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Anabela Mota Ribeiro

Claude Chabrol

04.02.22

Segunda feira, onze da manhã. Monsieur Cha-Cha completa nesse dia o seu 72ª aniversário. Na cantina improvisada, contígua à casa onde decorrem as filmagens, a doze quilómetros de Bordéus, serve-se o almoço. O cozinheiro é o de sempre. A equipa que ocupa as várias mesas, também. Por exemplo, Michel, o operador de câmara, trabalha com Chabrol há cerca de trinta anos. A anotadora, Aurore, é mulher do realizador. A assistente de realização, Cécile, é enteada. Thomas, um dos actores, é filho. Como explica o próprio, é bom trabalhar com a família desde que a família seja boa no que faz. É o caso.

Claude Chabrol nasceu em Paris, estudou Farmácia, tem Balzac por mestre. Tem predilecção pelo cinema de Hitchcock. «Notorius» talvez seja o filme de que gosta mais. Cary Grant é um polícia, o que se percebe pelo modo como fuma, como posiciona o cigarro entre os dedos. Prevalece a metáfora, o latente. «Sabe de cor, os filmes de Hitch», conta Thomas.

Foi o primeiro da Nouvelle Vague a produzir o seu filme, com dinheiro da mulher, uma herdeira rica. Adora comer e beber bem, fuma cachimbo. Gosta de ler policiais e ver programas pirosos na televisão. Ao almoço explicou que a estupidez é infinitamente mais estimulante que a inteligência. A inteligência conhece os seus limites, a estupidez não. «Não se sabe nunca onde pode parar». É evidentemente um homem inteligente, com um sentido de humor extraordinário. Realizou mais de cinquenta filmes.

Esta entrevista foi feita a partir do filme que estava a ser rodado, em 2002. Nele está o essencial do cinema de Chabrol: um quadro de costumes de uma burguesia provinciana, relações humanas tocadas pela incestuosidade, mortes e mistérios a ensombrá-las.

 

Porque é que que o filma se chama «La Fleur du Mal»? Não é evidente para mim.

Para mim também não. Pus-me sempre a questão de saber se as acções consideradas negativas, amorais, imorais, podiam gerar outras coisas que não as coisas negativas, amorais, imorais. Penso que as causas malsãs não produzem necessariamente efeitos malsãos.

 

O título é uma espécie de homenagem a Baudelaire?

É mais uma piscadela de olho do que uma homenagem. À medida que fui trabalhando no argumento, apercebi-me de que a personagem que comete o acto mais terrível, um parricídio, era, por fim, a melhor de todos os personagens. Isso interessava-me bastante.

 

Interessa-lhe a dualidade do humano?

Sim. O acto que cometeu é condenável; ela não foi condenada, mas condenou-se a si mesma.

 

Carrega a culpabilidade, que é a sua condenação.

Isso. De tal modo que no momento em que a sua sobrinha comete um acto próximo daquele que tinha cometido, decide tomar este novo crime para si. Isso permite à jovem rapariga, que tem quase o mesmo nome [Micheline e Michèle], viver exactamente a vida que ela não pôde viver. Micheline estava enamorada do seu irmão, não podia de modo algum viver com o seu irmão; o seu acto, [a assunção do crime] deu à jovem Michèle a possibilidade de viver com François, (que é também seu irmão)!

 

Uma redenção?

Redenção é uma palavra de que não gosto muito. Não há nada de transcendental, é tudo estupidamente humano. Ela justifica o seu acto pela felicidade possível daqueles dois jovens.

 

A flor encarna a beleza. Ao mesmo tempo pode ser uma flor carnívora.

Absolutamente.

 

O argumento fez-me pensar numa flor sinuosa, que avança com incrível voracidade.

A flor que nasce do mal, por mais bela que seja, é forçosamente uma flor que não é inocente. Pode ser carnívora. Ninguém sabe o que vai acontecer a Michèle e ao primo, pode ser que a relação se transforme numa monstruosidade, ou não. Mas a transmissão da culpabilidade terá sido cortada. 

 

O mais evidente é a repetição de uma história que não acaba nunca, uma circularidade.

Sim, sim. Estamos sempre a dizer que a História se repete, que não se repete, que balbucia... Penso que é porque se atribui uma excessiva importância ao peso do Tempo na vida humana. A ideia de Tante Line [Micheline], que não é uma filósofa, é que o Tempo não tem importância, que o Tempo não existe. Que a única coisa que existe é o momento que vivemos.

 

É um presente continuado?

É. Com esta ideia, pode-se perfeitamente admitir que a culpabilidade desaparece. Não desaparece face à usura do tempo; desaparece porque foi apagada pela vontade das pessoas que a querem apagar. É por isso que detesto a noção de culpabilidade.

 

Detesta? O seu cinema está cheio de culpabilidade.

Mas claro. O que impede o ser humano de desabrochar completamente, é o peso da culpabilidade. Tudo o que provoca a culpabilidade, detesto. A religião, detesto. Deus, detesto. Todas essas coisas, aterrorizam-me. São obstáculos à felicidade dos seres humanos, que, finalmente, não têm razão para não ser felizes.

 

Ainda que o seu cinema esteja cheio de culpabilidade, e este filme de incestuosidade, há nele mais amoralidade que imoralidade. Não faz um juízo sobre o comportamento dos intervenientes. Não os condena.

Condená-los porquê?, são pessoas como eu. Não podemos condená-los. As únicas coisas que podemos condenar são as vidas desperdiçadas. É de combater tudo o que pode desbaratar uma vida. Mas condenar as pessoas porque desperdiçam as suas vidas, não é correcto. É preciso tentar compreender quais são os fardos que as levam a não desabrochar como as flores.

 

Ontem disse-me que o cinema é uma ocasião para estar com a sua família e os seus amigos. É exactamente assim?

É, e é formidável! Estamos juntos, gostamos muito uns dos outros, divertimo-nos a trabalhar juntos.

 

É imprescindível para si trabalhar com a sua mulher, o seu filho, a sua enteada, todos os velhos amigos e colaboradores?

Bem entendido que é à partida muito agradável estar em família; mas é preciso que a família seja boa naquilo que faz. É esse o caso. Fico muito contente por sentir que há pessoas na minha família que têm talento e que posso utilizar. E é mesmo utilizar, porque enquanto se faz um filme (e eles fazem bons filmes), há um movimento de entrega a um filme que não é o deles. É o meu filme. Dão-me uma parte deles mesmos.

 

Utiliza-os também porque o conhecem muito, muito bem, porque sabem exactamente o que quer?

Sim, sim. E sabem de tudo o que não gosto. Michel, o meu operador de câmera, sabe de tudo o que não gosto. Logo aí ganhamos tempo: nunca me proporia coisas de que não gosto.

 

A propósito do tempo, numa cena filmada há pouco, Tante Line pergunta à empregada porque é que não põe a louça na máquina; a empregada responde que a lava mais depressa que a máquina. A despeito do progresso, há uma coisa que está no centro do seu cinema: as relações humanas.

É o mais importante. Interesso-me mais pelo progresso nas relações humanas do que nas comunicações telefónicas, por exemplo. A propósito, detesto telemóveis, não tenho um, nem nunca hei-de ter. Explico porquê: eu estava a descer uma rua de Paris, havia um vão de escada e nele um par de namorados que se abraçava. Acho sempre muito encantador ver pessoas que se abraçam num vão de escada. De um momento para o outro, a bela aparição do casal tornou-se um pesadelo! O tipo estava a telefonar ao mesmo tempo! Este progresso é uma degradação das relações humanas, é tenebroso.  

 

Nas tragédias gregas, de que gosta muito, os sentimentos que estão na base de enredos intrincados, são constantes.

Absolutamente. Adoro, também, romances policiais. Tratam das coisas capitais: A verdade/ a mentira. O mistério/ a solução do mistério. A morte/ a vida.

 

É por isso que há sempre suspense e morte nos seus filmes?

Sim. Um filme dura uma hora e meia, contam-se às pessoas algumas coisas que julgamos importantes. É preciso que as sensações sejam fortes e o pensamento subtil. Claro que podemos exprimir o mal de outra maneira que não por um crime, mas é uma maneira mais complexa, numa hora e meia não é possível. Se matarmos alguém, é mais simples, compreendemos logo tudo.

 

Eduardo Serra considera que este filme contém a essência do seu cinema. O que pensa disso?

Não sei. À medida que se avança, tornamo-nos um pouco mais indiferentes, não propriamente ao sucesso, mas à preocupação com a carreira. Eu adoro filmar, há muitas histórias que ainda não contei e que gostava de contar; mas já não é uma necessidade vital como foi noutros tempos. É verdade que neste filme vou um pouco mais além, é um pouco mais complexo. Por exemplo, não tem um fio de intriga.

 

Há o segredo do parricídio que Tante Line condensa em si mesma.

Sim, mas ao mesmo tempo, o segredo é-lhe indiferente. O facto de o conhecermos não tem importância. O que é terrível para ela, é que julga não foi punida.

 

Na peça de Sófocles «Édipo Rei» há também um parricídio. Édipo vasa os olhos quando sabe que foi ele mesmo o autor do crime.

Não o pode suportar. No fim de contas, os gregos eram uns sentimentais! Ésquilo ocupava-se da ligação entre os deuses, com as forças primitivas. Sófocles ocupava-se da relação entre os deuses e os homens. Eurípides ocupava-se dos homens em oposição aos deuses. O que penso é que Eurípides tem menos talento que Ésquilo ou Sófocles; mesmo assim, não é nada mau! Estamos agora num estádio em que já não há problemas de relação com os deuses, mas com o si próprio. Compreendemos finalmente como isto está organizado. Muito melhor do que no tempo dos antigos que eram obrigados a simbolizar de modo sumário os deuses. Agora não temos necessidade desse tipo de representação. Mesmo as representações cristãs são hoje um pouco ridículas, são-no cada vez mais. À medida que o homem evoluir, muito lentamente, reconheço-o, vai ter cada vez menos necessidade de representações deste tipo. Não teremos necessidade senão da realidade das coisas.

