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Anabela Mota Ribeiro

Pompeia

14.08.21

Visitar Pompeia é remontar ao ano 79 d.C., ver um lugar soterrado pela cinza do Vesúvio. Goethe visitou-a no século XVIII e ficou com a impressão de ser um “infeliz lugar”, sujeito durante séculos ao esquecimento e, uma vez descoberta, ao saque. O que podemos ver hoje? Uma cidade extraordinariamente organizada, próxima das nossas cidades, especialmente bela no rosso pompeano, o vermelho que persiste nos frescos.

 

O anfiteatro foi a última coisa que vi em Pompeia. E então ficou uma impressão de espaço imenso. Escutei a fantasia de 20 mil pessoas, massa ululante em redor. Rugidos de pessoas e bestas. O desalinho, a alegria, a ameaça, uma panóplia de emoções que vem das bancadas. Leões, gladiadores, penachos, o drapeado das túnicas. Na fantasia.

As bancadas desenham um risco oval, hoje estão meio comidas pela relva, erodidas pelo tempo e vento. Está o que resta do que foi engolido pelo Vesúvio. Como toda a cidade. Olha-se em volta e vê-se a pedra, o verde e muitas papoilas. Ou não são muitas, mas a cor é tão intensa que se avista ao longe e faz delas muitas. Não deixa de ser espantoso que sejam papoilas, flor do campo e de gente simples, a irromper por ali. Sem pedir licença, sem pedir cuidados. Nascem e pronto. Nascem e não se deixam apanhar – logo fenecem. Extremamente frágeis, orgulhosas, independentes (se é que isto se pode dizer de uma flor..., mas vai bem com o lugar).

Não se chega às papoilas porque há uma corda que delimita o espaço. Não se pode senão estar na arena, olhar em volta e ver um muro sólido que ainda resiste, a copa de pinheiros mansos, o céu. E na arena, uma exposição com o mais impressionante de Pompeia.

Mais impressionante do que os frescos desbotados, e ainda sim vivos, do que as colunas do templo de Apolo, que não se poderiam abraçar com dois braços, por não serem suficientes; mais impressionante do que tudo são os corpos apanhados pela morte enquanto faziam a vida de todos os dias, fixados no preciso instante em que uma chuva de pedras e cinzas os atingiu.   Ano de 79 d.C. Era Agosto.

A descrição de Plínio (jovem sobrinho-neto do grande naturalista Plínio, o Velho): “Choviam pedra-pomes e rochas vulcânicas incandescentes. De muitos pontos do Vesúvio cintilavam chamas e altos incêndios, acentuados pelas trevas da noite. [...] Ouviam-se gritos de mulheres, choro de jovens, brados de homens. Havia quem, por medo de morrer, invocasse a morte. Muitos levantavam os braços para os deuses, outros tantos afirmavam que já não havia deuses, que aquela noite seria eterna, a última noite do mundo.”

A cidade que hoje vemos é o que resta da última noite do mundo.

A dois passos do anfiteatro, frutifica hoje a vinha, relva compacta cobre o caminho, oliveiras, ciprestes, e sempre pinheiros, pinheiros tosquiados em forma de nuvem. A vida parece que começou a despontar aí, nessa zona mais recuada de Pompeia, onde também fica o cemitério (chamemos-lhe assim de modo simplificado). As árvores ou as flores quase não existem na parte da cidade por onde se entra, ponto nevrálgico da vida quotidiana, dominado pelos grandes espaços públicos, lojas, casas, o mercado ou as termas.

Pode ser que o verde, essa ilusão de vida, de continuação do dia de ontem, torne mais impressionante os corpos petrificados, os movimentos de tensão, medo, recusa que podemos identificar ou adivinhar (sem efabular muito).

