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Anabela Mota Ribeiro

Eduardo Paz Ferreira

20.02.22

Eduardo Paz Ferreira é professor no IDEFF, Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal. “Não sou muito vaidoso, gostava de não ser, mas uma coisa que me orgulha é o trabalho que tenho feito na universidade”. É um catedrático heterodoxo. Do tipo de trazer Catherine Deneuve à liça quando pensa nas razões por que é de esquerda. Mestre da provocação. Não cita Marx uma única vez. Esteve sempre na esfera do Partido Socialista. Um dia, Eanes convidou-o para dirigir a informação da televisão pública. Amigo de Medeiros Ferreira e de outros açorianos. Nostálgico no ADN. É casado com a procuradora Francisca van Dunem, têm um filho de 13 anos. Pertence a uma geração que, segundo ele, traiu os seus ideais. Recusou a política. Mesmo que não goste da designação, é um homem de sucesso. Nasceu nos Açores há 57 anos.

 

 

Ainda se lembra do tempo em que foi chefe de gabinete de Medeiros Ferreira, 1976/ 77? Ou isso parece outra encarnação?

Não, lembro-me muito bem. Foi uma grande aceleração de ritmo de vida. Aos 23 anos não se era chefe de gabinete, muito menos no ministério dos Negócios Estrangeiros. Havia situações embaraçosas. Ter de chamar um embaixador de 60 anos e dar-lhe uma descompostura porque ele tinha feito qualquer coisa de errado. O tempo passa tanto que a maior parte deles estão reformados, e já não conheço a nova geração. Mas passei a interessar-me muito mais pelas questões de política externa e ainda tenho muitos amigos nesse meio.

 

O que é que aprendeu? Queria que trouxesse o oceano que viveu naquela experiência tão colada ao 25 de Abril.

Passei no jornalismo pela República. Não foram anos fáceis. Foi a transição para um mundo mais real e sujeito a regras.

 

Presumo que a relação com Medeiros Ferreira venha dos Açores. E não sei se a relação com a comunicação social não se faz via outro açoriano, Mário Mesquita.

Essa fileira açoriana. Hoje em dia, apesar de termos um Presidente da Assembleia da República que é açoriano, já desapareceu o mito do terrível lobby açoriano, uma espécie de máfia.

 

Desapareceu?

Continua a existir? Durante muitos anos havia a ideia, no próprio PS, de que havia um grupo açoriano que tinha uma agenda própria. Hoje em dia isso está bastante desfeito.

 

Ou o isolamento já não é o mesmo, e a necessidade de as pessoas se protegerem não é a mesma.

Também isso. Essa fidelidade, essa entreajuda açoriana já está muito longe. O Medeiros Ferreira tem mais dez, 12 anos que eu, mas conheço-o dos Açores. Era um jovem aluno, devia estar no 3º ano, quando o Medeiros Ferreira foi expulso das universidades, e passou uns tempos nos Açores.

 

Antes de se exilar na Suíça.

O Medeiros Ferreira causava na sociedade açoriana um de dois sentimentos: ou enorme admiração, ou a mais profunda desconfiança e pavor por aquele potencial subvertor dos filhos. Começou a falar comigo numa circunstância extraordinária: por ser uma das poucas pessoas que compravam e liam A Bola. A nossa amizade começou por aí.

 

Benfica, portanto.

Embora nesses tempos o meu coração fosse bastante Académica. Sempre pensei que ia para Coimbra onde os meus pais e as minhas irmãs se tinham formado. Nessa idade já tinha uma grande presunção de ser um intelectual, e aquilo de ler A Bola envergonhava-me um bocado. Foi uma grande coincidência que o Medeiros Ferreira também gostasse de discutir futebol. Ele tinha uma atitude impressionante, era a negação de tudo o que eu pensava que era um intelectual.

 

Como é que pensava que era?

Achava que ser um intelectual era ser muito sisudo, muito chato, não ir a festas, não dançar, não namorar. Imagens de épocas já remotas. O Medeiros Ferreira só queria festas, namorar meninas bonitas, divertir-se. Ele é que tinha razão. Acabou por me passar algum desse espírito lúdico. Nos Açores havia uma passagem de facho, de mão em mão, entre as gerações. Os mais velhos, antes de virem para a universidade, deixavam lá uma espécie de filhos espirituais. O Medeiros Ferreira teria um filho espiritual, que era o Jaime Gama, que, no entanto, pelo menos na idade adulta, nunca se quis reconhecer como tal.

 

A incompatibilidade começou logo aí?

Nesse tempo a relação era boa. Mas creio que todos temos a noção de quanto ele foi importante. Depois dessa geração foi o Mário Mesquita, que está entre mim e o Medeiros Ferreira, que ficou como líder intelectual e político da geração juvenil açoriana. Lembro-me de uma pessoa que hoje em dia não tem qualquer actividade política, professor de Filosofia da Universidade Nova, Paulo Jorge Melo. Uma vez, tinha eu uns 13 anos, sabia que era muito bom aluno, veio falar comigo: “Tu é que ganhaste os jogos florais?, convém que nós, os “génios”, nos conheçamos uns aos outros”. [riso]. Aqui “génios”, sempre entre aspas.

 

Num ambiente fechado como eram os Açores, era normal e expectável que os génios se dessem e se conhecessem entre si. Que se considerassem especiais.

Especiais, seguramente. Olhados pelas restantes pessoas com alguma desconfiança, alguma estranheza.

 

Com expectativa, também? Eram aqueles que podiam levar a alma açoriana a bom porto.

Ponta Delgada era uma cidade opressiva. Lembro-me de ter 14, 15 anos, de ler a “Aparição”, do Vergílio Ferreira, e ficar surpreendido com a ideia de que Évora podia ser tão parecida com Ponta Delgada. Havia o problema comum das pequenas cidades, em que se conhecem os movimentos de toda a gente. O Melo Antunes viveu uns anos nos Açores (era casado com uma açoriana), e mantinha uma tertúlia. Um dia por semana íamos a casa dele, e no dia a seguir passavam vários senhores no escritório do meu pai a dizer: “Lá está o seu filho a ir a casa do Melo Antunes”. Havia uma censura social e tentativa de abafamento.

 

O Melo Antunes era outro subversor.

Começa por ir para os Açores um pouco como castigo, para estar fora de áreas mais perigosas. O isolamento de Ponta Delgada era enorme. Os jornais de Lisboa chegavam com dois dias de atraso, os jornais locais faziam-se com base na Emissora Nacional. Não havia sequer telex, o que era o mais moderno em termos de comunicação. O próprio consumo era feito essencialmente de produtos regionais. Vinha a Lisboa com frequência porque a minha mãe era continental, e por exemplo, Larangina, era uma surpresa fantástica para nós! Hoje em dia, para meu desgosto, as bananas açorianas, que são excelentes mas não têm muito bom aspecto, são substituídas por bananas Chiquita, os ananases pelos abacaxis. Os Açores passaram de uma situação de isolamento para uma de banalização excessiva.

 

Fale-me da estratificação social que observava à sua volta.

Em São Miguel havia os terratenentes que dominavam toda a ilha. Tinham dois símbolos, o Clube Micaelense e o Café Central. O Clube Micaelense era extremamente exclusivo e elitista. O Café Central, que ficava mesmo ao pé, era um café de pessoas ricas, profissionais liberais, onde não passaria pela cabeça a um trabalhador de uma loja ir tomar café. Mais tarde, o dono, um personagem fabuloso de muito mau feitio, que tinha o segredo de uns gelados aprendido na América, que não passou nem à filha, aborreceu-se por a democracia ter chegado ao Café Central e fechou-o. Era uma sociedade muito fechada e estratificada. As pessoas casavam-se entre si. O meu pai casou com uma continental e isso foi um grande choque para a minha avó.

 

Mas era uma continental Hintze Ribeiro.

Não. Chamo-me Hintze porque a minha avó, mãe do meu pai, exigiu que ficasse o apelido dela no meu nome. Não tenho nenhum nome de família da minha mãe, tenho três do meu pai. Ironias da vida, o meu pai morreu muito cedo e foi a minha mãe, a quem a minha avó tinha feito a vida muito difícil, a tratar dela.

 

Quando é que teve a noção de que era um menino bem nascido cujo destino social dificilmente seria ficar nos Açores? É também uma maneira de perguntar pelos destinos que lhe foram traçando, e que foi traçando para si, além dos Açores.

