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Anabela Mota Ribeiro

Glicínia Quartin

14.03.22

A pergunta é recorrente: quantas vidas cabem numa vida? Glicínia, a menina da Vila Sousa que se enfeitiçava com as figuras de Malhoa. Glicínia, a intelectual que se cruza com Almada Negreiros, Abel Manta, Jorge de Sena, Cesariny nos cafés de Lisboa. «Havia várias tertúlias. Quando era miúda, o meu pai dizia-me: «Vai-me buscar ao banco e depois vamos lanchar», e lá íamos a uma tertúlia. Havia uma célebre, na Avenida da Liberdade, numa pastelaria chamada «Havaneza». Estavam lá o Ferreira de Castro, o Aristides Esperança. O meu pai tinha outra tertúlia no Café Chiado. Eram todos intelectuais contra o regime vigente. Era o café dos estudantes, de alguns intelectuais e também dos surrealistas – mais tarde, era no Café Chiado que me encontrava com os surrealistas. Eu ia ali e estava muito atenta às conversas, a observar as pessoas, a achar que estava num lugar que me favorecia. Já estudante, já quase mulher, continuei a frequentar tertúlias. Começava pelo Café Chave de Ouro, o Café Portugal e depois também a Brasileira». Glicínia, a bióloga marinha, assistente de Mário Ruivo, que estuda com minúcia o comportamento do bacalhau. Glicínia e o deslumbramento com o exterior, «Come in, darling», a importação das calças compridas e as meias pretas de viagens a Londres e aos países nórdicos. Glicínia do teatro amador, do cinema em «Dom Roberto», da «Maluquinha de Arroios». A ruptura já depois dos 30, antes que fosse demasiado tarde e perdesse actualidade. Depois vem Roma, onde estudou, o encontro com Fellini, o jantar com Neruda. Depois vem a representação como vida, o Luís Miguel e o Jorge a convidarem-na para a fundação da Cornucópia, as aulas no Conservatório. Sempre discreta. Sem querer ocupar o centro. Ciente de que o centro era fazer parte do jogo.

Glicínia Quartin completou 80 anos a 19 de Dezembro. Vive em Campo de Ourique numa casa de vista deslumbrante. De lá se vê o sítio onde nasceu.

 

 

Gostava que me descrevesse a Vila Sousa.

A Vila Sousa é um prédio na Graça, construído em mil oitocentos e qualquer coisa, tem quatro faces – dão para o Largo da Graça, a Rua das Mónicas e a Travessa de São Vicente –, e, dizem, nunca as contem, 365 janelas. Tudo enquadrado pelo Convento da Graça, que hoje é uma igreja e um quartel, tem um jardim, com uns canteirinhos, um laguinho, um repuxo. Quando eu era miúda, enchia-se de gente nas noites de verão, os miúdos brincavam, grupos de raparigas cantavam e passeavam de braço dado.

 

Viveu sempre na Vila Sousa?

Sim. Nasci e saí de casa a primeira vez com 21 anos. Era um terceiro andar, mas nessa altura os prédios eram construídos com os tectos muito altos; equivalia talvez a um quinto andar num prédio moderno. Havia uma emoção estética: ver as figuras das pessoas numa dimensão e saber que, se descesse, tinham outra. Numa das entradas, a principal, tinha uma escada que é das coisas mais bonitas que tenho visto em escadas. Um dia destes vou lá e vou subir outra vez a escada.

 

Há quanto tempo não vai lá?

Há muito tempo. Anos. Não há muito tempo trabalhei no Teatro Taborda [numa peça dos Artistas Unidos] e quando vejo a minha casa ali ao pé... Um dia lá fui sozinha, olhei para as janelas todas, lembrei-me dos vizinhos, alguns ainda me lembro dos nomes, outros já morreram, e lembrei-me do meu dia-a-dia. Eu tinha um dia-a-dia muito regulado pela passagem das pessoas.

 

Como é que era?

As pessoas iam para os seus empregos e passavam pelo Largo da Graça, a caminho da Baixa, entre as oito e as nove da manhã. À tarde também os via regressar. Quase que o meu relógio era: «Olha, vai passar aquela menina da saia plissada».

 

As pessoas distinguiam-se como, quando as via passar?

