 

O que é o “trabalho paralelo”. São as caixas onde guarda coisas, para retrabalhar mais à frente? É onde estão as coisas em banho-maria?

Não é só isso. Chamava-lhe paralelo, também, porque esse tipo de trabalho aparecia em exposições que não as da galeria 111, que é uma galeria mais conservadora. Expu-lo em sítios mais pequenos, fora de Lisboa. Não quero mostrar o meu trabalho apenas em Lisboa e no Porto. Se a câmara de não sei onde me convida para fazer uma exposição, e se tiver disponibilidade, faço. Sei de pessoas que não gostam. Eu acho que o trabalho é para ser visto, não é para ficar entre quatro paredes. Não me passava pela cabeça mostrar esse trabalho na 111, e foi o Manuel [de Brito], em 2000, que me propôs mostrá-lo na galeria. Portanto, esse trabalho era o trabalho que eu ia fazendo paralelamente ao meu trabalho de pintura. São processos de trabalho diferentes. Às vezes estava a pintar o dia todo, e depois ia para o estirador e fazia esse trabalho mais experimental. E ia arquivando. “Tenho uma série de trabalhos que nunca mostrei a ninguém. Querem expor?”. Para espanto meu, as pessoas não diziam: “Não, queremos a pintura”.

 

Uma peça que ilustra isso é Beija-me, Idiota, uma glosa ao título de Billy Wilder, Kiss me, Stupid. Trata-se da bruxa má da Branca de Neve, que expôs nas Caldas da Rainha. Qual foi a ideia?

Em relação a esse trabalho, pensei: “A única maneira de o mostrar é mandar para uma bienal; se quiserem expor, expõem.” Foi assim que mostrei as coisas. Foi recusada muitas vezes, fui aceite outras vezes. É bom para perceber que nada está adquirido. Não temos estatuto nenhum, não podemos acomodar-nos. Podemos fazer uma coisa muito boa hoje e estampar-nos amanhã. Temos que ter arcaboiço para, se cairmos ao chão, nos levantarmos outra vez.

 

Apesar de a exposição na Gulbenkian saber a consagração.

Mas sabe que vou fazer uma exposição antológica numa instituição que não tem um único trabalho meu. [riso] Tem a sua graça. A pior coisa é achar que já chegámos lá. Mesmo que realmente vá fazer uma exposição na Gulbenkian. Estagnar, achar que se está lá é, como se costuma dizer, a morte do artista.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Abril de 2011

 

Eduardo Souto de Moura

20.07.21

Eduardo Souto de Moura ganhou (quase) todos os prémios que havia para ganhar. O mais prestigiado de todos é uma espécie de Nobel e chama-se Pritzker. Foi em 2011. É um arquitecto muito culto e engraçado que pensa a desenhar. Tem atelier num bairro popular no Porto. Nesta entrevista fala-se de Siza, de Távora, do SAAL, da Michelle Obama que é bem simpática, do tempo em que era tudo materialismo dialéctico e conversa de café, do “Livro do Desassossego” que é a sua bíblia. Nasceu em 1952.

 

O que é que estava a fazer antes de eu chegar?

Estava a dar instruções para um concurso em que estou a trabalhar. É um teatro em Clermont Ferrand. Estou um bocado cansado de fazer concursos. Mas nunca fiz um teatro. Somos quatro [finalistas]. É um trabalho de equipa que envolve cenógrafos, acústicos, arquitectos. Não é fácil conciliar isto tudo. Um teatro é uma máquina, não é propriamente um exercício de composição.

 

Estranho a enfâse que deu à palavra máquina, e que contrasta com a ideia de narrativa, vida inventada que se passa no palco do teatro. A sua evocação é concreta.

É. Não tem a ver com os teatros, tem a ver com a evolução da arquitectura. Há um destino da arquitectura, por motivos sociológicos, políticos, económicos, comum a outras disciplinas, em que tudo, cada vez mais, está especializado. Dou um exemplo. Estive nos Estados Unidos a semana passada. No meio da reunião: “É legal fazer aqui uma rampa de garagem?”. Passados dez minutos vem uma advogada com uma pasta, e explica. Depois disse: “Gostava que o sentido da rua fosse aquele...”. Passada meia hora chega um especialista em trânsito.

 

Isso que conta não tem um sentido figurado?

É real. O mundo está a especializar-se. Obrigam-nos a ter uma capacidade de resposta muito directa e técnica. É evidente que tem de ser bonito, aprazível, barato (ou quase na miséria, porque hoje não há dinheiro para nada). Há um inventário de questões técnicas (onde está a contradição entre o orçamento e o que se pretende) a que temos de dar resposta.

 

Como é que ficámos reféns dessa vida segmentada? Essa sua queixa/constatação ouve-se em todo o lado.

Não sei. Sempre gostei de trabalhos colectivos. Trabalhei 13 anos no metro do Porto. Quando entrei fui motivo de chacota porque os engenheiros alemães e franceses perguntavam: “Um arquitecto para quê?” Numa primeira fase, trabalhei para conseguir ter um estatuto dentro da equipa. Estatuto: era provar que eu era conveniente.

 

Estamos a falar de um período posterior à sua licenciatura.

Sim. Confirmou-se aquela frase do Siza: “O arquitecto é um técnico que não sabe nada de nada, mas sabe um bocado de tudo”. Esse tipo de trabalho [em equipa] deu-me amparo. Não existia o conceito de “arquitectura artística” – acho que a arquitectura não é arte – em que as musas chegam, inspiram, e depois de tanta transpiração, consegue-se chegar lá. Não é nada disso. É à custa de trabalho e, hoje em dia, de muita informação.

 

Portanto em equipa sente-se amparado.

Sim, e trabalhar em equipa retira-me dúvidas metafísicas. O que é que hei-de fazer? Vou pintar de cor de rosa? Vou fazer janelas grandes? As dúvidas que há na chamada angústia do papel branco. Na equipa, acelera-se o processo. Dão informação. E por fim, preciso de entregar na próxima quarta-feira.

 

Contra a metafísica, impõe-se a realidade?

Isso mesmo.

 

Em suma, temos uma especialização crescente, uma necessidade de condensar muita informação e essa tal de musa (que algures deve aparecer para dar uma forma).

Isto é como na gastronomia: dá-se a receita e faz-se. Há uns de quem se diz: “Está muito bom”. E outros de quem se diz: “Está uma porcaria, deita fora”. É preciso sempre um clique. Qualquer coisa que não está codificada. Senão, consegue-se fazer uma construção, não se consegue fazer arquitectura. O que é a arquitectura? É a construção com uma mais valia.

 

É pomposo e foleiro dizer que essa mais valia se chama “alma”? Dizemos de um espaço que ele tem alma. Mas estou a vê-lo a banir a palavra...

Não, eu tenho alma! Fui educado da religião cristã e percebo o que quer dizer. É uma palavra bonita, por acaso. Nunca tinha pensado nisso, mas sim, é mais do que a parte física da casa.

 

É uma certa atmosfera que ela exala?

Gosto mais de atmosfera. É menos metafísico. [riso]

 

O que é que alimenta a sua musa? Artes plásticas, literatura?

Primeiro, há várias arquitecturas. A minha actividade principal é a arquitectura e procuro actualizar-se ou confirmar dúvidas minhas. Estou sempre a oscilar. Não quero usar a palavra “desassossego”, já não se pode com a palavra “desassossego”! Gosto de ler e viajar para ver outras arquitecturas. Há sempre uma polarização de dois factores, uns mais objectivos, outros mais afectivos. Os racionalistas e os expressivos. Os platónicos e os aristotélicos. Os atomistas e os epicuristas. Há sempre dois conjuntos que se reflectem numa concepção do universo – o que também acontece na arquitectura.

Fundamentalmente, para além da arquitectura, gosto de literatura.

 

Porquê?

É mais fácil. Pego num livro e pronto. Há um conjunto de escritores e temas que leio ou releio. Vou andando por ali.

É evidente que a pintura me interessa, que a escultura me interessa. Do cinema, gosto, mas vou ser directo: chego a casa tão cansado que não me apetece ir ao cinema. Resta o vídeo, e mais a rever. De vez em quando falam-me de um filme e vou. Há uns meses fui ver “A Grande Beleza”, do [Paolo] Sorrentino.

E gosto de fotografia.

 

Quais são os seus autores preferidos?