 

François dizia numa cena do filme que Deus e o dinheiro são os problemas dos americanos. E por arrasto, do mundo inteiro.

Há uma incompatibilidade entre a noção de Deus, que é uma noção de ideal, e a noção de dinheiro, que é uma noção prática. As duas noções são perfeitamente aceitáveis. Simplesmente é preciso saber o que representam. O dinheiro.... Você conhece o Monopólio?

 

Sim.

O Monopólio consiste em comprar casas e hotéis, assim e assado. Para quê? Para ter mais dinheiro. E quer ter mais dinheiro para poder comprar mais casas e hotéis. Mas com estas novas casas e hotéis, ganha ainda mais dinheiro, o que permite comprar ainda mais casas e hotéis. E assim sucessivamente. É um jogo que não termina nunca. Termina quando alguém tem tudo. Tenho a impressão de que vivemos num universo onde há gente que se diverte, como no Monopólio, a querer ter tudo. Não chega a ter, felizmente, e por isso o jogo continua. Mas se um dia alguém conseguisse, o jogo estaria terminado. É preciso que a partida continue.

 

Há sempre a decadência.

A decadência chega quando não pudermos continuar a jogar sem envilecer os outros.

 

A sua carreira foi relançada quando encontrou Marin Karmitz. O primeiro filme que este produziu data de 85.

Um pouco, sim. É-me muito difícil trabalhar filme a filme. Fazer um filme, procurar um produtor para outro filme, tudo isso. Só me senti à vontade quando tive um produtor que pôde manter uma continuidade. Há dois tipos de artistas: há os que fazem obras tentando atingir a perfeição em cada uma delas, e que trabalham pouco; há outros que trabalham por acumulação. Não tenho nada contra os outros, mas eu pertenço à segunda categoria.

 

Diz-se que a sua cinematografia é como um edifício em que cada filme é uma pedra. A consistência é dada pelo conjunto.

A minha obra tem a ambição de ser um edifício. Mas também pode ser um edifício muito feio!

 

Os filmes da última década têm sido os mais aplaudidos. Além do conforto que lhe confere a produção de Marin Karmitz, goza agora de uma maturidade…

Eu sabia que o que queria dizer era complicado. À medida que o tempo foi passando, as coisas ficaram mais claras na minha cabeça. Sempre me disse que estaria no ponto aos 60 anos.  

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2002.

Claude Chabrol morreu em 2010. 

Maria de Sousa e Sobrinho Simões (s/ Cancro)

04.02.22

A má notícia: um em cada três portugueses nascidos na última década terá cancro. A boa notícia: mais de metade dos doentes com cancro vai sobreviver à doença.

Nas próximas páginas, a cientista Maria de Sousa e o patologista Manuel Sobrinho Simões fazem perguntas, questionam o modo como se faz ciência, dialogam sobre uma doença que é parte de nós, nos invade e muitas vezes nos mata. É uma entrevista dura, porque “morrer é mais difícil do que parece”, como escreveu Paulo Varela Gomes num texto para a revista Granta. Alguma vez estaremos preparados para morrer?

 

Cancro ou cancros? Em que estádio? Em que hospedeiro? Submetido a que agressão ambiental? Um cancro é um que cresce dentro de nós. É o “gémeo univitelino que não tivemos ao nascer. [...] Tão bem sucedido aliás que, na sede de sobreviver e crescer, acaba frequentemente por nos (e se) matar”, explica Manuel Sobrinho Simões no livro Gene, Célula, Ciência, Homem. É o imperador de todos os males, assim designado por Siddhartha Mukherjee, no livro homónimo de 2010. É uma representação da morte, palavra última que nos detém (para recorrer a um poema de Sófocles traduzido por David Mourão Ferreira que Maria de Sousa traz para o livro Meu Dito, Meu Escrito: “Inúmeras são do mundo as maravilhas, mas nenhuma que ao homem se compare. É o ser dos recursos infindáveis [...] Aquilo que o detém? Somente a morte.”)

Os cancros que mais matam em Portugal são os do cólon e recto, pulmão e brônquios, e estômago, em ambos os sexos; os da mama e próstata nas mulheres e nos homens. Os números de 2010 segundo o Instituto Nacional de Estatística: morreram 24 917 pessoas devido a doenças cancerosas.

O cancro mata. Não mata sempre. Prevê-se que num futuro próximo (uma ou duas dúzias de anos) mais de metade da população vai ter cancro. É bom que nos habituemos a isso.

Esta entrevista aconteceu na Ordem dos Médicos, no Porto. Não foi fácil para nenhum dos intervenientes. Porquê? Porque todos conhecemos pessoas que morreram por causa da doença, que têm a doença, porque nós podemos ter a doença. Muda tudo. 

 

Pensa-se que foi Hipócrates a banalizar o uso da palavra “cancro”, derivada de “karkinos”, que em grego significa caranguejo. Vem daí carcinoma. O caranguejo tem um carácter dúplice e traiçoeiro. Se olharmos para o cancro como um duplo maligno de nós, que nos invade e ataca, o caranguejo continua a sintetizar o que o cancro é?

Manuel Sobrinho Simões – Sim. Não só é dúplice. Não só nos trai, como nos invade. Mas invade de dentro.

Maria de Sousa – Não gosto do caranguejo.

 

Quando pensa no cancro, pensa em que representação?

MdS – Tentei, para esta entrevista, que é muito difícil, por respeito pelas pessoas que têm cancro – e toda a gente vai ter, como diz o New York Times –, colocar o cancro numa perspectiva histórica. Tudo começa com o aparecimento de um tumor, uma massa. Com o progresso da ciência médica, a primeira coisa que acontece é a cirurgia – tira-se. Depois percebe-se que, mesmo tirando, aquilo nunca mais acaba – volta. Depois segue-se a irradiação. Depois aparece o conceito da imunologia, a importância de uma surveillance imunológica. Depois desenvolve-se a química, a quimioterapia. Hoje, se uma pessoa tiver um tumor, ainda passa por estes passos históricos.

 

A sofisticação dos tratamentos é maior, mas no essencial os passos são os mesmos.

MdS – Há um progresso parcelar imenso, que permite a melhoria do prognóstico e da prevenção. Mas globalmente isto não é assim. Globalmente temos que dizer a um amigo: “Não há muito a fazer”. Como é que é possível o progresso que se fez na SIDA, em 30 anos? O que é que é diferente? No caso do cancro, andamos há 200 anos a fazer progressos, mas não é comparável.

 

A SIDA era, nos anos 80, um atestado de morte. E 30 anos depois é considerada uma doença crónica.

MSS – Controlável.

 

No cancro, ainda que muitos possam ser olhados como curáveis, e doenças crónicas que podemos controlar, continua a existir o estigma de que é mortal.

MdS – Não é estigma, é a realidade.

MSS – Estou de acordo com a Maria. Há um elemento numa entrevista sobre cancro que é terrível. Temos pessoas de quem somos muito amigos que morreram, que têm agora e que podem vir a ter cancro. E nós próprios. Isso pesa sobre…

MdS - A própria entrevista. Imenso.

MSS – Percebo que não goste do caranguejo porque é datado. Mas há uma coisa no caranguejo que continua a ser verdade: o cancro é um ser vivo que cresce dentro de nós e que não respeita as fronteiras. O que nos caracteriza como seres vivos é termos fronteiras. É porque não respeita as fronteiras que aparece depois noutros sítios. Vai sendo capaz de se reproduzir à distância. E é este o perigo. A maioria dos cancros não mata as pessoas em mais de 50% dos casos. Mas sabemos que podem morrer.

 

Impõe-se então a ameaça?

MSS – Sim. Uma ameaça que já não é substanciada em número, mas que nos faz ter muito medo.

MdS – A diferença entre nós é que eu, como investigadora básica, partilho de um sentimento de culpa. Como é que as coisas evoluíram de tal maneira e não se sabe quais são as fronteiras? Sabe-se tanto, tanto, tanto. Mas falta qualquer coisa. Isto tem a ver com a forma como fazemos investigação, com a forma como se faz ciência. E por isso é que a SIDA é muito importante. Os doentes contribuíram para o avanço que se fez na investigação. Se a SIDA tivesse ficado em África, como ficou a malária, se não tivesse atingido ruas de homens que viviam em São Francisco, talvez o progresso ainda estivesse lá trás.

 

Está a falar do investimento científico que foi feito?

MdS – Estou a falar da importância da participação das pessoas. Eu estava em Nova Iorque nos anos 80. Os médicos novos nunca tinham visto pessoas da mesma idade morrer assim. Aquilo mobilizou de uma maneira extraordinária. Aqui, uma pessoa que tem um cancro diagnosticado, o que quer é ser tratada.

Os doentes com cancro não se mobilizam como os doentes com SIDA se mobilizaram.

MSS – Isso é verdade. Apesar de tudo, na SIDA, há um agente externo causal. No cancro, o desencadeador pode ser um agente externo, e é muitas vezes. Quase nunca é um vírus. Estamos a discutir uma coisa que é crucial: porque raio evoluímos tão pouco?

MdS – Evoluímos no conhecimento.

MSS – No conhecimento evoluímos imenso. E na eficiência do tratamento.

 

Mas não chega.