Portanto, quando se começa a visita a Pompeia, aparecem as termas, as ruas iguais às nossas, casas e pátios, os mercados. Vemos ânforas, objectos de todos os dias, a réplica de um mosaico, uma estátua. Colunas do que foi um templo, vestígios. Vemos até um ou dois ou três corpos apanhados pela lava, dispostos ao lado das ânforas. E o Vesúvio sempre a seguir-nos, para onde quer que se olhe. Depois passamos pelo teatro pequeno, lugar de música, pelo teatro médio, adequado ao teatro. A Natureza impõe-se mais e mais, e não esperamos aquele impacto de morte que é ver os corpos, dezenas, no anfiteatro.

Há um adulto que brinca com uma criança, atira-a ao ar. Parece ter dois anos. Há outra criança – andaria pelos oito? – que se aninha junto a este adulto. Podem ter formado uma família. Há um casal de pernas entrelaçadas. Há um corpo estirado, num esgar de sofrimento. Há um homem que parece chorar, joelhos no peito, cabeça enfiada. Há pessoas que levam os braços ao céu, o que coincide com o desespero descrito por Plínio. Há os que se recolhem sobre si, numa posição fetal. Há outros que não fazem nada.

A descoberta destes corpos é posterior à descoberta de Pompeia e consequência de uma fabulosa solução de Giuseppe Fiorelli. Este arqueólogo liderou o trabalho de escavação entre 1860 e 1875, elaborou um primeiro mapa da cidade, que ainda hoje é seguido, experimentou um sistema de moldes de gesso que preenche o espaço oco de corpos e objectos encontrados. É uma forma de dar espessura e forma ao que existia apenas de modo fragmentado, ao que era parte de um todo. Resulta uma inteireza tosca, cor de cinza petrificada, que permite encontrar uma cidade – e os seus habitantes – nos instantes que precederam o fim.

A comoção que sinto quando vejo aqueles corpos é imediata. Penso que resulta de os seus gestos serem gestos que reconheço, que todos reconhecemos. De ser evidente neles o sofrimento e ao mesmo tempo a banalidade. Colocamo-nos no lugar daquela criança que é atirada ao ar pelo pai ou pela mãe, ou na outra, mais crescida, que junto às pernas procura protecção.

Há um laço que se estabelece e que tem escrito empatia.

Depois há o cataclismo, a aflição. Um som e uma temperatura a interromper este correr de vida normal. Um calor de 400 graus. O ribombar do vulcão. Plínio, que estava na baía de Nápoles, fornece os elementos: “O mar parecia engolido pelo seu próprio remoinho, como se o terramoto o afugentasse e, em terra, uma nuvem preta e assustadora, rasgada pelo relampejar do fogo, fendia-se em longas tiras de chamas, parecidas com raios, se possível ainda mais impressionantes. [...] Finalmente, a fuligem dispersou-se e dissipou-se em fumo e nuvens. Amanheceu, e quando o sol brilhou era tão pálido como durante um eclipse. Aos nossos olhos, ainda hesitantes, tudo parecia transformado e coberto por um manto de cinzas como se fosse neve”.    

Pompeia virou cidade soterrada, da qual se perdeu a memória. Foi descoberta acidentalmente quinze séculos depois. E as escavações começaram, e com elas o assombro.

Volto ao princípio da viagem, à Pompeia que hoje se calcorreia. Antes mesmo de transpor a Porta Marítima, tenho a impressão de ser transplantada para um dia banal de um tempo longínquo. As coordenadas da cidade são as que reconhecemos como nossas. A organização do espaço e os hábitos quotidianos manifestam a proximidade, propiciam a identificação. Aí ficam as termas, de decoração majestosa. Uma primeira forma de spa, frequentada por todos (excepto escravos), habitualmente pelas quatro da tarde. No frigidarium (sala fria), as paredes são de estuque, imitam o mármore. Noutra sala, há uma gruta artificial, um mosaico com pasta de vidro que reflecte a água e jogos de luz. No vestuário há frescos eróticos, explícitos, que aludem aos serviços aí prestados. Não diferem dos frescos do lupanar, que fica umas quantas ruas mais à frente.