Conheci o Mário Mesquita na JEC, ele achou que eu era recrutável para o campo dos intelectuais contestatários. Os Açores eram marcados por uma grande pobreza. A imagem mais chocante que tenho é a dos trabalhadores rurais que ficavam parados ao pé das igrejas; as pessoas que precisavam de um trabalhador iam lá recrutá-los, ao dia. A comida deles era um pão de milho com pimenta da terra em cima, no máximo com uma sardinha ou um carapau. Ou batatas cozidas com pimenta. Estou a falar de um período nos anos 60 em que as coisas tinham melhorado, já tinha havido muita emigração.

O meu pai e o meu avô eram advogados. Toda a lógica me levaria a vir fazer um curso. Não havia sequer universidade nos Açores. Nesse tempo os cursos respeitáveis eram poucos: Direito, Medicina, Engenharia.

 

Letras para as meninas.

Como, aliás, o Prof. Marcelo Caetano declarava solenemente nas aulas de Direito. A expressão que ele usava era Escola Superior de Dactilografia. É verdade que durante décadas só houve uma mulher doutorada em Direito, a Prof. Isabel Magalhães Colaço, que tinha a seu favor ser filha de um professor de Direito. Mesmo assim, muitos dos professores tratavam-na por Sr. D. Isabel, o que a indignava. Nas profissões jurídicas as pessoas tendem a esquecer que antes do 25 de Abril as mulheres não podiam ser juízas, não podiam ser do Ministério Público. Podiam ser conservadoras e notárias. Não podiam ser diplomatas. No meu tempo os rapazes de Direito iam em procissão à faculdade de Letras para ver as meninas. Hoje em dia suponho que é o contrário.

 

Era previsível que cursasse Direito, mercê da sua história familiar.

Fui para Direito por inércia. Não queria ser médico. A tradição familiar acabou por pesar. Ajudava muito o meu pai quando era jovem. E Direito era uma coisa que dava a sensação de nos dar armas boas para intervir socialmente.

 

Queria mais intervir socialmente, mudar o mundo, do que ser advogado?

Costumo perguntar aos meus alunos por que é que escolheram Direito. O ano passado fiquei em estado de choque, todos responderam: “Para ganhar dinheiro”. Talvez esta geração seja mais franca, assume que quer ganhar dinheiro. Mas ninguém vai para Direito pela ideia de que pode lutar por um mundo melhor, pode ajudar a criar regras melhores. O último que me lembro de ter dado uma resposta engraçada tinha ido para Direito por causa do Hill Street Blues [riso].

(Tenho um filho de 13 anos que durante muitos anos resistiu ferozmente à ideia de ir para Direito. Identificava Direito com o facto de a mãe e o pai trabalharem muito. “Doutores, já chega nesta casa”. A partir do Boston Legal, que viu comigo, a ideia dele mudou completamente. Passou a dizer: “Quero ir para advogado, mas não é para fazer as coisas que o pai faz, é para ir para o tribunal”.)

 

Queria então mudar o mundo? Temos estado a ver o contexto e o seu percurso, mas ainda não sei quem era este jovem aos 17 anos.

Interrogo-me muito sobre o percurso que fiz, porque é que o fiz. Podia ter-me mantido no jornalismo, o que aliás me agradava bastante. Podia ter feito política, a partir da experiência do ministério dos Negócios Estrangeiros. Podia ter feito uma carreira na área da gestão. Acabei por fazer uma carreira universitária. Entro para a faculdade no concurso de 1977, o primeiro depois da confusão. Em geral toda a gente dizia: “Formidável, ainda bem que foi capaz de abandonar outros mundos de mais glória pelo universitário”. A única pessoa que me passou uma descompostura foi o General Eanes [riso], que me disse: “Estou muito triste com esta notícia. Advogados é o que mais há para aí, agora, pessoas com as suas qualidades…”. Na altura, tinha sido convidado para director de informação da RTP.

 

Foi uma carreira jornalística tão séria assim?

Talvez porque houvesse muito menos concorrência, fui bastante procurado.

 

Naquela época, o jornalismo seria uma forma, como a política, de intervir no mundo.

Seria. O jornalismo nesse tempo era mais heróico e de grandes causas. Vivo o período de 1974/75 a trabalhar na República, de onde saio com a tomada de poder dos trabalhadores. Ao mesmo tempo trabalhava na Emissora Nacional, onde tive o privilégio de trabalhar com o Herberto Hélder. O Herberto tinha trabalhado na Emissora Nacional uns 20 anos antes, e tinha sido expulso por razões políticas e outras morais; foi reintegrado naquela altura. Fazia um trabalho discretíssimo de redactor de notícias internacionais. Foi um deslumbramento para mim.

 

Já era o Herberto Hélder?

Sim. Um livro de que gostava imenso: “Os Passos em Volta”.

 

Já o tinha lido quando o encontrou na redacção?

Seguramente. Nessa redacção estava um dos meus maiores amigos, o Alface. Era uma das pessoas mais impressionantes que encontrei, de generosidade, amizade, disponibilidade. Tinha uma grande dificuldade em lidar com o quotidiano. A criatividade e qualidade de escrita dele eram ímpares. Mas acabou por optar por um low profile e uma discrição muito grandes.

Isto permite-me voltar ao meu caso. Quando faço a opção universitária, faço uma opção de recuo em relação a essa intervenção. Durante uns anos, depois de sair do jornalismo, tive uma coluna no Expresso, e a certa altura não me apeteceu mais.

 

Consegue dissecar melhor as razões pelas quais não interveio, ou deixou de intervir da mesma maneira?

Costumava citar a Catherine Deneuve, por estranho que pareça. Um jornalista dizia-lhe: “Você diz que é uma mulher de esquerda mas anda aí com o Saint Laurent. Em que é que se traduz ser de esquerda?”. Ela respondeu: “Faço bem as minhas coisas, porto-me bem, faço o que tenho que fazer”. Talvez eu tenha feito uma interpretação redutora da minha vida: se fizer bem aquilo que tenho de fazer, estou a contribuir para um mundo melhor. Se der bem aulas, se ajudar à formação das pessoas, isso é uma contribuição porventura mais válida do que ser mais um deputado no grupo parlamentar com disciplina de voto.

Hoje em dia não estou convencido de que isto seja suficiente. Portarmo-nos bem é um pressuposto, mas temos mais obrigações com a sociedade. Como qualquer português, tendo a ser muito crítico de certas pessoas que actuam na esfera política, ou mesmo profissional, e uso palavras duras. A [minha mulher] Francisca diz-me: “Não tens legitimidade para criticar porque não fizeste este percurso, não tentaste isto. Só podias criticar se tivesses tido a coragem que ele teve”. É um raciocínio muito bom e muito certo. Vem de uma pessoa – mas sou suspeito a falar dela – cuja percepção da vida e do mundo é extraordinária e iluminante.

 

A sua intervenção tem-se circunscrito à universidade?

O que tenho feito muito nos últimos tempos é lutar na universidade, pela intervenção da universidade. Organizo imensas conferências, debato todos os temas de actualidade, e acho que estou a conseguir fazer a síntese entre estes dois mundos. Não faço uma intervenção no sentido político-partidária, mas não entro nada na linha de os partidos serem a desgraça. Têm perversões, mas são necessários.

 

Ainda não consegui perceber porque é que numa determinada fase desviou a rota. Até ao doutoramento não foi propriamente o aluno brilhante em relação ao qual se depositam grandes expectativas de uma carreira académica. É como se se tivesse demitido da possibilidade de ser um líder, de ser aquele que está na boca de cena.

Eu próprio me interrogo sobre isso. Temos percursos interiores que não conseguimos explicar. Há um tema que me fascina, o do acaso. Porque é que por um determinado dia termos dito sim ou não a nossa vida se vai transformar completamente? Não sei qual foi o sim ou não que disse, mas sei que em determinada altura fiz essa opção. Talvez o General Eanes tivesse alguma razão. Talvez fosse mais corajoso ter aceite ser director de informação na RTP, numa altura de consolidação do que poderia ser uma informação pluralista e democrática, do que refugiar-me na universidade. Talvez tivesse medo.

 

Medo de quê? Insegurança?

Não no sentido da precariedade das novas gerações, mas de perceber que o director de informação da RTP era um lugar mais do que exposto, um lugar cuja velocidade de rotação era muito grande.

 

Digo insegurança pessoal. Houve falta desse tipo de ambição?

Pertenço a uma geração que lidou muito mal com o sucesso. Os meus heróis favoritos, seja no cinema, seja na literatura, são mais os losers do que os winners. Há uns tempos, uma pessoa procurou-me para intervir junto de outra pessoa mais jovem: “O Sr. Dr., que é um homem de sucesso…”, e eu disse: “Isso é a pior coisa que me podem dizer”.

