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Anabela Mota Ribeiro

Daciano da Costa

13.12.21

Em certo momento da sua história, desistiu do sonho de ser pintor para se dedicar ao humilde mister de «desenhar tarecos, desenhar tralha». Os seus tarecos e a sua tralha encontram-se, por exemplo, na Reitoria e na Aula Magna da Universidade de Lisboa, na Biblioteca Nacional, no Casino do Estoril, no Coliseu dos Recreios, na Fundação Calouste Gulbenkian (que continua a ser a menina dos seus olhos), no Centro Cultural de Belém.

A partir dos anos 50, o percurso de Daciano da Costa confunde-se com os caminhos do design nacional. Os seus projectos, na área da arquitectura de interiores e na área do design industrial, são uma referência.

Mas no princípio, muito no princípio, ele queria ser pintor. O respeito que tem pelos pintores leva-o a sentir fascínio pela Espanha por causa do seu Velasquez... Depois sucumbiu à circunstância e ao romantismo de estar mais próximo da comunidade através do objecto produzido industrialmente. As pinturas e as esculturas seriam atiradas para o canto de um museu. E fez-se designer.

Para os lados do miradouro de Santa Catarina, onde no seu tempo se namorava, e talvez ainda se namore, fica o atelier. Numa das paredes está um poster com dezenas de cadeiras. Reconheço, no arranque do século, as cadeiras desenhadas pelos elementos da Secessão, o movimento artístico que animou Viena naqueles primeiros anos. («Nessa primeiras décadas ficou quase tudo feito, desde aí temos andado muito poupadinhos...») Começámos por falar da paixão comum pela capital austríaca. Ao fim, ele mostrava-me um croqui de Salzburgo. E também de Ballester e de zonas de transição. A propósito de Viena dizia que se dançava a valsa e se ouvia ao longe o ronco dos canhões. Esse fio de coisa indefinível apaixona-o.    

Numa outra parede, num outro compartimento, está um poster de Gauguin. Mas é Monet, pode ser Monet, entre tantos outros, a revelar-lhe a transcendência. É aí que conversamos, durante toda a manhã.

Nasceu em Lisboa em 1930, é casado com uma arquitecta e tem cinco filhas. Quatro são formadas em arquitectura. Trabalham consigo? «Só uma. Não haveria trabalho para todas!...», ironiza. É um homem à antiga, com um humor agudo que lhe fica bem e uma sensibilidade tocante.

 

... Esses períodos de incerteza, esses períodos de mudança, são enriquecedores. Fazem vítimas, naturalmente, mas são muito enriquecedores. Alguém que seja intérprete dessas épocas, das suas épocas, alguém que tenha de produzir alguma coisa, quer na literatura, pintura, o que for, mesmo neste mister mais modesto que é desenhar tralha, desenhar tarecos, desenhar prédios, não pode deixar de estar atento a essa história, aos dramas.

 

Deixe-me ir a um período de indefinição da sua vida. O momento em que desiste do sonho de ser pintor e começa a desenhar tarecos, como diz. Não é claro porque é que desistiu de pintar quando lhe vaticinavam uma grande carreira. E era a sua paixão.

Devo dizer à cabeça o seguinte: não se perdeu um pintor. Não se tratou de fazer uma análise muito racional da situação, embora haja aí uma componente que tem importância: a consciência de que tem de se trabalhar. Há que exercer a cidadania.

 

E no momento...

Não foi «Ora agora vamos deixar as pinturas e exercer a cidadania à custa do projecto». Na época, talvez o projecto oferecesse melhores perspectivas de realização, no sentido de fazer o tal design para a cidadania. Em todo o caso, foram um conjunto de opções. Algumas pessoas interpretaram isso da pior maneira. Já me disseram que eu era um rábula tão grande que tendo compreendido que não tinha talento como pintor, passei-me para uma área onde havia pouca gente.

 

Tinham razão? Acabou de dizer que não se perdeu um grande pintor.

Ouça cá: não cheguei a ser. Não se é pintor quando se pintou uns tantos quadros e estamos conversados. Não se é pintor por se ser um produtor de artefactos determinados. Como não se é arquitecto ou designer porque se é um produtor de objectos. A coisa fia mais fino.

 

Queria saber se tinha a noção de qual era o seu talento.

Já lá vamos. Quer conversar durante a bica? Com essa pergunta começa uma segunda parte desta conversa. Na primeira verificámos que gostávamos os dois de cidades, gostávamos os dois de Viena. E gostávamos dessas neblinas, quer neblinas autênticas, quer nebulosidades nos comportamentos. E se falarmos de cidades também temos de falar de outra coisa: estamos todos a regressar ao sentido dos pequenos espaços.

 

Onde radica esse desejo de regresso às raízes?

Voltar às pequenas nações pode ser uma maneira de criar defesas para não sermos completamente plastificados e cilindrados pela mundialização - à qual não podemos fugir e da qual devemos tirar partido. Agora, impressiona-me que os alentejanos e os transmontanos tenham sido revelados e que lhes tenha sido revelado o mundo pela televisão. Quando ainda eram analfabetos, já estavam em contacto com a televisão. Como estamos a falar de épocas incertas, vem a propósito dizer que não é de um regionalismo, dito no sentido eleiçoeiro, do que se está a falar. Pessoalmente tenho atracção pelas pessoas que falam com sotaque. Mais do que isso: penso que aquilo que mais gostaria que acontecesse com o meu design, é que fosse um sotaque com design.

