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Anabela Mota Ribeiro

O Delfim

16.12.21

«P’ra cabra e p’ra mulher, rédea curta e porrada na garupa». Para Domingos, o mesmo. Ainda que para este, no receituário que prescreve a masculinidade, «vinho por medida» venha também à cabeça. Os mandamentos são elementares, garantia Palma Bravo, avançando pela sala. Foi a partir deles que fez do operário o animal de precisão que a aldeia aprendeu a reconhecer.

O Domingos. Perscrutava o Jaguar, abrindo-lhe a boca, inspeccionando a armação, apurando a técnica, como o patrão Palma Bravo fazia às putas de Lisboa, «Abre a boca, filha!». Nos entrementes, a infanta Mercês mordiscava com os dentes o colar de ouro que trazia ao pescoço. Domingos, passado um ano sobre a tragédia, era evocado na aldeia como o Cão Maneta, envolto no mistério das mortes, fantasma que vagueava sem dar sossego à terra.

A terra, a aldeia, era a Casa da Lagoa. José Cardoso Pires pensou numa Gafeira que distava hora e meia de Lisboa, em velocidade acelerada no Jaguar do Engenheiro. A casa, a lagoa, são o que interessa para urdir o plano que caracteriza um país putrefacto na decadência do Estado Novo. Ao fundo, no televisor da sala. Fernando Lopes, o realizador, quis o televisor sem som. Maria das Mercês faz paciências, suspirando a ar acre da sua vida boa. Os portugueses são atirados para a guerra. Carne para canhão cujos estilhaços rebentam no verde e no calor de África. No livro, a contemplação sorumbática das paciências não existe. Mercês faz tricot, coze bolos, odeia os cães.

Aprisionada no vale, na lagoa, na casa, Mercês existe para Palma Bravo. Ele mantém a distância respeitosa anotada para o caçador (alter-ego de Cardoso Pires, como agora o é de Fernando Lopes): «Tu sabes a razão porque nenhum homem deve fornicar a mulher legítima? Porque a mulher legítima é o parente mais próximo que o homem tem, e entre parentes próximos as ligações estão excluídas». E há o criado, Domingos, mestiço e maneta, o operário destroçado que Palma Bravo chamou a si, para amar como se ama um filho que se não tem, para levar às putas de Lisboa para que seja «escovado, bem escovadinho».

E no fim não há nada. Morreu o criado, morreu a senhora, o delfim crê-se perdido por Lisboa, já nada daquilo existe. Positivamente, já nada daquilo existe. O caçador regressa à aldeia para a corrida aos patos, passado um ano. A lagoa permanece como centro do mundo, força epicêntrica daquele mundo.

Sábado, pelo fim da manhã. Alexandra Lencastre recebe o sol da varanda, olhando Milton Lopes que em baixo se queixa do Jaguar, «Deu-lhe uma cãibra». O carro não queria andar. Ele é o prodigioso achado que incarna o lacaio concebido por Cardoso Pires, mestiço e maneta, «Cão de três patas», como diziam na aldeia. Ela tem o recorte suave das meninas educadas em colégios, que simulam rubor quando ouvem anedotas porcas. Fernando Lopes, num almoço em Lisboa, a semanas da rodagem, traçava com ela o perfil de Mercês, hesitante quanto à cor do cabelo. Do louro fosforecente que Alexandra usava nesse dia, passou-se ao tom de mel que conferia recato à esposa Palma Bravo. A roupa foi mandada fazer por Zé Branco, a directora de guarda roupa, decalcada das revistas de moda que a personagem folheia em cena. Mercês tinha gosto refinado, apreciava os modelos Jean Patou. As crónicas de solidão seriam simuladas nas cartas alinhadas em paciências, sem o tricot descrito no livro (faria dela uma dona de casa menos sofisticada?). Esta Mercês, refém do marido na Casa da Lagoa, alinha cartas, diz com afectação «Você hoje está insuportável», e queixa-se à amiga da solidão a que está votada, «Estou aqui fechada a sete chaves. Com os cães e os criados». Uma Ofélia de trazer por casa. A ouvi-la, ao telefone, Micucha, a amiga a quem o marido chama Poetisa do Caralho.