 

Estava a fazer género.

Não estou. Quando quero fazer auto-ironia digo que sou um homem de sucesso.

 

O que é que há de insultuoso nessa ideia de ser um homem de sucesso?

A interpretação social do que é um homem de sucesso. Aquele senhor teve um gesto que me sensibilizou ao vir pedir ajuda, mas a ideia de que me considerasse um homem de sucesso não me era agradável, porque os padrões dele não eram os mesmos que os meus. O que é um homem de sucesso na sociedade portuguesa? É alguém que tem muito dinheiro, que tem carros, poder.

 

Não só poder económico.

Não, mediático. Uma coisa que me faz impressão nos estudantes é que para eles o sucesso é entrar numa grande sociedade de advogados. Fazem toda a carreira, todo o curso, nessa busca. Alguns até são estudantes rebeldes, criativos, acessoriamente usam cabelos compridos, vestem-se mal. À medida que vão chegando ao fim do curso começam a usar gravata, formatam-se. Nas raparigas é especialmente assustador. No meu escritório recebo muitos pedidos de estágios, e quase invariavelmente a conversa é: “Sou uma pessoa ambiciosa, estou determinada a subir na vida, farei tudo o que é preciso para ter sucesso”. Nunca seleccionarei uma pessoa que me escreve isto. Mas escrevem isto porque foram formatados neste modelo. Há aqui uma linha muito fina entre o que é a ambição legítima e o que é a ambição medíocre.

 

Onde põe a sua linha?

Toda a gente deve ter ambição, mas quando a ambição se mede por subir rapidamente numa sociedade de advogados ou numa consultora, torna-se pouco interessante para mim. Quero no meu escritório alguém que saiba trabalhar, que saiba de Direito, mas com quem possa falar de cinema, trocar impressões sobre livros.

 

Quais são os losers pelos quais tem carinho?

O que me tocava especialmente eram personagens como, no “Esplendor na Relva”, a Natalie Wood e o Warren Beatty, que sobrevivem, retomam a vida normal, mas tudo o que havia de esplendor na relva, desapareceu. Personagens que são perseguidas por uma espécie de maldição de destino, que inevitavelmente os apanhará, mais cedo ou mais tarde. Hoje sou mais seduzido por personagens positivos. Se pegarmos no cinema, não tanto nas personagens mas nos actores, uma pessoa como o George Clooney é um exemplo extraordinário. Para o imaginário feminino, ainda por cima, é muito bonito; até para mim o é. Percebo que quando faço tantos elogios ao George Clooney as pessoas ficam a olhar para mim.

 

Na verdade está a seduzir as mulheres quando faz elogios ao George Clooney.

A sério? Nunca pensei nesse ângulo da questão [riso]. O George Clooney percebe o que é alcançar sucesso para ter uma boa intervenção cívica.

 

A propósito da intervenção na universidade, e do investimento na carreira académica, basta pensar nas referências que trouxe para esta conversa, ou até na sua vida, para dizer que não é o protótipo do académico como ele é conhecido em Portugal.

A minha aspiração máxima é não ser. Há uma pessoa que furou a barreira do académico tradicional, o Marcelo Rebelo de Sousa. Mesmo assim as pessoas falam dele como “o professor”. Os alunos também vêem nele um modelo de sucesso. O modelo de sucesso dele é preferível a outros modelos de sucesso. Mas há muito a ideia do universitário cinzento, sem preocupações culturais.

 

Fechado na universidade.

Sim, e conservador, não só no sentido político mas no sentido de vida. A faculdade é um microcosmos em que se geram várias lutas. Há lutas dos mais novos contra os mais velhos, lutas de grupos científicos. E umas lutas de classe: profissionais que vivem só na faculdade, que passam o dia na faculdade, e que acham que pessoas como eu são uns diletantes, que vão lá dar umas aulas e que andam a ganhar fortunas. Infelizmente não são, mas gostaria que fossem.

Toda a utilidade que a universidade pode ter é justamente o diálogo com a sociedade. A grande dificuldade é explicar aos meus alunos como é que é possível que a cadeira que dou, Finanças Públicas, seja uma cadeira de cidadania. Quero que percebam os mecanismos, porque é que pagamos impostos, que direitos temos enquanto pagadores de impostos. É uma luta um pouco perdida. Mas não pode ser, vou continuar.

 

O que é que aconteceu na sua vida, a título pessoal, que foi marcante e que o fez também mudar a rota?

A auto-contemplação não é uma boa coisa, mas tenho às vezes uma tendência excessiva para andar às voltas comigo próprio. Além de mais está feito, não vale a pena. Tive o problema de chegarmos a esta idade, de termos atravessado gerações com valores diferentes; isso torna muito difícil situar-nos. Mas rio-me de me encontrar a dizê-lo. Sobrevalorizei o lado afectivo da minha vida, o lado sentimental. Durante muitos anos pensei que vivíamos para os nossos amores, para as nossas amizades, e, perdoe-se-me a confissão excessiva, só acessoriamente para o trabalho. Não é verdade.

 

Porque é que não é verdade?

Mesmo para os nossos amores, mesmo para as nossas amizades, é preciso que o trabalho tenha uma parte importante. O equilíbrio disto é terrível. Hoje o sucesso puxa sucesso, o número de solicitações acaba por nos retirar imenso tempo.

 

O que acaba de dizer é espantoso numa pessoa da sua geração, para quem “os nossos amores” era considerado um assunto secundário. Aquilo que era dominante era a intervenção cívica. As relações pessoais vinham a reboque disso, que era o grande motor. Ou isto era o discurso, mas não respondia à realidade?

Depende. Penso que tem alguma razão. Tenho um grande desgosto geracional. A minha geração traiu todos os valores por que se bateu, traiu tudo aquilo em que acreditou. A minha intervenção cívica fez-se sempre na área daquilo que é hoje o Partido Socialista, de que não sou militante. Não tenho relação com eles mas curiosamente fui um dos fundadores do partido. Fazia parte da base interna que mandatou as pessoas para irem à Alemanha votar na formação do partido. Nunca tive a experiência radical de ser do MRPP ou do PC. Em termos da faculdade de Direito as coisas eram muito extremadas. Para simplificar, havia o PC, o MRPP e um ou outro MDP, e havia os fascistas (na primeira fila, filhos de embaixadores, ministros, as meninas que os namoravam, que furavam as greves). Vagamente no meio havia um pequeníssimo número de pessoas que se movia na ala social-democrata.

Talvez por nunca ter sido militante de nenhum desses partidos, tive muito espaço para o sentimento, e sempre achei que ele era o motor da vida. E continuo a achar. Mas não podemos destruir o amor, as amizades, pela infelicidade no trabalho. O trabalho, em certa altura, talvez me tenha aparecido como um preço que pagava pelo resto.

 

Voltando a esse tema quente, o desgosto geracional.

Tem a ver com o facto de em 1974 ser a grande alegria do 25 de Abril, mas depois, no chamado PREC, ser feroz e militantemente contra a ameaça...

 

Comunista?

Custa-me usar esta expressão, que é sempre muito pesada. Digamos contra as forças dominantes da época.

 

Ainda é muito pesada? Passaram 37 anos.

Sou completamente insuspeito, nunca fui do Partido Comunista, nunca tive nenhuma simpatia pela ideologia. Prefiro um comunista a um ex-comunista. Os que de repente descobriram aos aos 40 anos que tinham andado enganados, que não sabiam o que se passava atrás do muro de Berlim, causam-me o mais profundo desgosto.

Talvez esteja hoje um pouco mais à esquerda do que estava. É legítimo uma pessoa mudar, mas que seja sempre no sentido dos vencedores... Seria mais interessante ver alguém passar do PSD para o PC, do que do PC para o PSD.

 

Sabe aquele verso do Ruy Belo?, “é triste no Outono concluir que era o Verão a única estação”.

É fantástico. Embora hoje já não o subscreva. Voltando ao poema do filme [“Esplendor na Relva”], “nunca mais teremos o esplendor na relva, mas não nos queixaremos, antes ganharemos forças lutando pelo que tivemos”. Tenho uma melancolia doentia por tudo o que desapareceu. Na Avenida da Liberdade, no Paladium, lembro-me das salas de bilhar. O meu café era o Granfina, que ainda existe, mas não entro lá há 20 anos (está descaracterizado). Quando penso nessas pessoas que iam à Granfina, penso: “O que é que fizeram com aquilo em que acreditavam?”. Porque é que não houve a capacidade de ter outras referências e outros valores? Portugal antes do 25 de Abril era medíocre, era uma coisa de pequenos valores, pequenos gestos, pequena coragem, pequenas energias. Detestava. E tudo muito assente naqueles valores cantados na “Casa Portuguesa”: não é preciso ser rico, basta “pão e vinho sobre a mesa” e somos felizes.