Do Pessoa, toda a gente gosta. Não estou nada de acordo com o Cesariny que dizia que tanto Pessoa já enjoa. Acho que era dor de corno. Tentaram dizer que o poeta de Amarante, o Teixeira de Pascoaes, era melhor do que o Pessoa. Aquelas coisas que se dizem. Também dizem que não sei quem é melhor do que o Siza. Que a mulher do Alvar Aalto é que fazia os projectos. É de rir. O marketing precisa de uns escândalos.

 

Leu o Pascoaes?

Li a “Arte de Ser Português”: não gostei nada. Gostei imenso do prefácio do Miguel Esteves Cardoso; é melhor do que o livro. Pessoa é um dado adquirido. Nos hotéis há bíblias. Eu vou para fora e nos hotéis leio “O Livro do Desassossego”. Tenho várias edições.

 

Aqui fica uma ideia para o próximo hotel que desenhar: que em cada quarto haja “O Livro do Desassossego”, como se fosse uma bíblia.

[riso] E porque não? Está tudo traduzido. Chego às livrarias dos sítios mais estranhos e está o Pessoa. O Herberto Helder foi uma descoberta que fiz quando era novo. Gosto e não percebo bem. Mas acho que percebo alguma coisa. Leio outra vez e acho que é por ali. Não sei porque é por ali...

 

Gostava que falasse mais da incompreensão. Não se compreende completamente, mas não se abandona. Oferece resistência, mas fica a perturbar, a germinar... Claro que isto não é válido só para o Herberto Helder.

Tenho isso no [Álvaro] Lapa, como pintor. Dizem-me: “Porque é que gostas? É um bocado infantil.” Respondi: “É essa inocência que não entendo bem que me faz gostar. Essa inocência que está num homem tão maduro e tão gasto.” Essa suspeição de que [a compreensão] é por ali, mas não tenho caminho, dá-me um incentivo.

Gosto de reler. Às vezes estou em Lisboa, não tenho nada para ler. Vou comprar um livro que já li dez vezes. “O Náufrago” do Thomas Bernhard.

 

Como é que se interessou pelo Thomas Bernhard?

Ganhei um concurso em Salzburgo. O projecto foi falsificado. Fui para tribunal e arranjaram-me uma tradutora portuguesa. Ela era namorada ou amiga do secretário do Thomas Bernhard. Um dia disse-lhe: “Isto é tudo uma vigarice. Pensei que a Áustria fosse um país... Wittgenstein, e afinal são piores do que nós!”.

 

Fizeram outro projecto a partir da sua obra?

Isso. Ela respondeu: “Tem de ler o Thomas Bernhard. Vai perceber o que é a Áustria.”. Sou um bocado obstinado ou obsessivo. Comprei logo dez livros.

Já falei do Herberto, do Thomas Bernhard, do Pessoa. Acerca do Pessoa, não há nada a dizer. Ainda agora me pediram para fazer uma instalação no Martinho da Arcada. Vou fazer um candeeiro e mudar os quartos de banho, que são horríveis. Não tenho que instalar mais nada. Instalar o quê, no Pessoa? É auto-suficiente. No Martinho da Arcada está ele próprio, a mesa, a fotografia. Eu pensei ser fotógrafo.

 

Isso já responde a uma pergunta que eu trazia: se não fosse arquitecto, teria sido o quê?

Se calhar, fotógrafo. Gostava de escrever, mas é muito difícil. Nunca pensei ir para arquitectura. Era miúdo. Estudava e dava explicações. Gostava de Filosofia, Física, Desenho. Os pais diziam: “Vais para isto...”. Aquelas coisas. Foi o meu irmão, que é um grande artista, pinta e tal (os meus pais, muito conservadores, nunca o deixaram ir para as Belas Artes), que me disse: “Porque é que não vais para arquitectura?”. Alínea H. Era um aluno médio e fiquei um bom aluno: exactamente porque acertei nas disciplinas.

Achei as Belas Artes, no 25 de Abril, a coisa mais divertida do mundo! Estava nas minhas sete quintas.

 

Como era?

Professores maravilhosos. Ambiente maravilhoso. Depois fechou tudo. Havia só, praticamente, uns comícios. Divertidos. Tive a sorte de trabalhar no SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local]. Não sabíamos fazer projectos. Era só materialismo dialéctico e conversa de café. Quando chegou a altura de desenhar casas, os meus colegas e eu tivemos a consciência de que não sabíamos fazer nada.

 

Estamos a falar de que ano?

  1. “Se vamos buscar um arquitecto, vamos buscar o melhor, o Siza.” Desde aí, tenho trabalhado com ele.

 

Que frase boa!, resume um tempo: “Era só materialismo dialéctico e conversa de café.”

No outro dia estava na feira de Paraty (FLIP), perguntaram-me porque é que era um arquitecto pragmático, que falava pouco do significado da minha obra. Respondi: “Realmente interessa-me fazer casas sob um ponto de vista físico. Ninguém faz amor debaixo da semiologia.” O título do jornal: “Ninguém faz amor debaixo da semiologia”.

 

Isso revela o seu sentido de humor. E cultura. E como é desprendido a falar das coisas.

Sim. Isto é mais fácil do que o que se pensa. Complicamos e sofremos. Tive um grande professor, o [Fernando] Távora. (Estou a misturar tudo. Não se importa?) Já falei do Siza, falo do Távora. Tínhamos uma formação muito teórica. A ideia, nos anos 70 (nos 60 lá fora, chega cá sempre tarde, é a história de Portugal), é que era preciso mudar o mundo para poder fazer arquitectura. Toda a gente queria fazer um homem novo para fazer uma nova arquitectura. Para fazer um homem novo era preciso mudar a sociedade. Daí o materialismo dialéctico.

 

Isso tudo foi dar onde?

Como nada é um processo linear, rapidamente apareceu uma grande desilusão. Transformei-me numa pessoa pragmática, menos ligada às ideologias. O Távora foi um professor excepcional. Na altura não o percebi bem, mas quase todos os dias, hoje, penso nele. O Távora resumia: “A arquitectura é a vida. A boa arquitectura é aquela onde as pessoas se sentem bem, dormem bem, comem bem, gostam de estar umas com as outras, fazem amor”. É descobrir a alma numa casa, como você disse.

Ao longo do tempo fui percebendo que isto é um conjunto de relações com os sítios, os materiais, as culturas, as pessoas, as técnicas de construção. É a empatia que existe entre estes factores todos que faz com que a arquitectura nasça, exista. Pronto, caiu a semiologia. Fiquei com o pragmatismo. Quando tenho de fazer um projecto sou como uma leoa.

 

Que quer dizer com isso?

Vê-se nos filmes da National Geographic as leoas no meio do capim a tentar estabelecer a estratégia. Eu tenho de fazer uma casa. Não descanso enquanto não conseguir chegar lá.

 

Procura o diálogo entre essas várias exigências e elementos. Não descansa enquanto não encontra o tom. É isso?

Gosto da palavra tom. Tenho um texto sobre a arquitectura e os croquis. Vemos uma orquestra, com o pano fechado, a ser afinada, antes de chegar o maestro. Os croquis são os sons atrás do pano. A ver que tom vamos dar. Vamos fazer mais tectónico, mais gravítico?, mais leve, mais transparente?

 

Trabalhou e estudou ao mesmo tempo. Já disse que trabalhou no SAAL, com o Siza. Que importância teve isto?

Para ser honesto, o estudar era pouco. Era mais trabalhar com o Siza. Mas aprendi muito. As aulas do Távora: íamos de carro a Ponte de Lima ver um solar, para falar do Barroco. Tive essa boa pedagogia saltando muito a parte técnica (era considerada reaccionária e tecnocrata). Suprimi essa falta trabalhando no Siza.

Olhando para trás, tive muita sorte. Um ambiente que nunca mais acontece em Portugal e na Europa. De transição. Sem ser violento.

 

Trabalhava no terreno, com as pessoas de todos os dias.

A nova pedagogia passava por abrir a escola ao exterior. E isto tudo acompanhado pelo [Joseph] Beuys: todo o homem é um artista. À noite havia seminários com as populações das ilhas, bairros operários. O povo é quem mais ordena? O Siza dizia: “Eu não sou a mão do povo.” Havia correntes que defendiam que devíamos fazer as casas como os moradores queriam. Os moradores queriam um conceito pequeno-burguês. Com toda a justiça! “Como é que vamos fazer as casas?” “Como a sua. Você não vive bem? Queremos igual.”

 

Nesse contacto com pessoas de bairros como as Fontainhas, era um menino bem.