 

Como é que seria o seu sotaque?

Qualquer coisa que tivesse que ver com uma atitude culturalista relativamente ao design, e que o diferenciasse por essa razão. Poderia não ser melhor, o design, mas que resultasse diferenciado. Um design com sotaque, um design chão, tem que ver com as raízes mais sãs. Que, sem o procurar deliberadamente, fosse significativo, não tanto da época em que se está, mas o resultado do conhecimento da história desses objectos. Que considerasse que qualquer objecto não tem nunca a forma definitiva, nem está nunca totalmente identificado, porque é um momento de uma evolução. E que através desse sotaque estabelecesse uma relação afectiva com as pessoas que usam e fruem esse objecto. Esta do design com sotaque..., não está mal pensada!

 

O sotaque resulta do momento, da fluidez da coisa inacabada, mas recebe uma herança que é sua, uma herança personalizada.

As coisas ficam, as coisas vão ficando. Há objectos que vão sobreviver justamente por terem sotaque, por serem um momento de uma forma em andamento. E ainda que não influenciem directamente os objectos que se lhes seguem, como há uma relação familiar entre os primeiros objectos e os últimos, ao fim e ao cabo, a herança é fazer parte de uma cadeia. Uma cadeia de objectos de uso corrente, objectos triviais. Nem sequer estou a pensar no design de sedução, que acho irritante. Objectos para uso. Não fui muito explícito, pois não?

 

Foi. Eu é que não fui suficientemente explícita na pergunta. Queria saber o que é que os objectos herdam de si, da sua sensibilidade. Li-o numa descrição de um objecto, minuciosa, sensorial. Dizia: «Este tecido é suave como a pele de uma senhora, e agora a madeira, menos quente, e de repente o frio do metal».

Todos os objectos são expressivos também dos materiais que se usam e do modo como são trabalhados. Se se destinam a determinado tipo de uso e fruição, a dimensão sensorial tem também a maior importância. Não há apenas dimensão física, sensorial, medidas, tanto por tanto. Os objectos podem ser medidos, como alguém já disse, com uma espécie de fita métrica elástica. As dimensões alteram-se com os dias, com as pessoas, com os estados de espírito. Não há nenhum animismo nisto, são as pessoas que lhes emprestam o que revelam.

 

Porque os usam de determinada maneira e se apropriam deles?

É. E é por isso que não há nenhum projecto que esteja acabado. Os objectos são sempre acabados pelas pessoas que os usam e que fazem a sua fruição de uma determinada maneira. Poderá ser tão criativo o uso como é criativo todo o processo de concepção do objecto. Por isso é que não há razão para falar em design de autor. O objecto só se realiza quando outras pessoas o usam também elas criativamente.

 

Sem essa dimensão utilitária, não faz sentido?

A primeira coisa que se espera é que o objecto cumpra honradamente, que garanta uma função utilitária. Senão, estamos em presença do disparate. Não sou a favor de um design radical, utopista. Sou a favor da utopia. Do design utópico realizável, como costumo dizer. Quanto mais discreto puder ser o objecto e mais acompanhe as funções quotidianas, e até o convívio com outros objectos num determinado espaço, melhor. O facto é que tem de cumprir uma missão qualquer, que não é apenas uma função de uso restrita, marreta. Nenhum objecto tem de ser prosaico. Não há nenhum objecto unicamente funcional. Essa teoria da forma e da função é uma verdadeira blasfémia! É usar em vão o nome do Senhor! Só função? Nem pensar nisso.

 

A dimensão utilitária pode ter prioridade sobre as outras?

Tem épocas, tem dias, tem objectos, tem pessoas.

 

Tem ali um postal de uma exposição do Dieter Rams, designer alemão conhecido sobretudo pela sua ligação à Braun. A durabilidade, a depuração minimalista e o carácter prático numa Alemanha em reconstrução, eram as principais premissas subjacentes ao seu design. Passados 50 anos reconhecemos aqueles objectos, e percebemos que muito do que temos hoje é uma derivação.

Sem dúvida. Por isso esses objectos são formas ainda em movimento. Que vão continuar. Há que introduzir aqui uma coisa que tem certa importância: é que há um design para designers e uma arquitectura para arquitectos.

 

Ou seja?

Há um tipo de objectos e de edifícios que os arquitectos fazem para arquitectos e os designers para designers. Olhando por cima da cabeça dos mortais. É um design e uma arquitectura elitista. Não é o caso do Dieter Rams. Mas não quero perder a oportunidade de fazer esta espécie de denúncia. O Dieter Rams: se lhes fazia alguma observação, aos objectos, é que há certa frieza naquilo tudo. A Alemanha estava a sair de um período em que tinha contrariado a história, o conceito e as culturas locais. Estaria ele a interpretar isso? Será aquele design despojado uma maneira de não haver nenhum compromisso? Será uma linguagem asséptica porque não convém fazer referências nem à história nem ao contexto? Sei lá.