MSS – Não tem chegado.

MdS – Os da imunologia acham que é a imunologia que vai resolver. Os da genética acham que é a genética. Depois não há instituições que encorajem os da genética a falarem com os da imunologia.

MSS – Faz todo o sentido. Há aqui um elemento que nos distingue. A Maria é cientista, mesmo, e eu sou um patologista, um médico. O cancro é uma espécie de preço que temos de pagar por nos mantermos uma espécie viva.

 

Usa essa expressão no livro Gene, Célula, Ciência, Homem: “A ocorrência de neoplasias malignas, também chamadas, em geral, cancros, é o preço a pagar pela manutenção da nossa capacidade evolutiva.” Coisa terrível.

MSS – Pela manutenção de uma espécie que ainda por cima esticou a duração da sua vida. E ainda por cima se expôs mais ao sol, engordou, fuma, toma medicamentos que são imunossupressores. O nosso problema no cancro não é a causa, é o desenvolvimento. E o desenvolvimento é nosso, somos nós. Nós com uma instabilidade genética de tal ordem que torna estas aproximações, como a Maria diz, sempre parcelares. Há muita gente que acha que se soubermos mais dos genes, e dos epigenes, e dos metagenes, que quando tivermos de cada pessoa uma descrição completa, vamos poder tratar essa pessoa identificando cada uma dessas coisas como alvos. Não vamos. Porque sempre que aumentamos o número de alvos sobre os quais tratamos os doentes, aumentamos a toxicidade.

 

No fundo porque estamos sempre a apontar para um que é parte de nós.

MSS – São alvos que fazem parte de nós. Sou muito céptico em relação à capacidade de tratar cancros que estejam desenvolvidos. Sou muito favorável à possibilidade de virmos a controlar a doença.

MdS – Essa é a parcela em que se tem avançado mais.

 

É a parcela dos cancros diagnosticados precocemente?

MSS – Esses tratam-se com cirurgia. E a cirurgia cura se se tiver a sorte de aquilo não ter deixado de respeitar as fronteiras e não tiver uma metástase à distância. À medida que as populações forem mais idosas, e passarmos a ter, para além da exposição aos agressores ambientais, uma incapacidade de corrigir erros (porque permanentemente cometemos erros genéticos nas divisões [celulares]), vamos ter mais cancros.

 

Em Cancro, escreve: “Além do elevado número de pessoas cujos cancros são tratados num estádio precoce e estão curadas, há cada vez mais doentes que sobrevivem com a doença cancerosa controlada após o tratamento. [...] Não estaremos numa situação muito diferente da dos nossos parceiros europeus: um em cada três portugueses nascidos na última década terá um diagnóstico de cancro durante a vida. A boa notícia é que mais de metade dos doentes com cancro sobreviverá à doença.”

MSS – Vamos ter todos pelo menos um cancro, ou dois. Mas vão ser tão tarde que não nos vão causar problemas. Vamos morrer com os nossos cancros. Estamos a falar de duas coisas diferentes. O cancro enquanto doença mortal num adulto, num adolescente ou numa criança. Ou o cancro numa pessoa idosa que vai ter, se prolongar a sua vida até aos 90, 100, 110, inexoravelmente, dois, três, cinco cancros.

 

Antes de falarmos do cancro como uma doença crónica, concentremo-nos na imunologia.

MSS – Pensávamos que o sistema imunológico era para nos defender das coisas de fora.

MdS – Numa primeira fase em que num tumor aparecem células do sistema imunitário, por causa da influência histórica, o que a pessoa pensa é que aquelas células estão lá para matar o tumor. Curiosamente é o Manuel Sobrinho a primeira pessoa que me diz que é capaz de não ser sempre assim.

MSS – No [cancro] da tiróide, alguns linfócitos, em vez de serem matadores das células malignas, proporcionavam factores de crescimento das próprias células malignas.

 

Explique isso.

MSS – Eu sabia que os cancros da tiróide cresciam muito pouco. Dividiam-se muito pouco. Mas eram invasores. Na altura fazia-se microscopia electrónica e comecei a ver as células com autofagia (a comerem-se a si próprias). E, burro, escrevi na minha tese: “... uma célula em autofagia quase pronta a morrer”. Não percebi que aquela célula em autofagia era um mecanismo de sobrevivência para que ela não morresse. A célula maligna fazia autofagia parcial utilizando os seus próprios alimentos do citoplasma para sobreviver. Tornando-se mais pequenina, gastando menos.

MdS – Gostava que saísse desta nossa conversa isto que o Manuel acaba de ilustrar: a maneira como a pessoa, sozinha, vê as coisas. E como julga, sozinha, que vai chegar [à resolução]. Não vai chegar. É necessário integrar o conhecimento da cirurgia, da quimioterapia, da imunologia. Ele diz: “Eu fui burro”. Não foi nada burro. Era aquilo que ele sabia e que se pensava na altura. Os programas de ensino estão a ficar muito dirigidos e um aluno sai de um programa só a saber aquela coisa.

 

É demasiado sectorial e não promove uma leitura transversal.

MSS – É pior que sectorial, é auto-sustentada. E a pessoa é premiada por ser sectorial.

MdS – É financiada por ser sectorial. A economia, os ministérios, e não é só cá, dizem que “a ciência tem que servir para...”. Voltemos ao caso da SIDA. Se um ministro da Economia tivesse dito que saber sobre as células T4 não servia para nada, porque não dava dinheiro, imagine o que se tinha perdido. A primeira responsabilidade é dos cientistas, é dos professores. Depois é da sociedade em que estamos. Temos que ter doentes educados. A SIDA é um exemplo fantástico de como se integrou o conhecimento, o comportamento da comunidade, a ciência.

MSS – Tudo o que a Maria está a dizer faz um sentido absoluto. Estava a olhar para aquelas árvores. O que acho graça nas árvores é que estão quietas.

 

Mas têm uma copa que se agita, como que sonham, têm a capacidade de se adaptar às condições meteorológicas. Porquê as árvores?

MSS – As árvores estão ali paradas na Primavera e no Verão. Resistem à falta de água, ao calor imenso. As suas células têm características que lhes deram capacidade de sobrevivência. As células cancerosas têm isso, também. Todos temos, todos os dias, células que são potencialmente cancerígenas, e vemo-nos livres delas. Quando temos a pouca sorte de ter um cancro, as coisas sucederam naquelas células e nas filhas delas…

MdS – E no ambiente.

MSS – Claro. Quando isso lhes deu vantagem de crescimento. Só vemos os casos de sucesso [do cancro], que são os nossos casos de insucesso. É muito interessante, quando estudamos células cancerosas, o número de situações em que encontramos os mesmos mecanismos de resistência – à morte – que as plantas têm. O cancro é um ser vivo multicelular, exactamente como nós.

 

E que nos ganha.

MSS – Ganha porque é mais eficiente.

MdS – A minha primeira reacção é sempre a de me sentir responsável no tecido do ensino superior. As pessoas das células dos mamíferos têm imenso a aprender com as plantas. No nosso sistema educativo, os miúdos aos 15 anos decidem se vão fazer Ciências ou Humanidades. Uns vão crescer sem saber o que é um gene, uma célula. Os outros vão crescer sem saber quem é Espinosa. Nunca em Medicina ensinaram Botânica.

MSS – Mas deviam ter ensinado.

MdS – Sem dúvida. Voltando atrás. Temos uma coisa que cresce. Que cresce num ambiente. Se cresce num ambiente que toda a gente sabe que muda com a idade, é preciso perceber porque é que muda. Pode ser que se corrija este ambiente de forma a que o equilíbrio seja a favor do hospedeiro e não a favor do cancro.

MSS – A palavra imunidade: a Maria está a substituí-la por ambiente. Tem razão. A ideia é a de que os cancros não são células apenas, é um tecido que tem elementos.

Ainda as plantas. O que é que acontece se eu tiver uma célula normal e ela ficar a apanhar sol permanentemente? Vai morrer. A única hipótese que tem de sobreviver é raspar-se dali. E voltamos à história de não respeitar fronteiras. O cancro, graças ao microambiente e a coisas que são as mais variáveis, está permanentemente a encontrar estratégias para se raspar dali. Em 99,9% dos casos, o microambiente e o sistema imune dão cabo das células – elas não se raspam dali. Agora, há sempre a possibilidade de uma delas, de repente... Sheer chance.

 

É uma questão de sorte?, tão roleta assim?

MSS – As pessoas que têm cancro têm muito pouca sorte. Dizemos que o tabaco provoca o cancro; provoca, mas só em 1,5% das pessoas. Deus me livre de acusar os que têm cancro: “Puseram-se a jeito”. Isso é uma estupidez.

 

Recupero o tema da educação. No livro Meu Dito, Meu Escrito, Maria de Sousa fala do direito de duvidar e de perguntar, da importância da frescura da pergunta: “O mais importante na construção de um cientista é não deixar de ouvir a criança dentro de si próprio”. Como é que fazemos perguntas diferentes? Como é que chegamos a pontos de vista diferentes? É uma pergunta para a qual provavelmente não há resposta.

MdS – Há, há. É criar um sistema de liberdade. Não vai nunca fazer perguntas diferentes se não tiver a liberdade de as fazer. A escola, a forma como estamos a financiar os projectos de investigação, tudo está a limitar como é que se fazem perguntas diferentes. As equipas que escrevem projectos têm que escrever quais são os resultados esperados. Já ninguém financia resultados inesperados.

MSS – Os cientistas, para ganharem projectos, têm que se formatar. E não é só no cancro, é em relação a tudo. Há muito pouca liberdade porque o risco de não ter resultados é enorme. E as agências financiadoras o que querem é que a pessoa apresente resultados preliminares – que já estão feitos.