 

“Dois braços à minha espera”.

Ficou com a parte mais sentimental. Hoje sabemos que “dois braços à minha espera” não chegam. Era uma sociedade de austeridade, restrição. Havia todo o elogio da formiga e todo o anátema sobre as cigarras. Aquilo a que se assistiu, tirando o período do PREC, e de alguma normalização democrática, foi à passagem desvairada para o consumo. As pessoas passaram a medir-se pelos carros que têm, pelas casas.

 

E por isso passou a ser insultuoso ser considerado um homem de sucesso? Era uma forma estereotipada de se ler o que se tinha conquistado.

Um pouco. Estas coisas nunca são tão racionais como podem parecer. O que me incomoda é que a minha geração, que tinha 20 anos no 25 de Abril, não tenha conseguido construir uma alternativa a isto. Passar das “quatro paredes caiadas” e dos “braços à minha espera” para esta situação a que chegámos, pelo fascínio louco por quem aparece na televisão, o despudor completo... Na canção dos Deolinda, “Parva que sou”, há uma coisa curiosa: “há sempre alguém pior do que eu na TV”. É

verdade.

 

Desvio da rota na entrevista. O que é que mudou na sua vida pelo facto de ter perdido o pai cedo?

Foi extremamente doloroso. Perdi o meu pai quando ele tinha 57 anos e a minha mãe quando ela tinha 60 anos. Ainda hoje sou completamente órfão. Tenho sempre a sensação, que racionalmente posso dizer que é falsa, que não fui capaz de os salvar. Morreram com doenças, mas tenho sempre essa sensação. Quando o meu pai morre já vivia em Lisboa há uns tempos, e eu passava muitas horas com ele. Íamos ao Rossio, ao Nicola, os tais sítios da nostalgia. (Tenho uma saudade quase absurda da Lisboa boémia que Fernando Lopes retrata no “Belarmino”, que já não conheci bem. Mas conheci bem o Bolero, ao pé do Martim Moniz, onde havia dois acordeonistas cegos a tocar tango. Era uma coisa felliniana. O velho Ritz. Essa noite estranha de Lisboa.

 

O fascínio por essa noite é uma forma de evocar o passado e o seu pai?

Não, o meu pai não tinha nada a ver com isso. Fui aí parar por causa do Nicola. Era um tempo em que as pessoas podiam ficar sentadas nos cafés. Tenho uma amiga que ia ao Monte Carlo só para ver o Herberto Hélder.)

 

Que idade tinha quando o seu pai morreu? É tão doloroso falar do assunto que divaga imediatamente?

Tinha 21 anos. É um tema de que me é muito difícil falar. Era fundamental que trabalhasse, mas nem por isso deixo de ter a impressão de que o deixei mais sozinho. Veio dos Açores, a vida dele não correu muito bem, não tinha muitos amigos, estava muito dependente da minha companhia.

 

Não o viu formado?

Curiosamente é uma das razões porque me formei. Há uns tempos encontrei o livro de curso dele, de Coimbra, 1947, com caricaturas e poemas feitos pelos colegas. Lendo o poema que faziam sobre o meu pai, podiam tê-lo feito sobre mim.

 

O que é que dizia?

Tem a ver com o que lhe dizia, dos meus amores, das minhas amizades. Foi estranho para mim, que conhecia já uma versão austera do meu pai, perceber que tinha tido uma juventude como eu.

 

Sabe daquele verso do Sérgio Godinho, “pode alguém ser quem não é”? E nesse caso, é esse, foi sendo esse.

O que somos é muito o resultado das pessoas com quem nos cruzamos. O Dr. Salgado Zenha, que era uma grande referência para mim. O José António Pinto Ribeiro, com quem tenho uma longa amizade. O David Mourão-Ferreira, que tem uma frase espantosa: “A felicidade não existe, há momentos de felicidade”. (Isto ajuda-me a viver, durante muito tempo aspirei à felicidade absoluta. Agora sei que se tivermos momentos de felicidade já é muito bom.) “Pode alguém ser quem não é” tem todo o sentido. Há coisas estruturantes em nós, não sei se são genéticas, mas temos um fio condutor.

 

Ia dizer a razão por que se formou.

O meu pai adoece e morre num período muito curto. Sou apanhado no 4º ano pelo 25 de Abril e nunca mais liguei nada à faculdade. Em 1975 pensei que era uma coisa que podia fazer pelo meu pai. Ele teria tido prazer em que tivesse acabado o curso.

A minha avó açoriana morreu uns anos largos depois do meu pai, com 97 ou 98 anos. Quando fui arrumar a casa encontrei uma carta do meu pai para ela dizendo que estava muito preocupado comigo, porque andava muito envolvido politicamente, e no jornalismo. Que andava a ver se me conseguia fazer mudar de vida. Nunca fez essa diligência. Os meus pais tiveram sempre um pudor, que não posso senão admirar, de nunca me imporem coisas, de terem tolerância. Em jovem podia entrar em casa completamente bêbado e os meus pais faziam de conta que não percebiam.

 

Perguntando pela morte precoce do seu pai, e pela marca que isso deixa, além da marca emocional, há também uma certa desprotecção em que fica.

Por todas as razões foi preciso trabalhar. Meu Deus, porque é que ele já não está cá? Há uns anos fui ao casamento de uma prima, jovem, e a grande surpresa foi já não haver ninguém da geração do meu pai. É muito difícil fazer essa transição de ser filho para ser pai.

 

Que idade tem?

57.

 

Porque é que teve um filho tão tarde? É o único.

Há um filme do Ingmar Bergman, “Morangos Silvestres”, no qual um velho professor faz o percurso de regresso…

 

Um percurso rumo à jubilação, na sua universidade. Detalhe importante porque há a nudez que o velho professor descobre ao longo da viagem a caminho da consagração.

Ele faz a viagem com a nora, que está separada do filho por causa de uma discussão sobre ter ou não um filho. O filho do velho professor tem esta posição: “Um filho, achas que vai viver num mundo melhor que nós? Achas que vai ser mais feliz que nós?”. Durante muito tempo eu tinha essa imprecisa impressão. Não era capaz de ter essa coragem moral. Depois talvez nunca me tenha apetecido muito. Com a Francisca, sim.

 

Conte-me a história da máquina de escrever, que ficou perdida no meio da nossa conversa.

Começou com o Medeiros Ferreira, quando fui para o ministério dos Negócios Estrangeiros. Trabalhava n´A Luta na altura, e tinha uma máquina de escrever, uma Smith Corona, que adorava. Ofereci-me para comprar a máquina. “Ó rapaz, vamos fazer um negócio, levas a máquina e quando voltares, voltas com a máquina”. Depois de sair do ministério, A Luta tinha acabado. Muitos anos depois o Vítor Direito telefona-me: “Rapaz, está na altura de trazeres a máquina de volta”. É quando funda o Correio da Manhã.

 

Esteve na fundação do Correio da Manhã?

Estive, embora indirectamente, não era redactor. Escrevia artigos de opinião, e coordenava e escolhia os grupos de pessoas que escreviam os artigos de opinião. Ao fim de uns quatro meses os accionistas do Correio da Manhã disseram que não era nada daquilo [que pretendiam do jornal]. E o Vítor Direito disse-me que podia levar a máquina embora outra vez.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011

 

 

Margarida Figueiredo

20.02.22

Margarida Figueiredo foi a primeira mulher licenciada a entrar no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ainda antes do 25 de Abril. E foi, com Ana Martinho, a primeira embaixadora full rank, em 2005. Reformou-se no passado dia 8 de Março [2012], dia da Mulher. Quando chegou às Necessidades, foi tudo ver “a gaja”. 

Transbordante talvez seja uma boa palavra para definir Margarida Figueiredo. Foi uma embaixadora atípica, como se disse em síntese num artigo do Expresso. “Atípica, é bom”, concorda.

Nasceu em 1947 numa família burguesa do Porto. A mãe dava-se com Agustina. O pai dividia escritório com Alberto Luís. Ela e os irmãos eram “Os Sá Carneiros”. Prima de Francisco.