Não há que esconder. Como toda a gente de esquerda. Ninguém vinha das populações proletárias: o Lenine, o Trotsky, o Fidel Castro, o Che Guevara. O Salazar, o Mussolini: esses vieram do povo.

 

O que é que aprendeu da vida no contacto com essas pessoas, de um meio social diferente do seu?

O meu pai era um médico conservador, monárquico. Muita religião. Tias. Asfixiante. Mas fumávamos à mesa aos 10 anos. “Vão fumar no liceu às escondidas, não é? Então comecem aqui. Fumam dois cigarros por dia.” A minha mãe saía, escandalizada. O que é certo é que comecei a fumar aos 20.

Na quinta da família, em Braga, vivi uma realidade feudal, nos anos 60. Ia nas férias. Os empregados não usavam sapatos. A missa ao domingo: tudo sentado no chão, com os pés gretados. Só havia dois bancos, para a família Moura e a família Zenha (do Salgado Zenha). Depois ficavam velhos, doentes, iam viver para debaixo de uma escada em casa do filho. E era assim a vida.

 

Tinha noção nítida das diferenças de classe, é o que está a dizer.

Tinha noção de uma grande injustiça. Isto não pode ser! Nas Belas Artes tive contacto com a miséria urbana. Aqui, num quarto 3 por 3 vivia uma família. Casos de incesto. Miséria. Um cheiro insuportável. (Não falei já muito?)

 

Estamos no seu período de formação, estudando e trabalhando ao mesmo tempo. Com pessoas como o Távora e o Siza.

Tive outros professores muito bons. O Alberto Carneiro, o escultor, foi meu professor de desenho. Coisa única! A aula era representar as emoções que tínhamos [a propósito] de ruídos e sabores. Por exemplo, tínhamos estes materiais: madeira, pedra, metal. “Lambam isso. Façam um desenho. Agora o som dos materiais.” Os cacifos, ping. Madeira seca: pof. “Desenhem”. Eu chegava a casa e contava ao meu pai. “Vai morrer de fome. Só lambe pedras.” [riso] O Alberto Carneiro era um maluco, interessante, com graça. Supostamente isto não serviu para nada.

 

E depois, serviu?

Sim. Há muitos momentos na obra, ou quando estou a desenhar, em que tenho de decidir se continuo com a pedra ou se faço em vidro... Lembro-me constantemente do Carneiro.

O Távora não nos deixava desenhar com rectas, só com curvas. Eu chegava com uma casa muito direitinha, toda a noite a desenhar – ele riscava tudo.

 

O que descreve, e desenha no papel que agora temos sobre a mesa, tem que ver com elegância, equilíbrio.

E com aproximação. Continuo a riscar os desenhos.

 

Os seus arquitectos dão-lhe os desenhos direitinhos, com rectas e risca por cima.

Tudo.

 

Curioso, há pouco, quando falou de outras disciplinas artísticas, não ter referido a dança. A sua descrição é de um certo movimento.

Ia muito ao ballet, no Rivoli. Ficava deleitado.

 

Já que fala de aproximação, deixe-me perceber o modo de trabalhar. Enquanto arquitecto, a sua prática faz-se no olhar, no pensar, na construção ou na soma destas três?

A resposta mais fácil é a soma das três. Mas a mais importante é o construir. Porque de boas intenções está o mundo cheio. E em Portugal há 20 mil arquitectos. Interessa-me o que fazem, não o que dizem.

 

E o olhar e o pensar?

São a condição necessária mas não suficiente. O que interessa é o que fica. Eu penso desenhando. Foi um hábito que adquiri com o Siza. Nós, como colaboradores, não podíamos fazer uma pergunta, uma dúvida, se não desenhássemos. Quando fazemos uma pergunta ao Siza, ele quer o grafismo. “Não estou a perceber nada. Desenhe, desenhe, para eu perceber.” Eu desenhava e ficava horrível. O facto de desenhar dá consciência da dificuldade do problema.

A arquitectura é uma actividade gráfica. Desenhamos os códigos para que a forma possa acontecer. Um projecto é um código. A arquitectura é a resposta a um problema. A resposta é mecanicista (2+2=4). Se for só 4, é construção. Se for arquitectura é 4 mais qualquer coisa (como falámos).

 

Esse algo mais, está decidido à partida?, encontra-se?

A arquitectura não é só física. Mas tudo o que acontece para além da física, não é voluntário. Não há arquitectura narrativa. Há à posteriori. Às vezes vou às casas dos clientes (quando não me zango). “Sentimo-nos bem aqui. Já reparou nisto?” Contam histórias. Eu, quando faço os riscos, não faço a transposição para aquele acontecimento. Eu faço quatro paredes. As pessoas apropriam-se [do espaço]. Põem tapetes persa, compram cómodas D. João V, convidam o Saramago e há um jantar muito agradável: isto não tem nada a ver com arquitectura! Eu tenho é de proporcionar que isto aconteça.

 

As casas são uma constante na sua obra. Como é que se desenha um espaço que propicia a intimidade?

Respondo assim: faço as casas para mim. O cliente é um heterónimo.

 

A casa do Cristiano Ronaldo é uma casa para si?

É. Imagino que sou um craque em futebol.

 

Empatia. Põe-se no lugar do outro.

Sim. O Pessoa faz a descrição [biográfica] dos seus heterónimos. Eu penso que nasci na Madeira. Faço isto porque preciso de um mediador.

O Donald Judd disse-me que não aguentava a angústia de estar a olhar para uma barra de alumínio e dizer: “Vou fazer esta peça com 1,17 ou 1,16.3?. Esta solidão em que não há nenhum motivo para decidir (em que depende só de mim), leva à exaustão.” Ele é artista plástico e queria ser arquitecto – e foi. Eu disse-lhe que queria ser fotógrafo e estava farto de ser arquitecto. Os grandes arquitectos do século XX: Corbusier, Mies van der Rohe, Gropius, Barragán: nenhum é arquitecto. É estranho, não é?

Na arquitectura tenho um sítio, regras para construir, um cliente, dinheiro, imensos limites. Muitas vezes, estes limites servem de desculpa para o que não fica bem. “Se fosse como eu queria, se houvesse mais dinheiro...” Más desculpas. No fundo, não há nenhuma actividade olímpica.

 

Voltemos ao Siza. É dificílimo o que fez: formar-se com ele, emancipar-se em relação a ele...

E continuarmos a trabalhar juntos. Parece o milagre das rosas! [riso]

 

Só a circunstância de viverem e trabalharem dois Pritzker no mesmo prédio...

Ele vive por baixo de mim, e aqui trabalha por cima.

 

Acha que ele é o melhor?

Acho que é o arquitecto mais completo. Naquele sentido de que há pouco falámos, de que é preciso ver, produzir. Tenho ideia que é o arquitecto que ganhou mais prémios no mundo. Ganhou tudo, só lhe falta o prémio Carlsberg da Dinamarca. Não ganhou esse porque ganhou o do Imperador do Japão na mesma semana.

O Siza vem sempre à baila nas entrevistas, claro. Tenho uma grande distância em relação à obra dele. Interessa-me sacar o percurso, os atalhos, a maneira como ataca os problemas, os instrumentos que escolhe, a tenacidade. Ele é que realmente é a leoa na savana. Os nossos resultados são diferentes. Temos 20 anos, duas gerações de diferença. Ele faz parte de uma geração de resistência. Eu já faço parte de uma geração e construção.

 

Pode explicar?

Os arquitectos [preferidos] da geração do Siza são os do pós-guerra. Os da minha geração são os arquitectos que me interessam para poder construir meio milhão de casas. Para reconstruir este país que estava na miséria. Por isso são arquitectos expeditos e pragmáticos, a tentar resolver os problemas do futuro.

Assisti a tudo o que o Siza fez. Às vezes dá-me a tentação de lhe roubar as fórmulas para os problemas. Ele tem um catálogo visual invejável! Janelas num segundo andar debaixo de um telhado [faz o gesto de procurar numa enciclopédia e encontrar]. Mas tenho muito pudor em ser parecido com ele. Sentir-me-ia ridículo a tentar competir com ele. Primeiro, entro em perda. Segundo, posso gostar dos resultados e não estar de acordo com os pressupostos. Terceiro, respeito-o muito. Como tal, temos vidas diferentes. E não temos nada a provar um ao outro.

 

Nem no seu caso, 20 anos mais novo?

Não, não. Eu nunca quis ser o Siza 2. No outro dia saiu um artigo sobre mim, “Domesticar as Vanguardas”. Isto é, gosto de usar as vanguardas e transformá-las em coisas ligadas ao quotidiano. Não me interessa alterar a História. Está a perceber? Eu quero usar o que a História me deu e fazer de uma maneira diferente.

