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Anabela Mota Ribeiro

Jaime Milheiro

23.12.21

O Natal é um regresso à infância, ao lugar onde fomos felizes? O Natal é uma suspensão do mundo, à margem do tempo, da agressividade, da sexualidade? O Natal é um suplício e a família é um lugar estranho? O Natal é um território fictício de bons sentimentos, onde se prega o amor e a justiça? Existe em nós o sentimento de que fomos – somos – o Menino Jesus? O psicanalista Jaime Milheiro ajuda-nos a encontrar algumas respostas. 

Jaime Milheiro nasceu em 1935, é psiquiatra e psicanalista. O seu livro mais recente, A Invenção da Alma, tem edição de 2012. Mas não foi sobre ele que falámos há uma semana, no Porto, no seu consultório. Breve descrição do ambiente da conversa: era um dia de dilúvio e as paredes do consultório são cor de terra. Há quadros de artistas plásticos portugueses, livros, dois maples onde nos sentámos e o divã onde se deitam os pacientes. Não parou de chover.

É um homem que diz coisas provocadoras, agudas, de modo afável, com a mesma afabilidade com que diz que: “Há anos que não a via” (eu entrevistara Jaime Milheiro no auditório de Serralves há cerca de dez anos), mas plenamente consciente do impacto das suas palavras, de como elas interpelam o paciente, e, neste caso, o interlocutor. O tema proposto para a conversa era a quadra natalícia, as suas tensões e alegrias, o que resta da simbologia do Natal. Foi exclusivamente disso que falámos.

Sobre ele: tem um currículo sólido, habitualmente ocupou cargos de decisão. Foi presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, da Associação Portuguesa de Saúde Mental, do Conselho Nacional de Saúde Mental, da Sociedade Portuguesa de Psicanálise. Fundou o Centro de Saúde Mental de Gaia, o Instituto de Psicanálise do Porto. Escreveu artigos científicos, artigos de opinião, vários livros.

Não parece ter a idade que tem. Fala frequentemente da criança que há em nós.

 

 

Ainda que remotamente, existe em nós a ideia de que fomos esperados? E já vamos dar ao Menino Jesus, o esperado.  

Todos temos isso dentro de nós. Se não tivermos, estamos bastante mal – a nossa saúde mental [está bastante mal]. O que às vezes vemos na clínica é, justamente, a falha disso. Pessoas que acham que não foram esperadas. O saudável é pensar que se foi esperado. Isso implica uma relação real e fantasmática com as pessoas de quem provimos, a mãe, o pai.

A ideia de que somos e fomos queridos é fundamental para a construção psicológica de uma pessoa, de uma criança. E é fundamental para o seu desenvolvimento harmónico, entre si e as pessoas com quem se ligou, entre si e aquelas com quem se vai ligar.

 

A falha – porque não se foi querido e desejado – acontece pelo desencontro de expectativas, de percepções do que foi a relação afectiva entre pais e filhos?

Aparece como uma falha: “Eu tenho um desejo de, e esse desejo não foi satisfeito”. Ou uma perda de qualquer coisa que se teve e que agora não se tem. Ou uma falha original, que é mais grave.

 

Qualquer coisa que nunca chegou a existir?

Sim. O bebé não tem palavras para dizer isto, mas tem um aparelho psicológico em formação que vai sentindo isto. Muita gente sobrevive, apesar de tudo, com um grau marcado dessa carência, desse desejo não cumprido.

 

Essa fractura tão antiga pode ser reconstruída?

Pensamos que sim. Tenho muitos anos de psicanálise e tenho visto muitas reconstruções, e reparações. Mas na totalidade nunca se recuperará. Totalidades, em Psicologia, será bom nunca as fantasiar.

 

O desencontro de expectativas entre pais e filhos é inevitável? Imagino que seja comum um pai, uma mãe, ter a noção de que desejou a criança, a amou absolutamente, e não haver por parte do filho a noção de que foi querido e cuidado com a mesma intensidade.

É muito comum. Nem é um desencontro, é uma leitura diferente de cada uma das partes. Uma parte acha sempre que deu o que podia, e a outra parte acha sempre que não recebeu quanto merecia. É banal, não me parece que deva ser considerada uma grande questão. Os aspectos narcísicos de cada um estão sempre insatisfeitos. A satisfação narcísica que a criança sente no seu crescimento, e que é visível na relação com as figuras significativas, nunca é absoluta.

 

Percebo que para um psicanalista seja um assunto banal. Contudo, a narrativa comum não banaliza este aspecto. Parece haver em muitos discursos uma zanga, muitas vezes consciente, outras vezes não consciente, de quem não ultrapassou este desnível inicial.

É uma questão de grau. Se esse desencontro tiver um grau muito elevado, deixa de ser banal para ser complicado para a saúde mental da pessoa. Mas num quantitativo relativo, pequeno, é comum a toda a gente. Até em Jesus Cristo.

 

Como assim?

É a minha fantasia. Jesus Cristo não estava inteiramente satisfeito com aquilo que o pai ou a mãe lhe davam, senão não era uma pessoa em boa construção [riso].

 

Neste período de Natal, até porque estamos imersos numa cultura judaico-cristã, estas fracturas emergem mais? Sentimo-nos mais frágeis, menos desejados?

Mais necessitados. Para além de todos os consumismos, de todas as máscaras que se colocam, e processos simbólicos que acontecem em todos os seres humanos, em todas as religiões e em todas as culturas, há Natal, com esse nome ou com outro, desde o homem das cavernas. Isso corresponde a um desejo. Um desejo de reunião com as pessoas significativas – as da infância – com quem trocamos afecto para crescer. Esse desejo de reunião, de estar com o outro, é o maior contributo de Jesus Cristo à Humanidade. Cristo chama a atenção para o outro, e para a necessidade que todo o ser humano tem do outro dentro de si. Ao mesmo tempo que é uma necessidade, esse desejo de reunião é também um pedido de amor.

 

É bizarro que seja um pedido. Esse amor, essa reciprocidade, não devia ser uma coisa natural e gratuita?

É natural, mas falha sempre. O Natal, que é a reunião familiar, com todas as vicissitudes marcadas que tem, é uma comemoração e uma concretização desse pedido. E momentaneamente exclui, naquele dia, o dia anterior e o dia posterior. Uma espécie de oásis. Exclui outras características do ser humano: a sexualidade e a agressividade.

 

Como é que, magicamente, a sexualidade e a agressividade, que são estruturantes no ser humano, ficam excluídas?

Vamos falar de símbolos concretos, o presépio e o Pai Natal. É impossível imaginar uma concretização ou outra com agressividade ou com sexualidade. Era impossível imaginar o Pai Natal de metralhadora à cinta. Era impossível imaginar um Pai Natal feito George Clooney ou Brad Pitt. Ou imaginar que a representação da Virgem Maria seria feita pela Scarlett Johansson ou pela Penélope Cruz.

 

Mas essa agressividade e sexualidade são motores da vida.

Não vivemos sem isso. E por isso temos dificuldades e atritos, complexidades, disputas.

 

Esse desejo de reunião de que fala encontra expressão naquela frase feita de que o Natal é a festa da família?

Sim, a festa da família compreende esse desejo de reunião num formato mais visível. Só estou a acrescentar leituras um pouco mais subterrâneas.

 

Olhemos para o presépio, para a imagem idílica de Maria em adoração, o menino na manjedoura, a ser cuidado, e José. Uma gruta, um ambiente protegido. A representação é quase sempre essa, não é a de um cenário inóspito. Essa imagem da família como lugar de protecção fica impregnada em nós?

Claro. Toda a gente sabe ter um pai e uma mãe. Toda a gente funciona psicologicamente sabendo isso e em função disso.

 

Se vivemos em função disso, nunca saímos da infância.

Vivemos em função disso e de outras coisas. Vivemos em função do crescimento que fizemos e da vida de adulto que tivemos, mas essa zona da infância, esse conhecimento e essa influência emocional na psicologia mais profunda, permanece. É bom que permaneça. Felizmente as pessoas continuam com uma criança dentro delas. Se é uma criança com um volume excessivo já não será tão saudável assim. Quando vir um ser humano a funcionar como um computador, pense que ele esqueceu ou bloqueou, tem qualquer coisa que o leva a fazer uma recusa daquilo que foi a sua infância.

 

O que é ter essa criança viva dentro de nós num estado adulto?

É poder brincar com os filhos, com os netos, identificando-se com eles. Quando brinco com os meus netos tenho a idade deles, é a criança que ainda funciona dentro de mim.

 

E isso é a curiosidade, é a inocência que reaparece?

Não, é a humanidade. É o sentimento de funcionamento do ser humano. Substituo as perguntas clássicas “quem somos”, “de onde vimos”, para onde vamos” por outra pergunta: “Como é que funciono?”. É aí que incluo uma palavra que tenho usado bastante, “misteriosidade”.

 

Para responder a essa pergunta não é preciso saber quem somos, de onde vimos?

Não, isso não tem respostas. É impossível ter resposta certa, com alguma validade interior, alguma capacidade de preenchimento interior.

 

É, no fundo, uma pergunta sobre o nosso mecanismo, o motor, as motivações, o circuito e o curto-circuito.

Não se pode excluir [dessa pergunta] o corpo. A medicina não responde a perguntas tão banais como esta: por que é que numa acumulação de raiva, há pessoas que desenvolvem uma doença de pele? Outras desenvolvem uma síndroma depressiva, e outras não desenvolvem coisa nenhuma. Como é que funciona a pessoa para que, na sua singularidade, funcione com uma doença de pele, com uma doença psicológica, ou que não tenha resposta nenhuma?

 

Não é raro ouvir as pessoas dizer: “As festas, o Natal, só espero que passem depressa”. Porque é que nesta quadra o que está recalcado emerge com maior violência, e muitas tensões se acentuam?

Se a pessoa acha que o seu desejo de reunião está prejudicado pelas situações da realidade, o melhor seria dizer: “Desejo mas não quero”.

 

O que é isso de desejar e não querer?

“Desejava ter uma reunião familiar, desejava ter um sentimento de ligação com as pessoas significativas da história da minha vida, mas as circunstâncias são de tal forma impeditivas disso que não quero.” A pessoa deseja mas acha melhor não cumprir esse desejo em função das circunstâncias. Não nega o desejo. Na expressão que usou há pouco [“As festas, o Natal, só espero que passem depressa”] as pessoas negam o desejo. Dizer que não tem desejo de reunião é desumano, é negar o lado humano, é voltar ao computador. Quem não desejar isso, ou já deu em serial killer, ou já morreu.

 

Concomitantemente ao amor existe a disputa. Nem sempre as pessoas amam o pai, a mãe, os irmãos. Dizer: “Não quero passar o Natal com os meus pais” é negar esse desejo de reunião?

Quando as pessoas dizem isso têm razões circunstanciais que o impedem, mas no fundo quereriam. Dizer, “não quero”, não quer de modo nenhum dizer que a pessoa intimamente não desejasse querer.

Quando, na altura do Natal, há pessoas que reagem mais violentamente, é porque desejam essa manifestação afectiva, têm uma carência dela, e como sabem que essa carência não pode ser suprida (porque do lado das figuras significativas só vem o oposto), há uma exaltação do lado negativo de cada um.

 

Para um psicanalista, para alguém que assiste da plateia, é mais fácil visualizar estas tensões. Para aquele que está no palco, em plena dinâmica familiar, é difícil tomar consciência disto que acaba de dizer; e verbalizá-lo.  

São as vicissitudes de cada um, os formatos que cada um foi implementando na sua construção psicológica, as dificuldades e as capacidades que tem. Vou dizer uma barbaridade: a cultura, que é uma coisa que muito prezo, muitas vezes, nesta questão, só prejudica. Se perguntar a alguém analfabeto, do interior, ele sabe responder a isto com mais facilidade do que uma pessoa culta da cidade. Porque não têm uma espécie de poeira em cima. A poeira da cultura.

 

O que é que faz aqui a poeira da cultura? Interpõe máscaras, é isso?

Exactamente. Quando diz que há muita gente que não tem consciência da dinâmica dos afectos, que os levam a estar bem ou mal, ou a não querer uma reunião, se falar nisso a uma pessoa analfabeta, ela sabe responder muito melhor. É mais autêntica na expressão. É igual ao urbano, mas não aprendeu a camuflar-se tanto. O urbano, por necessidade, por cultura, habituou-se a camuflar. E fica nessa realidade procurando tapar aquilo que interiormente vive, ou com mais intensidade podia viver.

 

Há-de encontrar na clínica pessoas que têm uma capacidade discursiva e de elaboração sobre um determinado assunto, e que não conseguem depois penetrar nelas mesmas.

Exactamente. [Fazem uma] racionalização sobre as coisas, pensando que a racionalização sobre as coisas são as coisas. Não são as coisas.

 

Então, como chegar às coisas se não através das palavras?

Isso é uma enormíssima questão [riso]. No fundo está a perguntar-me para que servem as palavras. A primeira utilização é transformar a coisa em palavra. É fazer com que a relação afectiva entre as pessoas se possa estabelecer através de sons. A palavra é um símbolo. Mas as palavras podem ser utensílios e não mais do isso. Os poetas também têm isso.

 

Usam as palavras como utensílios?

Sim. Utensílios muitíssimo bons. Às vezes são verdadeiras paisagens interiores. São paisagens, não são uma emoção, não são um afecto, não são a pessoa. O Natal não é isto. É a ligação a outras pessoas, está muito para além das palavras. No Natal não há palavras, já reparou?

 

As palavras são “Feliz Natal”, “Boas Festas”.

São as bacoquices que dizemos todos. As palavras de Natal são coisas tão banais que toda a gente diz as mesmas. O Natal não são palavras, são interiores ligados num desejo de reunião.

 

Também se diz “o presente no sapatinho”. Todos somos, à vez, Menino Jesus e Pai Natal. Somos ensinados, mesmo as crianças, a dar, a retribuir o presente. E somos Menino Jesus porque todos nascemos e temos um pai e uma mãe. Os presentes, que lugar ocupam? Não estou a pensar na febre consumista.

Todo o bebé que dê presentes à mãe a partir de um ano e meio, dois anos de idade, tem um gosto enorme em dar presentes à mãe.

 

Um presente pode ser um sorriso? Que presente é que uma criança de um ano e meio de idade dá à mãe?

Quando faz no pote, por exemplo, em vez de fazer nas calças ou na fralda, está a dar um presente à mãe.

 

Esta dimensão escatológica é um pouco inesperada...

Dar e receber coisas concretas, presentes. Já não é o afecto sentido e vivido, é um objecto. Não é a mãe dar. A mãe sempre deu e há-de dar até ao fim da humanidade; gosta disso porque o bebé é dela, o filho é dela. Presentear é presentear-se a si própria. Isso entende-se melhor. Mas o bebé dar à mãe..., repare nisso, é interessante.

 

É um desejo de retribuição, de ser merecedor da atenção da mãe?

Sim, é um desejo de troca, de partilha, agora através de objectos. Às vezes através de um objecto expelido pelo corpo, colocado no sítio onde a mãe queria que fosse, o pote, e não nas fraldas. Isto parece uma brincadeira, mas tem um valor simbólico.

 

Estamos sempre no plano do simbólico?

Sempre, não. Mas o plano simbólico tem muita importância. O que há de simbólico entre nós, neste momento, são as palavras. Você está aqui com o seu afecto, e eu estou aqui com o meu afecto a falar consigo. O que há de simbólico na nossa troca são as palavras, são elas que nos aproximam.

 

A palavra “troca” adquiriu uma conotação pejorativa, ligada ao comércio. Como se fosse uma coisa interesseira. Porém, não é forçosamente assim, nem sempre foi assim. Mesmo no Natal, há trocas e trocas.

Há trocas verdadeiras e trocas falsas. Há trocas interesseiras, que são a maioria. A troca, inicialmente, implica afecto. É o processo em que a pessoa dá e recebe do outro um objecto. Como se fosse a própria pessoa que se dá. É o próprio que se dá ou que se recebe. O objecto é apenas um intermediário entre as pessoas. Isso é que é originário.

 

O que é originário é a criança que dá um desenho a uma pessoa de quem gosta? O desenho é uma forma intermediária de ela se dar?

Sim. Mas numa idade mais precoce que a idade do desenho, a troca acontece tanto no Porto como nos índios da Amazónia. É igual. Não há papel nem lápis, há aquilo que o bebé dá à mãe. O objecto é apenas um intermediário de uma relação em que cada um se entrega através do objecto.

 

Outra das expressões constantes do Natal e da troca de presentes: “É uma coisinha sem importância”. Como se houvesse uma desvalorização de quem se é ou do que se está a dar.

Ou do que se pensa que o outro espera que se lhe dê. Quando se diz isso está a pensar-se na quantidade que o outro esperaria. Está a pensar-se muito mais no desejo do outro do que no desejo do próprio. Imaginemos uma pessoa que oferece uma coisinha de nada a alguém...

 

Uma pedra, por exemplo, que é uma coisa que se apanha na rua, aparentemente sem valor.

Pode, para a pessoa que oferece isso, representar algo de muito significativo, muito verdadeiro, de grande intensidade afectiva. A forma como o outro o vai receber dependerá do outro, não dependerá de quem oferece. E quando a pessoa diz que é uma coisinha pequena, está preocupada com o que o outro pensará sobre o volume, está a pensar no apreço que dará àquilo que está a oferecer. A prendinha pode representar uma preocupação quanto ao outro; a pessoa pode sentir-se muito bem a dar uma prendinha de nada.

 

Quando não se sente bem por dar “uma prendinha de nada”, entra aí, também, uma expectativa social e uma ideia de fracasso financeiro? Ou seja, se se tem sucesso pode-se comprar o que se quiser. Se se dá uma coisa sem valor material, o outro vai ler isso como um falhanço, ou até como desinteresse.

Ou como uma desvalorização da pessoa.

 

Um parêntesis para sublinhar isto: mais do que uma vez falou do bebé e da relação com a mãe. Alguns leitores menos atreitos ao discurso psicanalítico perguntar-se-ão o que é que o bebé tem a ver com isto, ou se ainda estamos na idade do bebé.

Há na espécie humana uma zona de afectos, uma zona cultural e uma zona folclórica. Eu estou a falar da zona de afectos. Você estava a falar da zona cultural. A zona folclórica também existe, não vamos negar, vivemos muito nela.

 

E todos temos as três?

Sim. Diria que a prevalência de cada uma depende de cada um.

 

E agora retomo o tópico do falhanço. No Natal fica mais patente a vida para além das máscaras. Se a pessoa está com ou sem trabalho, se está separada ou não, se tem um filho com problemas ou se tem um filho exemplar, se é ou não dedicada aos pais. Da gestão destas questões resulta uma agressividade mais à flor da pele. Isto é constante?

É. Diria que faz parte. É uma parcela de um conjunto que acontece na reunião das pessoas. Penso que a sua pergunta, subliminarmente, vai sempre dar à questão da saúde mental. Até que ponto as questões exteriores, as questões sociológicas (onde as questões económicas entram, e muito, hoje), entram na saúde mental de uma pessoa? É uma questão importantíssima.

 

Entram inevitavelmente?

Entram. Mas às vezes confunde-se a parte pelo todo. É só uma parte da saúde mental das pessoas, não é o todo. As questões sociológicas participam na saúde mental da pessoa, mas não criam a saúde mental da pessoa. Conjugam-se. Às vezes com parcelas grandes, outras com parcelas pequenas.

 

Quando as pessoas estão muito descompensadas, ou em ruptura nesse plano socioeconómico, é normal que essa parcela seja dominante.

É normal que seja muito importante. Mesmo aí (vou dizer uma frase politicamente incorrecta) há pessoas que se aguentam melhor do que outras, porque têm uma saúde mental (organizada psicologicamente em si) mais sólida do que outros.

 

Está a dizer que a auto-estima está centrada em si e não naquilo que a pessoa tem ou conseguiu?

É isso. A organização psicológica da pessoa A tem um peso e uma consistência, uma coesão interior mais sólida, com maior resiliência, do que o indivíduo B ou C. Essa parcela é muito importante na reactividade de cada um às circunstâncias externas, sejam elas boas ou más. E se elas são más dão um enorme prejuízo na saúde da pessoa. Mas não são tudo.

 

Muitas pessoas perguntam-se, quando estão em período de dificuldade: “O que é que eu valho?”. Isto tem respostas muito diferentes consoante a pessoa se sente útil e amada.

Há pessoas que respondem a essa pergunta quando há formatos sociológicos bons, ou quando há formatos sociológicos maus, com quantitativos diferentes. Mas a resposta está sempre configurada por aquilo que a pessoa sente relativamente a isso de forma prévia. Se a pessoa acha que não presta para coisa nenhuma mesmo que tenha descoberto o caminho marítimo para a Índia, estará sempre mal consigo própria.

 

Há pessoas que descobriram o caminho marítimo para a Índia e que estão mal com si próprias? Conhece muitas pessoas que fazem coisas extraordinárias socialmente, que têm todos os sinais do sucesso e que acham que não valem nada?

Essa qualificação externa é importante, mas é possível imaginar uma pessoa que descobriu o caminho marítimo para a Índia e que acha que não presta.

 

Explique melhor.