MdS – E que, se possível, vão dar dinheiro.

 

Onde entra a indústria farmacêutica?

MSS – Esse é outro lado. O cancro tem muitas coisas semelhantes, seja um cancro da pele ou do estômago ou do pâncreas. Quando há um medicamento que é eficiente para o cancro do estômago, a indústria farmacêutica, que já desenvolveu esse medicamento, que já sabe que não é tóxico, paga agora aos cientistas para testarem se, porventura, aquele medicamento que é eficiente para o cancro do estômago, não será também bom para o cancro do ovário.

 

Isso faz-se muito? E dá resultados?

MSS – Permanentemente. Chama-se estratégia me too, “eu também”. Dá alguns resultados, mas as perguntas não são muito inteligentes do ponto de vista do que a Maria estava a dizer: da pergunta curiosa, transversal. A investigação é muito formatada. Os orientadores são enviesados. As revistas científicas são…

MdS – Enviesadíssimas.

 

“Além dos cancros hereditários (que representam menos de 5% da totalidade dos cancros), existem outras famílias com uma elevada concentração de neoplasias malignas (calcula-se que representem cerca de 10% dos cancros)...”, escreve Sobrinho Simões no ensaio Cancro. Há o mito de que a susceptibilidade genética pesa imenso na equação. Todavia, os factores hereditários podem representar apenas 5 a 10%.

MSS – As situações de cancro familiar em que conhecemos o gene que aumenta o risco de cancro são aquelas onde progredimos mais – porque temos uma causalidade. São 5 a 10%. São 10% na mama. São 10% no cólon e recto. Menos do que isso no estômago. Não sabemos muito bem o que é que se passa com a próstata nem com o pulmão. No pulmão o peso do tabaco é muito maior. Os 5 ou 10% não são um valor independente das condições ambientais. Estes 5 ou 10% não são verdade em África.

 

Porquê?

MSS – Em África são mais porque as pessoas não vivem o tempo suficiente para terem a influência dos meios ambientais que nós temos na Europa ocidental, em que vivemos até aos 80 ou 90 anos. Como em África as pessoas morrem mais cedo, a percentagem das que morrem de cancro é maior por susceptibilidade genética.

 

Contrariando esta expressão estatística, achamos que se na nossa família não há casos de cancro, a probabilidade de escaparmos ilesos é maior.

MSS – Na minha família nunca tinha havido cancro. Tínhamos acidentes vasculares cerebrais, tínhamos diabetes. E eu, que trabalhava em cancro, nunca tinha percebido esta ameaça vital para mim e para as pessoas de quem gostava até o meu pai morrer de cancro.

 

Percebeu quando a ameaça ficou próxima. Deixou de ser uma abstracção.

MSS – Estamos a entrar numa coisa que permeia todo este universo: o das expectativas e dos medos que distorcem a realidade. Até essa altura não tinha percebido o risco porque a minha família não tinha tradição de ter cancro.

 

O vosso discurso, a vossa interrogação, a vossa acção, mesmo enquanto cientistas, está afectada pelo facto de terem amigos ou familiares que têm cancro. Há uma dimensão afectiva que percorre toda a conversa e eclode como um fantasma. Porque são pessoas de quem gostamos. Porque somos nós que podemos morrer de cancro. Muda tudo.

MdS – Completamente. O cientista tem uma responsabilidade social. E tem uma responsabilidade ética. No que respeita ao conhecimento e à ignorância, temos uma responsabilidade acrescida.

MSS – O cancro que eu estudo é um cancro que praticamente não mata ninguém, o cancro da tiróide.

MdS – Não mata ninguém se...

MSS – Temos sobrevidas melhores que 95% aos 30 anos. Numa fase da vida interessei-me por cancro do estômago. Depois deixei. Havia gente muito melhor do que eu a fazer cancro do estômago. E apercebi-me, no cancro do estômago, que me sentia menos à vontade porque os doentes morriam. Voltei para a tiróide. No limite, se quiser fazer investigação successfully em cancro devo escolher cancros muito mortais. Aí é que consigo ver se estou ou não a interferir na história natural. Mas na tiróide tenho muito menos má consciência. Só dou boas notícias, mesmo quando digo: “Tem uma neoplasia maligna, vamos tratar”.

 

Os recursos, a aposta na investigação é mais feita nuns do que noutros? E a atenção que damos a uns e a outros muda consoante a geografia?

MSS – A investigação em cancro da tiróide é menos recompensadora do ponto de vista económico porque é menos mortal. E há uma distorção da sociedade que valoriza sobretudo os cancros que aparecem no mundo ocidental. O cancro do pâncreas, o cancro do sistema nervoso central. Não valoriza o cancro do colo do útero que aparece em África. Isto é muito complexo porque a nossa forma de ver o cancro é marcada não só pela experiência pessoal mas pelo lugar onde estamos inseridos.

MdS – A tiróide é a primeira grande contribuição de um investigador português chamado Manuel Sobrinho Simões, e as pessoas em geral não sabem isso. Não vai dar muito dinheiro à farmacêutica da quimioterapia. Agora pergunte o que é que aconteceu em Chernobyl.

 

O Ipatimup, criado e dirigido por Sobrinho Simões, trabalhou anos com vítimas de Chernobyl.

MSS – Como o reactor rebentou e atirou com o iodo radioactivo para a atmosfera, o mesmo iodo radioactivo que em doses muito fortes trata as células malignas, e mata as células, em doses muito fraquinhas pode provocar cancro. E provocou. Sobretudo nos miúdos que bebiam muito leite. Somos um dos seis institutos do mundo escolhido para estudar isto. Houve uma quantidade enorme de cancros da tiróide na Bielorrússia porque os ventos sopravam da Ucrânia para a Bielorrússia. Morreram cinco ou seis pessoas, apesar de haver centenas de novos casos. Tratámo-los. O ponto da Maria é que os tratámos porque tínhamos um conhecimento que o tornou possível.

MdS – Uma coisa que não é considerada importante por ministros da Economia.

MSS – Tem etiologia. Aqui tínhamos uma causa. Era o iodo radioactivo. No colo do útero, a causa é o HPV [Human Papilloma Virus] e há uma vacina.

 

O que se espera em relação ao do estômago é que se encontre uma vacina para a helicobacter pylori. O cancro do estômago é um dos que mais matam em Portugal, em ambos os sexos. Sustenta no seu ensaio que a elevadíssima incidência deve-se a factores ambientais e não a factores genéticos.

MSS – Exactamente.

MdS – No da tiróide sabe-se a causa mas não se sabe porque é que há uma tão grande variação entre os tecidos. “Porquê?”: começa-se agora a fazer esta pergunta. Como a minha perspectiva é de cientista portuguesa em Portugal, a minha preocupação nesta fase da vida, em que já não estou no laboratório, é fazer a pergunta. Será que Portugal pode contribuir com pessoas como o Sobrinho e como o instituto que criou, e como a gente nova que tem no seu instituto, para demonstrar, para provar o que está errado?

MSS – Isto leva muito tempo. E aumenta os potenciais doentes de cancro. Esse é que é o grande problema. Vamos continuar a aumentar o pool de pessoas que não morreram precocemente, que deixaram de morrer de enfarte e de acidente vascular cerebral, e que vão ter, ou doenças neurodegenerativas, ou cancro.

 

Maria de Sousa trouxe um recorte do New York Times de Janeiro de 2014. Basicamente, diz que todos vamos ter cancro num futuro próximo. É um susto, mas é qualquer coisa que temos que encarar.

MdS – Falei com uma pessoa que faz investigação em cancro. Ele acha importante que se diga que não há “o” cancro.

 

Não há cancro, há cancros. Ter um cancro no pâncreas ou um cancro na mama é diferente.

MSS – Muito diferente.

MdS – Mesmo no caso da mama, não há um cancro da mama. Os cancros, eles próprios, são diferentes. E os hospedeiros, no caso, as mulheres, também. O hospedeiro em quem o cancro vai aparecer é diferente. Depois, é importante ter uma segunda opinião.

MSS – Sou um adepto feroz.

 

Pratica-se muito em Portugal?

MdS – Não.

 

Por razões culturais? Porque isso fere a susceptibilidade do médico?

MSS – É verdade. E os doentes têm vergonha de pedir. A segunda opinião não é especialmente para o cancro, é em tudo. É um grande problema na nossa sociedade: não estamos habituados a confrontar.

MdS – Isto tem a ver com a educação dos doentes. O conhecimento é a coisa mais importante. O doente português não deve temer ter uma segunda opinião.

MSS – Quero dizer que estou de acordo que não há só um cancro. Há muitos cancros. A palavra cancro é uma palavra infeliz.

MdS – Daí não gostar do caranguejo.

MSS – Se tivermos uma pessoa que tem um cancro da tiróide ou do testículo, em princípio, as coisas vão correr bem. Se tivermos um cancro do cérebro ou do pâncreas, em princípio, as coisas vão correr mal. Mesmo no pâncreas, há uma percentagem cada vez maior de casos que correm bem.

 

Portanto não se pode dizer que se tem um cancro no pâncreas. É preciso perceber que tipo de cancro e a sua relação com o hospedeiro?

MSS – Tem que se dizer que tipo de cancro é e em que estádio foi apanhado. Estamos a ter casos de sucesso, por exemplo, quando os doentes fazem icterícias de repetição e não têm cálculos. O doente fica amarelo porque a bile não flui; em princípio, é uma calculose. Se tiver episódios de icterícia de repetição, sem ter cálculos, a probabilidade é que tenha uma neoplasia dos canais. Se for apanhado nessa fase, o cancro do pâncreas cura-se.