 

Voltemos à ideia de cidadania. Dieter Rams, pesando ou não a questão da cidadania, fez objectos de que as pessoas precisavam na vida de todos os dias. Foi o seu modo de intervenção numa Alemanha a reerguer-se. Há pouco dizia-me que deixou a pintura porque o design lhe permitia uma intervenção cívica mais aguda.

Quer voltar a esse tema? Se me desviei, não foi para me furtar. A questão do design de cidadania? Não há dúvida que tudo é o resultado de uma vocação, das circunstâncias e da fortuna. Nada há nada de esotério nisto. A vocação, o que é?, é um conjunto de aptidões que uma pessoa naturalmente revela, que vêm no ADN, não vem uma fada debruçar-se sobre nós a dizer «Tu serás uma estrela na Terra, serás estupendaço!». Lembro-me que tinha quatro anos um tio disse-me «Ah, tens muito jeito para o desenho, tens de ir para as Belas Artes». A vocação tanto podia ser para uma coisa como para outra. O que é que estava mais à mão? O rectângulo, para fazer bonecos, pinturas, etc.

 

Em todo o caso o curso que foi tirar foi o de pintura.

Havia curso de pintura mas não havia curso de design; arquitectura não me deu jeito. Portanto, aí vai ele de escantilhão para a pintura. Não sou por um elementar determinismo, mas as circunstâncias que nos rodeiam condicionam a nossa actividade. O que é que há para fazer naquele momento?, o que é que é mais importante? E já se está em idade de tomar consciência de que se tem um lugar. Antes de se ser pintor ou escultor, é-se cidadão. Portanto, um conjunto de circunstâncias permitiu um maior gosto, até com algum romantismo e ingenuidade ... Porque também se era muito inculto! Estamos a falar de um tipo que era um calhau!, uma pedra por polir. Tudo era ainda primitivo. Era a criação do mundo.

 

E a pintura?

Nunca mais fiz nenhuma pintura. Nunca. Seria demasiado tentador e poderia dispersar-me.

 

Outra coisa é saber se nunca teve vontade de voltar a pintar.

Hum, não... O que faz um pintor não é colocar cores num único plano. Os interiores ou objectos que tenho desenhado acusam esse ADN da pintura. Não me envergonho nada dele. Tenho a maior admiração pelos pintores. O facto é que era necessário tomar uma opção. Houve dois movimentos a que assisti, já um pouco lateralmente: o Surrealismo e o Neo-Realismo. Porque é me aproximei mais do Neo-Realismo, até mesmo nas pequenas pinturas que fiz? Porque era uma coisa mais generosa, mais aparente de que se estava de um determinado lado. De que lado é que nós estamos? De que lado é que um sujeito se põe? Sem contrariar a minha vocação, pus-me do lado que romanticamente considerava... Com alguns slogans da época, «Democratização da arte», etc, etc. Coisas que com toda a inocência e toda a incultura se paparam. E também com certa demagogia dos que sabiam muito bem o que estava a contecer.

 

Quem é que aqui sabia muito bem? Portugal estava fechado ao mundo.

Havia uma ou outra pessoa com quem tinha contacto permanente, como o meu mestre Frederico George, companheiros como o Sena da Silva, o António Garcia, e outros assim, que já estavam com a utopia do design. Pela mesma razão pela qual tenho tendência para as épocas de incerteza, talvez tenha um certo gosto em ser um figurante ou actor desses períodos incertos. Talvez seja isso que me estimula. Contrariar as circunstâncias, não ser exactamente aquilo que nos rodeia, que nos força a ser. Isto é se calhar de suprema presunção, devo dizer, mas estou a pôr as coisas tal qual as sinto... Estas entrevistas são uma espécie de confissões, são as modernas confissões laicas! [risos] E há, finalmente, a fortuna, a sorte ou o azar... A vocação e as circunstâncias ainda se podem controlar, racionalizar, agora o acaso que nos cai em cima, cara amiga, só há uma maneira: tentar cair bem. Uma onda inesperada que nos cai em cima. Como é que um sujeito se safa? O acaso empurra-nos para paragens inesperadas, tem o fascínio de ser incontrolável.

 

Quando foi para o atelier de Frederico George...

Foi um acaso.

 

Um acaso determinante na sua vida.

Eu era aluno da Escola de Artes Decorativas António Arroio e o Frederico George escolheu-me. Precisava de uma força bruta qualquer para lhe ampliar os desenhos. O Frederico acompanhou-me muito, durante 12 anos foi meu tutor. Mas houve outros encontros de acaso em momentos de viragem da minha vida.

 

Por exemplo?