Porque a pessoa traz essa enorme dúvida [acerca] da sua qualificação interior, desde a sua relação infantil, desde a formatação que lhe deu isso na adolescência. Há pessoas que estão eternamente duvidosas de si próprias, mesmo que tenham um grande sucesso exterior. Também há o contrário.

 

Pessoas que nunca fizeram nada e que têm uma grande ideia de si próprias?

Sim, isso até é mais fácil de observar.

 

E aparentemente será mais fácil de compreender. É mais difícil compreender, ou identificar, alguém que tenha um grande sucesso social, e que tenha essa falha, que não se sinta merecedora desse reconhecimento.

Merecedora, provavelmente acha. Mas acha que esse mérito que lhe dão não compensa o sentimento que traz consigo. Ainda há dias li uma carta do Eça de Queiroz, do fim de vida, onde isso é claro como água. Já tinha escrito toda a sua obra, fabulosa, que admiramos, e dizia: “Tenho sempre uma enorme dúvida sobre se isto presta para alguma coisa”. O grande Eça de Queiroz.

 

Até ao fim temos uma parte de criança órfã da atenção do pai ou da mãe, da confirmação do pai ou da mãe?

A sua palavra é muito boa. É a necessidade de confirmação daquilo que somos. Quando há pouco falava do presente que o bebé de dois anos dá à mãe, há o gosto da troca, como se fosse o próprio que se dá à mãe, mas espera que o outro lado confirme.

 

Espera um: “Fizeste muito bem, lindo menino”.

Essas coisas são mais o que se transmite sem palavras do que propriamente as palavras. As crianças também aprendem cedo que as palavras são usadas apenas para camuflar, para dizer o contrário daquilo que a pessoa está a sentir. (Estou a dizer coisas provocatórias [riso].) A criança começa a sentir essa espécie de ilusão ou de mentira pelos três, quatro anos de idade. Começa a intuir que aquilo que está a ouvir não corresponde àquilo que está a sentir, e que da outra parte estão a criar-lhe uma ilusão, uma mentira.

 

Sabemos que as famílias são um lugar estranho. A história bíblica está marcada pelo grande mito de Abel e Caim. Gostava que me falasse das relações amorosas e tantas vezes raivosas que os irmãos têm entre si, e que depois confluem, com as outras histórias, à volta da mesa do Natal.

Quando diz que a família é um lugar estranho, é uma expressão curiosa. É um lugar estranho mas atractivo. E a própria estranheza pode ser atractiva. Quando essa estranheza deixa de ser atractiva para ser rejeitante as coisas complicam-se. A competição entre os irmãos é tão natural existir que sem isso não haveria crescimento saudável entre irmãos. Os irmãos, ou competem entre si ou não crescem.

 

A competição é um: “Quero ser melhor do que ele, quero ter mais atenção do que ele, quero ter mais brinquedos do que ele”?

Não, não. É: “Eu sou capaz de fazer isto e tu não és, sou capaz de a jogar à bola meter um golo e tu não és”.

 

“Eu sou mais bonito do que tu, sou mais inteligente do que tu, a mãe gosta mais de mim, o pai gosta mais de ti”?

Essa é outra parte. A competição normal, boa, que faz crescer é desta ordem: “Sei a tabuada melhor do que tu, eu já sei ler e tu ainda não”. As coisas complicam-se quando nessa competição entra outro elemento: “Mas eu sou reconhecido como vencedor ou como perdedor perante a mãe ou perante o pai, ao contrário de ti”, e como é que isso se joga. A competição pode evoluir no sentido de uma rivalidade, que tem a ver com esses elementos participativos, o pai, a mãe, ou quem tenha a figura significativa. E pode evoluir para zonas onde a competição se pode tornar mortífera. Felizmente não é tanto assim na imensa maioria das famílias. Os irmãos podem ter zonas onde se detestam, mas porque foram competidores saudáveis têm essa zona da competição saudável dentro de si, ainda, para se considerarem irmãos apesar das coisas que acontecem.

 

Detestarem-se e amarem-se, terem zonas onde se amam e se detestam é o mais comum?

É. Se olhar bem, até sociologicamente, por que é que as famílias existem desde sempre e se mantêm?

 

E é verdade é que, quando se sai, normalmente, faz-se uma outra família.

E leva-se a primeira no pensamento latente. Leva-se, inevitavelmente.

 

Para se fazer diferente, para se fazer igual?

Para se fazer melhor, como termo de comparação com tudo. Mas leva-se esse fantasma. E por que é que isso se mantém desde há milhares de anos? Porque as ligações afectivas da criança se desenvolvem necessariamente com as figuras significativas que tiveram, e a elas permanecem ligadas a vida inteira. Toda a gente teve um pai e uma mãe a quem permanece ligado a vida inteira, mesmo que eles tenham morrido em pequenos.

 

Ligado em que sentido?

Ligado no sentido interior, inconsciente (no sentido de “objecto interno”, para usar as palavras da psicanálise). Deixa de ser um objecto externo, visível, para passar a ser um objecto interno, que só existe sob a forma de representação mental ou dentro da cabeça de cada um. Não se vive sem isso. Só a existência disso nos pode conceder esta coisa fundamental do funcionamento do ser humano: “Sou uma pessoa, com sentimento de pessoa, e sou diferente dos sete biliões que andam aqui a intoxicar este planeta”. Todos são diferentes, todos sentem a sua individualidade.

 

Todos? A imagem que temos da representação do Natal é a de uma criança única – Jesus. Não é a de uma família com várias crianças. A dificuldade não é sentirmos a criança única dentro de nós, sentirmos essa unicidade?

Essa unicidade acontece seja única seja uma criança no meio de 20. Essa unicidade é a essência do conhecimento que tem de si própria. “Eu chamo-me assim, existo aqui”.

 

Estava a pensar naqueles espaços onde julgamos que não existimos. Ficamos inseridos numa mancha anónima, entre avós, tios, pais, primos, cunhados, sobrinhos, sem relevância no grupo. Isto é uma dificuldade?

É. Pode acontecer a qualquer pessoa, ter o seu sentimento de existência, a sua identidade, e supor que naquele desejo de reunião o seu papel é menor. A mim dá-me sempre vontade de perguntar: “Então, e o que é que faz para que ele deixe de ser menor? Faz alguma coisa por isso? Cuida disso?”. Esse é que será o movimento saudável. Há pessoas que nunca repararam que cristalizaram na lamúria. Intimamente, é como se não quisessem sair dali. O queixar-se passou a ser mais importante.

 

É uma forma auto-condescendente, é uma forma defensiva de lidar com aquilo. Desresponsabilizante.

De se confrontar responsavelmente. O crescimento das pessoas e das mentalidades passa muitíssimo por aí, pela responsabilização confrontativa no crescimento. A responsabilização, que hoje tendencialmente se procura evitar, é fundamental na organização de uma saúde mental resiliente. A grande questão é como é que isso se faz. É até a grande questão de um país, um país como este, como Portugal, num momento como este. Não nos responsabilizamos como pessoas, depois como cidadãos, depois como colectivo.

 

Alguma vez pensou como é que seria a psicanálise de uma figura como Jesus?

Sabemos muito pouco de Jesus. Jesus é uma pessoa que me interessa muito. O que fizeram dele depois é outra conversa em que já não me reconheço, e já não contribuo para esse peditório. O que a Bíblia nos conta foi filtrado em múltiplos aspectos pelo Concílio de Niceia, no século IV. O que sabemos são os últimos três anos de vida, não sabemos nada sobre o que foi a sua verdadeira história como pessoa.

 

E essa está sediada na infância.

Na infância, na adolescência. O que é lhe aconteceu, como era.

 

Ao Natal corresponde uma ideia de nascimento, de vida nova, de uma vida que está por fazer. Esse é ainda um sentimento muito identificado quando se pensa no Natal?

O Natal deixou de ser uma zona afectiva da espécie para ser uma zona cultural e folclórica das organizações sociais. Se calhar as pessoas nem sabem o que é que quer dizer a palavra Natal. Sabem apenas o que são as festas. Perdeu-se muito esse sentido de uma vida nova, de um ser humano que nasce e que vai trazer alguma coisa.

 

Esse sentimento de vida nova existe no Ano Novo, ou mesmo quando uma pessoa faz anos?

Não existe nunca. Gostaríamos que existisse.

 

Apesar das promessas e determinações de Ano Novo, por exemplo?

É o lado mágico das pessoas: “Agora é que vou mudar”. Ninguém muda com data marcada. Se quiser mudar muda em qualquer dia do ano, não é preciso estar à espera das badaladas e das uvas passas.

 

As datas simbólicas ajudam à decisão.

Ajudam a localizar-se, mas não são nenhum factor mágico que vai dar um contributo especialíssimo e fazer com que a mudança aconteça. Quando assim for estamos num circo.

 

Sei que os psicanalistas não falam na primeira pessoa, não revelam a sua história. Mas pode contar-me sobre a memória de um Natal que seja preciosa, e de um presente que tenha um significado importante para si?

Nunca tive um Natal especial nem um presente especial. Tenho tido sorte na vida.

 

O que é que está a dizer com esse sorriso?

Que como sou uma pessoa com sorte na vida sempre tive Natais e presentes especiais. Mas trabalhei bastante para ter sorte.

 

Essa resposta é um pouco frouxa.

Não me parece. Pense nisso [riso]. Faz mais sentido do que pode parecer.

 

 

 

Publicado originalmente no Público em Dezembro de 2012 

 

 

Daniel Sampaio

18.12.21

Do irmão diz: “De forma semelhante ao meu pai, o meu irmão é uma pessoa antes do tempo.”

O pai era um homem objectivamente bonito, que encantava pela maneira como estava. Infatigável, com um fio depressivo. Nunca se doutorou. A mãe encharcou dois lenços na cerimónia de doutoramento de Daniel (Jorge não se lembra de ver a mãe chorar). Era uma mulher determinada, cheia de força.

Há ainda a avó Sara e o primo Filipe, fulcrais no cenário da sua infância e adolescência. E depois a família que constituiu, e que em muitos aspectos é o oposto do que conhecia. Daniel Sampaio é casado, tem três filhos e netos. É psiquiatra.

Foram educados para não falhar. O fracasso era uma espécie de anátema na casa dos Sampaio. Não por acaso, Jorge e Daniel (posto pela ordem pela qual nasceram), destacaram-se na vida pública.

Os Sampaio são também Bensaude. Quer dizer, a família da mãe, de ascendência judia, teve uma enorme importância na estruturação das suas vidas, nas pessoas que hoje são. A mãe era aquela que dizia ao pai: “Não desistas”. O pai era aquele que nunca se lembrava de ter férias. Homem carismático.

Durante muito tempo, o Daniel era o irmão do Jorge. Conquistou o seu espaço. Rebelou-se na adolescência, como é próprio. Fez da família o tema central do seu estudo e trabalho. Jorge sempre foi “correctozinho”. Foi presidente da República. O pai não assistiu. Faleceu em 1984. A mãe, sim. Faleceu em 2000.

Será possível compreender os filhos sem saber quem foram os progenitores, que tramas foram as do seu enredo familiar? As pessoas são quem são e são, além das suas circunstâncias, uma história de família.

 

Se lhe pedir que conte uma história sua com o seu irmão, qual é a primeira que lhe ocorre?

Ele tem mais sete anos que eu, e isso marcou muito a nossa infância e adolescência. Quando entrei para o liceu, o Jorge estava a entrar para faculdade, quando entrei para faculdade, ele era advogado. Não brincámos muito juntos. De qualquer forma, havia a tradição de fazermos coisas na quinta de Sintra, com o nosso primo Filipe. As primeiras recordações que tenho são dos meus quatro anos, o meu primo com nove e o Jorge com 11. Fazíamos aventuras.

 

A quinta era dos avós ou era a vossa casa?

Vivemos lá até aos 15 anos, excepto um período em que vivemos em casa da minha avó em Campo de Ourique. O meu pai tinha a ideia de que tínhamos de estar numa boa escola, que fosse laica. Quando chegávamos ao actual 5º ano íamos para casa da minha avó. Estive lá entre os dez e os 13. Os fins-de-semana e as férias eram sempre passados nesta quinta de Sintra, até virmos definitivamente para Lisboa.

 

Porque é que esse seu primo era importante para si? Para fazer a ponte com o seu irmão? Em termos de idade, está mais ou menos no meio dos dois.

Não, porque havia espírito de família. A minha avó fomentava muito [a relação entre] os três netos. O meu pai era de Guimarães e sempre nos demos menos com a família do norte. A família da minha mãe, Bensaude, era preponderante, com valores culturais muito fortes. A minha avó era uma senhora judia, Sara Bensaude, e foi o sogro dela que fez a casa de Sintra.

 

No começo das duas entrevistas, fiz a mesma pergunta. Os dois sublinharam o facto de haver sete anos de diferença. Agora não é importante, às vezes perguntam qual é que é mais velho [riso]. Ele tem mais cabelo que eu. O Jorge diz sempre: “O que é que interessa que pareça mais novo do que sou? O que conta é o bilhete de identidade”. Actualmente, não é muito importante; ainda por cima porque ele está muito activo com 70 anos. Mas entre os dez e os 17 há um mundo, entre os três e os dez há outro mundo.

 

Essa diferença fez com que se sentisse filho único?

Não. Afectou sobretudo a proximidade com o meu irmão na infância e na adolescência. A nossa relação nunca foi muito íntima nessa altura. Foi uma relação de grande afecto, mas de um afecto não-íntimo. Agora não. Temos a tradição de nos encontrarmos ao sábado de manhã, tomamos o pequeno-almoço numa pastelaria aqui ao pé [de casa].

 

Só os dois?

As famílias nunca aparecem. Às vezes aparece o Francisco George, o actual director-geral da saúde que é meu amigo desde os 17 anos e se tornou muito amigo do Jorge.

 

Frequentemente, os encontros em família envolvem todo o agregado. No vosso caso é uma decisão de se encontrarem a dois, de cimentar a relação a dois.

Sem dúvida. Depois temos encontros nos aniversários, no Natal, com toda a família.

 

Explique-me o que era esse afecto não íntimo.

Em primeiro lugar é uma característica da família. Os Sampaio não são muito exuberantes em manifestações de alegria, de grande afecto para com os outros. Isso vem sobretudo do meu pai. As pessoas às vezes dizem que somos distantes, mas esse não é o termo certo: somos contidos. Depois, os sete anos criaram um bocadinho de cerimónia, que foi marcante nesse período, mas depois ultrapassada.

 

Como é que olhava para o seu irmão?

Tinha uma grande admiração. Penso que todas as crianças têm essa ideia do irmão mais velho: uma espécie de herói, aquele que aponta o caminho, aquele que ajuda os pais a lidar com o mais novo. Ele era uma pessoa marcante em tudo o que fazia. Na faculdade de Direito foi líder associativo; eu estava no liceu e observava-o a dirigir os plenários da reunião inter-associações. Toda a militância política dele, o facto de a polícia política aparecer lá em casa... Mas a admiração não é um sentimento de intimidade.

 

As descrições do seu pai são de um homem extremamente carismático. Imaginei-o efusivo, expansivo.

Não. Era uma pessoa completamente antes do tempo. Escreveu coisas nos anos 70 sobre o Serviço Nacional de Saúde que são actuais. Era cordial, atento, mas não era o género de pessoa de contar piadas. Essa faceta não é característica dos Sampaio: temos sentido de humor mas não temos graça. Encontrei na família da minha mulher o contraste.

 

Encontrou ou procurou.

Sim, podemos discutir isso mais adiante. A família dela é o oposto, passam a vida a fazer festas, a encontrar-se, telefonam-se. A minha mãe era menos contida do que o meu pai.

 

Na infância, existiu inveja e competição, como frequentemente existe entre irmãos? Os sete anos de intervalo diluíram isso?

Isso não existe entre nós. Podemos ter sentido ciúmes dos pais, achar que os pais estão mais próximos de um do que de outro. Houve uma altura em que achava que o meu pai era muito mais próximo do meu irmão do que de mim. Houve momentos em que estava mais próximo da minha mãe e o Jorge poderá ter sentido o mesmo. Mas não somos nada invejosos. Acho que ele me considera pelo que faço e me reconhece com algum valor. E eu reconheço-o com muito valor e apreço. Nos últimos anos não houve nenhum político como ele.

De forma semelhante ao meu pai, o meu irmão é uma pessoa antes do tempo. Temos em comum a intervenção social, mas eu nunca quis ter uma militância política activa. Tive um bocadinho com o Manuel Maria Carrilho, e agora vou ter com o Manuel Alegre. O Jorge é um político desde 1958, tinha eu 12 anos e ele explicava-me quem era o Humberto Delgado. Toda a vida foi um político.

 

Mas o Daniel é que é o médico, como o vosso pai.

Sim, mas não sei se fui para Medicina por influência do meu pai. Fui por influência de uma professora de Filosofia do liceu Pedro Nunes, a Maria Luísa Guerra. Essa senhora gostava muito de mim, sempre disse que devia ir para Psicologia, que esse é que era o meu caminho – a vida interior, falar com as pessoas. Ainda hoje tem influência em mim. Tem 80 e tal anos e continua a telefonar-me e a pronunciar-se sobre o que digo e escrevo. Continuo a tratá-la por Sra. Dra., e ela por menino.

 

Contudo é psiquiatra, e não psicólogo.

Talvez tenha escolhido Medicina um pouco pelo meu pai, mas a área da saúde mental é a que sempre quis. Nunca tive um instante de dúvida sobre isso. Se os cursos de Psicologia, em 1964, estivessem mais desenvolvidos, podia ter ido para Psicologia. Lia muito e gostava de ouvir as pessoas. Eram as duas coisas que mais gostava de fazer com 15 anos.

 

Porquê ouvir?

Sempre fui bom ouvinte. Já na escola primária ouvia muito. É um traço de personalidade. Não falo muito; aí sou diferente do Jorge que fala muito mais e numa reunião social é muito mais participativo.

 

Era por acanhamento que na infância era assim?

Sou tímido. Sou introspectivo, gosto de sossego, de estar a ler e a ouvir música, não gosto de reuniões sociais. Depois supero isso, fiz teatro amador, não falo mal, desembaraço-me bem, não me atrapalho perante uma audiência. As recordações de que gosto mais são dessa quinta de Sintra, a ler e a passear, a inventar histórias. Já escrevia umas coisas, no Diário Juvenil.  

 

Romancista, quis ser?

Nunca me assumi nem penso assumir-me como romancista. Quando me reformar é tarde. Não tenho qualquer mágoa sobre isso. Os meus livros não são de auto-ajuda, não gosto nada que o digam. Tenho coisas próximo da ficção, tenho uma peça de teatro, tenho livros teóricos. Se ler Vagabundos de nós, é uma história de ficção, se ler Tudo o que temos cá dentro, é uma história próxima da ficção. O próximo livro é uma narrativa familiar muitíssimo próxima da ficção. Não vou dizer que é um romance porque entrecruzo sempre algumas reflexões teóricas.

 

Quando decidiu parar um ano na adolescência para ler…

E namorar. Li muito, mas também namorei. E fiz política.

 

Pensei que fosse porque tinha o desejo de ser romancista.

A razão de fundo foi porque precisava de reflectir. Foi em 1962-63, a seguir à crise académica. Tinha actividade política na Junta de Acção Patriótica, um organismo estudantil em que as pessoas de esquerda e contra Salazar distribuíam comunicados, chamavam a atenção para os problemas do regime fascista. E tinha uma militância na comissão pro-associação dos liceus, um movimento liceal que era proibido. Havia um grupo significativo de pessoas, como o Fernando Rosas, de várias escolas, que se reuniam em casa uns dos outros. Andávamos sempre quatro rapazes juntos, eu, o Ruben de Carvalho, o Joaquim Barradas e o Rui Costa Lopes. Comecei a desinteressar-me da escola propriamente dita e não passei.

 

O seu irmão não disse sequer que tinha reprovado. Disse que era um aluno brilhante.

Reprovei porque não fui aos exames. Fui um aluno brilhante em Medicina, e fui um bom aluno até ao 7º ano de liceu, agora 11º. Estava numa fase de perceber quem era como pessoa. Do ponto de vista político, da minha sexualidade, se me devia dedicar mais aos amores ou à política… Estava em casa do Ruben de Carvalho quase todos os dias até às 4 da manhã. A minha mãe telefonava a perguntar por mim e o Ruben dizia: “Sim, sim, D. Fernanda, estamos a cantar canções revolucionárias” [riso]. No ano seguinte, em que fiquei só com três cadeiras, lia um livro por dia. Começava de manhã e acabava à noite. Li tudo o que há de romances, sobretudo americanos e ingleses.

 

Quando é que aconteceu ser o Daniel e não o irmão do Jorge, que tinha presidido à associação de estudantes, que era sete anos mais velho, que tinha todo o envolvimento político que conhecemos?

Isso só foi ultrapassado completamente na Faculdade de Medicina. Em 1964, 1965, no movimento associativo da faculdade, estava referenciado como irmão de Jorge Sampaio, para o bem e para o mal. O Jorge Sampaio era considerado social-democrata e o Partido Comunista criticava-o muito.

 

Se se dava com o Ruben de Carvalho e o Fernando Rosas, deduzo que fosse mais esquerdista do que o seu irmão.