 

É fundamental a pessoa ter conhecimento e fazer uma vigilância sobre si e o seu estado de saúde. Que é que pode fazer, exactamente?

MSS – A primeira coisa é fazer prevenção. Não deve fumar, não deve engordar demais, não deve beber demais. Não se deve expor ao sol a horas más e muito tempo. É aquilo que sabemos que é de evitar. Deve estar vacinado. Se não estiver vacinado contra a hepatite B, se não estiver vacinado contra o HPV, tem mais probabilidade de ter infecções no fígado e colo do útero.

 

Vou abrir um parêntesis para falar de um assunto diferente. Esta moda – porque está a ser encarado assim – de não vacinar as crianças...

MdeS – É criminoso.

MSS – Não vacinam as crianças porque há um risco, que é mínimo, mas que há, de terem doenças imunologicamente determinadas que são chatas. Esse risco é menor que o risco que a pessoa tem de vir a ter a doença. Sobretudo, se interrompemos as vacinações, interrompemos uma conquista da sociedade. É como os partos em casa ou na água. Agora há uma gente que gosta de ir para o ribeiro ter as crianças! “Uma coisa muito natural”. Um discurso totalmente disparatado, pré-científico, criminoso para os próprios e para a sociedade.

MdS – É assustador! É incompreensível.

MSS – O custo para a sociedade de ter um miúdo que tem uma paralisia cerebral porque teve um parto em más condições não é só para os pais e para a criança. Todos nós pagamos aquilo.

 

 

Falávamos da vigilância e da importância do rastreio. O cancro tornou-se cada vez mais visível e assumido. Basta pensar que não há muito se dizia que uma pessoa tinha morrido de doença prolongada. Não se nomeava o cancro. Por outro lado, e apesar de ouvirmos, cada vez mais, notícias sobre o cancro, alimentamos secretamente a esperança de que aquilo não nos toque. E não nos vigiamos o suficiente. Como compreender estes dois discursos?

MdS – Tudo isso tem a ver com falta de educação. Falta de educação científica. As pessoas têm muito acesso à informação mas falta-lhes formação. Se a pessoa valorizar os seus filhos, os seus amigos, tem a obrigação de tomar conta da sua vida. Vivo no Passeio das Virtudes [no Porto] e as árvores sabem quando é que é Primavera, quando é que é Inverno. Faça chuva ou faça sol, não vão a sítio nenhum, mas a verdade é que vão estar cá, e muito mais tempo do que nós. Nós, se queremos estar cá, temos que ter cuidado. E aquilo onde há verdadeiro progresso é na prevenção. Temos que estar atentos e vigilantes.

MSS – O problema não é só o cancro. O problema é a hipertensão, os AVC.

 

As doenças cardiovasculares são as que mais matam em Portugal. As cancerosas vêm a seguir. E estas custam menos ao SNS do que as primeiras.

MSS – Temos muita dificuldade, como sociedade, em incorporar o risco. Temos dificuldade, eu também tenho. A percepção do risco, e até que ponto a percepção do risco nos leva a mudar comportamentos, é muito mais frequente nos povos do norte da Europa do que nos povos mediterrânicos. O que tem a ver com falta de cultura científica e de literacia, mas também com religião.

 

Como é que a religião se intromete nisto?

MSS – Há uma ideia de que “cá se fazem, cá se pagam” nos protestantes. Nós temos a ideia de que Deus nos protege, e, se nos arrependermos, aquilo zera. Há uma responsabilidade pessoal e social nos protestantes que é mais to the point. A minha avó dava-nos um garrafão de água de Fátima benzida que tínhamos na casa-de-banho, debaixo do lavatório. Sempre que havia feridas, a minha mãe limpava com água de Fátima [riso]. A minha mãe é uma mulher muito inteligente e o meu pai era médico e cientista.

 

Ainda bem que conta isso. Tem-se a ideia de que essa crença é sinónimo de ignorância e que pessoas ilustradas não praticam rituais como esse.

MSS – É cultural. Mas quem faz isso não tem o mesmo cuidado em não fumar, porque acha que, se tiver que correr para torto, corre, se não tiver, Deus protege. Temos uma extrema responsabilidade nos nossos comportamentos e não fomos treinados a assumi-la. De qualquer forma, o sistema pode começar a ser muito punitivo. Há uma culpabilização que é indecente porque há aqui um elemento de sorte.

 

Como é nos países nórdicos, com que continua a colaborar depois de ter feito lá o pós-doutoramento?

MSS – Na Noruega tenho vindo a observar uma coisa horrível. Os noruegueses ficam furiosos com os emigrantes porque são gordos. São gordos e gastam mais ao Serviço Nacional de Saúde do que com os próprios noruegueses. Começa a haver umas vozes a dizer que se devem pesar os emigrantes quando chegam. E medir-lhes o perímetro abdominal.

MdS – Isso é legal?

MSS – Não há leis, mas está a acontecer.

 

Essa é uma punição da sociedade. Existe também uma punição diferente dessa, quando a pessoa se interroga: “Porquê eu?”, querendo formular diferentes perplexidades e culpas. Porque é que fui eu que tive este azar? O que é que eu fiz para merecer isto?

MdS – O why me é muito comum.

MSS – É verdade. Mas não é só em relação ao cancro, é em relação a qualquer doença grave, degenerativa. No Brasil não se falava em lepra. “Lepra? Aqui não se fala lepra, é hanseníase.” É a doença de Hansen, que foi quem a descreveu. Temos o preconceito de que algumas doenças são… Mas mais do que a punição, há a sensação de a pessoa se sentir fragilizada.

Atenção, sendo um especialista de cancro, eu tenho um pavor de ter cancro. Tenho medo. Sei que a maioria deles são controláveis, mas também sei que há 30 ou 40% que não são. E se tiver a pouca sorte de ter um desses…

 

Ainda o artigo do New York Times: porque é que parece que todos vamos acabar por ter cancro?

MSS – Agora é um em três. Daqui a 30 anos, nos países mais desenvolvidos, por exemplo nos Estados Unidos, nos anglo-saxónicos, é um em dois.

 

“Nós, habitantes da União Europeia e da América do Norte, em 2030, viveremos uma situação caracterizada por uma incidência de cancro muito alta numa população muito envelhecida, a que se juntará uma elevada taxa de doenças degenerativas do sistema nervoso central”, escreve em O Cancro. Noutra passagem do ensaio, faz o paralelo com as pestes na Idade Média, a tuberculose nos séculos XVIII e XIX, as doenças cardiovasculares no século XX. O cancro deve ser olhado como a epidemia que nos ataca a todos no século XXI?

MSS – Mas não nos vai matar. Isso é que é muito importante que as pessoas percebam. Nos sítios onde já está entre um para três, um para dois, já se está a morrer menos de cancro. Apesar de a incidência estar a aumentar, a prevenção, o diagnóstico precoce e os tratamentos têm melhorado. É horrível dizer isto, mas estamos a morrer de infecções.

 

Infecções?

MSS – Estamos com um problema grave de aumento da tuberculose por toda a Europa. Em parte porque as terapêuticas criaram resistências, em parte porque deixou de haver os dispensários. Em parte porque economicamente há gente muito mais pobre do que havia e fluxos migratórios que antigamente não havia. Estamos a ter Alzheimer e muitos cancros, mas as populações idosas, ricas, dos Estados Unidos não estão a morrer de Alzheimer – que não mata ninguém directamente –, nem estão a morrer de cancro, porque têm cancros pequeninos e controlados. Estão a morrer de infecções respiratórias, insuficiências cardíacas, insuficiências sistémicas, infecções urinárias. Por falência do sistema. E voltamos à imunidade. O cancro vai ser muito, muito frequente. Toda a gente vai ter. Mas vai morrer de outras coisas.

 

Temos de aprender a ter menos medo? Temos de o prevenir para que ele seja detectado mais cedo e controlado mais cedo?

MSS – Nos adultos jovens e adultos, sim. E a partir dos 80 anos, devemos ter atenção mínima, mas não estarmos chateados porque vamos ter.

 

Vai ser uma doença crónica como outras, com a qual vamos ter que viver controladamente?

MSS – Exactamente. Como a diabetes. E vamos ter que evitar fazer sobre-diagnóstico.

 

Vigilância, sim, hiper-vigilância, não.

MSS – Acontece que sob a palavra cancro se acobertam realidades muito distintas. A vigilância tem que ser inteligente, não pode levar de uma forma acéfala aos passos seguintes. É a diferença entre a Coreia do Sul e o Japão, que têm a mesma incidência de cancro da tiróide. A Coreia do Sul foi para a ideia de que sempre que se vê um nódulozinho se deve enfiar uma agulha, demonstrar que é cancro e fazer sobre-tratamento. O Japão decidiu o contrário. Sempre que se vê um nódulo que tem menos de um centímetro não se faz coisíssima nenhuma. Faz-se vigilância todos os anos para ver se aquilo cresce ou não cresce. Nesta altura, na Coreia do Sul, o cancro da tiróide é o mais frequente de todos os cancros da mulher. Em Portugal é o quinto.

 

Os resultados, no final, são os mesmos? Têm a mesma taxa de mortalidade?

MSS – Ninguém morre daquilo. E os japoneses gastam muitíssimo menos dinheiro e não têm a chatice de as senhoras viverem com o pavor do cancro da tiróide.

Isto é verdade para a próstata, no homem, é verdade para a mama na mulher. A mulher tem imensos micro-cancros que não se devem tratar. Se começarmos a tratar, damos cabo.

MdS – É muito importante a variação de órgão para órgão, é uma coisa que só agora começam a valorizar.