 

Não parece nada ansioso ou inseguro. Foi sempre assim?

Ansioso, sou. Até chegar ao que eu quero. Sou muito egoísta. E sou ambicioso. Senão, não seria arquitecto. Se vierem prémios e tal, tudo bem. Não sou um homem dos 100 metros. Sou da maratona. (Tenho enfisema. Fumei demais.)

 

Quando é que percebeu que era um grande arquitecto?

Quando me deram o Pritzker [2011]. A sério. Eu estava ao telefone e não acreditava. Primeiro fui lá cima. “Ó Siza, ganhei o Pritzker.” Ao jantar, disse à minha mulher e às filhas. Na cerimónia, estive a falar com o Obama. Nunca pensei ver o Obama na minha vida! A Michelle é simpática. Tive como padrinhos o [Frank] Gehry e o [Richard] Rogers. É como ser escritor e ter como padrinhos o Hemingway e o Proust. De Espanha, telefonaram-me. A frase era: “Ganamos!” Não era: “Ganhaste!”.

 

Ganhou prémios importantes. No ano a seguir a se ter formado, ganhou um prémio pelo projecto da Casa das Artes - SEC no Porto. Formou-se em 80, ganhou em 81. Tinha 20 e tal anos.

Ganhei aos professores. Isso gostei. Fiz o projecto na tropa. Desenhava e a minha mulher (que era minha namorada) fazia as maquetes em corticite, com alfinetes. “Isto está horroroso!” “Não faço mais nada.”

Eu sabia que fazia coisas bem feitas. Tinha ganho prémios. Mas sou muito exigente. Sofro tanto, tanto, tanto... Vou às obras. “Isto não está bem.” Pago do meu bolso rectificações. Nunca está como eu quero.

 

A sua vida acelerou ainda mais, depois do Pritzker. Esta entrevista foi marcada com mais de um mês de antecedência. Pelo meio deu meia volta ao mundo.

Não! Estive em Washington. Em Bruxelas. Ganhei um concurso para um crematório. Tema lindíssimo. É uma máquina, mas não pode ser só queimar frangos. Tem de ter mais espiritualidade.

 

É professor. Deu aulas em algumas das universidades mais prestigiadas do mundo. Neste momento, dá aulas em Itália.

Dou aulas em Mântua. Tenho de dizer que gosto. E dá-me um certo conforto (não vou disfarçar).

 

Imaginamos que um arquitecto com o seu estatuto já não está preocupado com o dinheiro.

Não estou a dizer que sou pobre ou tenho dificuldades económicas. Lá fora pagam-me muito bem, é verdade. Se fosse só cá... Passei muitos períodos em que chegava ao fim do mês [sem dinheiro]. Agora, não.

É preciso refundar a disciplina. O que aprendi do ser arquitecto, acabou. Não dá para hoje. É um sacrifício adaptar-me. Gosto imenso de falar com gente nova. Faz calamidades, mas é muito fresca. A minha turma deste ano era constituída por 25 alunos de 15 nacionalidades. São mundos tão diferentes.

 

Como eram os seus desenhos de criança?

Andei numa escola italiana. Foi mau porque não aprendi inglês. Vejo-me aflito. Nessa escola, havia um apuro gráfico. Não se podia fazer um texto sem um desenho. A redacção “Ir a Lisboa”: era preciso fazer um desenho sobre a ida a Lisboa. Os números pares: era preciso desenhar dois patinhos. Na escola e no Siza, fui obrigada a desenhar.

 

Qual é o compartimento de que mais gosta em sua casa?

É o canto do sofá. É um canto de onde faço um círculo. Tenho uma mesa atrás, onde tenho livros, os óculos, as canetas. Um candeeiro para ler. Faço assim e tenho uns discos. À frente, a televisão. A minha mulher, ali. Tudo se passa num metro e meio. E quando vem o Siza, está a dois metros.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015 

 

 

Yoani Sánchez

11.07.21

Encontrámo-nos no parque central, junto ao Capitólio. Parti para o encontro com a tensão de quem não sabe o que esperar. Esperava que Yoani Sánchez fosse aquela que aparece no seu blogue, Generation Y (www.desdecuba.com/generationy/). Mas tudo o mais era uma incógnita. Estariam pessoas a segui-la? Simplesmente, eu tinha mandado um e-mail, uns dias antes, para o endereço que consta no blogue. Ela tinha respondido três dias ou quatro dias mais tarde (explicou depois que só uma ou duas vezes por semana tem acesso ao e-mail). Apontámos aquela data. Era um sábado, hora do almoço.

Seguimos dali para o Hotel Sevilha, o espaço onde o personagem principal de Graham Greene foi angariado para os Serviços Secretos britânicos, na ficção de 1958 “O Nosso Agente em Havana”. Era um espaço que ambas conhecíamos. Ela conhecia a sala térrea, eu já tinha assistido a um pôr do sol na sala do último piso. Pensando bem, não era tão estranho assim que ela não conhecesse aquele espaço luminoso, que oferece uma vista fabulosa sobre a cidade. O acesso dos cubanos a hotéis frequentados por turistas é recente. No caminho, eu disse-lhe que levava onze dias de Havana e que não conseguia compreender aquele mundo. “Eu também não” – respondeu.

“O meu blogue é um resultado dessa observação minuciosa sobre minha realidade. Depois de 14 anos a trabalhar como professora de espanhol freelance, e guia de cidade, tive que responder centenas de vezes às mesmas perguntas: “Como é o sistema monetário?” “Como funciona isto?”. A necessidade constante de ter que analisar a nossa sociedade e explicá-la a alguém que não a conhece, ajudou-me muito”.

Yoani Sánchez tem 33 anos. Ela é pequena, franzina, e tem a pele cansada de quem já viveu muito. Tem um discurso emotivo, exprime-se com rigor. É a cubana que desafia o regime com um blogue que recebe cerca de cinco milhões de acessos por mês e que está traduzido em 13 línguas. O ano passado foi-lhe atribuído o prémio Ortega Y Gasset, que não pôde receber. Em 2008, a Time considerou-a uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Sobre o seu passado, e o modo como o viveu, sobre quem é e o que a fez ser como é, fala-se nas próximas páginas.  

 

 

Comemoram-se os 50 anos da revolução. Qual foi o primeiro relato que teve dela?

Foi através dos meus pais, que são pessoas muito jovens (a minha mãe tem 52 anos e o meu pai 55). Nasceram apenas um par de anos antes da revolução. E através dos meus avós, emigrantes espanhóis, que tiveram uma visão um pouco crítica da chegada dos “barbudos” a Havana. Não sentiam aquela euforia da juventude; tinham vivido um processo de guerra civil em Espanha e tinham medo da violência social. A minha avó e o meu avô, católicos, foram muito afectados com a chegada do ateísmo, do materialismo dialéctico.

 

Vivia com os seus avós e os seus pais?

Sim. Vivi uma tensão muito peculiar entre os meus pais, totalmente emocionados com o processo, e os meus avós, que pouco a pouco foram conformando-se. Foi uma situação típica da minha geração: ter escutado as defesas vivas dos nossos pais e as críticas veladas dos nossos avós.

 

Como era a sua casa? E como era veiculada esta ideia da revolução? Falava-se de tudo à mesa?

Venho de uma família muito pobre e de formação escolar baixa. A minha avó lavava e passava para fora, a minha mãe esteve anos sem trabalhar até que finalmente trabalhou num escritório de táxis, o meu pai e toda a sua família eram trabalhadores ferroviários. Debatia-se muito pouco, não se falava à mesa sobre o rumo do país, não se criticava. Mas os meus pais foram absorvidos pelo tema da revolução. O meu pai foi militante do Partido Comunista até quase à crise económica dos anos 90, quando decidiu não continuar. A minha mãe foi da União de Jovens Comunistas. O fanatismo estava praticamente em toda a sociedade, ouvia-se nos pátios das escolas, nas manifestações, nas ruas... Mas não havia uma base ideológica para o explicar. Eles não mo explicaram: impuseram-mo.

 

Viveram sempre em Havana?

Nasci no centro de Havana, num pequeno bairro que se chama Cayo Hueso. Para mim, é a verdadeira Havana, porque é um bairro popular, humilde, onde vive o maior número de habitantes por metro quadrado; há muita população negra.

 

A vida dos seus pais mudou com a revolução? O encantamento vem daí?