Uma coisa perfeitamente anedótica... Quando acabei o curso de pintura na escola de Belas Artes fui convidado para assistente e a Pide pôs-me na rua. Tinha acabado de casar, já tinha uma filha, a Teresa estava à espera de uma segunda filha. Perder um emprego de um momento para o outro e praticar uma profissão que não existia, não era cómodo, c’os diabos! E então, ali na esquina da Livraria Sá da Costa, encontrei uma pessoa amiga, «Você como é que está?». Ele vem da sua vida, rubicundo e bem disposto, e sai-lhe um tipo a lamber as feridas... Deu-me esta frase: «Quem aos vinte não é, aos trinta não foi, e aos quarenta não tem, aos cinquenta não será ninguém». Tive a sensação de que era um percurso de uma vida que tinha de ser feito. É uma historieta, reconheço, com algum pitoresco e sem valor literário, mas que dá bem como é que pode mudar-se o estado de espírito de uma pessoa com uma palmada nas costas e uma frase feita.

 

Quando foi convidado para dar aulas e a Pide o pôs na rua, estava ainda no atelier no Frederico George? Dar aulas seria uma segundo emprego?

Já tinha saído, em 59, e isto passou-se em 61 ou 62. Não tinha emprego.

 

Logo a seguir, começa a trabalhar com o industrial Fernando Carvalho Seixas.

Outro encontro, também de acaso. Conhecia-me do atelier do Frederico George e contratou-me para desenhar móveis para a fábrica dele.

 

Conte-me a história da cadeira «Prestígio», de que gosta particularmente, e que remonta a essa primeira fase da relação com o industrial.

Fui trabalhar para uma fábrica extraordinária onde trabalhavam 800 pessoas. O tal design cívico não é senão isto: é tentar manter o trabalho, com todo o romantismo que isso possa ter. A fábrica estava a reconverter-se; fazia-se sobretudo mobiliário hospitalar, com tubo virado. A certa altura, esse mercado entrou em crise; havia uma secção da fábrica, que tinha uma centena de operários, que começou a ficar sem trabalho. O administrador desafiou-me a desenhar um objecto qualquer para aqueles tipos continuarem a trabalhar. Desenhei a tal cadeira «Prestígio», em varão virado. Sob o ponto de vista formal, ou estético, não é uma coisa notável, nem pouco mais ou menos: uma coisa para sentar o rabo, uma coisa para encostar, com alguma graça, estruturazinha metálica e estamos conversados. O que é facto é que não só se conservou o pessoal, como a secção foi ampliada e se comprou mais uma máquina para virar tubo! Isto é o que considero design para a cidadania. Esse é que é o design industrial. Design para um objecto de sedução?, então, francamente, podia ter continuado a pintar.

 

Esse era o seu modo de fazer política, de intervir?

Pois, então o que é que havia de ser?

 

Fez política como convencionalmente se faz política?

Trabalhava muito, tinha o tempo muito ocupado, ainda colei uns papéis nas paredes, mas pouco. Ouça, há uma peça do Camus que vi em Paris e que veio ao encontro dos meus complexos interiores pela minha pouca participação. A peça do Camus tem a seguinte situação: um anarquista tinha de colocar uma bomba no carro em que vinha o tio do imperador. Não tem coragem para o fazer porque no carro seguia uma criança. É julgado severamente pelos outros e há um momento em que vem à boca de cena dizer o seguinte: «Mas não haverá na revolução lugar para os cobardes?». Eu acho que há.

 

Importa-se de definir coragem?

Mas há muitas formas de coragem! Há a coragem da «Mãe Coragem», há a coragem do pegador de touros, há a coragem inútil de um sujeito que pode cair de uma falésia porque vai apanhar uma flor para a namorada. Como é que se pode fazer quando não se tem essa coragem para enfrentar a dor, enfrentar os prejuízos, depois de se ter ficado escaldado como se ficou por ficar sem emprego? É fazer bem o seu trabalho todos os dias, e fazê-lo em condições de ultrapassar a função de qualquer trabalho, que é levar um salário para casa.

 

Isso é uma espécie de redenção?

Provavelmente será. Mas não penso que deva ser dada muita importância ao facto. Todas as pessoas, quando fazem bem o seu trabalho, estão a fazer um trabalho cívico.

 

Esta questão da cobardia e da coragem apareceu em todas as entrevistas suas que li. Pareceu-me que era...

Um trauma? Talvez. Não se pertence a uma geração como a minha em que foram sacrificadas tantas pessoas, de camponeses a operários, de marinheiros a artistas, sem se sentir solidariedade por quem teve essa coragem, por quem foi sacrificado. A minha geração está marcada por isso. E quem não fala nisso, se calhar é porque não gosta, não se sente à vontade.

 

Essa é outra coisa, o à vontade com que diz «Quem tinha coragem, ia preso». Deixando subentender que não foi suficientemente corajoso.

De facto. Se calhar, também não surgiu a oportunidade. Não quero passar pelo chamado acagaçado... Eu não penso ser um acagaçado. Há muitas formas corajosas de estar na vida, vencendo-a todos os dias, ultrapassando as dificuldades que se levantam todos os dias. Há uma coragem constante, quotidiana, de uma vida inteira, sem se desviar daquilo que se considera ser os princípios sãos. Falei nisto porque não quis ser confundido, por pertencer à geração que pertenço, com os sujeitos que falam jactanciosamente disto, com os trapalhões que tiveram, coitados, de ir para a Suiça com os dinheiros do papá. O que é ter tido coragem? Houve os que foram para a guerra, e morreram, alguns. Outros exilaram-se, passando mal para não irem para a guerra. E houve outros, meninos muito corajosos, que foram fazer cursos para a Suiça e agora escrevem livros dizendo mal do 25 de Abril. Isso irrita-me.