MSS – Isto não invalida que quando uma pessoa de 39 anos aparece com cancro da tiróide grande, a crescer, tenha que ser tratado mesmo como um cancro. A mesma coisa com a próstata aos 56 ou 60. Ou com a mama aos 45.

MdS – Veja a importância que está a ter esta conversa. Se as pessoas não percebem que podem ter um cancro da tiróide – as da Coreia do Sul –, e que não faz mal nenhum... A educação do doente, insisto eu, é extraordinariamente importante. E a educação do médico pelo doente, que é uma coisa que não passa pela cabeça de ninguém, ou passa pela cabeça de muito poucos em Portugal.

 

O que quer dizer com isso?

MdS – A educação em geral, a educação do doente em particular e a segunda opinião são importantíssimas. As pessoas têm medo de morrer. Se ouvem que têm um cancro na tiróide querem ser tratadas, e não precisam de ser tratadas.

Volto à tiróide porque quero falar de esperança: se houvesse um cancro, e se fosse um caranguejo, ninguém com um tumor na tiróide se safava. Como o Manuel disse, a tiróide não interessa a ninguém porque não morre muita gente. Eu digo que a tiróide devia interessar a toda a gente porque qualquer coisa acontece para que o tal caranguejo não cresça. Vamos lá situar o Prof. Sobrinho Simões. Qual é a sua tese de doutoramento? Fez quantas autópsias?

MSS – Umas 500.

MdS – O doutoramento dele, que não servia para nada, porque o cancro da tiróide não tem importância nenhuma, fez um estudo que permitiu encontrar cancros na tiróide em 500 autópsias. Este trabalho nunca seria financiado, mas é o trabalho que o leva a ser convidado para ir para a Noruega, vão ter com ele quando Chernobyl acontece.

 

E novamente falamos de as perguntas estarem muito condicionadas pelo investimento que é feito, pela expectativa de resultados. Se se aponta numa direcção, é para aí que se vai, o caminho está tracejado.

MdS – Claro que há esperança, mas o que é preciso é ter coragem de fazer perguntas diferentes. E de fazer coisas diferentes que não vão ser financiadas. Numa sociedade educada cientificamente tem que haver liberdade e espaço para que miúdos – como este foi – façam coisas que parecem perfeitamente inúteis. A História diz-nos que nada é inútil desde que seja bem feito.

 

As palavras têm um peso. A palavra tumor, a palavra cancro…

MdS – É assustadora.

 

Por isso é tão importante falar de cancros. Dessa maneira as pessoas percebem que o significado pode ser outro.

MSS – Há muitos movimentos para estes micro-cancros não serem chamados de cancros e serem chamados de IDLE, indolent lesions of epithelial origin. Há aquele ditado: “O diabo trabalha com idle fingers”. Indolentes. Isto tem consequências até do ponto de vista dos seguros. Uma senhora que tem diagnóstico de um micro-cancro não tem o mesmo acesso a condições boas de seguro de quem não tem esse diagnóstico.

 

Em termos práticos, o que é que as pessoas devem fazer todos os anos a partir de uma certa idade? No caso das mulheres, mamografia?, papanicolau?

MSS – Não é necessariamente todos os anos, varia. Depende das idades, depende do risco que têm, em função de uma análise prévia. Uma colonoscopia pode ser de cinco em cinco anos ou de dois em dois anos consoante os resultados da colonoscopia anterior e da história familiar.

MdS – Mas deve fazer-se a partir dos 50 anos regularmente.

MSS – A mamografia continua a ser indiscutível. O que se discute na mamografia é a idade em que se começa.

 

E se é todos os anos ou de dois em dois anos?

MSS – Exactamente. De novo a história familiar é muito importante. E bom senso. Mais importante que ter regras é, por exemplo, a pessoa ter modificações do seu trânsito intestinal, ou ter um sinal da pele que mudou, e vigiar. Estamos a safar-nos razoavelmente no cólon, na mama e no colo do útero.

 

E estômago, há alguma maneira de fazer rastreio?

MSS – Não. Nem estômago nem sistema nervoso central, pâncreas, fígado, pulmão. Nem fazendo todos os anos um raio-x pulmonar. Pode-se fazer raio-x todos os anos, mas aumenta imenso a radiação da pessoa, e tem muitos órgãos que vão ser submetidos. E sabemos que quando um raio-x banal encontra um nódulo do pulmão, ele, infelizmente, já ultrapassou a fase em que podia ser removido sem problemas. A sensibilidade da radiologia actual não é suficiente. Agora passou a fazer-se um TAC espiral, que é muito mais eficiente. O problema do TAC espiral é que aumenta ainda mais a radiação. Em termos de custo/benefício é muito complicado.

 

Falando de um assunto tão sensível e complexo, podemos deixar duas linhas-âncora aos leitores?

MdS – O que saiu desta conversa é que a prevenção é muito importante e que ter um tumor não é uma sentença.

MSS – A maior parte das vezes não é. E cada vez vai ser menos. A incidência de cancro aumentou exponencialmente nos Estados Unidos e a mortalidade está a diminuir. As taxas de mortalidade já estão abaixo dos 40%.

MdS – É muito importante as pessoas sentirem isso. Porque as pessoas não estão preparadas para morrer. Olhemos para uma célula: com tanta e tão estranhamente bela organização, como pode uma célula vir a crescer de tal modo que toma conta de um homem inteiro? É de facto uma estranha doença. Tem que haver uma forma de surdez de quem a alberga para não perceber o perigo que representa. É compreensível que se pense que acordar o sistema imunológico vai ajudar, mas o sistema imunológico evoluiu para se defender do perigo que vem de fora. E um tumor tão parecido, tão igual ao hospedeiro só raramente será reconhecido como perigo pelo sistema imunológico. E lembro Garcia d’ Orta, que cito em Meu Dito, Meu Escrito: “O que sabemos é a mais pequena parte do que não se sabe”.

 

Publicado originalmente no Público em 2015 

 

 

 

 

Herman Enciclopédia

04.02.22

Gud evenaing. Ou, se preferirem, boa noite.

O espectáculo vai começar. O elenco: Lauro Dérnio, Artista Bastos, Super Tia, Mike e Melga, Felisberto Desgraçado.

Mais este:

- “Eu sou uma pessoa que pensa no depressa”.

O senhor Engenheiro do riso alarve e estilo brejeiro: “Parece que temos um pedaço de francesinha na boca…, eheheh”.

O protagonista: Diácono Remédios.

Ei-lo.

- “Ó meus amigos-s-s.”

Censor, moralista, filho de uma mãe “repugnante e hedionda”: a Dra. Rute Remédios. A sexóloga que aparecia semanalmente na televisão para falar de “sexo puro e duro como todos nós gostamos, ceeeerto?”.

O Diácono Remédios foi o verdadeiro artista de um programa recheado de personagens luminosos, esdrúxulos, reveladores do que éramos então: um Portugal ocupado com a Expo-98, em transição. O Diácono instalou-se no imaginário colectivo como alter-ego de uma moral careta, salazarenta, falsamente puritana. Representava um bafio que afinal ainda existia.

Era um tempo em que Portugal repetia, como se fosse uma senha: “Onde é que tu estavas no 25 de Abril?”. Ou “Let’s look at the trailer”. Ou: “Este homem não é do norte, carago!”. Para além do omnipresente: “Não havia nexexidade-e-e”. Era um tempo em que Herman José estava no pico da forma. Herman Enciclopédia, a obra da maturidade, estreou em 1997.

“Acho que é, de longe, o que de melhor se fez em Portugal em matéria de humor. A obra mais iconoclasta, a mais escandalosa, às vezes quase pornográfica. Como dizia o Alexandre O’Neill, somos o país do diminutivo e do respeitinho é que é preciso; este é um humor que escapa a esse respeitinho. O programa é uma espécie de contra-ataque à censura dos anos do cavaquismo. Contra uma moralidade vigente, com cheiro a naftalina. Que estourou assim que Cavaco saiu do poder. No período Guterres, nitidamente, as bolas de naftalina diminuíram de tamanho. O programa transpira isso. Uma maior liberdade. Reflecte uma direcção da RTP menos sensível à censura. À censura íntima, àquela que se faz antes de os programas serem delineados”, diz Clara ferreira Alves, uma das primeiras opinion maker a escrever sobre o Herman Enciclopédia.

António Guterres, então primeiro-ministro, era fã da série.

“Sempre que tinha oportunidade, não perdia. Era para mim, não apenas um entretenimento, mas um tranquilizante. Era um modo de esquecer por um momento as preocupações, as tensões. Não me recordo de ter adoptado nenhuma das expressões do programa de forma regular. Não como uso: “É a vida”, que é uma das minhas expressões favoritas. Mas com grande probabilidade tê-las-ei usado. O impacto do programa e dos personagens foi extremamente forte”.

Guterres, o católico. Alguma relação com o puritanismo do Diácono? “Nenhuma – responde Herman. “Guterres é um espírito maior, e a sua fé serve as suas convicções, não é para ser usada como arma de arremesso. É uma pessoa de bem, e o mais democrata dos primeiros-ministros. Isso mesmo reflecte-se na amplitude da paleta crítica que usámos”.

Nuno Artur Silva quis que o Diácono se chamasse Reverendo. O director das Produções Fictícias, a empresa de argumentistas que escreveu o programa, e que esteve na concepção do personagem com o próprio Herman, José de Pina e Miguel Viterbo, considera que o programa foi “um bom momento, um bom encontro”.