Podia ter sido tudo. Discutiu as hormonas na carne de vitela em Bruxelas e as ogivas nucleares na Nato. O eclectismo é um dos atributos que se exigem a um diplomata. Tem um espírito arguto, escreveu sobre ela Medeiros Ferreira, em cujo gabinete trabalhou quando este era ministro dos Negócios Estrangeiros. Mesmo os seus detractores apontam-lhe uma inteligência poderosa. Faz parte do grupo que reúne no Procópio, a discutir o país. Bebiam whisky, depois cerveja, agora coca-cola. “Qualquer dia bebemos leite Vigor!” O humor é uma faca que tem afiada. Como a língua.

Ouvi-la é auscultar um tempo e uma geração. Tem por trás de si um enorme desenho de Pomar, que lhe comprou em Paris e pagou em prestações. “E assim vivo com Pessoa e Almada”. Há por todo o lado livros, quadros, cigarros.

 

Porque é que é de esquerda? Como é que foi feita essa definição ideológica?

No tempo do Dr. Salazar não era preciso ser muito de esquerda para ser anti-Salazar. Os meus pais eram ambos do chamado reviralho. A minha mãe fortemente mais à esquerda. O meu pai, como Sá Carneiro que era, puxava-lhe o pé para o conservadorismo. Embora isso nunca tivesse influenciado a nossa educação. Éramos três filhos e três filhas e a paridade era fomentada. Achava que as meninas maquilharem-se era uma pena; mas não proibia. Fui educada no sentido de assumir sempre qualquer ideia que tivesse. Não eram admitidas mentiras nem dissimulações.

 

Quando ouvimos o apelido Sá Carneiro pensamos num posicionamento à direita. A sua mãe era comunista.

Era. De convicção. Nunca foi militante. A minha mãe foi das primeiras mulheres a formar-se em Coimbra, e nunca usou profissionalmente o nome Sá Carneiro. Maria Laura de Araújo foi o nome de guerra com que escreveu livros. Os meus pais eram ambos de Barcelos. O meu avô materno, a quem a minha mãe tinha uma enorme ligação, era maçon e ateu. O meu pai era de uma família conservadora, católica. A minha mãe formou-se com notas muito altas e foi-lhe oferecida uma bolsa para ir para Londres trabalhar e estudar com o Bertrand Russell. O meu avô ficou entusiasmadíssimo. A minha mãe recusou porque se queria casar. Como ela disse, muito mais tarde: “E eu que julguei que me ia casar por amor…”.

 

E não foi por amor que casou e ficou em Portugal?

Foi. Mas ao fim de 32 anos de casada, acabou por se separar. Casou pela igreja, senão o avô do meu pai morria. Pôs como contrapartida que nenhum de nós era educado catolicamente. Fomos baptizados, e parou aí. Voltando à primeira pergunta: falávamos muito de política, sobretudo à mesa. Os meus pais provocavam grandes debates sobre o Salazarismo, o regime. Quando Soares foi mandado para o exílio houve quase uma vigília dentro de casa. Os meus pais faziam parte de um grupo que se reunia num café do Porto, o Primus. Ao sábado, na hora do almoço. Os advogados Cal Brandão, o António Macedo (que foi presidente do PS), a Virgínia Moura, o Artur Santos Silva, o Rui Luís Gomes. Com o 25 de Abril, a maior parte foi para o PS e o PC, e outros para o PSD. Lembro-me de estar ao colo do Alexandre Babo, que eu achava uma brasa.

 

Os seus pais tinham uma atitude prosélita?

Nada. E toda a gente passou por todas as fases. A minha irmã mais nova passou por uma fase mística e foi fazer retiros. O meu irmão, que hoje é arquitecto, era militante do PC; andava de camisas aos quadrados e sandálias porque achava que era um proletário; depois passou a vestir como um burguês, com blazer. Voou directamente do comité central para o PSD. Eu, no meio disto: sou muito parecida com a minha mãe. Antes quebrar que torcer. O que me trouxe algumas dificuldades. A minha mãe foi uma senhora avançada para a época, mas nasceu em 1916. Tudo aquilo que não fez queria que eu fizesse. Tive sempre a mania da independência; quer independência real, quer de pensamento. Queria viver sozinha. A minha mãe acha isso um horror. Achava que tinha sido tão vanguardista, que além do que ela tinha feito, só a má vida. O meu pai, de vez em quando, dava-nos umas tareias. O que não nos fez mal nenhum. Mas dava.

 

O que é que lhe provocava a ira? O que é que o fazia perder a cabeça?

Fazíamos coisas delirantes. Um dia, uma empregada telefonou, para o meu pai vir a casa, porque estávamos os seis nus, pintados com tinta azul. O meu pai dava estaladões, outras vezes batia com a palmatória. Assim que mostrássemos algum arrependimento, parava. Dessa vez, chorávamos e ficávamos às riscas. A tinta ia saindo [riso]. A minha mãe punha-nos de castigo. Comigo, o castigo não pegava porque o castigo era ficar em casa. Eu ficava a ler. Sem mo dizer, orientava-me as leituras. A casa estava cheia de livros. Livros proibidos pela PIDE e pelo Index, era mato. Tudo isso e a forte personalidade da minha mãe influenciaram as minhas escolhas.

 

Estudou Histórico-Filosóficas, o mesmo que a sua mãe.

Inconscientemente, acho que foi a influência da minha mãe. No quinto ano do liceu quis ir para as Belas Artes. Que tinham muito má fama. Libertinagem. Fazia matemática como hoje faço sudoku. Era um entretém. Tive 20. Gostei de Filosofia, de pensar. Os meus pais não me disseram nada. Formei-me. Fui convidada para assistente da faculdade. Em casa era tudo professor, menos o meu pai que era advogado. Recusei. Queria sair do âmbito da família. Foi quando resolvi vir para Lisboa.

 

Onde vivia, no 25 de Abril. Estava politicamente envolvida?

Estava no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Eu queria participar. A primeira coisa que me surgiu e onde tinha amigos foi o MES. Mas o ministro dos Negócios Estrangeiros era Mário Soares. Tinha crescido a pensar no Soares como num monumento. Nas conversas de café, com os meus pais, o António Macedo lia cartas que tinha recebido do Soares. A dizer que estava iminente a revolução. Que depois não acontecia.

Soares foi um grande ministro dos Negócios Estrangeiros. Era um ministério muito formal. Não se podia ir ao andar do ministro. Depois, o ministro passeava pelo ministério. Almoçava nos restaurantes ao pé do ministério. Se houvesse um lugar numa mesa onde estavam funcionárias administrativas, sentava-se com elas. Fui destacada para um trabalho e conheci-o pessoalmente. Achei que o Partido Socialista era o Partido Socialista. E foi para aí que fui.

 

Foi Soares que a fez escolher o PS. Nesse período quente, era suficientemente à esquerda para a minha mãe?

Quando ia ao Porto visitar a família, diziam: “Vem aí a voz da reacção. Tudo calado, vem aí a direita”!

 

Os Sá Carneiro, contudo, estavam ainda mais à direita.

Nós éramos o ramo esquerdista da família. Sempre me dei muito bem com o Francisco, que tinha uma personalidade fortíssima, e de quem gostava muito como primo. Foi sempre um social-democrata a sério, e um progressista, antes do 25 de Abril. Era primo direito do meu pai.

 

De apelido, Sá Carneiro Figueiredo. Resuma a genealogia.

O meu bisavô Sá Carneiro teve 24 filhos, todos da mesma mulher. Primeiro teve só filhas, a mais nova das quais era mãe do meu pai. Depois começaram a ter rapazes, o mais velho dos quais era o pai do Francisco. Portanto o meu pai era praticamente da idade dos tios mais novos. O Francisco, um pedaço mais velho do que eu, estava mais próximo da minha geração.

 

O PSD nunca foi uma opção para si?

Um dia ele perguntou-me porque é que não fui para o PSD. Respondi: “Porque somos primos”. [riso] Para mim, não era uma questão de família. Era muito para além disso. Nunca tive vontade de ir para o PSD. Mas não ficou surpreendido. Ao Artur Santos Silva, em casa de quem passava férias, e que adorava, perguntei porque é que tinha ido para o PPD. “Porque tenho alguma coisinha de meu”. Não sei se isso justifica [a escolha]. Eu não tinha nada de meu.

Sempre nos demos com pessoas de todos os quadrantes. O grupo da canasta dizia à minha mãe que ela era muito esquerdista mas que andava sempre muito bem vestida. “Não é suposto andar esfarrapada porque defendo os desprotegidos”. Eu também gostei sempre de coisas boas.