 

«Vontade Indómita» é um filme extraordinário de King Vidor inspirado na figura do arquitecto Frank Lloyd Wright e interpretado pelo Gary Cooper. O personagem manifesta total intransigência quando sugerem alterações aos seus projectos e por isso vê-os sucessivamente recusados. Chega à situação limite de trabalhar numa pedreira, o que prefere, a ver o seu trabalho desvirtuado.

Isso é a utopia dos artistas. Tenho a maior estima e respeito pelo Frank Lloyd Wright. Bem sei que estamos a falar da vida das pessoas e que é uma jornalista que se ocupa de pôr à vista a vida das pessoas...

 

Posto nesses termos, faz de mim uma coscuvilheira!

Não é nesse sentido!, é no sentido de pôr ao dispôr das pessoas um retrato mais íntimo. Mas é preciso considerar o seguinte: há exemplos de vidas inteiras que ficaram na obscuridade. Os ataques de irritação que se podem ter quando se conhece a vida do Wagner, que compôs a mais sublime das músicas e que era um tratante, um safado da pior espécie... Adianta revelá-la? E o Mahler?, estava a fazer aquela espantosa música e tratava mal a mulher!, viviam com dificuldades e o cavalheiro só usava sapatos feitos de encomenda. E o Debussy, quando estava a compôr e o criado o interrompia?, dava-lhe bengaladas. Se estas entrevistas servem para revelar um pouco das pessoas, não sou acagaçado, estou à vontade.

 

Se posso ir mais atrás, não conheço a relação do seu pai, da sua mãe, desse tio a que aludiu com a arte.

O meu pai era um simpático republicano, como convém a um farmacêutico de bairro.

 

Qual era o seu bairro?

Estava numa zona de transição, numa rua entre o Bairro da Lapa e a Pampulha. Os ricos na encosta e os pobres em baixo. Eu convivia com aquele pessoal. O meu pai não fazia ideia do que era esta história das artes. Anos passados, ofereci-lhe um relógio, um belíssimo relógio, aliás, um relógio de ouro. Ele agradeceu e disse: «No dia em que me apareceste com a ideia de ires para a pintura, disse cá comigo: lá vou eu sustentar este tipo toda a vida». O meu pai era isto. A minha mãe, como todas as mulheres, era muito mais fina. Teve a percepção que para o seu menino, alguma coisa de bom havia de acontecer. A minha mãe orgulhava-se de mim, e, mais do que isso, cultivou-se à medida que eu próprio fui evoluindo.

 

Para poder acompanhá-lo?

Mais ou menos isso. Passou a fazer leituras que não teria feito. Era uma mulher extraordinária.

 

Porque é que o presente oferecido ao seu pai foi um relógio e não um objecto concebido por si?

Não havia coisas concebidas por mim que tivessem algum valor na altura.

 

Há um valor emocional inestimável.

Eu queria uma coisa de ordem prática e com algum valor. Era preciso estar com o envolvente, não é?

 

À sua mãe, o que é que oferecia?

Trazia de fora uns perfumes de que ela se orgulhava.

 

Pense que desenhava uma coisa para a sua mãe.

Ainda estou a tempo, para a memória dela... Não sei bem, mas seria qualquer coisa perfumada, qualquer coisa quente, qualquer coisa com uma cor profunda, uma coisa que podia não servir para nada senão para isso: para ser um objecto para a minha mãe.

 

Os presentes feitos com as mãos têm um significado particular.

Gosto de cozinhar para a minha mulher. Mas são sempre coisas prosaicas, o trivial bem feitinho. É nessas coisas mais prosaicas que às vezes residem as grandes homenagens. Gosto de coisas simples. As grandes homenagens estão nessas.

 

Visitou em Malta um monumento megalítico de que gostou particularmente. Achou comovente a forma como aquelas pedras de encaixavam. O que é que o impressionou?

Antes de mais nada, o factor surpresa: eu nem sabia que havia monumentos megalíticos em Malta. Todos esses monumentos são o nascimento da arquitectura. Tem o espantoso confronto com a natividade, com qualquer coisa que tem um gesto natal. Esse edifício, tal como o Stonehenge, têm esse fascínio: os homens construíram pela primeira vez daquela maneira. E já com uma certa complexidade. Não só eram grandes lajes que se encaixavam umas nas outras, como definiam espaços, zonas de transição. Não era um simples monumento megalítico como é, por exemplo, aquele cromeleque em Almendra, perto de Évora.  

 

Percebe em si, no movimento da mão, a persistência de um gesto, de um primeiro gesto? Quando começa a desenhar, há 40 anos e nos dias que correm, há um traço comum, há um mesmo impulso frente à folha em branco?