“O programa surge numa época de abertura depois de um fechamento que coincide com o cavaquismo. O Herman Enciclopédia beneficiou de total liberdade depois da tentativa de censura do sketch da “Última Ceia” no programa anterior [Parabéns]. Surge na ressaca desse episódio, com algumas sequelas, com quebra de contratos publicitários, por, supostamente, o Herman ter hostilizado a Igreja Católica. A Igreja não é o único alvo, o programa dispara em muitas direcções. Critica os modelos de jornalismo; estava a despontar o estilo: “Põe a manchete primeiro e faz as perguntas depois”.

A Igreja não era o único alvo. Mas basta rever alguns dos episódios, no DVD que foi lançado recentemente, para perceber que o tirocínio é constante.

Alguns exemplos, em separadores inócuos, entre sketches e personagens. Uma manchete anuncia: “Claudia Schiffer é um homem. Para mim foi uma grande desilusão, diz o Papa João Paulo II”. Como consequência: “Basta de brincadeiras com sua santidade”, pede em título o Infelizmente. “Ex-Papa apanhado nas malhas do doping. O actual Papa: não comento”. Outro exemplo: o Papa passeia no Papa-móvel e antes dele, há elefantes mecânicos a copular.

Porquê esta fixação na Igreja? Herman esclarece que “na altura, estávamos convencidos de que um dos problemas maiores da sociedade portuguesa seria a pressão obsessiva da Igreja Católica sobre o poder político. Já em 1988 – apesar de ninguém mo ter confirmado – consta que o final do programa Humor de Perdição teria tido mão pseudo-divina. Estava no entanto longe de imaginar que, dez anos mais tarde, teria a prova de que os mais perigosos garrotes da liberdade de expressão desta espécie de democracia residem dentro das togas e não das batinas”.

Joaquim Vieira, o director de programas da RTP que aprovou, com o director-geral Joaquim Furtado, a série, nunca teve dúvidas acerca da aposta no programa, apesar do seu carácter subversivo. “Nunca considerei o Herman Enciclopédia uma aposta errada, porque achei que este era o tipo de programa que correspondia melhor ao enorme talento do Herman. A questão do suposto radicalismo nunca me preocupou, pois só assim se poderia construir um programa de humor saudável. Não tenho ideia de ter havido alguma pressão. Penso que depois de termos resistido a uma outra pressão de meios católicos, quanto a um sketch sobre a "Última Ceia", se terá chegado à conclusão de que não valia a pena”.

A pedido da PÚBLICA, Joaquim Vieira reviu alguns episódios do Herman Enciclopédia. Com esta distância, não hesita em identificá-lo como “expressão de uma época de expansão, tranquilidade e bem-estar da sociedade portuguesa, com muitas referências ao consumo, a projectos públicos e a prazeres de uma forma geral. Se fosse hoje, haveria diferentes preocupações, embora me pareça que não mudámos assim muito no que respeita à cultura de massas. Veja-se as caricaturas feitas aos programas de TV: parecem antecipar o que veio depois. Não acho o programa nada político, mas a ligação aos anos do guterrismo pode ter a ver com uma certa visão despreocupada da vida. Caminhávamos alegremente para o abismo (do défice) e nenhum de nós tinha consciência disso”.

Sobre que é o programa, afinal?

“O tema dominante eram os costumes, e não a política”, pensa Clara Ferreira Alves. “Aliás, o Herman e as Produções Fictícias nunca foram muito para a política. Mas há uma grande sátira social. O que ali se critica é um modo de ser português. Um modo mais estreitinho dá lugar a um modo às vezes boçal, à boa maneira de Bordalo Pinheiro, e outras vezes mais refinado. O sexo era um grande tabu. O episódio dos “Óscares da pornografia”, ainda hoje, não tenho a certeza de que pudesse ser feito com a liberdade com que foi. Teve a sua importância que a RTP tivesse na sua direcção o Joaquim Vieira e o Joaquim Furtado. Dois jornalistas, duas pessoas que gostam de liberdade. E que chegaram a ser ferozmente satirizados no Herman Enciclopédia”.

Herman sublinha também este aspecto: “Era o serviço público ao serviço da inteligência, com dois “inteligentes” ao leme da direcção de programas. Lembro que o programa sucumbia nas audiências em confronto com a efervescente SIC de Emídio Rangel”.

As audiências do Herman Enciclopédia começaram por ser tímidas. Foram precisas semanas para que o programa se transformasse no fenómeno que continua a ser passados 13 anos sobre a sua exibição. Os portugueses pareciam não se rever nos personagens histriónicos de Herman&Companhia. Ninguém dizia nas ruas: “Grandes fitas, Greites faites”, numa glosa a Lauro Dérnio. Ou “Qual é a senha?”. Ou “Você “num” se desgrace!”

Nos jornais e nos cafés discutia-se o tema da regionalização; na televisão, numas caves infectas da muy distinta cidade do Porto, discutia-se em reuniões clandestinas o Pintismo Narcisismo.

Pinto da Costa era (e é) Presidente do Futebol Clube do Porto, Narciso Miranda, “rosto do poder local”, ascendia a Secretário de Estado, Fernando Gomes, presidente da Câmara do Porto e ministro socialista, servia de base para a composição do Senhor Engenheiro de Herman. Embora nunca se tenha ouvido da boca de Gomes: “Graande sticada”.

“É um mister!”, dizia dele um dos assessores-acólitos. Uma expressão que ficou, para Clara Ferreira Alves, indissociável daquele grupo. Herman, revendo, diz-se “positivamente espantado com a jactância da rubrica dos Homens do Norte”.

Nuno Artur Silva tem no “Partido do Norte” um dos momentos preferidos do Herman Enciclopédia. “É uma ideia colectiva, depois escrita pelo Rui Cardoso Martins e pelo José de Pina. Sempre imaginámos que deveria ser representado à Yes, Minister. Ou seja, com contenção. O Herman fez exactamente o contrário. Representou à Irmãos Marx, completamente em delírio, quase à desenho-animado. O que começou por nos parecer terrível acabou por ter um resultado brilhante. Tem imensa graça a maneira como se movimentam e a opção por aquela direcção de actores. É raro ter no mesmo sketch o Herman, o José Pedro Gomes, o Miguel Guilherme, a Maria Rueff, a Lídia Franco. Um grupo de actores em estado de graça”.

As reuniões do PNRN (Partido Nacional da Região Norte) representavam o momento mais colado à realidade política de um programa que não era eminentemente político. Mas Guterres não se revia no conteúdo do sketch. “Aconteceu-me várias vezes fazerem humor sobre mim, e sempre encarei isso com grande naturalidade. Quem quiser estar, não apenas na política, mas em qualquer função que implique exposição pública, tem de encarar isso com naturalidade. O que é importante dizer é que, apesar da irreverência do Herman, ele nunca foi ofensivo. O humor do Herman sobre as mais diversas personalidades da vida portuguesa, merecia, na minha opinião, ser encarado com grande fair play”.

Entre o “não ofensivo” de Guterres e o “quase pornográfico” de Clara Ferreira Alves, vale a pena rever algumas das cenas e expressões usadas para compreender o que estava em causa.

Pelo Herman Enciclopédia apareciam personagens como a Teresa Trucla, no programa Vibratório. Logo censurada pelo Diácono Remédios:

- “Um vibrador? E de tamanho familiar! Valha-me Deus!”

O Artista Bastos repetia a frase:

- “Lá vinha ele com o seu castor debaixo do braço…”,

como uma espécie de intróito ao famoso:

- “Onde é que tu estavas no 25 de Abril?”

Havia convidados que não entravam no monólogo secreto do Artista Bastos e eram zurzidos com pérolas deste quilate:

- “Eu acho que eras umas besta, há que dizê-lo com frontalidade” ou

- “Vou-te partir o trombil, há que dizê-lo com frontalidade” 

ou,

- “Vai levar na peida, vai fazer broches a cavalos”,

que os “pis” sobrepostos mal disfarçavam, como era intenção manifesta da equipa.  

Herman Enciclopédia satirizava o novo-riquismo nas “Aventuras da Super-Tia” e da sua amiga Robinha (um magistral Joaquim Monchique). “Uma super-tia llena de possidonite, de nome Batata, epítome de uma high society que vive na tesura e que mantém as aparências. Obviamente usa malas Louis Vuitton.

- “O tio Babas diz que a última moda em Paris é um Picasso no canto da parede e um Pollock no rodapé”.

Repete palavras como:

- “Caturreira!”

Num estilo afectado, exala boa educação quando se dirige à empregada:

- Ó não sei quantas (nunca sei o nome da criadagem)…

Acha que “os jipes na cidade não podiam estar mais na moda!” Fazem sentir “aquela coisa da ligação à terra”.

Os assuntos eram os de um Portugal próspero, em vésperas da Expo-98 e das grandes obras de construção. O Senhor engenheiro falava, cobiçoso, do “contratozinho”.

- “Le boilá!”

Ao mesmo tempo que frequentava casas de alterne, e deixava implícita a ligação entre política – corrupção – prostituição.

- “Tou-me a sentir comichoso. Bou até Amarante…”

(o incêndio no bar Mea Culpa tinha sido nesse ano).

Decisão que merecia o aplauso do personagem interpretado por José Pedro Gomes:

- “Este homem é um senhor!”

Neste mosaico da sociedade portuguesa, coexistia a micro-realidade de Alfama, onde se faziam campeonatos de lerpa, os homens vestiam fatos de treino fluorescentes e onde se cantava o fado, claro.

“Ai Mãezinha, não te apagues” era uma novela burlesca que tinha em Felisberto Desgraçado o personagem central. O seu sonho era levar a mãezinha aos Estados “Onidos”.