A maneira de vestir, era uma das coisas que fixava. Umas andavam mais banais, outras eram elegantíssimas, iam para o seu trabalho bem vestidas, com gosto. Eu distingui-as: «Lá vem a menina da saia plissada», «Lá vem a senhora que usa uma trança». Era o meu convívio. E inventava histórias. Como é que viviam, quem era. A minha infância marcou-me muito em sensações. Por exemplo, a varanda era alta para mim e eu só espreitava através das grades; a pouco e pouco consegui pôr a cabecinha de fora. Foram conquistas que nunca me esquece de ter tido, e recordo a alegria que [então] tive.

 

Essa sensação de conquista, de superação de dificuldades é anterior ao medo. As crianças, quando se jogam sem freio, não têm consciência do medo. Imagino que os seus jogos infantis fossem bastante isolados, porque havia uma grande diferença de idade entre si e os seus irmãos.

Os meus irmãos para mim eram adultos. O meu irmão, porque só tinha uma diferença de nove anos, pelo temperamento e porque era rapaz, acompanhava-me mais brincando comigo. A minha irmã, 13 anos mais velha, era uma espécie de segunda mãe, dava-me ordens: «Come a sopa, se não comes ficas aí sentada». Eu ficava uma tarde inteira sentada em frente à comida, coisa que não me magoava muito porque a nossa casa de jantar tinha muitos quadros.

 

Não a dobravam facilmente.

Não, porque tinha essas defesas. Conheci o Malhoa quase todo porque o meu pai tinha reproduções dos quadros do Malhoa. Talvez por ser muito sozinha, criava um mundo, esse mundo era preenchido por figuras imaginárias.

 

A sua mãe é que lhe ensinou a ler?

Foi. Aprendi a ler aí com uns quatro, cinco anos. Ela foi minha professora na escola, também. Escola-Oficina Número Um: era um projecto de pedagogia moderna, fundada mesmo antes da república. O ambiente era de liberdade e responsabilidade. Era também uma excepção haver rapazes e raparigas.

 

Como é que lhe ocorreu que podia ser corista, que era o queria ser quando tinha quatro anos?

Vi teatro de revista, no Politeama, e fiquei muito deslumbrada com aquele espectáculo, muito colorido. A vivacidade daquilo tudo encheu-me de alegria. As coristas mudavam de vestido, umas vezes iam com um chapéu muito engraçado, outras com uns mantos, outras com uns maillots. Eu achava que aquilo é que era engraçado, e não estar a um canto do palco a dizer umas coisas que eu não percebia. Em casa também fazia essas danças sozinha, levantava a perna...

 

Quem era o seu interlocutor em casa?

A minha mãe. O meu pai esteve sete anos em África, dos cinco até aos 12 não vivi com o meu pai. Ele era jornalista, foi perseguido, os jornais estavam proibidos de o contratar. Foram uns anos terríveis.

 

Nunca o viu durante esse período? A imagem dele era construída nas cartas?

Nas cartas, nas fotografias. O choque foi muito forte quando voltou. Não estava habituada a uma voz masculina a dizer-me: «Não, não fazes isso». Comecei a revoltar-me contra a autoridade do meu pai e explicitei-o: «Quem manda em mim é a minha mãe».

 

A sua mãe transformava o seu pai num herói? Ele foi perseguido pelo seu envolvimento anarco-sindicalista.

Não. A minha mãe acompanhava bem o meu pai. Fez sempre parte dos movimentos feministas.

 

Ela dava-se com a Ana de Castro Osório?

Era um bocadinho mais velha que a minha mãe, mas davam-se. A Maria Lamas, (já depois da guerra), também conheci. A minha mãe levava-me para as reuniões do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Elas chamavam-me a atenção fisicamente, havia senhoras muito bem vestidas, usavam chapéu, eram classe burguesa, mas não gente de dinheiro.

 

A sua mãe sofreu muito com a distância?

Era uma pessoa com um grande sentido pragmático. Se sofreu, foi interiormente.

 

Nunca assistiu ao sofrimento amoroso da sua mãe?

Não. Eles escreviam-se regularmente.

 

Nunca leu nenhuma dessas cartas, nem depois da morte dos seus pais?

Não. O meu pai foi o que morreu primeiro, a minha mãe alguns anos depois. Nunca passou por mim uma carta. Não sei se deitaram fora, se rasgaram.

 

Estudou no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho.

Entrei no ano em que a Mocidade Portuguesa foi instaurada obrigatória. Discutia-se muito lá em casa, falava-se de política. O meu pai era anarco-sindicalista. Os amigos, pessoas de grande valor, até operários, iam lá a casa. Para fazer um número, de vez em quando subia a um banquinho e dizia: «Viva a República!». E lembro-me de querer elaborar um discursozito com frases que lhes ouvia. Sabia que existia esse mundo, mas de modo nenhum compreendia o que podia ser. Comecei a despertar para a política depois da Guerra, quando houve uma tentativa de democratizar o sistema e ingressei nesses movimentos, (já aluna da Faculdade).