Não posso dizer que foram dessas pessoas que estudaram graças à revolução… A minha mãe só chegou ao sexto grau...

 

Porquê?

Porque não tinha, realmente, um interesse em estudar. O meu pai tinha um trabalho manual e foi fazendo um contacto, através do trabalho, com os livros: começou por colocar os pregos nos carris de ferro e acabou a conduzir uma locomotiva. Eram pessoas humildes e continuaram a ser, mas ficaram fascinados com a ideia de dar um futuro aos seus filhos. Sacrificaram-se muito, não pensando em si próprios, mas no que eu e a minha irmã iríamos desfrutar. Daí que a desilusão tenha chegado, quando, nos anos 90, depois de tantos anos a empregar tempo, energia e talento num projecto social, os seus filhos estavam a atravessar uma crise económica e uma crise de valores. Aquela sociedade do futuro não chegava.

 

É um caso atípico? A população, de um modo geral, teve acesso à educação e saúde, conquistas da revolução cubana.

Não creio que fosse um caso típico, acho que houve de tudo. O que se divulgou e promoveu é que havia pessoas que tinham beneficiado muito, graças às conquistas da revolução. A minha avó lavava e passava para fora, triunfou a revolução e continuou a lavar e passar para fora.

 

Analfabeta?

Analfabeta, só sabia escrever o seu nome.

 

Disse que esta ilusão lhe foi imposta. O que é, aparentemente, uma contradição: a ilusão não é uma coisa que se imponha.

Não devia ser. Nasci em 1975, um ano muito sovietizado em Cuba. O subsídio soviético tinha estimulado a economia cubana, desde que em 70 tinha fracassado uma grande plantação de cana de açúcar, (que em teoria iria ser a salvação do país, e que significou a ruína económica). Não cheguei a ver nem barbudos nem jovens rebeldes. Vi funcionários, purgas políticas e ideológicas, e a constante referência a uma utopia, a uma ilusão futura.

 

E passada?

Passada... Havia muita epopeia, referências aos heróis, aos mártires, às situações da Sierra Maestra, do Cuartel Moncada, mas era uma sociedade que se projectava sobretudo para esse futuro luminoso, um futuro comunista de igualdade para todos. Nós, os miúdos e miúdas da minha idade, imaginávamos que chegado o ano 2000, não iríamos necessitar de dinheiro para comprar coisas, porque toda gente já teria aquilo de que necessitava. Os olhos estavam postos no futuro, e graças a isso suportávamos as necessidades materiais.

 

Anos de racionamento?

No ano em que nasci, fora do mercado racionado, só se podia comprar o jornal e o bilhete de autocarro. Tudo o resto estava totalmente limitado. Mas as pessoas tinham o consolo de que não importava o sacrifício material, se em breve iria existir um futuro com prosperidade para todos.

 

Até à crise dos anos 90, havia uma memória gloriosa dos anos 60, subsequentes à revolução? Do analfabetismo que tinha sido extinto em um ano, do acesso à saúde, da vitória sobre os americanos na Baía dos Porcos.

Claro está que a imprensa, as rádios, a televisão, constantemente nos mostravam a reforma agrária, a alfabetização. Os meios oficiais tinham uma intenção de glorificar esses anos. Os participantes directos da revolução, sentiam-se muito orgulhosos de ter participado neste processo. O meu marido, por exemplo, foi alfabetizador. Durante muito tempo sentiu-se muito orgulhoso e feliz por ter ensinado a ler e a escrever um grupo de camponeses; até que lhe ocorreu a grande pergunta: “Ensinei-lhes a ler, e agora, que livros podem ler?”. Havia um desencanto latente, subterrâneo, muito ligeiro. As pessoas começavam a compreender que não era isto que havia sido proposto no ano de 59. Havia deserções nas próprias fileiras dos rebeldes, já tinham sido fuziladas muitas pessoas. Começava a desfazer-se a maquilhagem da utopia.

 

O seu marido tem 62 anos. O relato que faz da revolução é diferente, na sua vida, do dos seus pais e avós.

O meu marido é uma pessoa que vem de uma família de classe média. Não era desses que foram resgatados de um futuro sem educação; teria estudado na universidade, quer houvesse ou não revolução, porque o seu pai tinha meios económicos para financiá-lo. Participou em inúmeros trabalhos voluntários...

 

Participou porque entendia que era uma questão de responsabilidade social.

Exactamente. O pai, que pertencia à burguesia de Camagüey, entregou voluntariamente o seu colégio: não lhe foi confiscado. Sentiu-se muito feliz por se libertar do peso da ditadura de Batista, identificou-se com um sentimento geral de alívio, perante o fim de um episódio muito triste na história cubana. O meu marido ligou-se ao jornalismo, que era o que sempre tinha sonhado fazer, e começou a escrever na revista Cuba Internacional. E aí começou a desilusão.

 

Como assim?

Quando começou a comprovar que não podia escrever realmente o que lhe ocorria, os planos de produção que não se cumpriam, as insatisfações, os projectos sociais que, no final e na prática, não funcionavam. Não podia escrever isto porque se tratava de projectar para o mundo exterior uma ideia de paraíso socialista. Foi expulso da profissão no ano de 88.

 

Há 20 anos que é proscrito pelo regime?

Há 20 anos que está proibido de publicar em qualquer jornal de Cuba. Conto-lhe isto porque é algo que marca a minha geração: ter visto, como testemunha, o processo de frustração e de desilusão dos nossos pais. É como uma vacina contra a utopia. Se me deixo arrastar por uma utopia, fico como o meu pai e a minha mãe…

 

A crise dos anos 90, com a derrocada da União Soviética, foi uma explosão derradeira em Cuba? A semente da frustração já lá estava?

Penso que os problemas económicos dos 90 foram um catalisador, acelerou o processo de frustração, mas ela já lá estava. Num diálogo em que a pessoa pode abrir-se, sem medo, nas ruas, muitos cubanos acreditam que a revolução morreu. Consideram que isso aconteceu em momentos diferentes.

 

Em que momento isso aconteceu para o seu marido?

No ano de 1968. Pareceu-lhe intolerável que Fidel Castro aplaudisse a entrada dos tanques soviéticos em Praga. Era David contra Golias, tinha que apoiar David, não Golias! Outras pessoas pensam que a revolução morreu em 89.

 

Com a queda do muro [de Berlim]?

Quando se deu uma purga militar e fuzilou-se o general Arnaldo Ochoa, por tráfico de estupefacientes. Tinha sido um dos chefes militares mais importantes na missão de Cuba em Angola. Fez-se um julgamento público, transmitido pela televisão, que muitas pessoas viram em casa. Arnaldo Ochoa era uma figura muito carismática. A sentença foi fuzilamento. Este grau de crueldade do governo, as pessoas não esperavam. Os meus pais desiludiram-se nesse momento. Logo de seguida veio a crise económica, que foi um remate da situação. Outros não se sentiram desiludidos até Março de 2003, quando o governo cubano encarcerou 75 opositores e fuzilou três jovens que queriam emigrar e roubaram um barco para o fazer. Outros nunca se sentiram desiludidos.

 

Que relato recebeu o seu filho da revolução? Porque é outra geração...

Tenho um filho de 13 anos, chama-se Teo.

 

Como deus...

Exactamente. Teo é um menino muito inteligente – todos os pais dizem o mesmo dos seus filhos. Tentei não lhe impor nenhuma ideologia, nenhum relato. Deixei que ele próprio chegasse às suas conclusões. É uma geração muito apática, que recebe na escola uma dose de doutrina muito elevada...

 

Mais que a sua?

Mais que a minha. E o efeito é contrário. São apolíticos. Recebe a minha óptica, que nasci em 75, e a do pai. Não posso dizer que eu tenha acreditado; tive uma infância, como a maioria das pessoas da minha idade, gritando slogans: “Pioneiros pelo comunismo, seremos como El Che!”. Quando pude abrir os olhos, ter uma consciência política, o muro de Berlim já tinha caído, a União Soviética já se tinha dissolvido, os problemas materiais eram grandes. O meu filho tem a liberdade de acreditar ou não, para mim é igual.

 

Que diz ele, com as comemorações dos 50 anos da revolução?

Não diz nada. Em Cuba temos uma palavra, cheo. São as pessoas que não estão na moda.

 

É parecido com Che.

É uma palavra mais velha [do que Che]. Para a geração do meu filho, o tema da revolução é uma coisa chea. Eles não falam sobre isso entre si. Quando têm oportunidade de falar do que realmente querem, falam de moda, de desenhos animados japoneses, de gameboy ou playstation, das mesmas coisas que quaisquer jovens em qualquer parte do mundo.