Sábado, manhã. À casa chega-se depois de passar uma alameda de cedros. Aos pés da casa, há um terreiro inundando pelo sol que faz resplandecer as paredes caiadas de branco. É aqui, também, que fica depositado o Jaguar cor de sangue a quem dá a cãibra. O Jaguar é Palma Bravo, «Tal carro, tal dono». Rogério Samora empresta-lhe a voz de trovão que anuncia a imponência, rejubila ante o Lopes, o Nando, como às vezes lhe chama, que lhe ofereceu a existência do Delfim com a duração de oito semanas. «Este aqui», diz-me ele, abraçado ao Lopes, no primeiro dia, «É um Poeta de Imagens». O actor vem do filme do Botelho, vai para o filme do Grilo, e depois para o de Margarida Cardoso, está no filme do Lopes. Em alta, positivamente está em alta.

Este engenheiro de que se fala, saído da pena do Zé Cardoso, em letra miúda e olhando para o mar?, escreveria ele assim em 66? Este engenheiro gosta de dizer Positivamente. E Porrinha. «Não é delicioso, o Porrinha?», diz um deles recobrando o riso no fim do almoço, «Onde foste buscar o Porrinha?», indaga o Lopes, sem a certeza de que conste do guião escrito pelo Vasco Pulido Valente. Foi buscar ao livro, ao sacana do livro que não sai da cabeça do gajo, do Samora. «Nando, posso fazer assim?».

Maria das Mercês observa, risonha, o embaraço de Domingos às voltas com o Jaguar. O carro é uma peça preciosa de 68, justamente, ano de edição do livro: um XJ 6, alugado a um coleccionador. Minutos antes, Alexandra subira as escadas, repetindo de si para si, em surdina: «Tomás, meu querido, porque é que não diz antes que o rapaz tem medo?, tem algum mal ter medo?». No terraço, repetirá a frase na mesmíssima entoação, olhando de soslaio para o marido, que se encontra à direita, e depois para o Caçador, à esquerda, à procura de anuência.

Rui Morrison veste o caçador, numa plácida figura que usa bombazina verde e sorve em goles o whisky que Palma Bravo lhe põe no copo. No dia seguinte, domingo, Fernando Lopes apresentá-lo-ia. «É ele que faz de mim na história». Por ora estão os três no terraço, cumprindo escrupulosamente posições fixadas pelos técnicos. Fernando, Eduardo Serra e restante equipa seguem a cena em baixo, no terreiro, de olhos cravados no monitor.  

A cena que ocupa a manhã de sábado desenrola-se na parte fronteiriça da casa, à qual se chega atravessando a vila de Ourém, percorrendo a alameda de cedros. A casa chama-se Quinta da Alcaidaria-Mor e nela permanecem as fotos da família proprietária. Fernando Lopes utiliza-as, mais tarde, numa alusão a «Rebbeca» de Hitchcock. Mercês espiolhada pelas paredes e retratos, com uma empregada Aninhas (Isabel Ruth) que chama Menino a Palma Bravo. Esta casa foi a casa onde estas pessoas viveram, na sua pele e na de outras, quatro semanas de rodagem, esquartejando a casa em mil e um décors. A adega para a ceia de Natal que Mercês se lembra de partilhar com os empregados, «Essa era a cena buñuelinana!, com uma luz do Eduardo Serra! Olé, como diz o Palma Bravo, como diz o Samora. A capela para a confissão de Mercês ao Padre Jovem, filmada no domingo de manhã, com uma esplendorosa Alexandra. «Aquele plano, quando ela se levanta..., daqueles que acontecem uma vez!», comentava o Lopes, comovido Lopes «e uma réplica perfeita do Miguel Guilherme». O terreiro onde Palma Bravo espanca Domingos, noite escura, «Deixares-te abandalhar por um safardanas daqueles!».

Alguém insultara Palma Bravo na pessoa do Domingos. «Defende-te, capado de um coirão, ou dou cabo de ti». A cena é ensaiada exaustivamente. O realizador pede aos actores um estranho bailado de corpos que se amam (Domingos é o filho que o Delfim não tem) e que deambulam na violência que o amor absurdo instiga. Os sentimentos são de raiva, e de piedade, e de desprezo, di-lo o Lopes. Os actores escutam-lhe as indicações, de respiração alterada, com o barulho dos grilos ao fundo, e os pirilampos luminescendo por entre a vegetação.