Sempre fui mais esquerdista, militei na UDP a seguir ao 25 de Abril. Fiz um percurso dentro da associação de estudantes, pertenci à direcção, fui delegado de curso. Depois fiz uma escolha. Não se pode ser um bom médico e político. Por um lado, já havia um político na família, destacado. Mas o fundamental foi querer ser um médico destacado. Tive de estudar muito e fazer a pulso a minha carreira. A carreira hospital e a carreira da faculdade. Chegar a professor catedrático não é nada fácil.

 

Ser o irmão do Jorge marcou muito a sua vida? Fale-me mais desse processo de crescimento individual.

No início da faculdade, sim, mas depois seguimos caminhos com muita autonomia, com muito respeito um pelo outro. Trocamos impressões sobre as coisas fundamentais, mas nunca deixámos de fazer uma coisa porque o outro disse para não fazer. Das decisões que tomou, apoiei todas menos uma – a nomeação de Santana Lopes. Manifestei a minha discordância. Mas depois cheguei à conclusão de que ele tinha razão; ser presidente da República não é fazer o que a pessoa entende que está certo ou errado, é interpretar a Constituição. Ele terá discordado de algumas opções em relação a coisas que fiz ou escrevi. Houve sempre uma grande liberdade. O lema do meu pai era “liberdade com responsabilidade”.

 

Quando é que sentiu que ele o admirou e pediu a sua opinião?

O facto mais significativo, que me recorde, foi a candidatura à câmara de Lisboa.

 

Já adultos.

Não sei quando é que foi, temos de fazer as contas.

 

Foi em 1989.

Muito adultos [riso]. Foi a primeira vez que me chamou de urgência para dar uma opinião. Uma coisa é encontrarmo-nos e pedir-me uma opinião; outra é dizer: “Tens que cá vir porque tenho que tomar uma decisão muito importante e quero a tua opinião”. Fiquei completamente surpreso, não fazia a menor ideia do que me ia dizer. Ser secretário-geral [do PS] e ser candidato à câmara de Lisboa tiveram custos físicos muito grandes, com um desgaste enorme na sua saúde. Mas foi uma decisão bonita do ponto de vista político. Claro que hoje podemos ler que a partir daí é que ele conseguiu subir a presidente da República; mas na altura ninguém pensava nisso. Havia um problema para resolver, ninguém se perfilava para a câmara e ele disse: “Eu vou, eu sou capaz”.

 

Até onde é que pensa que a sua opinião foi decisiva?

Estou convencido, não sei se já é presunção da minha parte, de que, se estivesse contra, ele teria pelo menos hesitado. A candidatura à presidência da República foi outro momento muito significativo; já não me pediu opinião, disse-me: “Vou-me candidatar”. Quando cheguei à reitoria da Universidade de Lisboa tinha um lugar destacado fora das cadeiras – achei isso muito simbólico. Um colaborador disse: “Aqui é o seu lugar, a pessoa da família de origem que ele quer aqui é o irmão”. Fiquei admiradíssimo. Sentei-me com uma emoção muito grande.

 

Lá atrás, ainda na adolescência, lembra-se de ter ficado surpreendido porque ele pediu a sua opinião sobre alguma coisa? Lembra-se de ele ter estado fragilizado e de a sua opinião contar?

Houve uma vez que reprovou a uma cadeira de Direito e foi uma catástrofe [riso]. Os nossos pais não admitiam falhas de estudo. Lembro-me de ter estado muito próximo dele, de ter sido solidário e de ele ter gostado que fizesse isso. Ele tinha uns 19 anos e eu 12. Senti-o fragilizado.

 

Fale-me das pessoas da família que acha que são importantes nas vossas vidas, mais especificamente na sua vida. 

Os pais, porque eram educadores muito bons. Eram educadores para a cultura, estavam sempre a fomentar o estudo, a reflexão, a leitura. As refeições ao jantar eram a discutir temas, não havia conversa mole; às vezes até era um bocadinho exagerado e protestávamos contra isso. Mas hoje vejo que foi uma coisa boa solicitar constantemente a nossa opinião sobre as coisas e saber o que estávamos a pensar.

 

Era uma maneira de saber quem eram.

Sim. Depois, talvez mais do que o Jorge, tenho um grande culto pela minha avó materna. Não conheci os meus avós paternos nem o meu avô materno. Daquele período dos dez aos 13 anos, em que estive na casa dela, guardo muito boas recordações. Sentava-se ao pé de mim a bordar quando eu estava a ler. Morreu com 96 anos. Depois há esse meu primo Filipe, que hoje em dia é professor catedrático na Faculdade de Ciências, de Física. Os meus dois tios eram artistas, o meu tio era escultor e a minha tia pintava muito bem. Não tinha ido para Belas Artes porque o meu avô não tinha deixado. Havia a ideia de que as senhoras não deviam ir para Belas Artes porque desenhavam homens nus.

Fomos privilegiados nesse ambiente cultural. Nenhum de nós tinha muito dinheiro. O meu pai tinha uma clínica com gente de pouco dinheiro, fazia muitas borlas. No Natal recebíamos galinhas e perus que se punham na quinta, chegávamos a ter 20 [riso]. Depois o meu pai foi para a saúde pública, ganhava muito mal. A minha mãe ganhou algum dinheiro como explicadora de inglês.

 

Aprendeu inglês com a sua mãe?

Não falo tão bem como o Jorge. O Jorge esteve fora em dois períodos, quando tinha oito anos nos Estados Unidos, e quando tinha 14 em Inglaterra. Foram períodos grandes em que esteve lá com os pais. Aprendi algumas coisas com a minha mãe e depois fui aprendendo ao longo do tempo.

 

Resistiu ao inglês como quem resiste a uma coisa que lhe é desconfortável?

Gostaria de falar melhor do que falo. Leio qualquer livro sem dificuldades, mas perco capacidades a falar inglês, sinto-me inibido.

 

Tem a ver com razões emocionais?

Provavelmente. É uma interpretação sua, não sei.

 

Pergunto se se reconhece nelas, se têm algum fundamento para si.

Admito que sim. Está muito ligado o ouvido musical ao ouvido para as línguas, e apesar de gostar muito de ouvir música, tenho muita dificuldade em reproduzir uma canção. Sabia muito de francês, li todos os livros do Albert Camus, por exemplo, com 16 anos. Mas a falar fico a 50 por cento. Nos congressos houve intervenções que fiz com dificuldade. Não tenho espontaneidade na língua inglesa. E também deixei de falar francês. O Jorge, não, tem uma enorme capacidade, inglês, francês, espanhol, italiano.

 

Há uns anos deu uma entrevista em que falava do facto de os seus pais terem ido com o Jorge para os Estados Unidos e de o terem deixado aqui.

Isso foi muito empolado pelos jornais. É literário. Acho que não teve tanta importância como disse. Escrevi isso no A arte da fuga, mas as coisas têm de ser contextualizadas. O livro era sobre uma pessoa que tinha problemas de abandono. Quando lidava com o abandono do Mágico, protagonista dessa história, que é verídica, lidava também com os meus sentimentos de abandono. Quis pôr o meu abandono infantil [no livro] relacionando-o com a situação de abandono [relatada] porque isso é muito importante em terapia. Quando estamos a lidar com um problema que tem alguma coisa a ver connosco, temos de equacionar o nosso problema. Na altura reflecti sobre esse meu abandono – o termo até é exagerado: esse momento em que não estive com os meus pais.

 

Do qual não tem sequer consciência, tinha um ano.

Mas ao longo da vida pensei algumas vezes sobre isso. Sobretudo não percebi porque é que fiquei com a minha avó, porque é que não fui também. Havia a ideia de que era uma criança muito pequena para viajar. Não censuro os meus pais por isso. Depois, sou uma personalidade de alguma forma pública, e isso veio na primeira página do Diário de Notícias, o que me causou imensos embaraços. “Daniel Sampaio, a dor de ter sido abandonado na infância”. Nunca disse nada daquilo. Não foi fácil para o meu irmão e para a minha mãe.

 

Ainda tem dificuldade em entender a opção dos seus pais?

Tenho, porque sou muito familiar, ando muito com os meus filhos, com os meus netos. Não é uma mágoa que tenho, não é uma dor, é uma coisa que não compreendo bem na minha vida. Isso explica porque é que me liguei tanto à minha avó. A minha avó, que não falava nisso, tomou conta de mim. E depois, quando foram outra vez para Inglaterra, quando tinha seis ou sete anos, e estiveram seis meses fora, a minha avó tornou a ficar comigo. Os terapeutas, sobretudo os familiares, como eu, estão sempre a tentar compreender a própria família. Não nos podemos ocupar da família de outro sem compreender muito bem, muito bem a nossa. Fiz muita pesquisa sobre a minha própria família, sobretudo a materna, que é muito interessante. Vem no meu livro A razão dos avós.

 

Sentiu-se na infância especialmente amado pelos seus pais?

Senti-me muito admirado. Achavam que era bom aluno, muito introspectivo, tinham muita expectativa a meu respeito. Os meus pais não eram pessoas que demonstrassem um grande afecto do ponto de vista da proximidade física. Mas estamos a falar dos anos 60, 50.

 

E do que era ser pai e mãe então.

A distância entre as gerações era enorme. Quanto era pequenino, fazíamos os trabalhos de casa, jantávamos antes deles e a empregada é que tomava conta. Não havia essas demonstrações de afecto que adoro nos pais de hoje, de andarem com os filhos pendurados.

 

Mas admiração é diferente de expressão de amor. Isto levanta uma questão interessante: perceber se podia falhar, e se tinha medo de defraudar a expectativa que tinham em si.

Claro que sim. Os meus pais não admitiam fracasso em nenhum campo. Não se podia falhar nos estudos, nas horas, não se podia falhar sequer nos namoros. Tínhamos que ser muito responsáveis com as raparigas.

 

Não as engravidar – é disso que estamos a falar?

Sim, respeitá-las como pessoas, não andar a saltar de umas para as outras. A educação era toda muito séria, exigente. Mas disso estou extremamente grato. Não chego atrasado a lado nenhum, nunca falto ao hospital. Na quarta-feira houve dois médicos que não estavam, e eu, na minha posição no hospital, estaria à vontade para mandar as pessoas embora, mas fui ouvir os doentes. Isto é do meu pai e da minha mãe. Faltar à escola por que se tem dor de cabeça? Tomávamos uma aspirina e íamos às aulas. Nunca nos desculpávamos, nunca dissemos que não podíamos ir porque estávamos cansados. Os nossos pais não diziam para sermos os melhores, diziam para fazermos o melhor possível. E quando se faz o melhor de que se é capaz, às vezes é-se o melhor.

 

Imagino o que foi, nesse quadro, reprovar um ano e estar até às quarto da manhã a discutir política. Era uma forma de os afrontar?

Claro. Era um desafio para eles.

 

Nunca teve medo de se perder e de não estar à altura do que esperavam de si?

Não pensava que me estava a perder. Pensava que tinha que trabalhar politicamente, gozar a vida e ir contra as regras dos meus pais. Está a ver o que era a minha mãe ligar para casa do Ruben de Carvalho para saber se eu estava lá… Chegava a casa e a minha mãe estava a chorar. Mas só se é autónomo quando se desafia a autoridade, senão fica-se um papa-açorda. Se não me tivesse rebelado, teria sido uma fotocópia dos meus pais, e isso não sou. Numas coisas sou melhor, noutras pior, mas sou eu.

 

E também foi importante perceber que eles estavam lá, nomeadamente a sua mãe, apesar do desafio.

Sim, nunca desistiram. Depois arranjaram uma explicação interessante para a minha reprovação: que não estaria muito bem psicologicamente [riso]. Não suportavam a ideia de que tinha sido uma opção não estudar.

 

Havia a ideia de que era especialmente inteligente e, no género calado, mais inteligente do que o seu irmão? Ou essas coisas nunca se punham?

Nunca ouvi falar nisso. Os meus pais não fomentavam a competição entre nós. Achavam que éramos diferentes e que cada um devia seguir o seu caminho. A única coisa que o meu pai, já eu médico, queria que fizesse, era a carreira universitária. Acabei por me doutorar depois da morte dele.

 

O que é que representou para si fazer o doutoramento que o seu pai não fez? Doutorou-se em 1986.

A carreira universitária do meu pai foi controversa. Foi uma coisa que ele não completou e que gostei de ter completado.

 

Fazer o doutoramento era também um tributo emocional que prestava ao seu pai?

Não foi o principal motivo. Os meus mestres queriam muito que me doutorasse. Mas o facto de o meu pai não ter sido reconhecido pela faculdade de medicina e só mais tarde ter sido reconhecido por outra escola, teve alguma importância.

 

A sua mãe assistiu ao seu doutoramento. O que é que representou para ela?

A minha mãe emocionava-se muito nessas alturas. Usava a expressão “encharrecar” um lenço. (Todos os Bensaude carregam nos “r”.) Ela disse: “No teu doutoramento encharrequei dois lenços”. O choro fácil do Jorge vem do lado da minha mãe. Aí não somos nada parecidos, raramente choro. A minha mãe fez uma festa muitíssimo bonita. Quis ser ela a pagar um jantar em casa dela.

 

O Jorge disse que não se lembrava de ver a mãe chorar…

Por isso é que é interessante ouvir os dois irmãos. A minha mãe era muito determinada, forte. Chorar não a impedia de fazer as coisas. Era muito mais forte na persecução dos objectivos do que o meu pai. Ele tinha um lado um bocadinho depressivo e às vezes dizia que não era capaz. A minha mãe, como sabia inglês, foi fundamental nos Estados Unidos, em 1948, a traduzir os livros e a ajudá-lo a preparar-se para falar inglês.

E depois houve outros episódios marcantes. Em 1956-57 fez o Plano Nacional de Vacinação, que ainda hoje existe, e que lançou em Portugal a vacina contra a paralisia infantil, a poliomielite. Durante um período, havia pessoas a transmitir a doença e ao mesmo tempo a ser vacinadas – é sempre assim. A minha mãe ouvia na rua: “O seu marido está a espalhar a doença, está a fazer um grande erro”. A minha mãe aguentava estoicamente e depois dizia ao meu pai: “Não desistes”, e ele: “Mas estarei no caminho certo?”. Ele tinha uma coisa muito interessante (não sei se o Jorge lhe falou): era um caderno com o título Dossier de Lutas e Incompreensões.

 

Que é feito desse dossier?

Não existe, perdeu-se. Tenho muita pena.

 

As famílias repetem-se, reproduzem modelos, comportamentos?

Há uma repetição. Há triangulações que se vão repetindo nas famílias. Por exemplo, a mulher emancipada, o homem autoritário, o depressivo na família. Há documentos que provam isso.

 

É depressivo?

Não. Tenho um enorme entusiasmo pela vida e uma enorme crença na gente nova. A minha mulher costuma dizer a meu respeito que fica cansada só de me ver! Faço muita coisa. Às oito da manhã tenho aulas, depois faço consultas. Depois estou bastante tempo com os netos. Depois escrevo, leio. Segunda, terça e quarta, tenho actividades desde as oito da manhã até às nove da noite, com meia hora de intervalo para almoçar. Quinta à tarde tenho livre e sexta-feira é para os netos.

 

O que é que na família que construiu existe da sua família de origem?

Muita coisa. A minha família tem uma coisa que não tivemos, e devo-o integralmente à minha mulher e à família dela: o afecto exuberante. Os Sampaio admiram-se, gostam-se, mas fazem cerimónia. Da família Sampaio tenho o “antes quebrar que torcer”.

 

O seu pai era um homem bonito.

Ele era mais bonito do que nós. Vestia bem e era muito elegante. Sempre com grande poupança. Comprava bons fatos, mas poucos. Essas coisas não eram muito importantes, não se valorizava o corpo como agora. O corpo bonito era o dos actores e actrizes de cinema, não era o do cidadão comum.

 

A afirmação era pela competência e pelo racional.

Pela cabeça. O importante eram os valores e a maneira de o meu pai falar. A minha mãe, não sendo bonita, tinha uma grande capacidade de sedução pela palavra, pela graça, pelas histórias que contava. Era uma senhora que encantava num serão; falava sobre política, música, literatura. Os meus pais encantavam pela maneira como estavam, mas objectivamente o meu pai era bonito.

 

Pensa amiúde nos seus pais?

Acho a família a coisa mais importante que existe. Nos anos 60, não diríamos que os nossos heróis eram os nossos pais; eram o Che Guevara, o John Lennon, o James Dean. Os adolescentes agora dizem que as figuras fundamentais são o pai e a mãe, até quando estão contra os pais. Trabalho com famílias, não é possível trabalhar com famílias sem estar em contacto com a nossa família.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010

 

O Delfim

16.12.21

«P’ra cabra e p’ra mulher, rédea curta e porrada na garupa». Para Domingos, o mesmo. Ainda que para este, no receituário que prescreve a masculinidade, «vinho por medida» venha também à cabeça. Os mandamentos são elementares, garantia Palma Bravo, avançando pela sala. Foi a partir deles que fez do operário o animal de precisão que a aldeia aprendeu a reconhecer.

O Domingos. Perscrutava o Jaguar, abrindo-lhe a boca, inspeccionando a armação, apurando a técnica, como o patrão Palma Bravo fazia às putas de Lisboa, «Abre a boca, filha!». Nos entrementes, a infanta Mercês mordiscava com os dentes o colar de ouro que trazia ao pescoço. Domingos, passado um ano sobre a tragédia, era evocado na aldeia como o Cão Maneta, envolto no mistério das mortes, fantasma que vagueava sem dar sossego à terra.

A terra, a aldeia, era a Casa da Lagoa. José Cardoso Pires pensou numa Gafeira que distava hora e meia de Lisboa, em velocidade acelerada no Jaguar do Engenheiro. A casa, a lagoa, são o que interessa para urdir o plano que caracteriza um país putrefacto na decadência do Estado Novo. Ao fundo, no televisor da sala. Fernando Lopes, o realizador, quis o televisor sem som. Maria das Mercês faz paciências, suspirando a ar acre da sua vida boa. Os portugueses são atirados para a guerra. Carne para canhão cujos estilhaços rebentam no verde e no calor de África. No livro, a contemplação sorumbática das paciências não existe. Mercês faz tricot, coze bolos, odeia os cães.

Aprisionada no vale, na lagoa, na casa, Mercês existe para Palma Bravo. Ele mantém a distância respeitosa anotada para o caçador (alter-ego de Cardoso Pires, como agora o é de Fernando Lopes): «Tu sabes a razão porque nenhum homem deve fornicar a mulher legítima? Porque a mulher legítima é o parente mais próximo que o homem tem, e entre parentes próximos as ligações estão excluídas». E há o criado, Domingos, mestiço e maneta, o operário destroçado que Palma Bravo chamou a si, para amar como se ama um filho que se não tem, para levar às putas de Lisboa para que seja «escovado, bem escovadinho».

E no fim não há nada. Morreu o criado, morreu a senhora, o delfim crê-se perdido por Lisboa, já nada daquilo existe. Positivamente, já nada daquilo existe. O caçador regressa à aldeia para a corrida aos patos, passado um ano. A lagoa permanece como centro do mundo, força epicêntrica daquele mundo.

Sábado, pelo fim da manhã. Alexandra Lencastre recebe o sol da varanda, olhando Milton Lopes que em baixo se queixa do Jaguar, «Deu-lhe uma cãibra». O carro não queria andar. Ele é o prodigioso achado que incarna o lacaio concebido por Cardoso Pires, mestiço e maneta, «Cão de três patas», como diziam na aldeia. Ela tem o recorte suave das meninas educadas em colégios, que simulam rubor quando ouvem anedotas porcas. Fernando Lopes, num almoço em Lisboa, a semanas da rodagem, traçava com ela o perfil de Mercês, hesitante quanto à cor do cabelo. Do louro fosforecente que Alexandra usava nesse dia, passou-se ao tom de mel que conferia recato à esposa Palma Bravo. A roupa foi mandada fazer por Zé Branco, a directora de guarda roupa, decalcada das revistas de moda que a personagem folheia em cena. Mercês tinha gosto refinado, apreciava os modelos Jean Patou. As crónicas de solidão seriam simuladas nas cartas alinhadas em paciências, sem o tricot descrito no livro (faria dela uma dona de casa menos sofisticada?). Esta Mercês, refém do marido na Casa da Lagoa, alinha cartas, diz com afectação «Você hoje está insuportável», e queixa-se à amiga da solidão a que está votada, «Estou aqui fechada a sete chaves. Com os cães e os criados». Uma Ofélia de trazer por casa. A ouvi-la, ao telefone, Micucha, a amiga a quem o marido chama Poetisa do Caralho.

Sábado, manhã. À casa chega-se depois de passar uma alameda de cedros. Aos pés da casa, há um terreiro inundando pelo sol que faz resplandecer as paredes caiadas de branco. É aqui, também, que fica depositado o Jaguar cor de sangue a quem dá a cãibra. O Jaguar é Palma Bravo, «Tal carro, tal dono». Rogério Samora empresta-lhe a voz de trovão que anuncia a imponência, rejubila ante o Lopes, o Nando, como às vezes lhe chama, que lhe ofereceu a existência do Delfim com a duração de oito semanas. «Este aqui», diz-me ele, abraçado ao Lopes, no primeiro dia, «É um Poeta de Imagens». O actor vem do filme do Botelho, vai para o filme do Grilo, e depois para o de Margarida Cardoso, está no filme do Lopes. Em alta, positivamente está em alta.