 

Como foi o seu processo de escolarização?

As mães podiam enviar os filhos com 45 dias para o círculo infantil. Era uma época em que se falava na emancipação da mulher, da sua incorporação no mercado de trabalho. Como vivia com a minha avó, a minha mãe não teve necessidade de me enviar tão pequena para o círculo e fiquei com ela até fazer três anos. Com cinco anos, os meninos em Cuba entram para o pré-escolar, que dura um ano. Estive numa primária, que se chamava Republica Popular China, e depois fui para a escola secundária Protesta de Baraguá, (que é um feito histórico cubano). Quando acabei fui automaticamente para o pré-universitário no campo.

 

Foi para fora de Havana, para a paisagem rural?

Sim. O conceito é: os jovens estudam e trabalham, misturam conhecimento com produtividade. Estudam de manhã e trabalham no campo, em agricultura, à tarde, (ou trabalham de manhã e estudam à tarde).

 

Vivem em centros pré-universitários, como um campus, ou junto com as populações?

Vivem em grandes albergues onde cada um tem a sua cama, e não há quartos. Esta teoria tão bonita nos livros, na prática era totalmente diferente. Para os adolescentes é a oportunidade de provar todos os frutos proibidos da liberdade. Estas escolas no campo convertem-se em sítios onde há muita promiscuidade, onde as pessoas se misturam e transferem doenças sexuais – tal como se fosse um pente... Por outro lado, as pessoas importam-se muito pouco com o estudo, estão mais interessados em conquistar, em arranjar namorados ou namoradas.

 

Porque é que essa experiência foi marcante para si?

Ali, pela primeira vez, entendi a enorme distância que havia entre o projecto e a realidade. Fui para o pré-universitário iludida com a ideia de trabalhar e estudar, e quando lá cheguei era praticamente uma prisão, numa escala mais pequena, onde reinava a lei do mais forte.

 

O mais forte em termos físicos?

Em termos físicos. O mais forte cria um grupo, e este grupo extorque os outros. Por exemplo, levava um sabonete de casa, o grupo mais forte tirava-me o sabonete, e eu não podia fazer nada, não havia a quem denunciar. Imperavam relações muito torcidas, havia muitos roubos. Entrei no pré-universitário em 90, que foi um ano crítico economicamente. A falta de alimentos gerava muita competição. Estive lá dois anos e meio. Até que fiquei muito doente, da vista e do fígado.

 

Porquê?

Falta de alimentação. Não havia nada que comer, comíamos muito açúcar, bolachas, col (um vegetal). Graças a essa doença pude ter um certificado médico, que me deu a possibilidade de estudar num pré-universitário em Havana. Era outro mundo. No pré-universitário em Havana estudavam os filhos dos altos funcionários, que não queriam ir para o campo: na utopia do trabalho e estudo só acreditávamos nós! Eles não!

 

Nós?

Os pobres. As relações eram mais juvenis, ouvia-se música, pensava-se em outras coisas, e não na sobrevivência. Eu vinha de um pré-universitário no campo, o meu nível académico era muito baixo.

 

Era a queda de outra ideia, a de que a escolaridade é igual para todos?

É mais do que isso: professor nenhum quer reprovar um aluno, porque assim a promoção do grupo e da escola é afectada. Há pessoas com a classificação máxima, 100, 100, 100, mas não sabem nada. Foi isso que aconteceu comigo. Quando cheguei a Havana, o meu nível era muito mais baixo, e nos exames de matemática, falhei. Não pude estudar jornalismo. Fui parar à lixeira da universidade, o Instituto Pedagógico, para onde vão os que obtêm as piores classificações. Estudei muito durante dois anos, para tirar melhores notas e ter direito a uma transferência interna. Tive o meu filho nessa altura, o que complicou as coisas. Tentei a transferência para a especialidade de Filologia, já não queria ser jornalista.

 

O que é que a fez mudar de ideias?

Tinha conhecido o meu marido e pai do meu filho (estamos juntos há 15 anos). Ele ajudou-me a compreender que o jornalismo em Cuba não era aquilo que eu pensava. Enveredei pela Filologia, porque sempre me tinha interessado por livros e linguística.

 

Porque decidiu ter um bebé com 19 anos?

Queria ser mãe jovem. Há um nível de cumplicidade e proximidade geracional muito grande.

 

O encontro com o seu marido mudou a sua vida?

Alargou muito os meus horizontes. Sempre gostei de literatura, sentia-me estranha no seio da minha família. A minha irmã e eu, como na infância não fazíamos muitas coisas fora, líamos. Dostoiévski, praticamente todo, até aos 15 anos, Guerra e Paz, os clássicos, Victor Hugo, Honoré de Balzac, Émile Zola.

 

Eram leituras consentidas?

Eram leituras permitidas. Sou uma filha das minhas leituras. Os livros abriram portas que a minha vida e a minha família não me podiam abrir. Dostoiévski foi um dos autores que me inocularam com insatisfação. E isso é muito importante, porque estar vegetando, aceitar tudo sem questionar nada, empobrece a vida.

 

A insatisfação e o questionamento eram também sobre a realidade?

Sim. Victor Hugo, mostrando os aspectos, às vezes sórdidos, da sociedade francesa do séc. XIX, fez-me encontrar paralelismos. Vi que o Homem em si mudou muito pouco. O Homem continua a ser o Lobisomem, nesta sociedade e naquela, com a mesma voracidade.

 

E como permitiam a impressão desses livros que transmitiam, também, valores burgueses?

Imprimiram-se dezenas de milhares de livros, sobretudo aqueles que pertenciam a autores mortos, porque não tinham que pagar direitos de autor. (A literatura mais moderna, praticamente não se conhecia no interior do país). Nas obras de Balzac aprende-se mais sobre o capitalismo do que em qualquer tratado económico. Balzac era permitido porque mostrava a decrepitude de um sistema. Claro que ali também se liam outras coisas…

 

Moral e costumes, por exemplo.

A moral cristã era muito mal vista. Havia que acabar com a moral!, era uma coisa pequeno-burguesa. “Um revolucionário não tem uma moral, tem princípios, ideologia!” Os livros ajudaram-me muito a descobrir que sim, Rashkolnikov tem culpa, um indivíduo pode ter culpa. A minha família não me deu uma moral cristã, deu-me princípios éticos. Se chegava a casa com um lápis que não era meu, a minha mãe fazia-me devolvê-lo.

 

Não apanhou com resquícios do catolicismo?

A minha avó, às escondidas do meu pai, ensinou-me valores cristãos, transmitiu-me tradições como a dos reis magos, o Natal, a ressurreição. Sou fruto também disto. Surpreende-me muito que haja pessoas que possam viver sem ter a mínima responsabilidade sobre o que se passa no país. Eu não me sinto vítima do que se passou comigo, eu sinto-me responsável; e sou.

 

Responsável por quê?

Sou responsável por ter calado, sou responsável de ter aplaudido, sou responsável de não me ter revoltado a tempo. Carrego toda essa responsabilidade, não como uma cruz, mas com o sentimento de ter que fazer mais, de não poder ficar de braços cruzados.

 

Sobre a moral: há muitos jovens que nas ruas se tocam de um modo sexualmente muito explícito. Qual é o lugar do corpo, do prazer e do sexo, nesta sociedade?

Imagine que o desejo e o prazer são como um grande lugar onde se acumulou água de maneira artificial e há uma comporta… Esses diques da moral foram dinamitados, um a um, com o processo revolucionário, que estigmatizou a moral católica e a moral pequeno-burguesa. O casamento caiu em desgraça – assinar um papel para quê? As grandes mobilizações militares e agrícolas, que uniam homens e mulheres em acampamentos, também gerou este intercâmbio sexual. A virgindade foi estigmatizada, as mulheres passaram a ter experiências sexuais desde muito jovens. O aborto deixou de ter uma conotação satânica. Tudo isto contribuiu, com os pré-universitários no campo, para potenciar o fenómeno da sexualidade. A falta de liberdade em outros aspectos da vida, e simultaneamente a liberalização do tema do erotismo, fez com que o indivíduo, incapaz de pronunciar-se publicamente sobre os seus direitos, voltasse todas essas necessidades para a sexualidade.

 

Qual é a idade com que normalmente se inicia a vida sexual em Cuba?