(Lupanar: palavra que deixou de se usar. A mim soa-me a lua e a sonho. Mas o significado é menos etéreo.)

Num caso e noutro, os frescos não se comparam aos que estão no Museu Arqueológico Nacional, reunidos num cabinet secreto. Estes têm uma condição exemplar, os que se encontram nas paredes de Pompeia são de qualidade deficiente.

Convém esclarecer desde já que para visitar Pompeia no seu esplendor é indispensável visitar o museu em Nápoles. Numa linha: visitar Pompeia obriga a uma visita em duas partes. Resulta incompreensível que boa parte dos turistas ignore Nápoles e resuma a cidade à sujidade e ao perigo. O Museu Arqueológico reúne uma prodigiosa colecção de mosaicos, frescos, esculturas, objectos de todos os dias recolhidos nas localidades atingidas pelo Vesúvio (Pompeia e Herculano, sobretudo, mas também Boscoreale). Além do mais, estão aí o descomunal Hércules vindo das termas de Caracala e o Touro Farnese, um complexo escultórico que parte do maior bloco de mármore que se conhece. Miguel Ângelo trabalhou nele. Repetirei as vezes necessárias que considero o Museu Arqueológico Nacional um dos melhores museus do mundo. Tem manifestamente pouco dinheiro, e talvez pouco esmero na organização da colecção, mas a qualidade das peças suplanta largamente estas dificuldades. E as peças são os tesouros que resistiram ao tempo e à pilhagem de Pompeia.

Na cidade, em si, quase tudo o que vemos é uma reprodução. Por exemplo, o mosaico da batalha de Alexandre e Dário, as estátuas de Apolo e Diana: os originais estão a salvo em Nápoles. Em Pompeia, sujeitos à intempérie ou ao calor que queima, estão boas réplicas. Em qualquer dos casos, chama por nós o olhar febril do jovem imperador, Dário ansioso, os cavalos, o desalinho de lanças em combate.

Depois deste excurso, retomo a visita guiada. O caminho até à muralha faz-se sobre basalto vesuviano. Um caminho de dois mil anos que nos leva, pouco mais à frente, à praça principal. Ampla, concentra o poder político, religioso, administrativo. O Vesúvio, que fica a 23 quilómetros dali, parece fazer parte do recorte da praça, tão próximo quanto os templos de Vénus, de Apolo, a basílica (onde se administrava a justiça). O mercado de tecidos fica à direita. À esquerda, o mercado de hortaliças e fruta. A guia, uma jovem que combina firmeza e suavidade na voz, explica que vinho e azeite eram transportados em ânforas, e que a urina era usada como lixívia.

Contratar um guia não é um luxo. Há visitas em diferentes línguas, os grupos têm composição diversa. As explicações de Elena (vou chamar-lhe assim por me ter lembrado os personagens da escritora napolitana Elena Ferrante) retiraram um manto, um manto de cinza ou neve, como o descreveu Plínio, à Pompeia que agora vive à superfície. Doutorada em arqueologia, trouxe uma nitidez à viagem, tornou possível o movimento da máquina do tempo.

Elena diz quase nada sobre as obras que delimitam casas e passeios, a não ser que há anos estão assim. É omissa em relação aos comentários de que a Camorra controla sindicatos e grandes obras (“Imagine que os funcionários de Pompeia decidem fazer greve, dias e dias, seguindo indicações superiores, não forçosamente oficias... Está a ver o poder da Máfia?, está a ver o modo como se infiltram em todos os sectores?”, tinham-me dito.) Elena fala de Pompeia. Por vezes, tinha um tom vibrante, de quem ama o lugar.

Prossegue o passeio. As casas ricas não distam muito do foro. A mais sumptuosa é a do Fauno, assim chamada por ter uma pequena escultura de um fauno (tão gracioso) a embelezar um tanque. Ocupa 3000 m2, pertenceu seguramente a uma pessoa culta, o que se percebe por a casa ser uma imitação de um palácio helenista. Voltada para magníficos jardins interiores, assente em colunas coríntias, de capiteis estucados, tem a inscrição latina “Have” – ou seja, Avé – a dar as boas vindas.