Este engenheiro de que se fala, saído da pena do Zé Cardoso, em letra miúda e olhando para o mar?, escreveria ele assim em 66? Este engenheiro gosta de dizer Positivamente. E Porrinha. «Não é delicioso, o Porrinha?», diz um deles recobrando o riso no fim do almoço, «Onde foste buscar o Porrinha?», indaga o Lopes, sem a certeza de que conste do guião escrito pelo Vasco Pulido Valente. Foi buscar ao livro, ao sacana do livro que não sai da cabeça do gajo, do Samora. «Nando, posso fazer assim?».

Maria das Mercês observa, risonha, o embaraço de Domingos às voltas com o Jaguar. O carro é uma peça preciosa de 68, justamente, ano de edição do livro: um XJ 6, alugado a um coleccionador. Minutos antes, Alexandra subira as escadas, repetindo de si para si, em surdina: «Tomás, meu querido, porque é que não diz antes que o rapaz tem medo?, tem algum mal ter medo?». No terraço, repetirá a frase na mesmíssima entoação, olhando de soslaio para o marido, que se encontra à direita, e depois para o Caçador, à esquerda, à procura de anuência.

Rui Morrison veste o caçador, numa plácida figura que usa bombazina verde e sorve em goles o whisky que Palma Bravo lhe põe no copo. No dia seguinte, domingo, Fernando Lopes apresentá-lo-ia. «É ele que faz de mim na história». Por ora estão os três no terraço, cumprindo escrupulosamente posições fixadas pelos técnicos. Fernando, Eduardo Serra e restante equipa seguem a cena em baixo, no terreiro, de olhos cravados no monitor.  

A cena que ocupa a manhã de sábado desenrola-se na parte fronteiriça da casa, à qual se chega atravessando a vila de Ourém, percorrendo a alameda de cedros. A casa chama-se Quinta da Alcaidaria-Mor e nela permanecem as fotos da família proprietária. Fernando Lopes utiliza-as, mais tarde, numa alusão a «Rebbeca» de Hitchcock. Mercês espiolhada pelas paredes e retratos, com uma empregada Aninhas (Isabel Ruth) que chama Menino a Palma Bravo. Esta casa foi a casa onde estas pessoas viveram, na sua pele e na de outras, quatro semanas de rodagem, esquartejando a casa em mil e um décors. A adega para a ceia de Natal que Mercês se lembra de partilhar com os empregados, «Essa era a cena buñuelinana!, com uma luz do Eduardo Serra! Olé, como diz o Palma Bravo, como diz o Samora. A capela para a confissão de Mercês ao Padre Jovem, filmada no domingo de manhã, com uma esplendorosa Alexandra. «Aquele plano, quando ela se levanta..., daqueles que acontecem uma vez!», comentava o Lopes, comovido Lopes «e uma réplica perfeita do Miguel Guilherme». O terreiro onde Palma Bravo espanca Domingos, noite escura, «Deixares-te abandalhar por um safardanas daqueles!».

Alguém insultara Palma Bravo na pessoa do Domingos. «Defende-te, capado de um coirão, ou dou cabo de ti». A cena é ensaiada exaustivamente. O realizador pede aos actores um estranho bailado de corpos que se amam (Domingos é o filho que o Delfim não tem) e que deambulam na violência que o amor absurdo instiga. Os sentimentos são de raiva, e de piedade, e de desprezo, di-lo o Lopes. Os actores escutam-lhe as indicações, de respiração alterada, com o barulho dos grilos ao fundo, e os pirilampos luminescendo por entre a vegetação.

Alexandra espreita as minhas notas. Debruça-se sobre o papel e escreve: «Uma calma nunca vista. Quase paz no plateau».

O plateau do Fernando Lopes é o que nunca se viu em plateaux do mundo inteiro, palavra de Eduardo Serra, o mui reputado director de fotografia que era suposto iluminar Jodie Foster por essa altura e que, por razões várias, ficou com as semanas de Maio e Junho disponíveis. «Então», disse o produtor Paulo Branco, disse-me o Fernando, «Então, prepare-se tudo para filmar nas semanas de Maio e Junho». Eduardo (que satisfaz a minha curiosidade pelintra pelas estrelas de Hollywood) toma notas cena a cena, alternando palavras em português, em francês, em inglês. Ao lado de Fernando Lopes, de corpo distendido sobre a cadeira, observa o monitor. O realizador está curvado sobre si, fuma repetidos Silk Cut. «Foi bem para ti?». A originalidade de Lopes consiste neste vivo interesse pela opinião dos que com ele trabalham, «O que é que te pareceu?», na anulação de preconceitos hierárquicos que minam equipas e relações. «Este filme tem uma boa onda...», ouvia-se repetidamente. Está calor. Os homens, de tronco nu, transportam transferem material de uma cena para outra. Paulo Guilherme, o assistente de realização transformado em formiga infatigável, haveria de dizer dali a não muito: «Atenção vamos preparar para filmar».  Boa onda mesmo...

Quando o romance de Cardoso Pires foi publicado corria o ano de 1968. Fernando Lopes lia-o no mesmo passo em que convertia «Uma abelha na chuva», escrito pelo seu amigo Carlos de Oliveira, numa ode de amor à sua mulher. «Se não fosse o amor pela Maria João [Seixas]», contou-me ele em tempos, «não poderia fazer o filme da mesma maneira». A Maria João que nunca vai aos plateaux e que apareceu nesse domingo para a sardinhada de despedida da Quinta. A par da impressão que o livro lhe causou, lembra-se de ter anotado as dificuldades que o enredo do Zé Cardoso poria a uma eventual adaptação fílmica. Não foi, por isso, o primeiro objecto que lhe ocorreu quando, volvidos os anos do Segundo Canal, Fernando Lopes inventariou os projectos escolhidos para «tomar outra vez a mão do cinema». O filme desses anos, 94/95, é «O fio do horizonte», que parte do livro homónimo do (também) amigo Tabucchi. «O Delfim» cresceu, portanto, em anos de natureza maturada, entre documentários que entretinham os dias e exercitavam o olhar. A primeira abordagem ao livro, escrita a meias com Fátima Ribeiro, e inspirada no poema de Auden «Detective history», surtiu «demasiado reverencial». Reverencial ao talento do Zé, ao monumento em que o livro se tornara. A segunda, que resulta no guião rodado, foi escrita por Vasco Pulido Valente, que retrabalha, na solidão da escrita, as ideias trocadas com o Fernando, ao almoço, no Gambrinus. Maria João Seixas contribuiu com algumas sugestões. Os encontros sucediam-se à cadência de dois, três por semana. Vasco pedira à produção dez exemplares d’ «O Delfim», que delapida um a um. «A rasgar e a anotar», explicava o realizador. Acaba por pedir mais cinco. Em dois meses o guião fica pronto.

E pronto. Cá está o Fernando. («Cá estou» inaugura o livro). O Fernando a filmar a história de um homem a quem chamavam Delfim. A terra escolhida para as filmagens é ainda nas bordas da sua Várzea, onde vive a mãe, que a azáfama do filme não permite visitar. «Mas fazer um filme é ir para uma outra família, não é?». É sábado, pela tarde. A história do seu filme fica estruturada nisto que acabo de dizer, e que me foi dito assim, sob a árvore de copa frondosa que garante a sombra da hora do almoço. Depois acode a uma qualquer dúvida e deixo de saber dele. 

 

Publicado originalmente no DNA, suplemento do Diário de Notícias, em 2001.

 

   

 

Daciano da Costa

13.12.21

Em certo momento da sua história, desistiu do sonho de ser pintor para se dedicar ao humilde mister de «desenhar tarecos, desenhar tralha». Os seus tarecos e a sua tralha encontram-se, por exemplo, na Reitoria e na Aula Magna da Universidade de Lisboa, na Biblioteca Nacional, no Casino do Estoril, no Coliseu dos Recreios, na Fundação Calouste Gulbenkian (que continua a ser a menina dos seus olhos), no Centro Cultural de Belém.

A partir dos anos 50, o percurso de Daciano da Costa confunde-se com os caminhos do design nacional. Os seus projectos, na área da arquitectura de interiores e na área do design industrial, são uma referência.

Mas no princípio, muito no princípio, ele queria ser pintor. O respeito que tem pelos pintores leva-o a sentir fascínio pela Espanha por causa do seu Velasquez... Depois sucumbiu à circunstância e ao romantismo de estar mais próximo da comunidade através do objecto produzido industrialmente. As pinturas e as esculturas seriam atiradas para o canto de um museu. E fez-se designer.

Para os lados do miradouro de Santa Catarina, onde no seu tempo se namorava, e talvez ainda se namore, fica o atelier. Numa das paredes está um poster com dezenas de cadeiras. Reconheço, no arranque do século, as cadeiras desenhadas pelos elementos da Secessão, o movimento artístico que animou Viena naqueles primeiros anos. («Nessa primeiras décadas ficou quase tudo feito, desde aí temos andado muito poupadinhos...») Começámos por falar da paixão comum pela capital austríaca. Ao fim, ele mostrava-me um croqui de Salzburgo. E também de Ballester e de zonas de transição. A propósito de Viena dizia que se dançava a valsa e se ouvia ao longe o ronco dos canhões. Esse fio de coisa indefinível apaixona-o.    

Numa outra parede, num outro compartimento, está um poster de Gauguin. Mas é Monet, pode ser Monet, entre tantos outros, a revelar-lhe a transcendência. É aí que conversamos, durante toda a manhã.

Nasceu em Lisboa em 1930, é casado com uma arquitecta e tem cinco filhas. Quatro são formadas em arquitectura. Trabalham consigo? «Só uma. Não haveria trabalho para todas!...», ironiza. É um homem à antiga, com um humor agudo que lhe fica bem e uma sensibilidade tocante.

 

... Esses períodos de incerteza, esses períodos de mudança, são enriquecedores. Fazem vítimas, naturalmente, mas são muito enriquecedores. Alguém que seja intérprete dessas épocas, das suas épocas, alguém que tenha de produzir alguma coisa, quer na literatura, pintura, o que for, mesmo neste mister mais modesto que é desenhar tralha, desenhar tarecos, desenhar prédios, não pode deixar de estar atento a essa história, aos dramas.

 

Deixe-me ir a um período de indefinição da sua vida. O momento em que desiste do sonho de ser pintor e começa a desenhar tarecos, como diz. Não é claro porque é que desistiu de pintar quando lhe vaticinavam uma grande carreira. E era a sua paixão.

Devo dizer à cabeça o seguinte: não se perdeu um pintor. Não se tratou de fazer uma análise muito racional da situação, embora haja aí uma componente que tem importância: a consciência de que tem de se trabalhar. Há que exercer a cidadania.

 

E no momento...

Não foi «Ora agora vamos deixar as pinturas e exercer a cidadania à custa do projecto». Na época, talvez o projecto oferecesse melhores perspectivas de realização, no sentido de fazer o tal design para a cidadania. Em todo o caso, foram um conjunto de opções. Algumas pessoas interpretaram isso da pior maneira. Já me disseram que eu era um rábula tão grande que tendo compreendido que não tinha talento como pintor, passei-me para uma área onde havia pouca gente.

 

Tinham razão? Acabou de dizer que não se perdeu um grande pintor.

Ouça cá: não cheguei a ser. Não se é pintor quando se pintou uns tantos quadros e estamos conversados. Não se é pintor por se ser um produtor de artefactos determinados. Como não se é arquitecto ou designer porque se é um produtor de objectos. A coisa fia mais fino.

 

Queria saber se tinha a noção de qual era o seu talento.

Já lá vamos. Quer conversar durante a bica? Com essa pergunta começa uma segunda parte desta conversa. Na primeira verificámos que gostávamos os dois de cidades, gostávamos os dois de Viena. E gostávamos dessas neblinas, quer neblinas autênticas, quer nebulosidades nos comportamentos. E se falarmos de cidades também temos de falar de outra coisa: estamos todos a regressar ao sentido dos pequenos espaços.

 

Onde radica esse desejo de regresso às raízes?

Voltar às pequenas nações pode ser uma maneira de criar defesas para não sermos completamente plastificados e cilindrados pela mundialização - à qual não podemos fugir e da qual devemos tirar partido. Agora, impressiona-me que os alentejanos e os transmontanos tenham sido revelados e que lhes tenha sido revelado o mundo pela televisão. Quando ainda eram analfabetos, já estavam em contacto com a televisão. Como estamos a falar de épocas incertas, vem a propósito dizer que não é de um regionalismo, dito no sentido eleiçoeiro, do que se está a falar. Pessoalmente tenho atracção pelas pessoas que falam com sotaque. Mais do que isso: penso que aquilo que mais gostaria que acontecesse com o meu design, é que fosse um sotaque com design.

 

Como é que seria o seu sotaque?

Qualquer coisa que tivesse que ver com uma atitude culturalista relativamente ao design, e que o diferenciasse por essa razão. Poderia não ser melhor, o design, mas que resultasse diferenciado. Um design com sotaque, um design chão, tem que ver com as raízes mais sãs. Que, sem o procurar deliberadamente, fosse significativo, não tanto da época em que se está, mas o resultado do conhecimento da história desses objectos. Que considerasse que qualquer objecto não tem nunca a forma definitiva, nem está nunca totalmente identificado, porque é um momento de uma evolução. E que através desse sotaque estabelecesse uma relação afectiva com as pessoas que usam e fruem esse objecto. Esta do design com sotaque..., não está mal pensada!

 

O sotaque resulta do momento, da fluidez da coisa inacabada, mas recebe uma herança que é sua, uma herança personalizada.

As coisas ficam, as coisas vão ficando. Há objectos que vão sobreviver justamente por terem sotaque, por serem um momento de uma forma em andamento. E ainda que não influenciem directamente os objectos que se lhes seguem, como há uma relação familiar entre os primeiros objectos e os últimos, ao fim e ao cabo, a herança é fazer parte de uma cadeia. Uma cadeia de objectos de uso corrente, objectos triviais. Nem sequer estou a pensar no design de sedução, que acho irritante. Objectos para uso. Não fui muito explícito, pois não?

 

Foi. Eu é que não fui suficientemente explícita na pergunta. Queria saber o que é que os objectos herdam de si, da sua sensibilidade. Li-o numa descrição de um objecto, minuciosa, sensorial. Dizia: «Este tecido é suave como a pele de uma senhora, e agora a madeira, menos quente, e de repente o frio do metal».

Todos os objectos são expressivos também dos materiais que se usam e do modo como são trabalhados. Se se destinam a determinado tipo de uso e fruição, a dimensão sensorial tem também a maior importância. Não há apenas dimensão física, sensorial, medidas, tanto por tanto. Os objectos podem ser medidos, como alguém já disse, com uma espécie de fita métrica elástica. As dimensões alteram-se com os dias, com as pessoas, com os estados de espírito. Não há nenhum animismo nisto, são as pessoas que lhes emprestam o que revelam.

 

Porque os usam de determinada maneira e se apropriam deles?

É. E é por isso que não há nenhum projecto que esteja acabado. Os objectos são sempre acabados pelas pessoas que os usam e que fazem a sua fruição de uma determinada maneira. Poderá ser tão criativo o uso como é criativo todo o processo de concepção do objecto. Por isso é que não há razão para falar em design de autor. O objecto só se realiza quando outras pessoas o usam também elas criativamente.

 

Sem essa dimensão utilitária, não faz sentido?

A primeira coisa que se espera é que o objecto cumpra honradamente, que garanta uma função utilitária. Senão, estamos em presença do disparate. Não sou a favor de um design radical, utopista. Sou a favor da utopia. Do design utópico realizável, como costumo dizer. Quanto mais discreto puder ser o objecto e mais acompanhe as funções quotidianas, e até o convívio com outros objectos num determinado espaço, melhor. O facto é que tem de cumprir uma missão qualquer, que não é apenas uma função de uso restrita, marreta. Nenhum objecto tem de ser prosaico. Não há nenhum objecto unicamente funcional. Essa teoria da forma e da função é uma verdadeira blasfémia! É usar em vão o nome do Senhor! Só função? Nem pensar nisso.

 

A dimensão utilitária pode ter prioridade sobre as outras?

Tem épocas, tem dias, tem objectos, tem pessoas.

 

Tem ali um postal de uma exposição do Dieter Rams, designer alemão conhecido sobretudo pela sua ligação à Braun. A durabilidade, a depuração minimalista e o carácter prático numa Alemanha em reconstrução, eram as principais premissas subjacentes ao seu design. Passados 50 anos reconhecemos aqueles objectos, e percebemos que muito do que temos hoje é uma derivação.

Sem dúvida. Por isso esses objectos são formas ainda em movimento. Que vão continuar. Há que introduzir aqui uma coisa que tem certa importância: é que há um design para designers e uma arquitectura para arquitectos.

 

Ou seja?

Há um tipo de objectos e de edifícios que os arquitectos fazem para arquitectos e os designers para designers. Olhando por cima da cabeça dos mortais. É um design e uma arquitectura elitista. Não é o caso do Dieter Rams. Mas não quero perder a oportunidade de fazer esta espécie de denúncia. O Dieter Rams: se lhes fazia alguma observação, aos objectos, é que há certa frieza naquilo tudo. A Alemanha estava a sair de um período em que tinha contrariado a história, o conceito e as culturas locais. Estaria ele a interpretar isso? Será aquele design despojado uma maneira de não haver nenhum compromisso? Será uma linguagem asséptica porque não convém fazer referências nem à história nem ao contexto? Sei lá.

 

Voltemos à ideia de cidadania. Dieter Rams, pesando ou não a questão da cidadania, fez objectos de que as pessoas precisavam na vida de todos os dias. Foi o seu modo de intervenção numa Alemanha a reerguer-se. Há pouco dizia-me que deixou a pintura porque o design lhe permitia uma intervenção cívica mais aguda.

Quer voltar a esse tema? Se me desviei, não foi para me furtar. A questão do design de cidadania? Não há dúvida que tudo é o resultado de uma vocação, das circunstâncias e da fortuna. Nada há nada de esotério nisto. A vocação, o que é?, é um conjunto de aptidões que uma pessoa naturalmente revela, que vêm no ADN, não vem uma fada debruçar-se sobre nós a dizer «Tu serás uma estrela na Terra, serás estupendaço!». Lembro-me que tinha quatro anos um tio disse-me «Ah, tens muito jeito para o desenho, tens de ir para as Belas Artes». A vocação tanto podia ser para uma coisa como para outra. O que é que estava mais à mão? O rectângulo, para fazer bonecos, pinturas, etc.

 

Em todo o caso o curso que foi tirar foi o de pintura.

Havia curso de pintura mas não havia curso de design; arquitectura não me deu jeito. Portanto, aí vai ele de escantilhão para a pintura. Não sou por um elementar determinismo, mas as circunstâncias que nos rodeiam condicionam a nossa actividade. O que é que há para fazer naquele momento?, o que é que é mais importante? E já se está em idade de tomar consciência de que se tem um lugar. Antes de se ser pintor ou escultor, é-se cidadão. Portanto, um conjunto de circunstâncias permitiu um maior gosto, até com algum romantismo e ingenuidade ... Porque também se era muito inculto! Estamos a falar de um tipo que era um calhau!, uma pedra por polir. Tudo era ainda primitivo. Era a criação do mundo.

 

E a pintura?

Nunca mais fiz nenhuma pintura. Nunca. Seria demasiado tentador e poderia dispersar-me.

 

Outra coisa é saber se nunca teve vontade de voltar a pintar.

Hum, não... O que faz um pintor não é colocar cores num único plano. Os interiores ou objectos que tenho desenhado acusam esse ADN da pintura. Não me envergonho nada dele. Tenho a maior admiração pelos pintores. O facto é que era necessário tomar uma opção. Houve dois movimentos a que assisti, já um pouco lateralmente: o Surrealismo e o Neo-Realismo. Porque é me aproximei mais do Neo-Realismo, até mesmo nas pequenas pinturas que fiz? Porque era uma coisa mais generosa, mais aparente de que se estava de um determinado lado. De que lado é que nós estamos? De que lado é que um sujeito se põe? Sem contrariar a minha vocação, pus-me do lado que romanticamente considerava... Com alguns slogans da época, «Democratização da arte», etc, etc. Coisas que com toda a inocência e toda a incultura se paparam. E também com certa demagogia dos que sabiam muito bem o que estava a contecer.

 

Quem é que aqui sabia muito bem? Portugal estava fechado ao mundo.

Havia uma ou outra pessoa com quem tinha contacto permanente, como o meu mestre Frederico George, companheiros como o Sena da Silva, o António Garcia, e outros assim, que já estavam com a utopia do design. Pela mesma razão pela qual tenho tendência para as épocas de incerteza, talvez tenha um certo gosto em ser um figurante ou actor desses períodos incertos. Talvez seja isso que me estimula. Contrariar as circunstâncias, não ser exactamente aquilo que nos rodeia, que nos força a ser. Isto é se calhar de suprema presunção, devo dizer, mas estou a pôr as coisas tal qual as sinto... Estas entrevistas são uma espécie de confissões, são as modernas confissões laicas! [risos] E há, finalmente, a fortuna, a sorte ou o azar... A vocação e as circunstâncias ainda se podem controlar, racionalizar, agora o acaso que nos cai em cima, cara amiga, só há uma maneira: tentar cair bem. Uma onda inesperada que nos cai em cima. Como é que um sujeito se safa? O acaso empurra-nos para paragens inesperadas, tem o fascínio de ser incontrolável.