 

Qual era o dano possível para uma família como a vossa por ser do reviralho?

Era uma família da alta burguesia, no Porto. Não pertencíamos à alta burguesia por linhagem ou por herança. Era produto do trabalho dos meus pais. Só muito tarde percebi o que era ter seis filhos e viver do ordenado.

O meu pai sempre foi de poucas falas. Vivia para o Direito. A minha mãe escrevia livros sobre o Estruturalismo e o Lévi-Strauss e isso dava-lhe pano para fazer conferências. A Virgínia Moura, numa conferência dessas, de repente levantou-se: “Morra Salazar!”. E foi presa. A minha mãe não era desse género. Era o que dizia. À bon entendeur… Nas entrelinhas.

 

A inteligência sempre foi o valor mais estimado em sua casa?

Sim. Tínhamos de ser os seis adiantados mentais.

 

Davam-se sobretudo com iguais? Intelectuais, pessoas do reviralho…

Um dos grandes amigos da minha mãe era o Óscar Lopes. A certa altura foi proibido de dar aulas. Desistimos da cadeira de literatura no liceu, por decisão dos meus pais, para ter explicações com ele. Um dos seus filhos esteve escondido muito tempo em nossa casa. Mas fomos educados a respeitar toda a gente. A minha mãe dava aulas na Faculdade de Letras. (Doutorou-se a um mês de fazer 70 anos, o que dá muito da personalidade dela.) Dizia que os seus melhores alunos de sempre tinham sido o Vasco Graça Moura e o Pacheco Pereira. Foram ambos para o PSD. Um dia, estava eu na Assembleia, veio almoçar comigo e queria fazer uma espera ao Pacheco! Para lhe perguntar como é que era possível. [riso]

 

Esteve por dentro da política. Desencantou-se com ela? Não transparece no seu discurso a amargura.

Não. Gostava imenso de ter tido um cargo político. A desilusão é portuguesa. Continuo a interessar-me imenso por política internacional. Embora não seja actualmente uma coisa saudável. Mas gosto. Talvez por isso tenha escolhido a diplomacia. O que é mau é ser diplomata português, não é ser diplomata.

 

O que é mau é a política portuguesa, não é a política?

Exactamente.

 

Isso acontece, sobretudo, pela falta de líderes, de figuras inspiradoras?

Desde há uns tempos, sim. Estive dez anos na União Europeia, quando eram chefes de governo o [Helmut] Kohl, o François Mitterrand, o Soares, o Felipe González. Sobretudo havia o Jacques Delors na Comissão. No dia em que saiu, era palpável a diferença. A hipocrisia colossal que é aquilo tudo passou a vir ao de cima. Acho que o projecto europeu acabou nesse dia. Nunca mais apareceu um líder com a dimensão de um Kohl.

 

Esses líderes eram fruto de um tempo? São duas gerações de excepção.

Fruto de um tempo, sim. Tudo isto tem a ver com imensa coisa. Com o falhanço do comunismo. Com o unilateralismo em que se caiu com o Bush-Filho nos EUA. A Europa começou a perder velocidade. As guerras preventivas. A economia a modificar-se e a cair no liberalismo selvagem que hoje temos. É por ciclos. Um dos grandes culpados foi o Tony Blair.

 

Porque é que aponta o dedo a Blair e não a Bush?

Os EUA não são a União Europeia. Embora a União Europeia tivesse desde sempre a miragem de ser uma espécie de Estados Unidos sem se federalizar. Faz tratados do mais federalista que há, mas ninguém pode usar a palavra federal porque os nacionalismos exacerbam-se. O Bush teve muita culpa. Simplesmente Tony Blair era um bluff em matéria de socialismo. Descobriu a história da Terceira Via que rebentou com tudo. E uma coisa era a relação com Clinton. Outra, a relação com Bush. Bush era uma pessoa perturbada. Um fanático. Blair alinhou. Os jovens prometedores nunca mais foram prometedores. Zapatero foi uma desilusão. Fiquei muito contente quando foi eleito, apostei muito nele. Era uma espécie de António José Seguro…

 

Voltemos aos anos 70. O verbo mais conjugado era participar – que, aliás, já usou.  

Sou um produto dessa geração. A geração dos anos 60 tinha grandes ideais. Crescemos todos no antigo regime.

 

Ocorreu-lhe seguir uma carreira política activa?

Surgiu várias vezes essa ideia. Sobretudo na altura do 25 de Abril. A solução automática para o meu curso era ir dar aulas. Fui colocada num liceu do Porto. Encontrei as velhas do meu tempo, as minhas professoras. Fui professora da Elisa Ferreira, que é muito inteligente, a quem dei 17. Mal sabia que viria a ser ministra.

 

E você, não.

A minha ideia não era essa. Era realmente o participar. Mas já então havia um grande centralismo em Lisboa. Fiz o curso no Porto e saí de casa em ruptura com os meus pais. Eu queria sair de casa para ser livre, e, sendo livre, eventualmente me casar. Ter filhos, sim.

 

Essa crise deu-se em 1968? É o discurso de uma soixante-huitarde.

Entrei para a faculdade em 1965, saí em 1970. Isto passava-se em 70/71. Um dia tive uma grande discussão com o meu pai. “Dr. Sá Carneiro, não me provoque”. [riso] Meti uns tarecos num saco e vim para Lisboa arranjar emprego. Tive vários empregos. Arranjei uma entrevista com o Dr. Balsemão. Queria ir para o Expresso. Na sala de espera estava eu e as Três Marias. “Proponho-lhe que colabore connosco como faz o seu primo Francisco” (que escrevia uma coluna). Mas eu precisava de um emprego. Acabou aí a minha vontade de ser jornalista.

 

Presumo que Balsemão não recebesse uma a uma as pessoas que lhe pediam emprego. Recebeu-a porque o seu apelido era Sá Carneiro?

Não teve nada a ver com o Francisco. Mas com um tio do meu namorado, que viria a ser meu marido, a quem pedi que me arranjasse uma entrevista. Mas ele sabia que eu era Sá Carneiro.  

 

O que pergunto é em que momentos o seu apelido e a sua proveniência social foram marcantes na sua vida. Ou foi você mesma muito cedo, independentemente do background familiar?

Acho que nunca se é independente do background familiar. O meu pai achava que as pessoas valem pelo seu valor intrínseco. Fazia-nos prelecções sobre o tema. Não nos pôs Sá Carneiro no nome porque devíamos valer por nós próprios e não pelo apelido. Pôs-nos Figueiredo, que é um nome mais vulgar. Aos meus irmãos mais velhos pôs dois apelidos da minha mãe, Fernandes Tomás, além de Araújo, e Figueiredo. A minha mãe ficou radiante, tinha muito orgulho nessa ascendência maçon. Eu sou Maria Margarida Araújo Figueiredo. Mas éramos “Os Sá Carneiros”. A norte do Mondego sou a Guida Sá Carneiro. Para baixo, sou Margarida Figueiredo. Que é o meu nome oficial. E como funcionária pública, não podia ter outro.

 

Mesmo não estando na cédula, atende quando lhe chamam Sá Carneiro.

Quando o Francisco foi nomeado primeiro-ministro, no MNE, mesmo aqueles com quem não me dava, ofereceram-me boleia para a tomada de posse. Nunca fui a tomada de posse de governo nenhum. São uma chumbada. O nome nunca me facilitou a vida. Nem dificultou, verdade seja dita. O substracto familiar ajudou imenso.

 

Em Lisboa, procurou emprego, fez entrevistas. Foi logo aí que foi dar ao MNE?

Foi. Entretanto dei aulas. Dei explicações. Espalhei o meu currículo pelo país inteiro. Escrevi para o Serviço Nacional de Emprego, para onde escreviam, como diziam os meus amigos, torneiros-mecânicos e metalúrgicos [a pedir emprego]. Responderam. Tinham vaga para torneiros-mecânicos e metalúrgicos. Não tinham vaga para mim, mas tinham apreciado o meu currículo. Fiz testes de personalidade e de inteligência. Era o teste de Raven, que tive todo certo. Não era grande mérito nem sinal de grande QI, porque tinha-o estudado na faculdade. Na entrevista para que fui chamada, o psicólogo disse-me: “Você é ateia”. Sou.

Tinha um amigo de infância que estava no MNE. Telefonou-me a dizer: “Tu queres vir para o ministério? Podes vir a ser diplomata”. Salazar proibia as mulheres de ser diplomatas com o grande argumento de que as mulheres não mantêm segredos de Estado. O que é um argumento extraordinário conhecendo o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Com certeza era por achar que as mulheres deviam estar em casa a tratar do lar e dos maridos.