A mão é um instrumento extraordinário e a relação que se estabelece entre a mente e a mão é fascinante. Não queria estar aqui com muito conversa, até porque já é automático, é uma forma de escrita como outra qualquer. Cada momento do processo criativo de um objecto corresponde a uma forma de exercer a manualidade. Razão porque a cultura do desenho é também a cultura da mão. Outrora fazíamos tudo com as mãos. Há um design antes do desenho. Depois passámos a construir com as nossas mãos, a pôr tijolos uns em cima dos outros ou a tornear uma peça de cerâmica. A realização de um objecto estava ligada à nossa própria realização. O que nos sobra dessa materialidade é a manualidade do desenho. Quando se perder, ficamos completamente separados da realidade material. Isso a mim inquieta-me muito.

 

Em que termos?

Perder a ligação à materialidade significa perder a ligação à cultura e ao compromisso que se tem com as estruturas físicas, em si próprias transformadoras do ambiente e da realidade. Se deixarmos de fazer isso, empobrecemos, como desenhadores, como projectistas. Não posso deixar de considerar que é assim, pelo menos no período de formação dos arquitectos e dos designers, porque há coisas que só se exprimem pelo desenho.

 

Nunca mais pintou. Mas desenha pelo prazer de desenhar.

Então não desenho? Tenho centenas, centenas de croquis de viagens. São um diário de bordo: a gente vai andando e vai desenhando. É pelo prazer de ver. (Só se vê bem quando se representa pelo desenho). E pelo prazer do gesto material de fazer aparecer os traços, de vencer a inércia do papel. É como assobiar! Assobiar ou trautear uma música de que se gosta. Trautear com as mãos.

 

João Paulo Martins, comissário da exposição comemorativa dos seus 40 anos de ofício, (Gulbenkian, 2001), considera que Efémero e Teatral são palavras fundamentais para perceber a sua obra.

A representação é-nos intrínseca. Talvez tenha um pouco o sentido teatral das coisas. Não posso deixar de observar os movimentos das pessoas no espaço. Até porque a arquitectura é para as pessoas viverem. Como os objectos são para as pessoas usarem e fruirem. A arquitectura sem pessoas é o deserto. O deserto é uma coisa tremenda. A arquitectura também é o espaço que está ocupado e o espaço que está desocupado. Essa relação dinâmica...

 

Como um livro, manuseado ou não, vivido ou não.

Um livro é um objecto fascinante. Não sei se gosto de ler pelos livros ou pelo conteúdo! [risos] É evidente que é pelo conteúdo, mas gosto do objecto físico, do peso, da capa, cartonada ou não, do aroma que sai dos livros acabados de imprimir.

 

Porque é que tem ali um poster com as tahitianas do Gauguin?

Sobrou. Gosto muito do Gauguin, mas não está lá por ser eleito. Mas o Monet... Atinge-se quase a exaltação quando se vai, por exemplo, o Museu Marmottan.  

 

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2003

Daciano da Costa morreu em 2005

 

 

Leonor Xavier

13.12.21

Raul Solnado, com quem viveu, dizia: “Ai, a minha vida é tão frágil, cuidado. Se ela cair da estante parte-se aos bocados, estraga-se toda”. A vida de Leonor Xavier, contada no livro Casas Contadas, não caiu da estante e não se estragou. A obra mereceu o prémio Máxima de Literatura deste ano e a propósito dele conversámos de manhã cedo, na sua casa cheia de livros, de pintura, de retratos, de marcas da vida. A vida de Leonor, nascida em 1943, pode contar-se a partir das suas casas, dos encontros fundamentais, olhando para quem foi sendo, para as fracturas, para o Brasil onde soube que também era outra.

Uma pessoa é sempre ela e as suas circunstâncias. E é um livro em movimento, que precisa de ser escrito, para depois ser lido.

 

Foi para o Brasil em 1975, existia sobretudo numa função: a da mãe, esposa burguesa, da menina bem comportada. Foi no Brasil que adquiriu uma identidade própria?

Adquiri a consciência da identidade. O António Alçada Baptista, na introdução do meu livro de entrevistas Falar de Viver, comparava-me àquelas árvores japonesas que estão dentro de uma cápsula, pequeninas, e que crescem quando saem da cápsula. O Brasil deu-me uma consciência de um outro mundo, que não este, tão ordenado, onde nasci e vivi.

 

Vamos detalhar as duas fases para perceber melhor a eclosão dessa árvore que está encapsulada e depois resplandece.

Vivia-se, e vive-se, numa sociedade onde não se conjuga muito a primeira pessoa do singular. Em geral, fala-se de política, viagens, filhos, estudos, doenças. Raramente alguém diz: “Eu nasci, fiz, aconteci, a minha vida é esta, sou feliz, sou infeliz”. A felicidade, a alegria é vista com uma certa desconfiança. 

 

Na sociedade em que vivemos é de bom tom o pudor em relação à vida privada, aos sentimentos.

Exactamente. Pensa-se que a vida privada tem de ser discretamente levada, que não pode ter falhas. Se há alguém na família que bebe, não se fala disso. No Brasil, percebi que o que interessa é o nome próprio, muito mais do que os nomes de família. No Brasil somos avaliados pelo que somos, e não pelo que temos ou pelas pessoas com quem saímos. Outro dos ingredientes que fizeram essa consciência da identidade foi o conviver todos os dias com o diferente. O meu marido era professor de Direito, fomos para S. Paulo, uma cidade gigantesca, com pessoas completamente diferentes de nós. Eu sabia lá o que era um libanês! Era outro mundo. Não havia telefone em casa, havia telefone de recados no patamar do prédio. Em Portugal estamos sempre relacionados com, protegidos por, situados em.