Dezasseis anos já é muito tarde. Rapazes e raparigas. Diria que em média é entre os 14, 15, 13 anos. A maioridade, legalmente, são os 16 anos. Portanto, se vir uma miúda de 17 anos a passear com um turista, já não pode ser considerado prostituição infantil. Os cubanos têm uma expressão muito erótica… O clima, a cultura, a música potenciam tudo isto.

 

Sobre Havana, de forma bem visível, paira o fantasma da prostituição infantil.

Antes da revolução, havia prostituição, claro, mas a maioria dos clientes eram cubanos. Agora, a maioria dos clientes são estrangeiros. O que mais mudou é o seguinte: antes da revolução, a profissão de prostituta tinha associado um estigma social, uma recriminação moral. Agora, há uma grande aceitação. Não falo em aceitação da prostituição como actividade normal – acho que deveriam ter um sindicato e direitos perante a lei. Mas não alarma um pai ou uma mãe que a sua filha possa ser prostituta! Inclusivamente há pais que estimulam as filhas a ter relações com um italiano, um belga ou um alemão porque isso trará benefícios económicos para toda a família.

 

É um sintoma de necessidade e miséria.

Depois de muitos anos, o dinheiro voltou a ter valor. Durante os anos 90, não valia a pena prostituir-se, porque o dinheiro não se convertia em bens de consumo. Havia umas jovens que tinham relações com funcionários do governo, altos militares, para ter alguns privilégios; não havia um intercâmbio económico directo, apenas um pouco mais de comodidade. Foi só a partir do momento em que surgiu uma moeda convertível, que as pessoas puderam ir a uma loja comprar um frigorífico, uma cama, uma mesa, sem racionamento – que não lhes era atribuída, como um privilégio, pelo Estado – que começou a ser rentável ser prostituta.

 

Diz no seu blogue que decidiu dar aulas de espanhol a turistas como forma de ganhar dinheiro. Qual tem sido o papel do dinheiro na sua vida?

Vivo há 15 anos numa esquizofrenia monetária! Desde que se autorizou a circulação do dólar em Cuba, e o peso se converteu em peso convertível [moeda cuja cotação está entre o dólar e o euro], os cubanos vivem amarrados a um sistema monetário muito difícil de sustentar. Quando terminei a universidade fui trabalhar para uma editora oficial; ao fim de um ano compreendi que aquele salário nunca ia chegar para poder manter a minha família. Para me deslocar até ao local de trabalho e regressar a casa, precisava de um pouco mais do que o meu salário mensal! Eu custeava o meu trabalho. Perante este absurdo, optei por uma vida de freelance, uma vida com riscos.

 

Não tem quaisquer regalias?

Não tenho segurança social, não tenho pensão de velhice, mas sou livre! Entre o meu marido e eu, começámos a dar aulas de espanhol para alemães. Quanto à realidade monetária, trato de manter-me economicamente autónoma do Estado – essa é a minha prioridade. Não sou uma pessoa consumista, isso ajuda-me. Todos aqueles que passámos pela profunda crise dos anos 90, saímos com duas possibilidades: ou o apetite pelo consumo ou uma protecção um pouco à maneira de Ghandi, de saber que posso viver com muito pouco.

 

Vive com muito pouco.

Só tenho uma pequena fraqueza: a internet! A tecnologia. E nisso concentro todos os meus recursos. Às vezes encontro dois turistas na mesma semana, outras vezes passam-se meses sem encontrar ninguém. Essas flutuações na minha vida económica marcam tudo o resto. Quando não tenho trabalho fico em casa a ler, a escrever, e consumo com baixa intensidade. A maioria dos cubanos vive de desviar recursos do seu centro de trabalho. Para poder lançar esta pedra, eu não roubo ao Estado.

 

Desviar recursos pode ser desatarraxar uma lâmpada no escritório...

Um frango, óleo, papel. Qualquer coisa que possa depois vender no mercado negro e converter em dinheiro para comprar outras coisas.

 

Em Havana, não se pode entrar num supermercado ou centro comercial com uma mala de senhora. Uma garrafa de azeite ou um pacote de bolachas podem significar muitas outras coisas, são uma moeda de troca.

Se roubam um pacote de bolachas numa loja, é porque sabem que nunca poderão comprá-lo, e têm vontade de o comer. Acho que a ideia de não levar a mala, não é tanto porque possa ser roubada: é porque o Estado não confia na sociedade que formou. Se o próprio Estado não confia nos valores morais e éticos que transmitiu aos seus cidadãos, esta é a chave de tudo.

 

Não se cola a este Estado o rótulo de ser cleptocrata, como acontece com alguns Estados africanos ou latino-americanos. Mesmo que corrupção seja um problema – como é noutros países.

Enquanto não houver uma imprensa livre, que possa denunciar a corrupção, não sabemos nada. Mais do que um Estado corrupto, temos um estado monopolizador. Em Cuba, não se vive num regime socialista, mas num capitalismo de Estado. O Estado cubano é, desde o ano de 59, o mais rico da história de Cuba, e não conseguiu, com essa riqueza praticamente absoluta que tem, dar aos seus cidadãos uma vida digna.

 

A degradação da cidade é imensa. A maior parte das casas tem saneamento, água e luz?

Electricidade praticamente todas. Em Havana Vieja a canalização é muito má. A maioria das casas tem que pagar para que venha um camião de água para poderem ser abastecidas. Na periferia há bairros em muito más condições, com casas praticamente de cartão, que obviamente nunca saem nos jornais porque nenhum jornalista está autorizado a reportar isso, nenhum correspondente estrangeiro está autorizado a entrar nessa zona. É quase como se não existissem.

 

Dois mundos.

Vivemos entre esses dois mundos. Um de que é possível falar, e outro, gigante, sobre o qual não podemos dizer uma palavra. O dinheiro cubano, neste momento, está em algum projecto de guerrilha, em algum lugar do mundo, ou está financiando partidos de esquerda algures. Não sabemos, estamos apenas a especular...

 

No blogue diz que é também webmaster; fá-lo para empresas?

Não, isso é um sacerdócio, faço para o meu blogue, para um portal que partilho com outras seis pessoas em Cuba, que se chama DESDECUBA.COM. Não ganho dinheiro com esta profissão, mas gosto muito.

 

Falemos sobre a sua vida no dia a dia. A casa onde vive é paga por si?

A minha geração é uma geração sem casa; muitos estamos à espera que os nossos pais ou avós morram para que possamos herdá-las. O meu marido, como jornalista, teve oportunidade de construir com um grupo de pessoas um edifício, nos anos do subsídio soviético. Pagou esse apartamento durante 20 anos, até que teve um título de propriedade. Eu desfruto da sua casa.

 

Faz compras com CUC’s [pesos convertíveis, a moeda usada por estrangeiros] ou nos supermercados dos cubanos, com a caderneta de racionamento e pesos cubanos?

As duas coisas. Nós, os cubanos, temos que pensar diariamente, e organizar-nos, para sabermos em que lugar comprar. Sem CUC’s praticamente não se pode viver. Produtos como sabonete, champô ou azeite, são em pesos convertíveis. O mercado racionado tem quantidades muito simbólicas, muito pouca variedade. Arroz, açúcar, um pouco de café, um quilo de frango por mês, quem sabe um pouco de esparguete. Não se pode alimentar com isso! Depois de um ano teria uma doença derivada das deficiências proteicas.

 

Diz-se que aqui não há fome: há sempre arroz e feijão.

O arroz, o feijão e o açúcar do mercado racionado chegam-nos para duas semanas. Nas duas semanas seguintes tem que ir ao mercado negro, ao mercado agrícola livre ou ao mercado de pesos convertíveis. Há sempre algo que apoia esse racionamento: pode ser uma família de Miami que manda uma remessa mensal, pode ser um negócio ilícito como o meu, uma profissão paralela. Mas uma pessoa que vista unicamente a roupa do mercado racionado industrial, dos anos 80, porque não se fez mais, que só coma arroz e açúcar, que não use champôs, não conheço nenhuma. Ninguém morre de fome porque se fazem um monte de coisas ilegais!

 

Que tipo de coisas?

Todos os miúdos têm sapatos, mas nenhum daqueles pares de sapatos foi comprado com um salário. Os sapatos custam dez CUC’s, que podem equivaler a três quartos de um salário mensal. O Estado gaba-se dessa conquista, mas é uma conquista nossa, que encontrámos os caminhos paralelos.

 

Viveu na Suíça, durante dois anos. Porque decidiu emigrar, e porquê a Suíça?