 

Marcelo Caetano dizia às alunas em Direito que fossem para casa coser meias. Traduz o espírito daquele tempo.

Houve uma grande esperança de abertura com Marcelo. Um pequeno grupo, liderado pelo embaixador Tomás Andresen, achava inconcebível que Portugal não tivesse mulheres [no corpo diplomático]. Até o Togo já tinha. Esse amigo de infância, que já morreu, o embaixador Ribera, lá me pôs nos píncaros. O embaixador Andresen fascinou-me logo. Ainda por cima, tinha uns olhos verdes extraordinários.

 

Tem um fraquinho por homens bonitos…

Tenho, claro! “Começa amanhã”, disse-me.

 

Tinha outras possibilidades de emprego. Porque é que optou pelo MNE?

O MNE era o que pagava menos, e era incerto. O Instituto Nacional de Emprego, que era o mais bem pago, era no Algarve e em Castelo Branco. Morria. Gosto de cidade, de barulho. Achei que o MNE era política internacional. Que qualquer dia tinha um cargo político internacional. Foi uma aposta no futuro. E um desafio. Adoro desafios. O facto de ser a primeira mulher formada a entrar, [seduziu-me]. Provar que não éramos todas mongoloides. Há de tudo. Como na farmácia e como nos homens.

 

Como é que foi o primeiro dia no MNE?

Fui instalada numa sala onde havia oito pessoas. Seis diplomatas, um senhor contratado e eu, contratada também. Fui muito bem recebida. Desfilou toda a gente do ministério. Como um deles me disse: “Não se fala de outra coisa na casa. Toda a gente quer conhecer a gaja”. [riso] A gaja era eu com 27 anos. Gira, magrinha, muito compostinha. Uns, com graça, perguntavam: “Você pensou bem?”. A maior parte, extremamente paternalista.

 

Que tipo de conselhos lhe davam?

“Tenha muito cuidado. A casa defende sempre a casa”. Umas coisas assim. “Tem de se ser muito hábil para saber onde se está e onde se vai parar”. O António Franco e o José Vieira Branco entraram e disseram: “Aqui tem as nossas extensões. Tudo o que precisar”. Pensei: “Estes são os que vou fixar”.

 

Percebeu que tinha de se afirmar?

Não. Afirmada já eu estava. Comecei a trabalhar. Fui mandada para uma reunião no Fundo de Fomento de Exportação. Estava no ministério há 20 dias. “Sou muito novata”. O meu superior respondeu-me (ainda lhe sou grata por isso): “Com essa boquilha e esse ar inteligente, dá cabo de qualquer reunião”.

 

Sempre confiou que a sua arma, naquele meio ou em qualquer outro, era a inteligência?

Nunca me achei estúpida. Mas nunca fui de dizer que era um crânio. Hoje, pelo que vejo, até acho que sou! [riso] Sempre fui, e isso foi instigado pelos meus pais, auto-confiante. Ainda tenho essa convicção: uma pessoa que aprende a ler, se não for estúpida, faz o que quer que seja. É uma questão de se empenhar. Quando cheguei, não escrevia logo notas diplomáticas, que têm fórmulas, em bom francês e em bom inglês. Até saber. Ninguém nasce ensinado. A diplomacia não é a arte de bem mentir. Dizem-me que sou atípica porque digo o que penso. Sei é escolher a linguagem com que o digo. Ser diplomata não é, de maneira nenhuma, sinónimo de hipócrita. O que é preciso é ter o mínimo de caco e de bom senso.

 

De facto, associa-se à diplomacia uma certa dissimulação. O estar bem com todos. O promover a ponte. A conciliação.

Nunca fui dissimulada. Não posso dizer que isso me tenha valido dissabores. Só algumas discussões. As pessoas sabiam sempre com o que contar. No ministério predominavam os conservadores. Nos 40 anos em que lá estive, nunca fui vítima de um acto de machismo. Nunca fui preterida por nenhum homem. Tive os postos que quis. É preciso ser hábil? É.

 

Como é que fazia?

Ia ter com os directores gerais ou com quem decidia, em vez de andar a pedir ao amigo do amigo. Dizia o que é que gostava de ter e porquê.

 

Frontalidade.

E transparência. Não tenho nada a esconder. Coisa que, se calhar, muitos diplomatas têm. Tive sempre a convicção de que o ministério podia lucrar mais comigo do que eu com o ministério.

 

Isso pode ser lido como uma manifestação de soberba.

Por isso hesito em dizê-la. Essa e outras. Dar graxa porque agora o ministro é outro? Não. “Ou consigo por mim própria. Ou mandam-me embora.” Alguns colegas chamavam-me inconsciente. No meu léxico, a isto chama-se não ser oportunista. “Se não puder ser diplomata, vou fazer ménages.”

 

Isso é uma boutade. Sabe bem que não iria fazer ménages.

Nunca fui carreirista. Se precisasse de fazer ménages, sendo a Margarida Sá Carneiro, sendo a Margarida Figueiredo, licenciada em Filosofia, tê-lo-ia feito. Quando entrei para o ministério era solteira, mas casei logo a seguir. Também achei que era por amor. [riso] Não resultou. Fiz duas filhas que achei sempre que não eram para estragar. Eduquei-as sozinha, e bem. Se tivesse de largar o ministério, tinha de trabalhar. Nunca nadei em dinheiro. Naturalmente estar em Varsóvia a decidir a melhor estratégia para isto ou para aquilo é mais estimulante do que esfregar soalhos.

 

Como foram os primeiros tempos depois da revolução no MNE?

No dia em que Soares chegou, em menos de dois minutos estava o MNE inteiro no átrio. Tudo a tirar o brasão do dedo e a descobrir a lavadeira na árvore genealógica. Soares abriu a carreira a todos os cursos universitários e aos dois sexos. Concorreram imensas mulheres e imensos homens. Entrei em 1976. Entretanto tinha-me casado, engravidei, tive a minha filha mais velha. Fiz o curso estudando com o Luís Filipe Castro Mendes – sorte a minha. E era o PREC. Os governos sucediam-se como pulgas. Um dia ouvimos no rádio a notícia de que o consulado de Espanha estava a arder. Fomos ver. O Luís Filipe e eu metemo-nos num táxi e fomos oferecer os nossos serviços ao Melo Antunes, que era o ministro.

 

Era um fascínio pela aventura? Aderia sem hesitar.

Sim, eu nem hesitava. Um dia fui destacada para secretariar umas negociações. Soares tinha pedido auxílio à Alemanha. O SPD estava no poder e veio cá uma delegação, para saber se nos faziam um empréstimo ou não. Passou-se na Gulbenkian, durante uma semana. De toda a minha carreira, foi o trabalho mais interessante que tive. Eu era só escriturária. Mas o que ouvi… 

 

Vai trabalhar para o gabinete de Medeiros Ferreira, ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional. Como é que foi?

Não o conhecia. Tinha chegado há pouco da Suíça. Fui de empréstimo para o gabinete, quando era Secretário de Estado. Eu não era diplomata. Já tinha feito o concurso, mas ainda não tinha saído no Diário da República. O Medeiros é cintilante. Foi com ele que aprendi a ter a visão planetária. Era dificílimo de se trabalhar. Exigente até ao limite do pensável. Não podíamos dizer: “Isso não é possível”. Mas ai de quem ofendesse ou tivesse menos deferência com os membros do gabinete.

 

O que é que a impressionou mais nele?

A inteligência, como sempre. A integridade. A lealdade aos amigos. O [Nikias] Skapinakis aparecia lá muito. “Estive cá há dois dias mas preciso muito falar com ele”. O Medeiros estava ocupadíssimo. “Sim, sim, já o recebo”. Disse-lhe que não era possível, que tinha a agenda sobrecarregada. “Há pessoas que recebo todas as vezes que quiserem cá vir. São as pessoas que estiveram comigo presas. O Skapinakis esteve comigo no Aljube”.  

Foi o ministro mais novo do mundo. Tinha 34 anos. Dizíamos no gabinete quando se irritava: “O homem está no candeeiro!”. Quando precisava que uma pessoa ficasse até mais tarde, oferecíamo-nos todos e ficávamos todos. Depois convidava-nos para jantar. Normalmente no Gambrinus. Ele! Não era o Estado que pagava. O Medeiros devolvia as ajudas de custo que não gastava. Havia o chefe de gabinete [Eduardo Paz Ferreira], os adjuntos, os secretários. Éramos todos equidistantes dele. Eu era a secretária pessoal.