 

Quando foi para o atelier de Frederico George...

Foi um acaso.

 

Um acaso determinante na sua vida.

Eu era aluno da Escola de Artes Decorativas António Arroio e o Frederico George escolheu-me. Precisava de uma força bruta qualquer para lhe ampliar os desenhos. O Frederico acompanhou-me muito, durante 12 anos foi meu tutor. Mas houve outros encontros de acaso em momentos de viragem da minha vida.

 

Por exemplo?

Uma coisa perfeitamente anedótica... Quando acabei o curso de pintura na escola de Belas Artes fui convidado para assistente e a Pide pôs-me na rua. Tinha acabado de casar, já tinha uma filha, a Teresa estava à espera de uma segunda filha. Perder um emprego de um momento para o outro e praticar uma profissão que não existia, não era cómodo, c’os diabos! E então, ali na esquina da Livraria Sá da Costa, encontrei uma pessoa amiga, «Você como é que está?». Ele vem da sua vida, rubicundo e bem disposto, e sai-lhe um tipo a lamber as feridas... Deu-me esta frase: «Quem aos vinte não é, aos trinta não foi, e aos quarenta não tem, aos cinquenta não será ninguém». Tive a sensação de que era um percurso de uma vida que tinha de ser feito. É uma historieta, reconheço, com algum pitoresco e sem valor literário, mas que dá bem como é que pode mudar-se o estado de espírito de uma pessoa com uma palmada nas costas e uma frase feita.

 

Quando foi convidado para dar aulas e a Pide o pôs na rua, estava ainda no atelier no Frederico George? Dar aulas seria uma segundo emprego?

Já tinha saído, em 59, e isto passou-se em 61 ou 62. Não tinha emprego.

 

Logo a seguir, começa a trabalhar com o industrial Fernando Carvalho Seixas.

Outro encontro, também de acaso. Conhecia-me do atelier do Frederico George e contratou-me para desenhar móveis para a fábrica dele.

 

Conte-me a história da cadeira «Prestígio», de que gosta particularmente, e que remonta a essa primeira fase da relação com o industrial.

Fui trabalhar para uma fábrica extraordinária onde trabalhavam 800 pessoas. O tal design cívico não é senão isto: é tentar manter o trabalho, com todo o romantismo que isso possa ter. A fábrica estava a reconverter-se; fazia-se sobretudo mobiliário hospitalar, com tubo virado. A certa altura, esse mercado entrou em crise; havia uma secção da fábrica, que tinha uma centena de operários, que começou a ficar sem trabalho. O administrador desafiou-me a desenhar um objecto qualquer para aqueles tipos continuarem a trabalhar. Desenhei a tal cadeira «Prestígio», em varão virado. Sob o ponto de vista formal, ou estético, não é uma coisa notável, nem pouco mais ou menos: uma coisa para sentar o rabo, uma coisa para encostar, com alguma graça, estruturazinha metálica e estamos conversados. O que é facto é que não só se conservou o pessoal, como a secção foi ampliada e se comprou mais uma máquina para virar tubo! Isto é o que considero design para a cidadania. Esse é que é o design industrial. Design para um objecto de sedução?, então, francamente, podia ter continuado a pintar.

 

Esse era o seu modo de fazer política, de intervir?

Pois, então o que é que havia de ser?

 

Fez política como convencionalmente se faz política?

Trabalhava muito, tinha o tempo muito ocupado, ainda colei uns papéis nas paredes, mas pouco. Ouça, há uma peça do Camus que vi em Paris e que veio ao encontro dos meus complexos interiores pela minha pouca participação. A peça do Camus tem a seguinte situação: um anarquista tinha de colocar uma bomba no carro em que vinha o tio do imperador. Não tem coragem para o fazer porque no carro seguia uma criança. É julgado severamente pelos outros e há um momento em que vem à boca de cena dizer o seguinte: «Mas não haverá na revolução lugar para os cobardes?». Eu acho que há.

 

Importa-se de definir coragem?

Mas há muitas formas de coragem! Há a coragem da «Mãe Coragem», há a coragem do pegador de touros, há a coragem inútil de um sujeito que pode cair de uma falésia porque vai apanhar uma flor para a namorada. Como é que se pode fazer quando não se tem essa coragem para enfrentar a dor, enfrentar os prejuízos, depois de se ter ficado escaldado como se ficou por ficar sem emprego? É fazer bem o seu trabalho todos os dias, e fazê-lo em condições de ultrapassar a função de qualquer trabalho, que é levar um salário para casa.

 

Isso é uma espécie de redenção?

Provavelmente será. Mas não penso que deva ser dada muita importância ao facto. Todas as pessoas, quando fazem bem o seu trabalho, estão a fazer um trabalho cívico.

 

Esta questão da cobardia e da coragem apareceu em todas as entrevistas suas que li. Pareceu-me que era...

Um trauma? Talvez. Não se pertence a uma geração como a minha em que foram sacrificadas tantas pessoas, de camponeses a operários, de marinheiros a artistas, sem se sentir solidariedade por quem teve essa coragem, por quem foi sacrificado. A minha geração está marcada por isso. E quem não fala nisso, se calhar é porque não gosta, não se sente à vontade.

 

Essa é outra coisa, o à vontade com que diz «Quem tinha coragem, ia preso». Deixando subentender que não foi suficientemente corajoso.

De facto. Se calhar, também não surgiu a oportunidade. Não quero passar pelo chamado acagaçado... Eu não penso ser um acagaçado. Há muitas formas corajosas de estar na vida, vencendo-a todos os dias, ultrapassando as dificuldades que se levantam todos os dias. Há uma coragem constante, quotidiana, de uma vida inteira, sem se desviar daquilo que se considera ser os princípios sãos. Falei nisto porque não quis ser confundido, por pertencer à geração que pertenço, com os sujeitos que falam jactanciosamente disto, com os trapalhões que tiveram, coitados, de ir para a Suiça com os dinheiros do papá. O que é ter tido coragem? Houve os que foram para a guerra, e morreram, alguns. Outros exilaram-se, passando mal para não irem para a guerra. E houve outros, meninos muito corajosos, que foram fazer cursos para a Suiça e agora escrevem livros dizendo mal do 25 de Abril. Isso irrita-me.

 

«Vontade Indómita» é um filme extraordinário de King Vidor inspirado na figura do arquitecto Frank Lloyd Wright e interpretado pelo Gary Cooper. O personagem manifesta total intransigência quando sugerem alterações aos seus projectos e por isso vê-os sucessivamente recusados. Chega à situação limite de trabalhar numa pedreira, o que prefere, a ver o seu trabalho desvirtuado.

Isso é a utopia dos artistas. Tenho a maior estima e respeito pelo Frank Lloyd Wright. Bem sei que estamos a falar da vida das pessoas e que é uma jornalista que se ocupa de pôr à vista a vida das pessoas...

 

Posto nesses termos, faz de mim uma coscuvilheira!

Não é nesse sentido!, é no sentido de pôr ao dispôr das pessoas um retrato mais íntimo. Mas é preciso considerar o seguinte: há exemplos de vidas inteiras que ficaram na obscuridade. Os ataques de irritação que se podem ter quando se conhece a vida do Wagner, que compôs a mais sublime das músicas e que era um tratante, um safado da pior espécie... Adianta revelá-la? E o Mahler?, estava a fazer aquela espantosa música e tratava mal a mulher!, viviam com dificuldades e o cavalheiro só usava sapatos feitos de encomenda. E o Debussy, quando estava a compôr e o criado o interrompia?, dava-lhe bengaladas. Se estas entrevistas servem para revelar um pouco das pessoas, não sou acagaçado, estou à vontade.

 

Se posso ir mais atrás, não conheço a relação do seu pai, da sua mãe, desse tio a que aludiu com a arte.

O meu pai era um simpático republicano, como convém a um farmacêutico de bairro.

 

Qual era o seu bairro?

Estava numa zona de transição, numa rua entre o Bairro da Lapa e a Pampulha. Os ricos na encosta e os pobres em baixo. Eu convivia com aquele pessoal. O meu pai não fazia ideia do que era esta história das artes. Anos passados, ofereci-lhe um relógio, um belíssimo relógio, aliás, um relógio de ouro. Ele agradeceu e disse: «No dia em que me apareceste com a ideia de ires para a pintura, disse cá comigo: lá vou eu sustentar este tipo toda a vida». O meu pai era isto. A minha mãe, como todas as mulheres, era muito mais fina. Teve a percepção que para o seu menino, alguma coisa de bom havia de acontecer. A minha mãe orgulhava-se de mim, e, mais do que isso, cultivou-se à medida que eu próprio fui evoluindo.

 

Para poder acompanhá-lo?

Mais ou menos isso. Passou a fazer leituras que não teria feito. Era uma mulher extraordinária.

 

Porque é que o presente oferecido ao seu pai foi um relógio e não um objecto concebido por si?

Não havia coisas concebidas por mim que tivessem algum valor na altura.

 

Há um valor emocional inestimável.

Eu queria uma coisa de ordem prática e com algum valor. Era preciso estar com o envolvente, não é?

 

À sua mãe, o que é que oferecia?

Trazia de fora uns perfumes de que ela se orgulhava.

 

Pense que desenhava uma coisa para a sua mãe.

Ainda estou a tempo, para a memória dela... Não sei bem, mas seria qualquer coisa perfumada, qualquer coisa quente, qualquer coisa com uma cor profunda, uma coisa que podia não servir para nada senão para isso: para ser um objecto para a minha mãe.

 

Os presentes feitos com as mãos têm um significado particular.

Gosto de cozinhar para a minha mulher. Mas são sempre coisas prosaicas, o trivial bem feitinho. É nessas coisas mais prosaicas que às vezes residem as grandes homenagens. Gosto de coisas simples. As grandes homenagens estão nessas.

 

Visitou em Malta um monumento megalítico de que gostou particularmente. Achou comovente a forma como aquelas pedras de encaixavam. O que é que o impressionou?

Antes de mais nada, o factor surpresa: eu nem sabia que havia monumentos megalíticos em Malta. Todos esses monumentos são o nascimento da arquitectura. Tem o espantoso confronto com a natividade, com qualquer coisa que tem um gesto natal. Esse edifício, tal como o Stonehenge, têm esse fascínio: os homens construíram pela primeira vez daquela maneira. E já com uma certa complexidade. Não só eram grandes lajes que se encaixavam umas nas outras, como definiam espaços, zonas de transição. Não era um simples monumento megalítico como é, por exemplo, aquele cromeleque em Almendra, perto de Évora.  

 

Percebe em si, no movimento da mão, a persistência de um gesto, de um primeiro gesto? Quando começa a desenhar, há 40 anos e nos dias que correm, há um traço comum, há um mesmo impulso frente à folha em branco?

A mão é um instrumento extraordinário e a relação que se estabelece entre a mente e a mão é fascinante. Não queria estar aqui com muito conversa, até porque já é automático, é uma forma de escrita como outra qualquer. Cada momento do processo criativo de um objecto corresponde a uma forma de exercer a manualidade. Razão porque a cultura do desenho é também a cultura da mão. Outrora fazíamos tudo com as mãos. Há um design antes do desenho. Depois passámos a construir com as nossas mãos, a pôr tijolos uns em cima dos outros ou a tornear uma peça de cerâmica. A realização de um objecto estava ligada à nossa própria realização. O que nos sobra dessa materialidade é a manualidade do desenho. Quando se perder, ficamos completamente separados da realidade material. Isso a mim inquieta-me muito.

 

Em que termos?

Perder a ligação à materialidade significa perder a ligação à cultura e ao compromisso que se tem com as estruturas físicas, em si próprias transformadoras do ambiente e da realidade. Se deixarmos de fazer isso, empobrecemos, como desenhadores, como projectistas. Não posso deixar de considerar que é assim, pelo menos no período de formação dos arquitectos e dos designers, porque há coisas que só se exprimem pelo desenho.

 

Nunca mais pintou. Mas desenha pelo prazer de desenhar.

Então não desenho? Tenho centenas, centenas de croquis de viagens. São um diário de bordo: a gente vai andando e vai desenhando. É pelo prazer de ver. (Só se vê bem quando se representa pelo desenho). E pelo prazer do gesto material de fazer aparecer os traços, de vencer a inércia do papel. É como assobiar! Assobiar ou trautear uma música de que se gosta. Trautear com as mãos.

 

João Paulo Martins, comissário da exposição comemorativa dos seus 40 anos de ofício, (Gulbenkian, 2001), considera que Efémero e Teatral são palavras fundamentais para perceber a sua obra.

A representação é-nos intrínseca. Talvez tenha um pouco o sentido teatral das coisas. Não posso deixar de observar os movimentos das pessoas no espaço. Até porque a arquitectura é para as pessoas viverem. Como os objectos são para as pessoas usarem e fruirem. A arquitectura sem pessoas é o deserto. O deserto é uma coisa tremenda. A arquitectura também é o espaço que está ocupado e o espaço que está desocupado. Essa relação dinâmica...

 

Como um livro, manuseado ou não, vivido ou não.

Um livro é um objecto fascinante. Não sei se gosto de ler pelos livros ou pelo conteúdo! [risos] É evidente que é pelo conteúdo, mas gosto do objecto físico, do peso, da capa, cartonada ou não, do aroma que sai dos livros acabados de imprimir.

 

Porque é que tem ali um poster com as tahitianas do Gauguin?

Sobrou. Gosto muito do Gauguin, mas não está lá por ser eleito. Mas o Monet... Atinge-se quase a exaltação quando se vai, por exemplo, o Museu Marmottan.  

 

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2003

Daciano da Costa morreu em 2005

 

 

Leonor Xavier

13.12.21

Raul Solnado, com quem viveu, dizia: “Ai, a minha vida é tão frágil, cuidado. Se ela cair da estante parte-se aos bocados, estraga-se toda”. A vida de Leonor Xavier, contada no livro Casas Contadas, não caiu da estante e não se estragou. A obra mereceu o prémio Máxima de Literatura deste ano e a propósito dele conversámos de manhã cedo, na sua casa cheia de livros, de pintura, de retratos, de marcas da vida. A vida de Leonor, nascida em 1943, pode contar-se a partir das suas casas, dos encontros fundamentais, olhando para quem foi sendo, para as fracturas, para o Brasil onde soube que também era outra.

Uma pessoa é sempre ela e as suas circunstâncias. E é um livro em movimento, que precisa de ser escrito, para depois ser lido.

 

Foi para o Brasil em 1975, existia sobretudo numa função: a da mãe, esposa burguesa, da menina bem comportada. Foi no Brasil que adquiriu uma identidade própria?

Adquiri a consciência da identidade. O António Alçada Baptista, na introdução do meu livro de entrevistas Falar de Viver, comparava-me àquelas árvores japonesas que estão dentro de uma cápsula, pequeninas, e que crescem quando saem da cápsula. O Brasil deu-me uma consciência de um outro mundo, que não este, tão ordenado, onde nasci e vivi.

 

Vamos detalhar as duas fases para perceber melhor a eclosão dessa árvore que está encapsulada e depois resplandece.

Vivia-se, e vive-se, numa sociedade onde não se conjuga muito a primeira pessoa do singular. Em geral, fala-se de política, viagens, filhos, estudos, doenças. Raramente alguém diz: “Eu nasci, fiz, aconteci, a minha vida é esta, sou feliz, sou infeliz”. A felicidade, a alegria é vista com uma certa desconfiança. 

 

Na sociedade em que vivemos é de bom tom o pudor em relação à vida privada, aos sentimentos.

Exactamente. Pensa-se que a vida privada tem de ser discretamente levada, que não pode ter falhas. Se há alguém na família que bebe, não se fala disso. No Brasil, percebi que o que interessa é o nome próprio, muito mais do que os nomes de família. No Brasil somos avaliados pelo que somos, e não pelo que temos ou pelas pessoas com quem saímos. Outro dos ingredientes que fizeram essa consciência da identidade foi o conviver todos os dias com o diferente. O meu marido era professor de Direito, fomos para S. Paulo, uma cidade gigantesca, com pessoas completamente diferentes de nós. Eu sabia lá o que era um libanês! Era outro mundo. Não havia telefone em casa, havia telefone de recados no patamar do prédio. Em Portugal estamos sempre relacionados com, protegidos por, situados em.

 

Que relação interiormente mantinha com Portugal? Estou também a perguntar por aquela que tinha sido, que ainda era.

A sociedade múltipla que S. Paulo era deu-me a consciência de ser portuguesa, fez-me gostar mais de Portugal. Ganhamos a lucidez da distância. Às vezes até a pequenez e o provincianismo são comoventes. Percebemos como tudo é fugaz e tão pouco importante. Não importa se se é ministro, banqueiro, mulher a dias.

 

A vivência do corpo e dos sentidos, que é diferente no Rio, teve um papel decisivo na sua emancipação? Na grande babel S. Paulo não há uma permanente exposição do corpo ao sol, a praia ao dobrar da esquina.

O que se passa é que Portugal é uma sociedade de véus. Se vamos fazer uma aula de ginástica, até hoje, em 20 pessoas há pelo menos duas que têm um casaco amarrado na bunda. Porque é que as pessoas, além de estarem tapadas a fazer ginástica, ainda se tapam com uma coisa amarrada? Em S. Paulo e no Rio há em comum um cuidado das pessoas com elas próprias. Não se encontra uma pessoa, por mais favelada que seja, que não arranje as unhas dos pés e das mãos todas as semanas. Vendi cremes a certa altura; as pessoas gastam imenso dinheiro em cremes, cuidam-se, fazem ginástica. No Rio ganhamos a sorte de ficar descomplexados. Vemos pessoas altas, magras, gordas, brancas, pretas, mulatas. Andam na rua e na praia tal qual são. Eu era BBG: baixinha, gordinha e gostosa.

 

Essa consciência do seu corpo interferiu com o seu casamento?

Não teve nada a ver com o fim do meu casamento. Acontece que fizemos uma travessia, tivemos sete anos de namoro, mais 19 de casamento. O meu marido seguiu um caminho de pensamento em relação às coisas e eu outro. Pensei que havia uma vida além dessa, partilhada com pequenos conflitos que decorriam de gostar de uma pessoa, uma conversa, um lugar, e a pessoa com quem vivia não. Como eu já não tinha 25 anos nem estava nesse circuito fechado, quis separar-me. Foi uma separação civilizada.

 

Seria impensável para a que foi daqui, para esse quadro social e familiar, um divórcio após 26 de relação.

Sim. Fui a única do meu grupo de amigos que se separou. E não era comum, na minha geração, serem as mulheres a quererem a separação. Fi-lo sem pensar nas consequências práticas de uma separação – é uma coisa cara. Habituei-me a administrar bem os meus dinheiros, a casa, as coisas. Os meus filhos eram adolescentes. Percebi o que era ser-se mulher na idade boa da vida.

 

Que quer isso dizer?

É poder seduzir pessoas (não tem que ver necessariamente com cama). Estar à vontade para resolver onde é que se quer ir, com quem é que se quer estar, como é que se recebem pessoas em casa. E isso a tempo, e não na viuvez. Ter 40 anos e recriar tudo isso bem, sem perseguições, litígios, conflitos.

 

A Clarice Lispector, escritora que admira, teve um percurso semelhante, ela que viveu anos a ser a mulher do senhor embaixador. É preciso confiança para rasgar a convenção, perceber que há uma vida que se vai começar.

Eu tinha duas vidas. Quando mudei para o Rio, em 1979, casada, comecei a trabalhar no jornal O Mundo Português. Todos os dias ia de ônibus de Ipanema até à Cinelândia (o lugar mais povão que se possa imaginar). O jornal era numa rua de putas, ladrões, botecos. Eu fazia os percursos do povo por aquelas ruas. É importante sentir esse anonimato. Percebemos como é que circulamos naquele ambiente, como é que nos defendemos se há um incidente. Depois tinha a vida de pessoa da zona sul do Rio, saía para jantar fora em restaurantes bons. Por isso, eu tinha já desenrascanço no dia a dia. Algumas amigas portuguesas que viviam no Rio nunca tinham andado de ônibus.

 

As pessoas que conheceu e com quem se deu não eram apenas as da comunidade portuguesa. A abertura aos jornalistas, poetas, intelectuais do Rio germinou em si.

Como dizia o António Alçada, gosto muito de quem gosta de mim. O Millôr Fernandes, conheci-o porque o quis entrevistar. Hoje, sempre que vou ao Rio estou com o Millôr. Quando se está dentro, o circuito acaba por ser muito pequeno.

 

Contou a sua história no livro Casas Contadas. Mas é possível contá-la, também, a partir dos encontros que teve. Que encontros apontaria como os fundamentais para a pessoa que é hoje?