A Suíça não foi uma escolha, foi uma possibilidade que surgiu. Interessava-me a literatura e a cultura alemã, comecei a estudar alemão sozinha, e isso fez-me entrar em contacto com alemães, na Alemanha e na Suíça.

 

Que autores foram veículos para esse interesse?

Thomas Mann, a filosofia alemã (Kant, Hegel, o próprio Marx), Goethe, Schiller. [Arranjei] um grupo de amigos alemães que estavam dispostos a ajudar-me em qualquer coisa. Turistas que voltavam para a Alemanha, me recomendavam a outros amigos, que sabiam que não os ia roubar, que lhes mostrava a minha cultura. Um dia, quando me fartei da situação em Cuba, em 2001, escrevi a um monte de gente, para que me ajudassem a sair. Os amigos da Suíça tinham uma situação económica mais fácil, e disseram-me para ir.

 

Como partiu? Foi uma coisa sigilosa?

Não, não! Naquela altura eu não era ninguém, não emitia opiniões, era apenas mais uma. Deixaram-me partir. Trabalhei num cinema, trabalhei num bar, depois encontrei um trabalho numa livraria de livros latino-americanos, que era a minha especialidade, organizava o catálogo electrónico e a página Web – foi como um anel para um dedo. Integrei-me muito bem. Um ano depois vim buscar o meu filho, que ficou felicíssimo, a comer chocolates suíços!! [risos] Vivi um ano numa casa alugada, tinha internet por cabo 24 horas por dia.

 

Porque decidiu voltar?

Por motivos familiares. Por um lado, o meu marido nunca pôde sair de Cuba. O meu marido, o meu amor, o Reinaldo não podia sair. Uma pessoa que tem um bem [a casa] e sai, após seis meses tem os seus bens confiscados. Ponderei sobre o que era mais importante, e decidi que não me queria separar dele. Por outro lado, o meu pai adoeceu gravemente. A minha família é muito pequena, era um drama que eles não podiam enfrentar sozinhos... Sofria de cada vez que me sentava em frente a um prato de comida: “Eu posso comer, posso viajar, e a minha família, em Cuba, não”.

 

Vinha outra?

Uma vez que decidi regressar, decidi que não vinha para o mesmo ponto: a simulação, o silêncio.

Com o seu blogue, tem a ilusão de que pode mudar coisas?

Sim. Essa ilusão não está na origem do blogue. Era um grito solitário, um exorcismo pessoal. Se encontrou outros, que tinham os mesmos demónios, foi por acidente, não houve premeditação.

 

Quando lhe foi atribuído o prémio Ortega y Gasset, ou quando a revista Time a elegeu como uma das cem pessoas mais influentes do mundo, isso quer dizer que a sua voz tem peso. Que consciência tem disso?

Há pessoas que me dizem que me tornei mais crítica, mas se ler os textos iniciais verá que eram bastante corrosivos desta ilusão de paraíso. Também não me tornei panfletária. Nunca escrevi a palavra Democracia no meu blogue, mas é um canto à Democracia. Nunca escrevi a palavra Liberdade, mas é um canto à Liberdade. Dou-me conta que as minhas palavras podem ter influência, por isso não quero influir nos ódios, nem nos ressentimentos; quero influir na busca de uma Cuba inclusiva. Sei que tenho responsabilidade, portanto certifico-me de que não corto pontes, mas tento criá-las. Nisso mudou.

 

Porque motivo pensa que o sistema a tolera?

Mais do que tolerar-me, aprenderam a viver comigo e com outras pessoas que escrevem blogues. Sou talvez pioneira em mostrar o meu rosto e o meu nome quando dou a minha opinião. Com a tecnologia e a internet, o governo já não tem o monopólio informativo. No meu caso particular – e eu detesto o papel de vítima – o blogue tem um custo pessoal elevado: foi-me negada a permissão de sair do país em duas ocasiões, tornei-me uma pessoa radioactiva...

 

Radioactiva?

Quando em torno de uma pessoa se cria um círculo, os outros temem em aproximar-se para não se contagiarem com essa radioactividade. A minha família foi advertida, e os meus amigos, para que me dissuadissem. Sou centro de campanhas de difamação.

 

Diz-se que é agente da CIA.

Que sou agente da CIA, que me financia o imperialismo, que me fui formar na Europa para voltar e fazer isto. Cada pessoa que me lê, protege-me, torna-se parte integrante do meu escudo protector. É um meio explosivo, que pode transmitir uma informação em segundos, a milhões de habitantes no mundo inteiro. [Aqui] têm muito medo disso. Estão a tentar projectar uma imagem de tolerância e reforma para o mundo, porque precisam de auxílio económico, precisam de limpar a sua imagem. Perderam uma grande parte da esquerda internacional, e precisam de recuperá-la.

 

Tem acesso permanente à internet?

Não! Os cubanos não podem ter ligação à internet em casa, só os altos funcionários e os estrangeiros que residem em Cuba [podem]. Vou a um hotel, com uma pen, ligo-me e envio as minhas mensagens. Desde Março, o governo impediu o acesso ao meu blogue dentro da ilha. Não posso administrá-lo directamente. Mando os textos e fotografias a amigos que os publicam, depois compilam os comentários e enviam-mos por email; eu faço download, levo para casa e leio. Ligo-me uma ou duas vezes por semana.

 

Depois de lhe enviar o email pedindo a entrevista, pensei que este pedido, provavelmente, ia ser lido por outros…

Totalmente.

 

Está sob vigilância? Lêem a correspondência?

Sim, sim. Mas, mais riscos, é impossível. A minha grande arma é a visibilidade: eu não tenho nada que esconder.

 

Isto levanta outra questão: faz algum tipo de autocensura quando escreve ou fala? Ou permite-se dizer tudo?

Não tenho temáticas tabu. Falo abertamente da figura de Fidel Castro, que em Cuba é um assunto tabu, falei do bloqueio norte-americano, que é outro tabu. A única limitação é não utilizar a violência verbal. Acredito que isso é algo que agrada às pessoas que lêem o blogue: não ser um panfleto político, ácido, agressivo. É antes uma reflexão um tanto desiludida, um tanto céptica, de uma cidadã que nasceu em Cuba em 1975, que compreendeu que o sonho que lhe prometeram em criança nunca se cumpriu. Eu não tenho armas debaixo da cama, não tenho um partido político, não estou a organizar um grupo de rebeldes para ir lutar para a Sierra Maestra. Eu escrevo as minhas opiniões, subjectivas, como o meu rosto e o meu nome. Se o governo cubano me quisesse tocar por causa disto, seria um escândalo. Se me seguem, se me escutam os telefonemas, se vêem os meus e-mails, sabem que sou exactamente o que afirmo ser. Isso tranquiliza-me.

 

Tem medo?

Claro que tenho, sobretudo pela minha família. Não tenho tanto medo da prisão. É a última coisa que podem fazer. Tenho medo da destruição agressiva que podem fazer da minha pessoa. Podem destruir-me com campanhas de difamação, fazendo crer aos outros que sou aquilo que não sou. Mas no final, as pessoas conseguirão retirar a essência das coisas.

 

Espera uma saída diferente? Com Obama ou com a abertura que Raul promete.

Sou muito optimista a longo prazo e pessimista a curto prazo. A economia cubana está na bancarrota, há um empobrecimento dos valores éticos e morais, a maioria dos jovens tem os seus olhos postos na emigração. Em relação a Obama, tenho expectativas, mas entristece-me que os cubanos tenham que esperar uma mudança vinda do exterior para gerar uma mudança no interior. Preferiria que fossemos nós a iniciar a mudança.

 

O que significa Pátria para si?

Pátria é uma conquista do século passado. Sinto-me mais do mundo. Pátria é o que me dá a cultura, a língua, a família, mas não pode ser uma âncora. Tem que ser como um par de asas, para que possa sair para o mundo, e projectar essa cultura. Acho que em Cuba se confundiram conceitos muito diferentes: confundiu-se a nação com uma ideologia, e a Pátria com um homem, e isso tem que terminar.

 

Futuro é uma palavra central, desde sempre, na sua vida. E agora, o que é o futuro?

Se chegar agora, melhor. Há uma frase que foi muito usada por Fidel Castro: “Um mundo melhor é possível”. Eu gosto mais de: “Um mundo possível é melhor”. Um futuro possível, um futuro que chegue agora, um futuro que eu possa tocar com as minhas mãos. Que não seja uma quimera do amanhã.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Janeiro de 2009

e na revista das Selecções do Reader's Digest em vários países ao longo de 2009 

 

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