 

Que relação interiormente mantinha com Portugal? Estou também a perguntar por aquela que tinha sido, que ainda era.

A sociedade múltipla que S. Paulo era deu-me a consciência de ser portuguesa, fez-me gostar mais de Portugal. Ganhamos a lucidez da distância. Às vezes até a pequenez e o provincianismo são comoventes. Percebemos como tudo é fugaz e tão pouco importante. Não importa se se é ministro, banqueiro, mulher a dias.

 

A vivência do corpo e dos sentidos, que é diferente no Rio, teve um papel decisivo na sua emancipação? Na grande babel S. Paulo não há uma permanente exposição do corpo ao sol, a praia ao dobrar da esquina.

O que se passa é que Portugal é uma sociedade de véus. Se vamos fazer uma aula de ginástica, até hoje, em 20 pessoas há pelo menos duas que têm um casaco amarrado na bunda. Porque é que as pessoas, além de estarem tapadas a fazer ginástica, ainda se tapam com uma coisa amarrada? Em S. Paulo e no Rio há em comum um cuidado das pessoas com elas próprias. Não se encontra uma pessoa, por mais favelada que seja, que não arranje as unhas dos pés e das mãos todas as semanas. Vendi cremes a certa altura; as pessoas gastam imenso dinheiro em cremes, cuidam-se, fazem ginástica. No Rio ganhamos a sorte de ficar descomplexados. Vemos pessoas altas, magras, gordas, brancas, pretas, mulatas. Andam na rua e na praia tal qual são. Eu era BBG: baixinha, gordinha e gostosa.

 

Essa consciência do seu corpo interferiu com o seu casamento?

Não teve nada a ver com o fim do meu casamento. Acontece que fizemos uma travessia, tivemos sete anos de namoro, mais 19 de casamento. O meu marido seguiu um caminho de pensamento em relação às coisas e eu outro. Pensei que havia uma vida além dessa, partilhada com pequenos conflitos que decorriam de gostar de uma pessoa, uma conversa, um lugar, e a pessoa com quem vivia não. Como eu já não tinha 25 anos nem estava nesse circuito fechado, quis separar-me. Foi uma separação civilizada.

 

Seria impensável para a que foi daqui, para esse quadro social e familiar, um divórcio após 26 de relação.

Sim. Fui a única do meu grupo de amigos que se separou. E não era comum, na minha geração, serem as mulheres a quererem a separação. Fi-lo sem pensar nas consequências práticas de uma separação – é uma coisa cara. Habituei-me a administrar bem os meus dinheiros, a casa, as coisas. Os meus filhos eram adolescentes. Percebi o que era ser-se mulher na idade boa da vida.

 

Que quer isso dizer?

É poder seduzir pessoas (não tem que ver necessariamente com cama). Estar à vontade para resolver onde é que se quer ir, com quem é que se quer estar, como é que se recebem pessoas em casa. E isso a tempo, e não na viuvez. Ter 40 anos e recriar tudo isso bem, sem perseguições, litígios, conflitos.

 

A Clarice Lispector, escritora que admira, teve um percurso semelhante, ela que viveu anos a ser a mulher do senhor embaixador. É preciso confiança para rasgar a convenção, perceber que há uma vida que se vai começar.

Eu tinha duas vidas. Quando mudei para o Rio, em 1979, casada, comecei a trabalhar no jornal O Mundo Português. Todos os dias ia de ônibus de Ipanema até à Cinelândia (o lugar mais povão que se possa imaginar). O jornal era numa rua de putas, ladrões, botecos. Eu fazia os percursos do povo por aquelas ruas. É importante sentir esse anonimato. Percebemos como é que circulamos naquele ambiente, como é que nos defendemos se há um incidente. Depois tinha a vida de pessoa da zona sul do Rio, saía para jantar fora em restaurantes bons. Por isso, eu tinha já desenrascanço no dia a dia. Algumas amigas portuguesas que viviam no Rio nunca tinham andado de ônibus.

 

As pessoas que conheceu e com quem se deu não eram apenas as da comunidade portuguesa. A abertura aos jornalistas, poetas, intelectuais do Rio germinou em si.

Como dizia o António Alçada, gosto muito de quem gosta de mim. O Millôr Fernandes, conheci-o porque o quis entrevistar. Hoje, sempre que vou ao Rio estou com o Millôr. Quando se está dentro, o circuito acaba por ser muito pequeno.

 

Contou a sua história no livro Casas Contadas. Mas é possível contá-la, também, a partir dos encontros que teve. Que encontros apontaria como os fundamentais para a pessoa que é hoje?