Outras casas particulares: a vila dos Mistérios. A casa dos Vetii. A casa do Poeta Trágico. A casa dos Amantes Castos (assim mesmo).  

A casa de Ifigénia faz-me pensar em Goethe, que apelidou Pompeia de “cidade mumificada”. O poeta alemão reescrevia a peça Ifigénia na Táurida por altura da viagem a Itália, em 1787. O mito do resgate de Ifigénia conheceu várias representações. No museu de Nápoles há um fresco impressionante que ilustra a tragédia e que provém de Pompeia.

Goethe escreve na Viagem a Itália que achou a cidade acanhada. “Ruas estreitas, embora direitas e com passeios laterais, casas pequenas sem janelas, os quartos iluminados, a partir dos pátios e das galerias abertas, apenas através das portas.” A mim ficou-me uma impressão contrária. Pode ser que tenhamos visto coisas diferentes. Afinal, as escavações estavam longe de estar concluídas no século XVIII. Ainda hoje, de resto, permanece uma parte por desenterrar. Sobretudo, pode ser que eu tenha ficado estonteada com o tamanho da casa do fauno e tenha feito desaparecer o rasto dos compartimentos exíguos, as ruas onde apenas cabe um carro de bois.

A minha guia faz-me parar à sombra, entrar no mais famoso dos thermopolia. Ou seja, estabelecimentos onde se vendiam bebidas e comidas quentes. Ou seja, um snack-bar. Com um balcão de esquina, orifícios de onde saía o calor, uma sala interior onde se comia sentado, o larário com um fresco. (O larário era o pequeno espaço de culto, dedicado aos deuses que protegiam a casa.)

Do outro lado da rua há um fresco com propaganda política. A inscrição é ténue, e não consigo perceber exactamente o que se diz. Elena é que conta que há paredes onde se pode ler “Vota em mim”.

Mais adiante fica o pequeno teatro, destinado a 1000 pessoas. Um pequeno teatro destinado a 1000 pessoas? O grande leva 5000. No anfiteatro cabem 20 000. Em qualquer deles, as pessoas sentavam-se de acordo com o estatuto social. Junto à arena, os magistrados, num plano médio, os burgueses, nas camadas superiores, o povo. Parece que há coisas tão antigas quanto a vida.

Estou novamente no lugar onde comecei o texto, na arena onde estão dezenas de corpos petrificados. Abandono o espaço a pensar no encontro com a noite última do mundo que não o foi. No milagre das flores, da vida que continua. Cá fora sugerem excursões ao Vesúvio. Não desta vez.

Até à porta de entrada há um quilómetro e meio debaixo da sombra dos pinheiros. Nas imediações há um parque de estacionamento chamado Zeus. Em Roma, tinha visto um café Fauno. E há limões do tamanho de cabaças. Vai uma granita al limone? Para matar o calor, como fariam em Pompeia?

 

 

GUIA PRÁTICO

Pompeia fica a meio hora de comboio de Nápoles. Se usar a auto-estrada Roma-Nápoles (cerca de duas horas e meia, se não houver trânsito, o que acontece às sete da manhã), sai numa rotunda devidamente identificada e sai já nas imediações da cidade, a desenterrada Pompeia. Há tendas com souvenirs, há autocarros com mais orientais do que alguma vez viu, há até um parque de campismo.

A visita a Pompeia demora, no mínimo, três horas. Conte com um número considerável de turistas em qualquer época do ano. Se for no Verão, é indispensável usar protector solar, chapéu ou guarda-chuva (os orientais usam-no muito com a função de guarda-sol). O calor é abrasador.

Se não quiser contratar guia, há um bom mapa e prospecto explicativo, em diferentes línguas. Não há em português.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015