Alexandra espreita as minhas notas. Debruça-se sobre o papel e escreve: «Uma calma nunca vista. Quase paz no plateau».

O plateau do Fernando Lopes é o que nunca se viu em plateaux do mundo inteiro, palavra de Eduardo Serra, o mui reputado director de fotografia que era suposto iluminar Jodie Foster por essa altura e que, por razões várias, ficou com as semanas de Maio e Junho disponíveis. «Então», disse o produtor Paulo Branco, disse-me o Fernando, «Então, prepare-se tudo para filmar nas semanas de Maio e Junho». Eduardo (que satisfaz a minha curiosidade pelintra pelas estrelas de Hollywood) toma notas cena a cena, alternando palavras em português, em francês, em inglês. Ao lado de Fernando Lopes, de corpo distendido sobre a cadeira, observa o monitor. O realizador está curvado sobre si, fuma repetidos Silk Cut. «Foi bem para ti?». A originalidade de Lopes consiste neste vivo interesse pela opinião dos que com ele trabalham, «O que é que te pareceu?», na anulação de preconceitos hierárquicos que minam equipas e relações. «Este filme tem uma boa onda...», ouvia-se repetidamente. Está calor. Os homens, de tronco nu, transportam transferem material de uma cena para outra. Paulo Guilherme, o assistente de realização transformado em formiga infatigável, haveria de dizer dali a não muito: «Atenção vamos preparar para filmar».  Boa onda mesmo...

Quando o romance de Cardoso Pires foi publicado corria o ano de 1968. Fernando Lopes lia-o no mesmo passo em que convertia «Uma abelha na chuva», escrito pelo seu amigo Carlos de Oliveira, numa ode de amor à sua mulher. «Se não fosse o amor pela Maria João [Seixas]», contou-me ele em tempos, «não poderia fazer o filme da mesma maneira». A Maria João que nunca vai aos plateaux e que apareceu nesse domingo para a sardinhada de despedida da Quinta. A par da impressão que o livro lhe causou, lembra-se de ter anotado as dificuldades que o enredo do Zé Cardoso poria a uma eventual adaptação fílmica. Não foi, por isso, o primeiro objecto que lhe ocorreu quando, volvidos os anos do Segundo Canal, Fernando Lopes inventariou os projectos escolhidos para «tomar outra vez a mão do cinema». O filme desses anos, 94/95, é «O fio do horizonte», que parte do livro homónimo do (também) amigo Tabucchi. «O Delfim» cresceu, portanto, em anos de natureza maturada, entre documentários que entretinham os dias e exercitavam o olhar. A primeira abordagem ao livro, escrita a meias com Fátima Ribeiro, e inspirada no poema de Auden «Detective history», surtiu «demasiado reverencial». Reverencial ao talento do Zé, ao monumento em que o livro se tornara. A segunda, que resulta no guião rodado, foi escrita por Vasco Pulido Valente, que retrabalha, na solidão da escrita, as ideias trocadas com o Fernando, ao almoço, no Gambrinus. Maria João Seixas contribuiu com algumas sugestões. Os encontros sucediam-se à cadência de dois, três por semana. Vasco pedira à produção dez exemplares d’ «O Delfim», que delapida um a um. «A rasgar e a anotar», explicava o realizador. Acaba por pedir mais cinco. Em dois meses o guião fica pronto.

E pronto. Cá está o Fernando. («Cá estou» inaugura o livro). O Fernando a filmar a história de um homem a quem chamavam Delfim. A terra escolhida para as filmagens é ainda nas bordas da sua Várzea, onde vive a mãe, que a azáfama do filme não permite visitar. «Mas fazer um filme é ir para uma outra família, não é?». É sábado, pela tarde. A história do seu filme fica estruturada nisto que acabo de dizer, e que me foi dito assim, sob a árvore de copa frondosa que garante a sombra da hora do almoço. Depois acode a uma qualquer dúvida e deixo de saber dele. 

 

Publicado originalmente no DNA, suplemento do Diário de Notícias, em 2001.