O António Alçada foi uma pessoa importantíssima na minha vida. Uma pessoa que me fez vir para Portugal, simbolicamente, foi o Mário Soares. Em 1987 fez a primeira viagem como presidente ao Brasil e levou uma comitiva de 150 pessoas. Eu vivia há 13 anos no Brasil e fiquei de boca aberta. Portugal era um país que sentava à mesma mesa o ex-comunista José Luís Judas e o coleccionador de arte Jorge de Brito (que não podia ser mais conservador). O reencontro com o presente do meu país fez que eu tivesse o impulso de voltar. O que aconteceu ainda nesse ano. Outras pessoas importantes: a Elsie Lessa, que me disse: “O mais importante que você tem é o seu capital vida. Não desista de fazer coisas”; a Tônia Carrero, que me escreveu numa carta: “Você e o Raul [Solnado], que glória!” Depois de me separar, saía imenso com ela. Ela usava um shortinho, eu roía as unhas, não usava saltos altos. Conversávamos muito de coisas de mulheres.

 

O romance com Raul era glorioso, mas improvável.

Foi uma ligação muito importante. Eu não estava nada disponível para romances, vim com três filhos, queria era perceber como é que se vivia aqui. No Brasil, nessa viagem, ele não tinha dinheiro brasileiro e eu emprestei-lhe o que tinha – ele achou aquilo uma coisa transcendente. As coisas aconteceram naturalmente. O Raul era um grande sedutor, fazia aquele ar muito frágil, que era uma grande arma. Explorava imenso as suas distracções, entornava xícaras, copos…, e deu certo. Não foi uma paixão louca. Nunca tinha visto o Raul no teatro, não sabia A Guerra de cor. Em Cuba, no começo da relação, sentou-se e contou-me a história da sua vida. Sem ser para fazer rir. No Rio, deixava-me recados: “É o Raul lusitano…”. Pouco a pouco, ficou uma ligação intimíssima, criativa, fundamental.

 

Tinha 46 anos quando o romance começa. Uma altura em que normalmente as grandes histórias de amor já estão arrumadas.

Mas estão longe de estar arrumadas. Há um verso do Drummond de Andrade que diz: “Na perigosa curva dos 50 derramei nesse amor”. São fases de grande viragem.

 

Porque há um desejo de manter uma efervescência da juventude? Porque a partir dessa curva da vida passamos a ser mortais?

Não se tem aos 50 anos a noção do ocaso. Têm-se agora, com 66. Por isso é que há urgência em viver. Se há 20 anos me perguntassem: “Queres ir a Paris?”, eu responderia: “Não me dá jeito, vou daqui a seis meses”. Hoje vou. Sabe Deus se amanhã não parto uma perna ou estou tonta. Depois dos 50 e tal pergunta-se como se sobrevive no futuro, se esse futuro existir. Tem-se a noção da precariedade, sim. De cada vez que vou ao Brasil, tenho consciência dos que já morreram, dos que estão perto de morrer. É complicado esse confronto. A maior parte das vezes já sou a mais velha dos lugares onde estou. Tenho a sorte de ainda ter energia, resistência, actividade.

 

Há um momento da vida em que começamos a replicar os nossos pais, mesmo sem disso ter consciência? Como eram os seus pais?

Sou completamente diferente dos meus pais. O percurso que fiz não tem nada a ver com o percurso deles. São tempos muito diferentes, é o antes e o depois da Segunda Guerra. O meu pai era um médico conhecido em Lisboa, de feitio talvez seja parecida com ele. Era uma figura forte, respeitada, educou-nos com uma grande exigência. Eu fazia frente, era mais rebelde do que os meus irmãos. A minha mãe era de uma grande inteligência, intuição, lia muito. Deu-me um sentido estético da vida, as mesas de almoçar e de jantar bem postas, as coisas limpas e arrumados, o estar-se bem na vida. Tinha uma grande preocupação que eu acabasse o meu curso, trabalhasse, fosse independente – o que não era comum.

 

A sua formação é católica. Essa dimensão nunca perdeu importância na sua vida, mesmo no Brasil, onde mudou tanto?

Sempre foi uma dimensão importante. Descobri no Brasil uma igreja de alegria na qual as pessoas acreditavam no reino de Deus sobre a Terra. As pessoas intervinham. Essa formação religiosa não tem a ver com o cumprimento dos rituais, integra a personalidade das pessoas. Não se está em pecado mortal porque não se foi à missa e se está na praia ou a fazer o almoço. Se acreditar na vida eterna, estou menos angustiada, não estou em solidão. Se tenho o privilégio da Fé, não estou sozinha.

 

Disse que se comoveu até às lágrimas quando soube que tinha ganho o prémio Máxima de Literatura.

Pois foi. É um trabalho muito solitário, exposto. Imagine pessoas como a Teolinda Gersão ou a Hélia Correia, que têm textos maravilhosos e já foram premiadas: não é todos os dias que são citadas na imprensa. Não estava nada à espera de ganhar. É muito comovente um reconhecimento. Tive a sorte de na minha vida terem acontecido coisas interessantes. Acredito que todas as vidas são contáveis. É também um testemunho do meu tempo.Tinha as facturas, as cartas, imensas coisas anotadas; sustentei a minha narrativa em coisas concretas. O Rui Zink disse no outro dia que cada homem é um livro em movimento. Eu acrescentaria: cada mulher é um livro em movimento. É uma boa definição. 

 

 

Publicado originalmente na Máxima em 2010

 

Ângelo de Sousa

09.12.21

Ângelo é nome de curioso. Um que se farta de esperar. Um que procura saber. Conversa no Porto, em casa. Tudo parado no atelier. A felicidade ou a tristeza não têm nada que ver com isso! 

A conversa gravada começa assim: “Vamos embora, pá! [esfrega as mãos] Se quiser fazer intervalo, pausa, café não há. Mas temos à beira rio. Agora já há um café sentado, ah!, havia tascos, mas um café?, abriu há três meses”. Antes eu tinha chegado atrasada e ele justificou-me e disse que eu não tinha culpa dos atrasos da CP. Mas depois quis começar, vamos embora, pá. O pá estava lá ou não. Na entrevista decidi deixar os pás e os porras, o palavrão a entremear a conversa e a erudição. Ficaram os detalhes, a descrição detalhada. De como se vivia, de como funciona a memória, de como traduz isso em palavras.

Nunca lhe ocorreu ser escritor. Mas o que diz, pode ler-se como a página de um romance. Quis ser realizador. É artista plástico. Ângelo de Sousa é tão carismático que quase só é preciso dizer que é o Ângelo. Talvez aquele dos óculos grandes e grossos. Aquele que ainda o ano passado esteve em Veneza com Souto Moura. Aquele que pinta, desenha, constrói uma orelha com a tampa do iogurte, que fazia quadros esquisitos com cera, que fotografa, anota, faz escultura, toma nota. Um artista maior. Um homem que é um livro. Aberto.

  

Há quanto tempo vive nesta casa?

Desde Janeiro de 73. Comece quando quiser, como te gusta.

 

Se no princípio era o verbo, o verbo para principiar uma conversa consigo é experimentar.

O verbo de encher! Qual é o meu verbo? Esperar. Ocorreu-me agora. Nunca pensei nisso, mas é verdade. Passo a vida a esperar e depois nunca acontece nada. Graças a Deus ou infelizmente. É tenebroso, um gajo chegar a esta idade e descobrir isto. Vou fazer 71 daqui a uma semana, ou duas, ou três, ou assim. Também tive que esperar até aqui – é precisa paciência para esperar.

 

O que é que o experimentar tem que ver com isto? Lemos catálogos de exposições, textos de críticos, filósofos e apaixonados, e sobretudo vemos a obra e percebemos que há uma pulsão de fazer, de pura experimentação.

A maior parte do tempo, eu não faço nada. Não tenho meios. Não tenho tempo – como quando, durante anos, era funcionário público. Não fiz na-da! Felizmente consegui arranjar máquina fotográfica e tirava fotografias. E tomava nota de projectos. Anos assim. A fio. Por isso me ocorre que esperar é capaz de ser um desesperante verbo, mas muito real. 

 

Vamos ao princípio da espera, a Moçambique.

Ah, não me fale disso! Foram lá uns amigos meus. [tocam à campainha] Quem será agora? Deve ser um pobrezinho. [Assoma à janela] Oh, está bom?, ‘pere aí. [regressa daí a nada]. Como sou uma boa alma e quero ir para o Céu, se não houvesse os pobrezinhos como é que a gente ia para o Céu?

 

Então, um homem dado à caridade…

Eu não dou dado: eles é que me extorquem a coisa. O remorso: será que o homem está a dormir debaixo de um banco, com a geada e os cães? A gente fica a pensar nisso. Moçambique: uns amigos foram, trouxeram umas fotografias, não tenho vontade nenhuma [de ir lá]. Já foi há 60 ou 70 anos, quero lá saber.

 

Nunca mais voltou?

Estive lá em 60, três meses no Outono, em Lourenço Marques. Já havia o constelation da Tap. Primeiro era preciso ir de barco, demorava-se três semanas e meia, parando aqui, ali. Os meninos estavam cá a estudar e iam lá passar umas férias. A minha mãe disse: “Os outros meninos do teu tempo vêm cá todos de férias”. “Não tenho dinheiro”. “Então eu pago, são 15 contos”. Foi a última coisa que a minha mãe me pagou na vida. Nunca mais lá voltei. Depois veio a guerra, a minha mãe reformou-se e veio embora. Em 62 ou 63, praí em 64.

 

Qual é a primeira recordação que tem de Moçambique? Que tempo foi esse?

A primeira recordação que tenho é da véspera do dia em que fiz três anos. Ainda um dia hei-de ver se encontro aquele médico, Dâmaso?, [António] Damásio: quando é que as pessoas se sentem ligadas? Eu senti-me ligado nesse dia.

 

Ou seja, com consciência de si mesmo.

De repente, estava a assistir a qualquer coisa. A minha tia trazia uma cartolina com chocolates dentro e a minha avó disse: “Ele portou-se muito mal, Matilde. Não lhe dê isso hoje”. “Está bem, está bem”. Continuou a conversa, não me lembro de mais nada. Esquisito, não é?  

 

Terá que ver com o conteúdo? O objecto do desejo (os chocolates), a repreensão.

Não faço ideia. Eu estava no jardim, a minha avó estava a tomar o chá, a minha tia aparece lá do fundo, truca truca, até ao plano americano. Houve esse diálogo, a minha avó continuou a tomar o chá e as torradas. Lembro-me disso e de estar uma linda tarde de sol. Mistério. 

 

Que ambiente era o seu?

Era uma cidade muito grande, enorme, que não tinha arranha-céus, tinha avenidas muito largas.

 

Aprendeu a nadar na piscina do hotel Polana?

Não. Tentei aprender a nadar nos Velhos Colonos, andei lá dois meses ou três. Era uma associação para acolher velhos colonos. Tinha uma piscina e bilhares; os meus amigos iam jogar bilhares – que eu nunca joguei. Não tive paciência…, um gajo passar um mês a bater pés e agarrado a uma chapa de madeira…, valha-me Deus.

 

Portanto, nada mal.

Sim, sim. Nado de bruços e é um pau. E mal. Se houvesse um naufrágio ainda flutuava quatro ou cinco minutos. Depois desistia!, dizia à morte: “Espero por ti”, e ia-me embora. Não gosto de esforços físicos; a única coisa que fazia era andar a pé, ainda ando quilómetros a pé. A gente cansar-se, é horrível.

 

Esforços físicos é uma coisa, relação com o físico é outra. É um bom tópico, sobretudo se pensarmos em países quentes.

Aqui, é muito diferente. Eu entrei nas Belas Artes, em Novembro – não comecei mais cedo porque se perderam os papéis, já no tempo de Salazar se perdiam papéis – e vi aquela gente toda cheia de frio, toda embiocada, e eu disse: “Que raparigas tão feias, que camafeus!”. Eram mesmo, com umas samarras e umas coisas.

 

Nenhuma desinibição, nenhuma atitude solar em relação ao corpo. Embiocadas?

As minhas colegas de liceu andavam sempre de braços à mostra, com um ar porreiro. Um bioco é uma capa que se põe por cima e que tem um capuz. Outro choque cultural que eu gosto de contar: quando cheguei ao Porto tinha 17 anos, e foi horrível, horrível, horrível. Presenciei esta história: ia a subir a rua 31 de Janeiro, seis e meia da tarde, friínho, caía uma chuva miudinha, e vinha uma mulher – era uma mulher, não era uma senhora porque usava um xaile; vinha com o filho pela mão, e a criança berrava, descalça, claro. A mãe, passou por mim e disse ao filho: “Anda, meu filho da puta, que quando chegar a casa o corno do teu pai dá-te as caridades”. Eu fiquei pááá!, como se diz, caíram-me ao chão. Nunca tinha ouvido; lá na família, em Moçambique, não se usavam palavrões. Não se dizia, não havia necessidade.

 

Que família era essa? Porque é que foi para Moçambique?

A minha mãe tinha 12 irmãos, foi para lá, o meu pai era do Funchal, trabalhava no banco, os bancos faliram em 29 e emigrou para Moçambique. Encontraram-se, casaram. O clima era porreiro, não se vivia mal, os pretos, coitados, eram os pretos, “estas bestas não falam português!”; vinham do mato e tinham de saber português. Cá em Portugal falam português como se sabe; lá, estavam os gajos na terra dos gajos e tinham que aprender a nossa língua... Uns mamparras – um mamparra é um burro, um estúpido.

 

Os seus amigos eram quem?

Havia imensos indianos no liceu (da Índia inglesa e da portuguesa), um chinês que foi meu colega até ao quinto ano, pretos é que não havia, ainda no liceu. Depois havia as mulatas, essa maravilha da natureza. Era mais arejado do que aqui. Isto aqui era opressivo pra caraças. Nada de especial, uma vida vulgar.

 

Apareceu com a mesma fulgurância, (como a consciência de si), a noção de que a sua forma de se expressar era o desenho?

Isso é muito misterioso, não consigo perceber até hoje. Fiz três anos e fomos para a Ilha de Moçambique. Estive lá quatro anos. (Viemos de licença a Portugal em 45 ou 46). Havia arte indígena, que uns gajos vendiam de casa em casa, faziam uns barcos bestiais, enormes, de madeira, faziam navios de guerra (isto foi durante a guerra), muito bem pintadinhos, com canhões a mexer e tudo. Não havia razão nenhuma, nenhuma para eu fazer desenhos; a não ser que fazia. Alguém me deu uma caixa com lápis de cor, daquelas coisas que se dá no Natal. Nunca ninguém disse: “Olha que ele é um geniozinho”; de maneira que me deixavam fazer.

 

Como é que eram os desenhos?

Fazia navios de guerra, navios aos tiros, canhões. Havia muitas revistas da guerra, de propaganda aliada, inglesas, muito bem impressas em fotogravura. Tinha uma colecção enorme, umas em inglês e outras em português do Brasil. Fartei-me de ver fotografias de guerra. Jornal, não havia. A luz eléctrica, ligavam-na às seis da tarde e desligavam às onze da noite – tinham um gerador. Se queríamos, acendíamos um candeeiro a petróleo. As geleiras eram a petróleo. Não havia aspiradores. Não havia carne porque não havia gado; comia-se galinhas e coisas do mar. Costumo dizer com graça que fui criado a lagosta. Lagosta era ao preço do pão. E fruta: bananas, papaia, toda a gente tinha papaeiras em casa. Leite, era condensado.

 

Vegetação luxuriante, mar muito azul – como seria de supor.

Vivi na Ilha de Moçambique até aos sete anos, fiz lá a primeira classe.

 

Os barcos que desenhava, tudo o que desenhava era figurativo.

Barcos e aviões e gente aos tiros. As crianças não fazem abstracto. O meu pai não era capaz de desenhar um copo. A única gracinha que fazia era uma batalha naval com uns lápis que tinham azul de um lado e vermelho do outro.

 

Os seus desenhos eram mais elaborados do que os do seu pai, presume-se…

Eram. Mas isso só descobri depois.

 

A guerra, ainda que longínqua, era ameaçadora?

Era. Aquilo era a rota da Índia e havia submarinos japoneses ou alemães e metiam barcos ao fundo. De vez em quando, iam para o mar apanhar os gajos que andavam a flutuar, a catar, olha ali um, e levavam-nos para o hospital. Sei disso porque a minha mãe, como era enfermeira, era chamada – “vão apanhar os náufragos, tenho de ir, pode ser preciso alguma coisa”. Chegavam dúzias e dúzias deles. Muitos não devem ter escapado aos tubarões.

 

Tinha o desejo de partir?

Para onde? Estava tão bem ali. A ilha era pequenina. Havia um automóvel do piloto Nunes, um Fiat pequenino. Tinha uma actividade desportiva razoável. Fazia-se teatro amador. Cinco mil pessoas contando com a população indígena. A escola primária tinha cem crianças. 

 

Quando é que passou para um estádio diferente?

Quando a gente veio cá de férias, não sei se ainda havia guerra. Tenho de perguntar à minha prima ou ver nas fotografias – o meu pai tirava fotografias. Não sei se não teria sido depois da derrota do Japão. Vim para cá com os meus pais passar um ano e meio de licença graciosa. Para a Rua da Alegria, 162, 3º. De lá de cima via-se a chover. Arranjei um processo para não ter que ia à escola – porque eu era bom. “Ah, não precisa”. De vez em quando ia a casa da Dona Felicidade ou Caridade e tinha aulas no sábado de manhã na escola normal. Passei para a terceira classe. A senhora chamou do estrado o Felisberto e disse: “’Tás com a cabeça cheia de lêndeas”. Eu nunca tinha visto uma lêndea ou percevejo ou pulga.

 

Piolho.

Nunca vi ninguém em África com piolhos ou percevejos. A primeira vez que vi uma pulga foi no cinema Carlos Alberto, no Verão. Nunca tinha tido a experiência dessa bicheza. Toda a gente usava chuveiro – que a água era cara. Aqui, tive que tomar banho de imersão: umas panelas de água quente que se atiravam para a banheira.

 

Como é que um tipo que vive até aos sete anos na Ilha de Moçambique não aprende a nadar convenientemente?

Porque havia tubarões! Ninguém ia para o mar. Fizeram uma piscina. Simplesmente sou preguiçoso; porque é que hei-de aprender a nadar? Não é uma prenda necessária para um homem quando se casa.

 

Depois da vinda à metrópole de um ano e meio, iniciam um novo ciclo. Vão para Lourenço Marques. Deu-se com os irmãos Fernando e José Gil?

O Fernando estava a estudar cá. Encontrei o Zé Gil uma vez com o Manuel António Bronze, o Rui Knopfli. Eu devia ter 16 anos e o Knopfli 20 e muitos, um homem barbudo. Era muito culto e inteligente, chegou a ser um grande poeta. Acabou o 7º ano, sabia tudo quanto era possível naquela terra. Era brilhantíssimo. Tinha aquilo que se chama “concepção agónica da existência”. Estava sempre em competição; uma discussão para ele, era uma coisa para ganhar, para ter razão, não era para chegar a uma conclusão.  Faz-me muita impressão ainda hoje. Eram discussões de arte e política – não se falava de outra coisa.

 

Porque é que naquele sítio, longe da Europa onde tudo acontecia, esta malta era assim?

Era uma terra de exílio. Anos mais tarde, relacionei-me com um médico que tinha sido Secretário-geral do Partido Comunista Português dos anos 30. Havia um outro gajo, também do PC, Cansado Gonçalves, que era professor de matemática na escola técnica. Muitos dos professores que lá estavam tinham sido corridos de cá. Também havia gajos da Mocidade Portuguesa, claro. Havia gajos que não iam às paradas e ninguém os chateava. Gilberto Rola Pereira, explicador de matemática, tinha ido para lá em 1918; eu comecei a apanhar com o Fernando Pessoa aos 12 anos (não se deseja a ninguém que uma criatura seja desmamada intelectualmente aos 12 anos com o Fernando Pessoa); em conversa: “Fernando Pessoa? Conheci-o muito bem. Andei no liceu com o Sá Carneiro”.

 

O Jorge Molder diz que lhe podemos perguntar sobre matemática, física, literatura, cinema, que responde. E que se não responde na hora, liga às onze da noite com a resposta...

Eu era bom.

 

Estas pessoas fora do baralho com quem se deu marcaram a sua formação. Mas o que quero saber é como é que vai destas coisas para a pintura.

Já deve ter ouvido falar do Rui Guerra, realizador. Moçambicano. Foi estudar para o IDHEC, em Paris.  Há um conjunto de circunstâncias muito esquisitas. Havia a Mocidade Portuguesa, a gente estava ali a treinar para o 10 de Junho e para a parada, que era chato, dois sargentos davam a instrução aos mancebos. No meio disso, um gajo com nome de boa família, aparecia com uma farda especial de lã castanha, umas condecoraçõeszinhas; esse gajo, à paisana, tinha a mania do cinema, criou uma secção de cinema. A gente, depois de marchar uma hora, ia para lá aturar o gajo. No meu caso não era aturar. 

 

Então, no princípio de tudo está o cinema?