O António Alçada foi uma pessoa importantíssima na minha vida. Uma pessoa que me fez vir para Portugal, simbolicamente, foi o Mário Soares. Em 1987 fez a primeira viagem como presidente ao Brasil e levou uma comitiva de 150 pessoas. Eu vivia há 13 anos no Brasil e fiquei de boca aberta. Portugal era um país que sentava à mesma mesa o ex-comunista José Luís Judas e o coleccionador de arte Jorge de Brito (que não podia ser mais conservador). O reencontro com o presente do meu país fez que eu tivesse o impulso de voltar. O que aconteceu ainda nesse ano. Outras pessoas importantes: a Elsie Lessa, que me disse: “O mais importante que você tem é o seu capital vida. Não desista de fazer coisas”; a Tônia Carrero, que me escreveu numa carta: “Você e o Raul [Solnado], que glória!” Depois de me separar, saía imenso com ela. Ela usava um shortinho, eu roía as unhas, não usava saltos altos. Conversávamos muito de coisas de mulheres.

 

O romance com Raul era glorioso, mas improvável.

Foi uma ligação muito importante. Eu não estava nada disponível para romances, vim com três filhos, queria era perceber como é que se vivia aqui. No Brasil, nessa viagem, ele não tinha dinheiro brasileiro e eu emprestei-lhe o que tinha – ele achou aquilo uma coisa transcendente. As coisas aconteceram naturalmente. O Raul era um grande sedutor, fazia aquele ar muito frágil, que era uma grande arma. Explorava imenso as suas distracções, entornava xícaras, copos…, e deu certo. Não foi uma paixão louca. Nunca tinha visto o Raul no teatro, não sabia A Guerra de cor. Em Cuba, no começo da relação, sentou-se e contou-me a história da sua vida. Sem ser para fazer rir. No Rio, deixava-me recados: “É o Raul lusitano…”. Pouco a pouco, ficou uma ligação intimíssima, criativa, fundamental.

 

Tinha 46 anos quando o romance começa. Uma altura em que normalmente as grandes histórias de amor já estão arrumadas.

Mas estão longe de estar arrumadas. Há um verso do Drummond de Andrade que diz: “Na perigosa curva dos 50 derramei nesse amor”. São fases de grande viragem.

 

Porque há um desejo de manter uma efervescência da juventude? Porque a partir dessa curva da vida passamos a ser mortais?

Não se tem aos 50 anos a noção do ocaso. Têm-se agora, com 66. Por isso é que há urgência em viver. Se há 20 anos me perguntassem: “Queres ir a Paris?”, eu responderia: “Não me dá jeito, vou daqui a seis meses”. Hoje vou. Sabe Deus se amanhã não parto uma perna ou estou tonta. Depois dos 50 e tal pergunta-se como se sobrevive no futuro, se esse futuro existir. Tem-se a noção da precariedade, sim. De cada vez que vou ao Brasil, tenho consciência dos que já morreram, dos que estão perto de morrer. É complicado esse confronto. A maior parte das vezes já sou a mais velha dos lugares onde estou. Tenho a sorte de ainda ter energia, resistência, actividade.

 

Há um momento da vida em que começamos a replicar os nossos pais, mesmo sem disso ter consciência? Como eram os seus pais?

Sou completamente diferente dos meus pais. O percurso que fiz não tem nada a ver com o percurso deles. São tempos muito diferentes, é o antes e o depois da Segunda Guerra. O meu pai era um médico conhecido em Lisboa, de feitio talvez seja parecida com ele. Era uma figura forte, respeitada, educou-nos com uma grande exigência. Eu fazia frente, era mais rebelde do que os meus irmãos. A minha mãe era de uma grande inteligência, intuição, lia muito. Deu-me um sentido estético da vida, as mesas de almoçar e de jantar bem postas, as coisas limpas e arrumados, o estar-se bem na vida. Tinha uma grande preocupação que eu acabasse o meu curso, trabalhasse, fosse independente – o que não era comum.

 

A sua formação é católica. Essa dimensão nunca perdeu importância na sua vida, mesmo no Brasil, onde mudou tanto?

Sempre foi uma dimensão importante. Descobri no Brasil uma igreja de alegria na qual as pessoas acreditavam no reino de Deus sobre a Terra. As pessoas intervinham. Essa formação religiosa não tem a ver com o cumprimento dos rituais, integra a personalidade das pessoas. Não se está em pecado mortal porque não se foi à missa e se está na praia ou a fazer o almoço. Se acreditar na vida eterna, estou menos angustiada, não estou em solidão. Se tenho o privilégio da Fé, não estou sozinha.

 

Disse que se comoveu até às lágrimas quando soube que tinha ganho o prémio Máxima de Literatura.

Pois foi. É um trabalho muito solitário, exposto. Imagine pessoas como a Teolinda Gersão ou a Hélia Correia, que têm textos maravilhosos e já foram premiadas: não é todos os dias que são citadas na imprensa. Não estava nada à espera de ganhar. É muito comovente um reconhecimento. Tive a sorte de na minha vida terem acontecido coisas interessantes. Acredito que todas as vidas são contáveis. É também um testemunho do meu tempo.Tinha as facturas, as cartas, imensas coisas anotadas; sustentei a minha narrativa em coisas concretas. O Rui Zink disse no outro dia que cada homem é um livro em movimento. Eu acrescentaria: cada mulher é um livro em movimento. É uma boa definição. 

 

 

Publicado originalmente na Máxima em 2010