 

Foi uma experiência curta, de qualquer forma. De Julho de 76 a Outubro de 77.

Quando se demitiu, ficou a escrever despachos de louvor até às três da manhã. Um machista! [riso] Eram duas colunas no Diário da República. Dizia que eu era um espírito arguto, isto e aquilo – “a prova de que foi muito bom as mulheres entrarem para a carreira diplomática.” Adorei trabalhar com ele.

 

Porque é que depois dessa experiência, em que conheceu a política por dentro, não enveredou por uma carreira política?

Ainda pensei. Mas o PS entrou em degenerescência. As causas próximas não foram agradáveis à vista. As perseguições aos membros do gabinete do Medeiros… De resto, quando se demitiu, muita gente no PS disse: “Não tem importância. Daqui a dois meses ninguém sabe quem é o Medeiros Ferreira”. Erro. Depois foi o governo PS-CDS. Não gostei nada. Desiludi-me.

 

Regressou ao MNE depois da passagem pelo gabinete de Medeiros. Que expectativas eram as suas?

Nunca perdi a ideia de um lugar internacional. Tive hipóteses de o ter quando estava em Bruxelas, e recusei. É outra idade, outra paciência. É melhor assim, ser um espírito livre – como diz o Dr. Soares. No MNE tive um ano interessante. Chefiei interinamente o departamento da Nato. Apanhei a invasão do Afeganistão, um golpe de Estado na Turquia.

 

Todas essas experiências lhe deram a ideia de estar sempre no olho do furacão.

Eu gosto de estar no olho do furacão. Passados uns meses separei-me.

 

O que é que foi sacrificado? O casamento?

Nada. Quando me casei estava apaixonadíssima pelo meu marido, que era lindo de morrer. O único defeito que ele tinha era ser uma criança grande. Artista. Pinta. Reformou-se de um emprego que lhe arranjei, junto do David Mourão Ferreira. Foi director do gabinete de artes plásticas da Biblioteca Nacional. Hoje sou amicíssima dele.

 

O que pergunto é pela dificuldade em conciliar todas estas tarefas. Ser diplomata, ser mãe, ter tempo para ler.  

Todos os meus amigos, todos os meus chefes diziam que eu era uma força da natureza. Sou parecida com a minha mãe, mas não tenho metade dos fôlegos que ela teve. Uma vez fiz a martelo e pregos uma estante. Impecável. A minha mãe não queria acreditar. “Aprendi a ler. Pensei, fiz um desenho, agora estou a executar. Não tenho dinheiro para chamar um homem.” É que sou mesmo proletária. Nisso as mulheres são muito melhores do que os homens, quando são boas. Fazem tanta coisa que se organizam muito melhor. E são mais pragmáticas. Adoro cozinhar, fazer bolos. Uma vida só em casa, a tratar das crianças, não me chegava. Só a vida intelectual, também não. Não há nada de que mais goste do que passar uma tarde no cabeleireiro.

 

Porque é que se deixou engordar?

Sei lá. Porque se vive muito bem em Bruxelas. O que coincidiu com a mudança de idade. A certa altura fiz um regime e fiquei uma sílfide. Nunca viu o Lago dos Cisnes? As sílfides eram muito magrinhas. Presumo que o que desencadeou a mudança de metabolismo foi a morte do meu irmão mais velho. Teve um cancro fulminante. Custou-me horrores. Afoguei carências em pain au chocolat. Em Paris engordei imenso, também. Na sequência de me ter separado. Fui a um médico homeopata e emagreci 17 quilos num mês! O Carlos Monjardino (que, com a Ana Sofia, me adoptou) dizia: “Tu estás feia de magra”.

 

Paris foi o seu primeiro posto, em 1981.

Era segundo-secretário. O embaixador Lencastre da Veiga, que foi um grande amigo, dizia-me: “Sei que se separou. Está com um ar de quem está a definhar. Faz mal. Você, como eu, tem fama de seguríssima.” Ele também era hiperbólico. “No fundo é uma mole. Mas não deixe que percam a imagem que têm de si”. Eu estava numa fossa, aquilo lixou-me. “Devia ir para fora. Os mesmos problemas debaixo de um céu diferente são diferentes”. Estive em Paris seis anos. Um salto para o desconhecido. Fui muito bem recebida pelos meus colegas.

 

Era então evidente que seria embaixadora, demorasse o tempo que demorasse?

Para mim era evidente que seria embaixadora no dia em que entrei no ministério. Fui a primeira formada a entrar no MNE. Estava lá uma senhora, hoje minha colega, a trabalhar como técnica. E fui a primeira embaixadora (ex-aequo com a Ana Martinho) full rank [escalão mais alto]. 

 

O topo da carreira aconteceu em 2005.

Quando fui nomeada, deu direito a primeira página do Expresso. Ridículo. A descrição: “É uma diplomata atípica. Veste-se informalmente, fuma como um turco e é terrivelmente eficaz.”

 

Ainda é uma boa síntese de quem é?

Acho que sim. Não acha? Havia tempo, tinha dado uma entrevista sobre diplomacia económica. Perguntaram-me se queria deixar uma mensagem aos empresários portugueses. “Para a Polónia, em força, já!” [riso] Era a frase do Salazar, “Para as colónias, em força, já!”. Tinha a certeza de que ia ser o título.

 

Já fez referência à passagem por Bruxelas. O que é que fez?

Fui número dois da Reper [Representação Permanente de Portugal junto da EU]. Fiz a presidência [portuguesa da União Europeia] de 2000. Foi o cargo mais difícil da minha carreira, de longe. É uma prova de resistência física. Depois, Portugal nunca dá instruções. O desgraçado (ou desgraçada) que está ali tem a economia do país nas mãos. Se conseguir coisas boas, os louros são para o Governo – e tudo bem, os diplomatas são treinados para isso. Se correr mal, amola-se o mexilhão. Chefiava um batalhão de homens, ex-secretários de Estado, ex-directores gerais. Dei-me lindamente. Fui também a primeira mulher a fazer esse cargo.

 

Depois dos dez anos de Bruxelas, seguiu para a Polónia, em 2003. Coincidiu com a ida em força de empresas portuguesas, como o Millenium-BCP, a Mota Engil, a Jerónimo Martins?

Fui cheia de curiosidade de conhecer aquele lado da Europa. Podia fazer o de sempre: estar lá e fazer o que me mandassem. Mas vinha com o ritmo da Reper, e o ministro tinha dito que os embaixadores tinham de fazer diplomacia económica (como se não fizéssemos…; na Reper aquilo não era senão diplomacia económica). Sou uma pessoa bem mandada. Apesar de atípica e por vezes insolente. Havia vinte empresas quando lá cheguei. Quando de lá saí eram mais de cem. As empresas que referiu já lá estavam.  

 

Como é que abriu tanto o leque?

Esqueci-me de que o ministério existia, que é a única forma. Escrevi aos empresários que lá tinham os seus representantes. O trabalho que fiz contou com o auxílio de um magnífico delegado do ICEP. (Fui hoje almoçar com ele.) Se lhe pedisse uma análise económica da Polónia para daqui a meia hora, dez minutos depois estava no meu computador. Tive a sorte de os empresários, e designadamente o senhor Alexandre Soares dos Santos, dizerem nos jornais portugueses: “Agora temos uma embaixadora…”. A presidência da República da época estava atenta ao meu trabalho. E foi assim que fui promovida. Muita gente achou que se calhar era por ser amiga há 40 anos do Jorge Sampaio.

 

Tem ali uma fotografia dele, autografada. É agora consultora da Jerónimo Martins para a Polónia.

Sou colaboradora. Mais para questões da UE, o que também inclui a Polónia.

 

O que é que representou para si, intimamente, a promoção a embaixadora full rank?

Dois momentos. No dia em que a minha filha mais nova me telefonou para a Reper a dizer que estava formada, saiu-me um peso da alma. Passei a poder encostar às boxes. Foi um momento de grande satisfação. Um “consegui” conciliar as duas coisas. (O [Jaime] Gama tinha-me proposto ir como primeira embaixadora para a Namíbia. Não tinha condições. De resto, morreria de tédio. “Tenho duas filhas”). Segundo momento: quando fui promovida a embaixadora full rank. Senti que se tinha feito justiça. Senti-me radiante. “Aqui está uma coisa que a minha mãe teria adorado”. Infelizmente não o viu. Já não tinha que provar nada a ninguém.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012