Eu tinha começado com oito anos a ir ao cinema. O meu pai trabalhava no correio e tinha um senhor amigo que fazia legendas para os filmes do Scala; de maneira que quando queria ir ao cinema, entrava. Ia sozinho, claro. Coboiadas, filmes em inglês sem legendas. Na secção de cinéfilos, falava-se de montagem, faz-se assim, faz-se assado. Desde os 12 anos comecei a perceber que os filmes não eram os gajos aos tiros, eram segmentos. Sabia que o cinema era uma coisa feita, que 15 dias depois punham a gaja a dizer “Sim, sim”. Porra, o Rui Guerra vai para cinema? Também quero ir para cinema. Quero é ser realizador. Mas nunca disse a ninguém. Depois, o meu pai morreu quando eu tinha 15 anos: quem é que me ia mandar para França? Não havia bolsas, vim para Belas Artes. Entretanto tinha começado a pintar. Não podia fazer filmes?, fazia pinturas a óleo. Pronto. Tive um prémio do liceu por ser o melhor aluno do ano, recebi 750 paus, comprei as tintas, comecei a pintar.

 

Começou a pintar do nada?

Comprei um livrinho que tenho lá em cima, “How to paint in oils”. Ninguém compra um livro sobre os materiais. Nenhum aluno meu leu um livro de técnica. A tinta tal serve para isto, não se pode misturar esta com aquela, esta é transparente, esta é opaca. Sou assim. Não ia perder tempo a descobrir o que já estava descoberto – estava no livro. Tem uma capa amarela.

 

Fazia bandas desenhadas.

Fazia isso num plástico em que se escreviam à máquina as legendas [dos filmes]. Uma espécie de celofane.  O senhor do Scala deu-me um rolo disso e eu passei anos a fazer uma história aos quadradinhos. Para um dia projectar. Ainda tenho aí um bocadinho disso, tudo ratado das traças.

 

Encontra sempre o lado humorístico, do piolho ou das traças. Como diria o Dinis Machado: “Qual é o lado mais comido disto?”. É o humor como forma de salvação.

A gente tem que sorrir, não se pode passar a vida, ba-ba-ba-ba, a chorar. Às vezes dá-me vontade de rir em circunstâncias lixadas.  

 

Que enredo aparecia nessas tiras de banda desenhada?

Eram umas histórias de tiros, como as dos filmes.

 

Onde quero chegar é ao ponto em que abandona as histórias e se concentra na abstracção. Fez pintura figurativa?

Fiz. Quando comecei a pintar, era a época do Neo-Realismo. O que a gente devia fazer era umas pinturas como os muralistas mexicanos. Ainda fiz umas coisas dessas. Um estivador negro, um fuzilamento, umas fábricas, um gajo que finge que toca viola (não pus as cordas, nunca acabei). A gente tinha de fazer as coisas como mensagem. A gente fartava-se de ler coisas que vinham em língua estrangeira – passava tudo, desde que fossem em inglês ou francês. Sabiam lá se aquilo era subversivo, se era o Sartre… Aprendi inglês e francês para poder ler à vontade. Praticamente não lia em português – ainda hoje. O que se esperava era que as pessoas fizessem coisas com mensagem. 

 

Intervenção era a palavra de ordem. Nunca foi comunista?

Não. Por acaso fui lá, pediram-me para fazer uma colaboração depois do 25 de Abril. Vi lá um gajo, pensei: Este gajo é que vai tomar conta de nós?”. Um sabujo servil do comendador Cupertino de Miranda, este gajo é que é o meu patrão espiritual? Não tenho nada com isto! Tirei a palha.

 

Quando começou a pintar e fez coisas figurativas…

Eu era muito mal visto: porque não fazia figurativo. Não era capaz. De 61 a 65 fiz cenários para o Teatro Experimental, alguns muita bons. Uns gajos que lá estavam, que eram do PC: “A gente não te paga porque tu és de África, és um gajo rico”. Deviam pagar-me quatro contos e de vez em quando davam-me cem paus. Eu andava mal vestido, andava com um blusão da tropa, boina, barba por fazer, fazia uns quadros esquisitos com cera.

 

Tinha um discurso próprio, numa altura em que o que importava era ter uma mensagem.

Sim. Mas eu não tinha mensagem. Eu achava um disparate ter uma mensagem! Com que autoridade? Mesmo sendo professor, nunca me achei com autoridade para impor uma mensagem. Uma questão temperamental. Não quero salvar ninguém. Se for preciso empurrar, empurro, faço o melhor possível. Mas não tenho a ideia que vou salvar o mundo, não tenho ideias de apóstolo. Houve aqui uma altura em que a senhora Rosa Ramalho fazia os bonecos em barro, e havia malta que copiava aquilo em barda! Mas o que é que tenho com a cultura do Minho? Vou passar férias a casa do meu avô, tomo banho no rio, vive-se na idade da pedra; mas não vou fazer arte a partir da senhora Rosa Ramalho. Estou informado de outras coisas de que esta gente não está informada.

 

Tinha interlocutores para essas coisas de que estava informado?

Uma vez, no quarto do Bronze, com ele e outros, vimos uma Life com uma reprodução do Pollock, com as coisas derramadas. Foi uma galhofa pegada, que aquilo era uma borratada! Os gajos atiraram-se ao ar, lá estás tu. Bom, não vale a pena. Descobri aquela verdade eterna: se eles não percebem, não vale a pena explicar, se percebem, não é preciso. E isto era a atitude de gente por quem tinha, enfim, consideração. “Que nojo, derramar a tinta assim” – foi o comentário a propósito do Jackson Pollock. Porque é que não me hei-de interessar por arte popular polaca em vez de fazer os bonecos da senhora Rosa?

 

Estamos sempre numa zona de identificação: quem é que é, com quem é que se identifica.

Eu tinha outros interesses. Outra informação. Outra curiosidade. Não é bom nem mau, era assim.

 

Era o mundo que trazia?

Era o que mundo que ia descobrindo. Tinha uma enorme colecção de Life’s e da revista brasileira O Cruzeiro, que o meu tio comprava todas as semanas. Lia isso com 13 aninhos. Sempre comprei a Time porque era uma maneira de saber notícias sem censura. [folheia e mostra páginas dessas revistas antigas] Isto é arte inglesa dos anos 60. ‘Tava aí!, vendia-se no Paladium por cinco escudos. Isto é o [David] Hockney. Quando não tinha dinheiro, via-as na livraria internacional. A informação existia: é preciso procurá-la, ela não vai ter com nosotros. Curiosidade que os meus colegas não tinham, e quando viam diziam: “Olha para esta merda”.

 

A sua “fonte” eram, sobretudo, as revistas?

Uma vez comprei um livro de escultura, que me custou 180 ou 200 paus, o que era muito dinheiro para quem vivia com um conto e quinhentos por mês. Eu mostrava aquilo aos colegas, “Deixa cá ver o Rodin!, deixa cá ver o Modigliani!”. Isto era a malta com quem eu me encontrava. Ninguém me dizia: “Empresta-me essa merda, que amanhã trago-te”. Tinham uma grande curiosidade para tudo o que fosse má língua, fofoca, mas em relação à profissão não tinham quase nenhuma.

 

Procuravam uma confirmação do que já eram?

E do que já sabiam. Sempre procurei informar-me, não sei porquê. Sempre fui coscuvilheiro. Nunca tinha pensado nisso, mas acho que a vida é uma profissão. Viver é uma profissão. Tem de se fazer 24 horas por dia. Um gajo não pode dizer: “Hoje não, hoje é domingo”. Não é como conduzir autocarro, bater carteiras, pôr bombas. Nunca tinha pensado nisto, mas estas coisas ocorrem nas conversas. Tenho pena de não conversar mais. Estou sempre a funcionar para qualquer coisa. Durante anos não pude fazer outras coisas. Era presidente do Conselho Directivo, que chatice, mais não sei quê, mais não sei quê. Depois acabou-se. Passei a vender aulas. Chego lá, meto a ficha, truca truca truca, tiro a ficha. E aí comecei a trabalhar. E não fazia diferença nenhuma. Mas quando estou a fazer uma coisa, estou a fazer aquela – mais nada.

 

Aos 15 anos perdeu o pai. Mudou-lhe o curso da vida.

Foi um óptimo fim para ele, que estava há três anos com uma doença horrorosa. Tinha aquela coisa de que morreu o Zeca Afonso. Para mim foi péssimo. Tenho mesmo de ir para Belas Artes, vou comprar tintas a óleo.

 

Dois anos depois, veio para Portugal. Sozinho.

Sim. Self-supported. Tinha uma bolsa de estudo, Caixa Económica Postal de Lourenço Marques, um conto e quinhentos. Fiz aquilo [curso e bolsa] durar sete anos. Depois, tive a sorte, ou a desdita, de ser convidado para assistente.      

 

A sorte ou a desdita? Ter ficado nas Belas Artes tantos anos é uma das questões da sua vida. Tal como ficar no Porto ou ir para Lisboa ou lá para fora.

Não, para fora não ia, pra quê? Para estar como os emigrantes bolseiros, que se encontravam todas as noites para jogar matraquilhos e beber cerveja?, para intrigar com a mulher do gajo? Porra, pá! Para viver num chambre de bonne onde faziam dois quadros deste tamanho [pequeno] por ano?

 

Vemos a exposição de Hélio Oiticica na Tate Modern, em Londres, e percebemos que fez muitas daquelas coisas antes do Oiticica. E perguntamo-nos porque é que o Oiticica está na Tate Modern e o Ângelo não está.

Porque o Oiticia e a senhora, a psicanalista, a Lygia Clark, de repente pegaram neles na América aqui há dez, 12 anos, e começaram a falar deles.

 

Há uma outra coisa: Oiticica viveu em Londres no anos 60.

 

 

 

 

 

 

Ele também era homossexual, o que dá aquele ambiente festivo da altura, aquelas capilaridades.  Eu não tinha inserção para isso. Não estou a queixar-me da comunidade: sempre me trataram bem.

 

Se tivesse dado o salto, internacional, provavelmente a sua carreira seria diferente.

Possivelmente. Nós, a minha mulher e eu, estivemos dez meses em Londres. Enquanto lá estivemos, ela trabalhou na escultura, a mim não me apetecia fazer nada. Pensei que, como pintor, só podia ter ido para pintura. E podia ter ido para escultura...  Ao fim de um ano, de uma série de peripécias longas, o Salazar caiu da cadeira. O meu senhorio disse: “Se você quiser, arranjo-lhe emprego nas belas artes em Bradford”. O que é que vou fazer para Bradford? Deve ser pior do que o Porto. A única coisa notável que Bradford tem é que nasceu lá o David Hockney – que se foi logo embora. Vender aulas em Bradford? A minha mulher não aprendeu inglês. Vai para sopeira? Outra coisa engraçada: conheci uns tipos no St. Martins cuja intenção era ir para os Estados Unidos. Eles queriam dar o salto dali para Nova Iorque. Eu teria desejo de ficar se os gajos querem é dar à sola? Que estupidez vir para Inglaterra. Para estar a dar aulas? Isso já dava aqui no Porto. Alem disso: alguns gajos tinham a ideia que, um dia, o Salazar morria e íamos fazer uma escola de Belas Artes como deve ser. O que eu queria era trabalhar.

 

Ter um rendimento certo?

Não, não: poder fazer coisas. Quando vim para esta casa, finalmente, tinha esta sala para pintar. Nós não tínhamos piano de cauda, mobília, nada: isto era o meu atelier. O que vi nos bolseiros, em Paris, em 57/58, é que  se encontravam todas as noites. Eu tinha gasto cinco ou seis contos para, está-se mesmo a ver, encontrar-me com ele todas as noites... “Então logo a noite onde é que nos encontramos? Estás aqui para a sangria?” Eu??? Vou à cinemateca: vai dar isto e isto e isto. Voltei em 58: então o que é que fizeste? “Tenho lá um quadro. Isto ainda está muito atrasado”. O filho da puta num ano fez isto?  Gulbenkian anda a dar-lhe 20 contos por mês para fazer isto? Valha-me Deus! Conhece alguém que no estrangeiro tenha alcançado glória eterna?

 

Paula Rego. Vieira da Silva.

A senhora da Madeira, a Lourdes Castro: alguém entre os emigrantes conquistou a verdade e a glória eterna? O Pomar, é universalmente conhecido? Jorge Martins (de quem sou grande amigo)? Porque é que continuam a fazer exposições no Brito? [Galeria 111]. Vim pra aqui, aqui podia trabalhar. Não havia aço inox? Não faço esculturas. Não há tela? Pinto em platex. Não posso pintar telas grandes? Pinto pequeninas. So what? Vou escrevendo, vou tomando notas.

 

Que fez nas temporadas, mais ou menos demoradas, que passou fora?

Estive em Paris 40 dias mais 40 dias. Passei os dias nos cinemas e na cinemateca.

 

O que é que foi mais extraordinário nos museus?

Fui imenso ao Museu do Homem. Fui um pouco ao Louvre. O museu dos Impressionistas estava fechado. Em Londres fartei-me de ir ao cinema, ia todos os dias ao National Film Theatre. Vi o Godard todo até 68. Vi filmes polacos, vi o primeiro Polansky.

 

Fala como se o contacto com o cinema fosse tão importante, ou mais, do que ver os quadros nos museus e galerias.

Ora bem: estou de acordo que não dá para ver a reprodução de um pintor veneziano: tem que ir a Veneza. Mas não sei se isso é uma verdade eterna. [mostra uma página] Isto dá uma ideia bem razoável, para quem conheça, de quem é o Seurat. Não é alta fidelidade, é como um disco de 78 rotações: dá para ouvir a musica. Um gajo habitua-se a ver isto, e a ler nas entrelinhas. Não vejo reproduções , vou ver ao Museu de Pequim? Não vou. A única hipótese é comer como me vem, como sai da lata. É deficiente? Pois é. Mas a gente tem que fazer fogo com a lenha que há.

 

Instalou-se no Porto, ficou a dar aulas nas Belas Artes, ficou conhecido. Era inseguro quanto ao que fazia?

Não. Estive algum tempo em ateliers. As pessoas davam uma pincelada e “que é que tu achas disto?”. Passavam a vida a pedir opiniões. E depois alguém me disse: “Tu nunca pedes opinião”.

 

Tinha a impressão que não o entendiam?

Eu não queria explicar! Eu não queria que me dessem opinião! É-me perfeitamente alheio, se me entendem ou não. A coisa que mais me chateava era um: “E se você pusesse aqui uma cor picante, um carmesim, ou um ocre dourado...”. Como era um gajo bem educado, fazia de conta... Não fazia aquele ar de dignidade ofendida – não preciso. Não tinha que fazer uma cena histriónica de incompreensão nem nada.

 

Quem é que foram os seus interlocutores?

Ao espelho não foi, que sempre me vi pouco ao espelho. Dei-me muito bem com o António Quadros, apesar de o gajo ser tão ferrenho da senhora Rosa Ramalho e de ter gozado com os quadros do Pollock; era um ferrenho do cinema também – lembras-te como o Marcel Carné faz não sei o quê? Tínhamos um patuá muito comum. Dei-me bem com o Eugénio de Andrade.

 

Falavam de quê? É fácil imagina-lo a dar-se com um poeta: a sua pintura é imensamente poética.

Cinema. Poesia. Você tem? Onde é que arranjou isso? Se quiser fique com ele que eu já li. Dava-me bem com o Augusto Gomes. O João Guedes – papei o Brecht todo que ele lá tinha, eram 30 e tal peças. Não tenho assim muito mau feitio. Entendi-me bem com a minha mulher.

 

O encontro com ela deu-se como?

Eu já a conhecia de vista, uma rapariga muito bonita, aquela é que é uma rapariga do caraças. Eu era um apreciador platónico distante. “Tu estás interessado em ir ao Alentejo, na Páscoa, fazer cerâmica? Vai uma malta, vai a Marina”. Era a minha mulher. Alto. Tou, tou. Eterna gratidão. Tenha na vida coincidências esquisitíssimas.

 

Quais são as grandes coincidências, as que apontaram caminhos?

Ter ido ao cinema. O sr. Lisboa arranjar-me o plástico para fazer histórias aos quadradinhos. O gajo da Mocidade Portuguesa que era cinéfilo. E meter-se-me a ideia de querer ser realizador. E depois não fui realizador. Porra!, se fosse romance ninguém acreditava.

 

Escritor?, nunca quis ser? Leu tudo.

Não. Sou dos poucos portugueses que nunca tiveram a tentação de fazer um versinho. Nunca, nunca, nunca. Nada, nada, nada. Talvez por ter lido antes. Mas não foi mau, podia ter sido pior. Como diria a minha avó: torces a orelha e não deita sangue. Mas deixemos as blagues.

 

Há no seu trabalho uma exploração intensiva e inesgotável da cor. Alguma relação com a experimentação das cores que fez em criança, com os lápis que recebeu?

Questão interessante: eu fazia principalmente desenhos com tinta preta. Os tais quadros figurativos: num era pontillista, o fuzilamento é bem feito, o dos estivadores é uma merda. Coitado de mim, tinha 16 anos, nunca tinha visto um quadro.

 

Qual foi o primeiro quadro que viu?

Vim com a minha mãe a Lisboa. Queria ver o Nuno Gonçalves. O Nuno Gonçalves tinha ido para Inglaterra! Mas ainda vi o Bosch.

 

Não podendo ser os painéis de S. Vicente, o primeiro quadro que viu foram as Tentações de Santo Antão?

Sim, e outros que lá estavam, no Museu de Arte Antiga.

 

Quando é que sentiu que tinha encontrado o caminho, que tinha encontrado a sua forma de expressão?

Em 1960 fui a Lourenço Marques e, como me aborrecia muito, pedi ao meu primo Zeca, que também pintava, fazia reproduções, não tinha graça nenhuma, umas tintas. Comecei a fazer umas pinturas em papel. E de repente – tenho esse trabalho aí – fiz aquilo e disse: já sei. É como a história do Klee: “A cor toma-me”. Eu fiz aquela merdinha e disse: agora já sei. Parece que ouvi uma voz por trás a dizer: Acabou, não há mais problemas. Tive problemas, mas não no sentido da frustração de pintar de branco, como tinha acontecido numa fase.

 

Pintar de branco era um estilo?

Era uma incapacidade. Fiz uns bonecos sem cabelo. A minha mãe: “Fizeste mais um quadro? Porque é que nunca lhes pões cabelo? Porque é que são sempre carecas?” Fiquei lixado. Porra, não sei como é que hei-de pintar o cabelo. Os meus alunos diriam assim: é assim, é a minha mensagem. Eu disse: eu não sei pintar cabelos.

 

Esse já sei tem uma força tal que percebemos hoje, olhando para a escultura ou para a fotografia, que elas são como a pintura – usando e explorando um suporte diferente. A linguagem é a mesma, mesmo que os materiais divirjam.

Acho que tem que ver. Neste momento, estou farto de tirar fotografias porque não faço nada. Não pinto, vai fazer seis anos em Maio. Porquê? Tive um cancro, fui operado, tive uma úlcera hemorrágica – stress. No outro ano tive dez meses o braço pousado. Depois a minha mulher partiu a perna e estive a tomar conta dela armado em Florence Nightingale. Depois outra desgraça. Todos os anos merda. Eh, não dava mesmo para fazer nada.

 

Sentiu falta?

Se tivesse sete ou oito quadros tinha-os vendido e tinha mais dinheiro neste momento. Não estou com uma mão à frente e outra atrás. Mas tenho uns quadros para fazer.

 

E o que tem para dizer? Pergunto por isso e responde que preferia ganhar umas massas.

Claro. Não me apetece.

 

Dá ideia que a vida quotidiana se intromete muito na sua obra.

Eu, qualquer coisinha, empato logo. 

  

A tristeza é uma coisa que o impede de pintar?

Não sou nada triste nem infeliz.

 

Os quadros não parecem tristes. Pelo contrário, são quase sempre solares.

Não tem nada a ver. Um gajo pode estar lixado da vida e fazer uns quadros porreiros. Já estudei o assunto e não tenho nada de esquizofrénico. Não estou interessado em fazer quadros para dizer às pessoas que me dói o estômago. Não me interessa pôr as minhas dores de alma para os outros.  Despejar o saco por cima do público? Uma idéia repugnante. Brgggg, que nojo.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2008

Ângelo de Sousa morreu em 2011

 

Onésimo Teotónio Almeida

04.12.21

O nome que aparece nos livros: Onésimo Teotónio Almeida. Mas é o Onésimo. (Ficou com o nome mais arrevesado da lista.) Micaelense dos Açores, açoriano de Portugal, americano em casa na Brown University. Cidadão torrencial que procura espaços de liberdade, para se espraiar. Vulcão raramente adormecido. Escritor, filósofo, académico. Tem 67 anos.

Veio para as férias de Verão. Hábito ou necessidade de todos os anos. É um modo de regressar ao essencial, a uma geografia que o coloca na infância, nos anos de formação. Paragem prolongada em Lisboa. Tempo sem tempo nos Açores. O tempo do rapaz que trazia os brinquedos nas algibeiras. (Hoje transporta livros, e em casa faz pilhas, arranha-céus, Manhattans, como lhes chama, com eles. É um homem dos livros tanto quanto é da vida que não aparece nos livros. A vida que só se sente na vida. Wittgenstein falava dela, procurava-a. Onésimo, também.)