- “Corre-me tão mal a vida! É esta maldita caspa, é o cancro da próstata da Felismina, e a mãezinha que não volta... Menzinha volta por favor! Mãezinha não tapagues!”

Era o tempo das boys band, constituídas por rapazes espadaúdos, “repescados da valeta e das obras”. Da televisão “em movimentos”, feita de planos oblíquos – uma hiperbolização do já de si frenético Big Show SIC. A música que se ouvia era de Abrunhosa, Prince, Cesária Évora. No Herman Enciclopédia promoviam-se encontros improváveis. Entre Madonna e Carlos do Carmo, Amália e Bob Dylan a cantar um malhão-malhão.

A música também era a dos Fried Potato Suicide – deixa para nova aparição do Diácono Remédios:

- “Batatas fritas a cometerem suicídio? O suicídio é um pecado, mesmo para as batatas fritas.”

Nem o hino nacional foi poupado. A Dra. Rute Remédios, nas consultas de sexologia, considerava-o uma boa base musical para o sexo. Porquê? Porque daí se pensa em militares… Pelo contrário, os Madredeus eram desaconselhados.

- “Com isto é impossível ter uma erecção capaz! Madredeus, Manoel de Oliveira, meio litro de leite morno, bolachinha de água e sal, e obtenha uma embalagem de Xanax!”

De onde é que saía tudo isto?

Herman e Nuno Artur Silva explicam o modo de fazer do Herman Enciclopédia.

“Tínhamos reuniões de ideias todas as semanas, brainstorming à volta da mesa. Passavam-se as ideias para o Herman, que contribuía com algumas sugestões. Por exemplo, deu-nos uma frase da mãe: “Ó filho, és um bom artista, não tinhas necessidade de fazer aquilo”, e pediu-nos: “Façam alguma coisa com isto”. Daí resultou o “Não havia necessidade” do Diácono. A ideia era depois trabalhada por dois guionistas. Trabalhavam em liberdade total dentro daquela regra que o Herman estabeleceu comigo quando começámos a trabalhar: “Escreve o que te apetece, eu uso como me apetece, e não vamos perder muito tempo com explicações”. Esta regra manteve-se com a equipa toda e funcionou muito bem. No Herman Enciclopédia, de uma maneira geral, respeitou muito o texto. Eu próprio fazia a ligação com o Herman e os actores”.

Herman José recorda que o ritmo de feitura do programa era sempre alucinante, mas que o processo de apropriação dos textos e composição dos personagens era variável. “Eu diria, que atrás de cada boneco está alguém. Há os óbvios, como o Lauro António ou o Baptista Bastos, mas em todos os outros estão a vizinha, o motorista, a vendedora de jornais, a prima, o sócio, o polícia, etc... Havia textos que tinham tratamento copy/paste. Eram respeitados na íntegra e reproduzidos tal e qual. Havia outros que tinham tratamento bovino. Mastigava-os, engolia, e eram finalmente regurgitados depois de devidamente tratados. Outros não chegavam sequer a entrar na digestão – eram modificados e compactados no papel, em longas horas de trabalho (como aconteceu com alguns episódios dos “Homens do Norte”). Imagino que nessa altura jovens autores me tenham rogado algumas pragas. Mas foi por uma boa causa – espero eu”.

O ambiente era “muito solidário, distendido, divertido, mas penosamente profissional. Gravar mais de 50 minutos de ficção científica com aquela variedade de personagens e cenários foi uma tarefa ciclópica. Havia muito pouco espaço para brincadeira”.

O Herman Enciclopédia constituía uma das grandes apostas do canal. Numa fase inicial, as gravações, foram acompanhadas de perto pela direcção. “A única questão que se colocou de início teve a ver com valores de produção que quanto a nós, (eu e o Joaquim Furtado), não estavam a ser devidamente concretizados, o que tinha menos a ver com conteúdo e mais com imagem”.

Em todos, exista a ideia de se estar a fazer um grande momento de televisão, que perduraria. “Era uma equipa de argumentistas em boa forma e um Herman de regresso, depois de uma das suas mortes anunciadas. O programa é uma amostra da incrível paleta de cores que o Herman tem na composição de personagens”, sintetiza Nuno Artur Silva.

Era, como disse Carlos Pinto Coelho, himself, numa aparição no Herman Enciclopédia, um programa de “audiências modestas, mas um fenómeno planetário”.

Talvez fosse excessivo falar em fenómeno planetário, antes da vulgarização da internet como suporte privilegiado de conteúdos media. A geração youtube ainda não tinha nascido. Mas no Portugal de então, o programa era um espaço de convívio. (Convaive, para Lauro Dérnio.)

O que é que o fez resistir? O que é que faz que estejamos a falar sobre ele, 13 anos depois da sua exibição (e assumindo que a edição em DVD não o justifica completamente)?

“O que resiste melhor ao tempo é o Herman José”, pensa o antigo primeiro-ministro António Guterres. “Na maior parte dos casos, os programas de humor ficam tão terrivelmente datados que perdem a graça. São apenas expressão de um tempo. O que é mais interessante no Herman Enciclopédia é sentir que (exceptuando histórias mais específicas), o humor não perdeu a sua oportunidade. É uma qualidade rara”. E faz o paralelo com um clássico da história do humor. “Continuamos a ver Yes, Minister e continuamos a rir. Mesmo que o programa tenha a ver com a política do seu tempo. Porque é um humor de grande qualidade. É o que acontece com o Herman. A qualidade não é datada”.

Herman, o verdadeiro artista, elenca os momentos do programa que, na sua opinião, melhor resistem à erosão do tempo. “A actualidade do Diácono Remédios, o non-sense groucho-marxiano da novela “Ai Mãezinha, Não te Apagues”. Também me encanta o talento dos actores. A série resiste bem, apesar de ser pontualmente atraiçoada pelo timing menos frenético de alguns sketches, e pela própria duração de cada episódio, o dobro daquilo que é praticado hoje em dia”.

Na opinião de Joaquim Vieira, resiste porque há nele “um registo de humor burlesco e anárquico, demolidor das convenções, que é intemporal e muito bem compreendido pelos jovens”.

A geração Gato Fedorento, (denominada sumariamente assim para definir um tempo e um modo de consumir conteúdos de humor), não assistiu à emissão do Herman Enciclopédia no canal 1 da RTP. Mas Herman pensa “que são eles os grandes catalisadores do estatuto de culto que o programa tem vindo a ganhar”.

Vão ao youtube e percebam do que estamos a falar.

Clara Ferreira Alves reviu recentemente o programa com dois adolescentes. “Adoraram!, mesmo que não saibam quem é o Lauro António. A personagem criada é naturalmente cómica. Essa é que é a marca do grande humor e da genialidade do Herman: transformar uma situação particular numa situação universal, que todo o mundo percebe, em qualquer lugar. Transformou uma pessoa num tipo imortal. Isso, o Herman faz. O Eça de Queirós também fazia”.

É verdade que há expressões, como essa, que continuam a usar-se. Mesmo que a sua origem seja desconhecida. “Eu é que sou o presidente da junta” é outro exemplo, que se aplica de forma exemplar a contextos de poder.

Herman ouviu recentemente “Onde é que estavas no 25 de Abril?” na Assembleia da República, numa interpelação de um deputado ao Governo.

Mas o seu personagem preferido, “pela sua importância histórica e capacidade de sobrevida, é o Diácono Remédios. Infelizmente mais actual do que nunca”.

Para Joaquim Vieira, “o provedor Diácono Remédios diz muito sobre os preconceitos da nossa sociedade. Ainda há gente que parece hoje em dia querer imitá-lo, mas à séria… A minha preocupação tem sido não usar a expressão “Não havia necessidade”. Não é agradável ser comparado a um Diácono Remédios.”

Clara Ferreira Alves também escolhe o Diácono como o grande personagem da série. “O “Não havia necessidade” fez esse grande milagre, que fazem alguns versos de grandes poetas: entrou na língua portuguesa”. E continua a usar “Lets look at the trailer”.

Nuno Artur Silva tem uma predilecção pelo Artista Bastos, escrito por Eduardo Madeira e Henrique Dias, pelo Herman Geographic, em cuja criação participou, e que foi escrito por João Quadros.

Depois, veio o declínio.

“Se o Herman tivesse nascido nos Estados Unidos, sobretudo na Califórnia, seria uma estrela absoluta. Em Portugal, é difícil agradar. Há sempre um desejo de matar alguém em Portugal, e o Herman foi um desses casos bem sucedidos. Havia um desejo compulsivo, a partir de certa altura, de não achar graça e de dizer que o Herman estava acabado”.

Como é que Herman se revê?

“Com ternura e inveja. Ternura por me sentir, aqui e ali, relativamente imaturo; e inveja porque aquela pele de 43 anos imprime muito melhor do que a actual. Toda a perda é dolorosa. A perda de uma certa inocência e quixotismo. A perda de dezenas de amigos cuja saúde não resistiu à passagem do tempo. A perda de uma inconsciente felicidade de quem se sente praticamente imortal e centro do mundo. A perda da visão total que me permitia ler o teleponto a metros de distância sem qualquer ajuda”.

O Herman Enciclopédia teve duas séries. Frequentemente, depois de terminado o programa, no decorrer da ficha técnica, aparecia, cereja no topo do bolo, o Diácono Remédios.

- “A minha mãe a portar-se como aquelas cadelas infiéis... Uns seios enormes, como as bossas de um camelo. Enquanto vários homens abanam os seus bacamartes-s-s”.

E abanando a mão sapuda e mole, exortava ao recolhimento:

- “Ide, ide para as vossas casas”.

 

ps: "Let's look at the trailer" foi criado por Nuno Markl

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010.