Veio num dia de Verão, de muito calor. Falámos num hotel elegante de Lisboa. Estava ligeiramente atrasado e vergastava-se como se o atraso fosse considerável. Depois falou e divertiu-se como uma lava que jorra. Imparável, portanto.

Onésimo Teotónio Almeida ensina no departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade Brown. Tem uma obra extensa. Lançou recentemente Pessoa, Portugal e o Futuro. Podia ser, senão o pretexto, o ponto de partida para a entrevista. Não foi. Fomos lá.

 

É professor na Brown, é ensaísta, escreve ficção. Tem um personagem preferido? Júlio César, Álvaro de Campos? Podemos definir o que são os personagens de ficção, e também o que faz deles heróis.

Interessam-me mais as ideias do que a literatura, onde sou um visitante e leitor por gosto. Custa-me a entrar num universo ficcional. Só leio romances quando posso lê-los sem interrupções. Para entrarmos na ficção temos de nos deixar embarcar. De qualquer modo, quer na ficção quer na não-ficção o meu desejo é entender o mundo. E tanto a ficção como a não-ficção ajudam.

 

Precisa menos de enredos e precisa mais de ideias? É conhecido como um grande contador de histórias.

Sim, pelo-me por uma boa história. O nosso quotidiano está cheio de ricas histórias que se entrecruzam e mutuamente se enriquecem. E a História fascina-me. Também gosto de autobiografias, de livros de memórias. Em ficção, quero que ela me ajude a penetrar no real. Shakespeare, por exemplo, é magnífico porque nos faz entrar no universo escuro dos seres humanos.

 

Falei em Júlio César porque imaginei que um dos seus heróis seria um personagem shakespeariano. Todos precisamos de mitos.

As pessoas que mais admiro são pessoas que conheci ao vivo.

 

Diga-me cinco. Se gosta de autobiografias e memórias vamos começar por traçar vagamente a sua a partir das pessoas que admira.

Mais do que um herói, tenho uma constelação de gente que admiro em particular. Na minha adolescência e juventude, um tio e o filósofo José Enes tiveram grande influência na minha vida. George Monteiro e Eduardo Lourenço. A Leonor, minha mulher. Nunca pensei fazer uma hierarquia.

 

Não é uma hierarquia, é uma cartografia.

Então ultrapassa os cinco. E depois não sei porque é que um será melhor que o outro. A minha avó materna foi importantíssima. O Monsenhor Lourenço, um velho professor de inglês, ensinou-me imenso com as suas histórias. Há tanto que aprendi de gente simples. E lidei com pessoas de alto nível que não me ensinaram nada de especial.

 

Há pessoas que parece que sabem o mundo a partir dos livros e não ensinam nada. E há outras, iletradas, que têm uma compreensão íntima do funcionamento da vida.

É. Aprendo de onde me chega a luz. Sou muito ligado à vida. Quando falo, frequentemente conto histórias para ilustrar uma ideia. Uma ideia abstracta, abstrusa, de repente torna-se clara com uma história, ou uma experiência da vida real.

 

Por exemplo.

Recentemente estava a falar da importância do [filósofo] Henri Bergson para Fernando Pessoa. Tentava explicar o que era o élan vital, de Bergson, no momento de criatividade do artista. E, para o público a que me dirigia, ocorreu-me o Pauleta como exemplo.

 

Como é que foi dar ao Pauleta? Mistura Filosofia e futebol.

As pessoas queixavam-se de que ele não construía jogo, mas na verdade ele estava lá à frente imensamente atento e, no momento exacto, surgia oportuno para disparar.

 

O seu livro mais recente é Pessoa, Portugal e o Futuro. Os seus objectos de investigação são Portugal e Pessoa?

Tenho dois níveis de interesses: a nível teórico, a questão dos valores e das mundividências. A nível aplicado, Portugal. O meu interesse por Pessoa adveio do seu interesse por Portugal.

 

Neste livro, mais do que de Bergson, fala da influência do filósofo Georges Sorel no poeta português. Pode sintetizar o seu contributo?

Descobri que Pessoa, tal como Sorel, são os únicos pensadores no mundo que usam um conceito de mito especial. Em vez de uma explicação do passado, situam o mito no futuro, como íman a concitar os ânimos e os desejos das pessoas de modo a operarem uma transformação social. Trata-se de uma construção e por isso Pessoa considera-se um “sebastianista racional”. Ele sabe da “verdade da mentira que criou” porque “o mito é o nada que é tudo”. São expressões dele. A minha leitura pretende ser uma reconstrução do puzzle que era a mente de Pessoa ao lançar-se na escrita de Mensagem. E ele explicou-se todo melhor do que ninguém.

 

Ao falar do élan vital e do pessimismo que impressionava Pessoa, parece falar do Portugal destes dias. É uma marca da nossa cultura, este pessimismo?

Creio que sim. Pessoa quis reagir contra o pessimismo derrotista que imperava no final da monarquia e depois no período da 1ª República. Ele não era um activista mas uma saída para o país que via de braços caídos. A sua concepção é engenhosa, brilhante mesmo. Mas não é para ser tomada à letra, como tem sido feito por gente que lê a Mensagem sem ler o que Pessoa diz dela ou sem perceber as pistas que ele deixa por todo o lado. Pessoa era um homem de ideias, um ruminante que lia tudo, mastigava e deitava fora o que não lhe interessava. Ainda assim absorvia imenso.

 

Ensina cultura portuguesa na universidade.

Não tinha nenhum treino em cultura portuguesa, excepto a que levava nos ossos quando fui para os Estados Unidos aos 25 anos.

 

Tinha estudado Filosofia.

Sim. Eu fazia doutoramento em Filosofia em Brown [University] e um grupo de professores queria criar um Centro de Estudos Portugueses. Vieram ter comigo e juntei-me a eles. Pus-me a ler tudo o que encontrava sobre o tema e comecei a identificar os temas mais recorrentes e a mitologia do nosso imaginário: os descobrimentos, a decadência, o sebastianismo, os estrangeirados, a renascença portuguesa com um pensamento muito provinciano, todo voltado para o passado como se mais nada tivesse acontecido no mundo.

 

As palavras que usa são de terra e não de mar. A ilha era um lugar de fantasia?

Quando se vive numa ilha, a ilha é tão grande como o mundo. Só nos apercebemos da pequenez dela quando saímos. Na minha segunda classe anunciaram a visita do director escolar que vinha de Ponta Delgada e eu julgava que era o Salazar do quadro na parede à minha frente.

 

Perguntava-se, quando era miúdo, o que é que existia para lá do fio do horizonte?

Sim. Fui sabendo da existência de um outro mundo lá fora. Mas adorava a minha ilha, que achava lindíssima, que era o melhor dos mundos.

 

Então sente-se basicamente açoriano?

Costumo dizer: quando fui para a Terceira percebi que era micaelense. Na Madeira, senti-me açoriano. Em Lisboa, vi que era insular. Em Espanha, reconheci-me português. Em Paris, já era ibérico. Nos EUA, europeu. Na China, achei-me decididamente ocidental. Se um dia for a Marte, hei-de sentir-me terrestre.

 

Com que é que se espantava mais na infância?

Tive uma infância feliz. Íamos muito ao mar e passear para montes de onde se desfrutavam belas vistas. Mas o mar era perigoso e só íamos acompanhados de adultos. O mar dos Açores não é para brincadeiras.

 

Teve o espanto da natureza, o impacto da natureza?

Sim. “O mundo é o meu mundo”, disse Wittgenstein. As lagoas, as montanhas deslumbrantes, os passeios e os acampamentos ficaram para sempre comigo. A antiga questão do valor intrínseco é muito séria. Um pôr-do-sol é belo porque fomos habituados a senti-lo assim, ou é mesmo belo em si? Eu, sem ninguém me ensinar, fiquei apaixonado pelo belo da natureza em meu redor. Daria panos para mangas esta questão da objectividade/subjectividade estética.

  

Nos seus diários Wittgenstein fala de como a experiência da guerra havia mudado o seu pensamento filosófico e o seu mundo. O que é que, a si, o pôs em contacto com o coração do mundo?

Foi decididamente a emigração. Só entendi Portugal na diáspora, só lá me entendi (se é que me consigo entender). Ver os emigrantes no embate diário com o universo anglo-americano permitiu-me observar os conflitos de valores, de visões do mundo em acção.

Sempre me senti atraído por uma frase que ouvi a um professor – “as couves nascem do chão”. Percebi que o empirismo, aquilo que se nos mete pelos olhos dentro, foi mais forte que todas as teorias lidas nos livros, e moldou a minha visão do mundo. Sempre que um autor, Marx ou fosse quem fosse, não estivesse de acordo com a realidade que eu observava, era a realidade que triunfava na minha compreensão das coisas.

 

Retomemos a ideia de cartografia, caminhos principais e secundários, bifurcações. Quais foram os momentos decisórios, os grandes passos no mapa?

Não sabemos quais são as forças que nos movem. Somos um produto de forças genéticas e culturais (aquelas que encontramos na nossa interacção com o mundo). Sinto-me produto de ambos. Reconheço em mim muito que veio dos meus pais, da minha família, da minha educação. Ainda hoje sinto inclinações que alimentam hábitos que eu já tinha em criança. Tenho muitas semelhanças, até físicas, com o meu pai. A minha mãe notava isso. Dizia-me: “És o teu pai chapado!” Na boca dela, não era um elogio.

 

Como é que era o seu pai?

Eu em bruto. Explico-me: o meu pai não tinha mais que a terceira classe, que era o obrigatório no seu tempo. Mas não me acho nada diferente dele, nem sequer na minha maneira de ser, após tantos anos de instrução.” A polidez que tenho é apenas intelectual, a dos livros que fui acumulando. Nada mais.

 

Apesar da genética, dos constrangimentos, há coisas que são do domínio da vontade e da escolha.

É a velha questão: gosto das coisas porque elas vêm de encontro às minhas inclinações naturais ou porque a vida me moldou para gostar delas assim? Acho que somos o resultado do encontro das duas forças. Costumo dizer que fui para o seminário (aos 11 anos) com a vocação do meu tio. Ele tinha-me precedido no seminário. A minha escolha decisiva foi sair (aos 22). Há uma interacção contínua entre a inclinação natural e as experiências que a vida nos vai proporcionando. Desenvolvi isto no meu livro De Marx a Darwin – a desconfiança das ideologias (Gradiva, 2009).

 

Alguma vez considerou seriamente ficar no seminário?

Não imagina como era viver nos Açores nos anos 50 e 60, onde imperava uma religiosidade medieval. A distância geográfica e o salazarismo ajudavam a fazer dos Açores uma autêntica bolha. O Santo Cristo era o Pai Eterno. Tudo começava e acabava na religião. Mas no seminário li Mao-Tsé-Tung, que não me impressionou, e Marx, que mexeu comigo.

 

Eram padres p’ra frentex para permitir essas leituras.

Muitos dos meus professores eram magníficos intelectuais e excelentes seres humanos. Ainda hoje os admiro, apesar das diferenças ideológicas.

 

Porque é que saiu do seminário? O amor?

Era uma questão teórica ainda, isto é, não foi por causa de uma moça em particular. Pensava: “Eu não vou aguentar, não vou ser cumpridor”. O celibato começava a não fazer sentido e tivemos sérias lutas teóricas com a hierarquia. Depois vim para Lisboa e...

 

... estudou em Lisboa, na Católica.

Sim. Achei Portugal um país triste. Cinzentão. Formalíssimo. Os cafés estavam cheios de fumo, pessoas acabrunhadas. Apesar do medievalismo açoriano, o nosso comportamento era “natural”, não afectado.

 

Os seus pais estavam emigrados?

Sim. A minha avó paterna nasceu nos Estados Unidos em 1986. Com cinco anos, os pais regressaram aos Açores e ela com eles.

 

Em que momento é que os seus pais vão para os Estados Unidos?

Em 1966. Em pouco tempo, uma tia que lá estava reuniu os irmãos e a família toda vinda do Canadá, Brasil e Açores. Uma história de romance. Aqui, tudo o que era interessante era vivido à porta fechada. O que se lia, os debates políticos e os cineclubes. As pessoas nunca diziam o que pensavam, usavam complexos circunlóquios. O pensar era labiríntico. Uma vez na Católica, porque era presidente da Associação Académica, tive de ir encontrar-me com o Cardeal Patriarca. O Reitor ao ver-me reagiu: “Não pode ir em mangas de camisa!”. Fui passar as férias de 70, 71 e 72 com a família nos EUA e descobri um mundo mais vasto, sobretudo a universidade americana, que frequentei como externo.

 

Ficou deslumbrado com a irreverência, a liberdade?

O espaço livre. As possibilidades oferecidas por riquíssimas bibliotecas. O diálogo sem hierarquias entre professores e alunos (uma ideia é válida venha de onde vier, de um Nobel ou de um caloiro). Gostei muito dessa horizontalidade. Falo com toda a gente da mesma maneira. Simplesmente mudo o nível de complexidade conforme o público e as situações. Senti-me em casa na universidade americana e ainda hoje sinto da mesma maneira. Adoro dar aulas a alunos do primeiro ano e a universidade promove a oferta de cursos para eles dados por catedráticos.

 

O que é que aprende em particular com os alunos do primeiro ano?

Aprendo principalmente com as perguntas que me fazem. Lêem tudo o que lhes exijo. Um livro por semana. Vêm preparadíssimos para a conversa sobre a leitura e fazem perguntas por vezes inteiramente novas para mim. Para se evoluir no pensamento, nada melhor que uma boa pergunta. Não são arrogantes, falam com grande simplicidade, abertura e boas maneiras. O sistema encoraja-os a falar.

 

Os alunos portugueses são, genericamente, menos livres? Têm medo de errar?

Eu diria que, no geral, sim. E, também no geral, não lêem. Porque não leram, têm receio de errar ao fazerem um comentário ou uma pergunta ignorante ou mal informada. Reconheço, porém, que em cada curso há sempre pelo menos dois ou três que poderiam estar em qualquer boa universidade americana. Mas a falta desse hábito de espírito crítico vem desde a escola primária.

 

Quando é que ousou perguntar?

Já no seminário. Tenho uma colecção enorme de sebentas. Tomava nota das histórias das aulas, das provocações aos professores. Com datas e tudo.

 

Porquê esse rigor memorialístico?

Não sei. Às vezes com desenhos, caricaturas. Ainda hoje faço isso.

 

Nunca foi acanhado?

Fui, em criança. Era muito bem comportado e ouvia as pessoas ao meu redor dizerem isso. Foi no seminário que desabrochei. Passei a agir como me sentia. É ainda como sou hoje. É curioso que as pessoas que só me conhecem desde a minha ida para os EUA me acham de hábitos americanos, mas quem me conhece dos meus anos juvenis repete com frequência: “Nunca melhorou. Foi sempre assim”.

 

Como é que se chama o seu irmão? Pergunto-me se terá um nome invulgar. Como o seu.

José Urbano. Tenho uma irmã Lídia, uma irmã Suzete. O meu pai era Manuel, o meu avô era Manuel. O meu pai foi buscar Onésimo porque não quis Manuel e foi pedir ao pároco da aldeia uma lista de nomes. Onésimo era o mais arrevesado. Teotónio é o nome do meu padrinho.

 

Ninguém esquece, Onésimo.

Não é bem assim. Há muita gente que não atina com o nome e acha-o esquisito. Confundem com Nemésio, que é mais próximo do léxico português. Os americanos fixam-no mais facilmente. Uma questão de hábito pois decoram logo os nomes das pessoas. Vi isso nos meus filhos. Chegados da escola a casa, nunca diziam “um menino”, ou “uma menina”... isto e aquilo. Era sempre “o Mike”, “a Joanne”.

 

Em que sentido é que se americanizou?

Na América senti-me sempre à vontade e não me foi exigido que mudasse a minha maneira de ser. Não tive de adquirir tiques que noto em Portugal nas pessoas que ascenderam na escala político-social e que reproduzem maneirismos de autocontrolo, se calhar só visíveis para quem observa de fora. Na América, para além das regras básicas de trato, ninguém impõe formas rígidas de comportamento. Dá um grande sentido de liberdade individual que, nas universidades, resulta magnificamente, facilita um espírito de diálogo e respeito mútuo.

 

Em Portugal, frequentemente, a discordância é vista como um ataque pessoal.

Sim. É uma das razões porque faço questão de, em todos os debates em que me envolvo, me circunscrever às ideias. Vou reunir várias polémicas num volume intitulado Despenteando Parágrafos onde sigo essa regra à risca.

 

Disse várias vezes, de várias maneiras, que diz o que pensa. Já pensou alguma coisa durante esta entrevista que não disse?

Não. Limito-me a responder ao que me pergunta. Tem outras?

 

Porque é que é tão torrencial?

Não sei. Sou muito açoriano, vulcânico. Mas depois fico sereno como uma lagoa, quando acabo.

 

Tem algum vulcão de que goste muito?

Gosto mais de ver as lagoas do que os vulcões. Às vezes expludo, perco as estribeiras. É feio. Quando se chega aí, perde-se a razão, por mais razão que se tenha.

 

O que é que o faz vir por fora (para manter a metáfora do vulcão)?

Acho que o fechamento das pessoas ao óbvio, ao não reconhecimento de evidências empíricas e argumentos lógicos, se bem que na vida haja muito que ultrapasse esses domínios. Estou sempre disposto a manter uma conversação animada ou a falar a qualquer público. A minha regra é parar imediatamente se vejo pessoas dormir. Um professor americano pediu a um aluno: “Importa-se de acordar a sua colega?”. O aluno respondeu: “Eu? Acorde-a o senhor, que foi quem a pôs a dormir” [risos]. O professor, no fim da aula, viu-os passar de mão dada. Afinal eram namorados. Disse-lhe: “Com que então, a sua bela adormecida...”.

 

Disse que gosta de memórias e autobiografias. Uma autobiografia sua em meia dúzia de linhas, pode fazer? À luz deste que é hoje, que tem 67 anos, o que é que é essencial?

Sou dos Açores. Não é essencial, é existencial. Gosto muito de ser de onde sou. Os Açores são um universo imenso e vivi ali 20 anos da minha vida e regresso todos os Verões. A nossa infância e adolescência são fundamentais no processo de ver o mundo. Com 20 anos, quando vim para Lisboa, já sabia o que é que queria da vida.

 

Ainda não percebi o que é que quer da vida.

Quero prolongá-la eternamente [risos]. Sei que não tem solução, mas é uma vaga esperança que nos sustém.

 

O que é que queria da vida aos 20?

Tinha a minha personalidade basicamente formada. Não sabia exactamente o que iria ser, mas hoje reconheço que não me distanciei muito do que me entusiasmava. Escrevi um livro sobre meios de comunicação social, publicado nos Açores em 1970, onde estão expressas muitas das questões que ainda me ocupam. Claro que com a ida para os EUA aos 25 anos deu-se uma grande viragem. Mas não na minha maneira de ser profunda, apenas no modo de encarar o mundo.

 

Isso é porque os seus afectos são em língua portuguesa? Porque a sua formação foi cá?

Não por causa da língua, mas da cultura. Dou uma cadeira e escrevi já bastante sobre isso da formação dos nossos gostos. Porque é que, para a maioria dos portugueses, o bacalhau é melhor do que a comida chinesa? Cresci aqui. Não emigrei, alarguei fronteiras. Estou na América e sinto-me em casa. Mas fundamentalmente sou português, dos Açores.

 

Romance, ficção, escreve em português porque essa é a língua da sua criação.

Sim. Dou aulas em português e em inglês, escrevo ensaios em inglês. Outra coisa é criar. Falo inglês com sotaque. Toda a gente fala inglês com sotaque se aprende a língua depois da puberdade.

 

Com os seus filhos, fala um português com sotaque açoriano ou praticamente sem sotaque, como está agora a falar comigo?

Não há sotaque açoriano. Existe o sotaque micaelense, da minha ilha. O sotaque das outras ilhas não tem nada a ver. A razão porque as pessoas dizem isso é porque é o mais notório. Falo como estou aqui a falar. Falo em qualquer sítio da mesma maneira. Sou sempre o mesmo. Vou de calção para a praia e uso smoking em eventos formais, mas sou sempre o mesmo.

 

Para voltar ao lugar da partida, fale-me de um personagem que tenha criado. Ou de uma criação.

Escrevi teatro. Uma das peças chamava-se Ensaio Geral e era sobre um ensaio geral, e a bagunça que isso era. Cheio de elementos da vida real. O último livro de ficção que publiquei chama-se Quando os Bobos Uivam; são todas histórias reais. Daquelas histórias há um por cento que não é real, mas não digo qual é. Não tenho imaginação capaz de inventar histórias mais interessantes do que as que vejo acontecer.

 

Gosta dessa bagunça e desse desconcerto que a vida tem…

Não é assim tanta bagunça. Selecciono as histórias que me interessam e ilustram aquilo de que estou a falar. O chato é um indivíduo que quando está a conversar não sabe a diferença entre um facto interessante e um facto não-interessante. Alguém disse uma vez: um montão de factos sem uma única teoria, é botânica. Um montão de teorias sem um único facto, é filosofia. A sabedoria está em encontrar o meio-termo.

 

 

 Publicado originalmente no Público em 2014