 

Porque é que foi para Biologia quando o seu desejo de infância era ser escritora?

A minha personalidade é um bocado estranha... Não é estranha, é muito racionalizada. Eu era muito ambivalente, era boa aluna a Letras, gostava de escrever, tinha uma cultura geral literária superior à das minhas colegas. Mas às vezes era também a melhor aluna a Matemática e a Ciências. Enquanto era miúda, a vida era casa e histórias, depois tive um contacto com a vida. Aos 14, 15 anos, dei uma volta. «Letras? Tretas!, vou para Ciências». Eu queria ser útil e trabalhar numa coisa palpável e concreta. Achei que Letras não valia a pena, que devia ir para Ciências, aprender coisas positivas, que podia pôr em acção e que podiam transformar o mundo. 

 

Casou aos 21 anos, quando ainda estudava.

Devo ter sido uma das primeiras alunas da Faculdade casada.


Como é que foi, apaixonou-se?

Sim. Era um grande companheiro, encontrei-o nas reuniões, movimentos, manifestações estudantis. A gente estava a lutar pela Associação de Estudantes que tinha enfraquecido muito durante o tempo da ditadura, as pessoas não podiam intervir, eram suspeitas. Depois da Guerra, tínhamos o exemplo da Europa, estávamos à espera que Portugal ingressasse também numa democracia. Mas os países da Europa, a verdade é que nos viravam as costas. Democracia com parlamento, eleições livres, liberdade de reunião: eram os princípios básicos, ninguém vinha impor a revolução comunista. O Governo e os poderes tratavam tudo como se fosse comunista. As pessoas encolhiam-se imenso porque não havia dúvidas de que iam ser presas.

 

Teve medo?

Eu passei por situações um bocado complicadas, mas não era bem medo. Fui presa uma vez numa reunião de estudantes. Invadiram a casa onde estávamos, apareceu um senhor que apontou uma pistola, mostrou-nos o crachá, «Polícia de Estado», engolimos em seco, olhámos uns para os outros, «E agora?».

 

Então, começou a cantar.

A cantarolar e a mostrar que estava muito ocupada, a ver uns papelinhos, ao mesmo tempo observando aquilo, sentindo os meus colegas a entrar em tensão. Ainda estivemos sob vigilância mais de uma hora. O inspector que nos prendeu devia ter a nossa idade, ainda fiquei na dúvida, «Será um colega a brincar connosco?».

 

Como é que foi o seu casamento?

Foi civil. Os meus pais não concordaram, «Tu fazes como entenderes».

 

Não gostavam dele? Por que é que não concordaram?

Achavam que era um disparate o casamento, com 21 anos. Alterou-lhes o programa em relação a mim. Não me trataram mal, não me puseram na rua, mas afastaram-se, não quiseram participar. A minha irmã, que era muito solidária, foi ao casamento.

 

Recorda esse dia como um dia de grande felicidade?

Não. Mas de grande libertação. Ainda no outro dia pensei que fiz bem em ter casado, mesmo que não tenha resultado. Acho que me deu oportunidade de viver uma vida e ter conhecimentos que se estivesse em casa do pai e da mãe não tinha.

 

O quê?

Não tinha liberdade para sair, para contactar com mais pessoas. Andei uma vez numa tarefa que era ler um escrito sobre a mulher. Eram sessões de esclarecimento, não era propaganda partidária. Eu chegava às associações, geralmente sociedades de recreio, não eram fábricas, e só tinha homens.

 

O que eram sociedades de recreio?

Eram sociedades formadas e orientadas por pessoas do bairro, que ascendiam através da sua cultura, da sua formação. Faziam bailes, tinham um barzinho, jogavam cartas, dominó, xadrez, damas, faziam aquela vida diária, sobretudo os homens. A parte engraçada é que eu lia aquelas coisas para ser ouvida por mulheres e só tinha homens à frente; porque as mulheres ficavam em casa.

 

Como é que a sua mãe, que privou com feministas, não a deixava estar mais à vontade?

Era uma questão de equilíbrio doméstico.

 

O seu pai não achava grande graça.

Não. Quando veio de África, o meu pai viu que tinha perdido a autoridade na família. Era um estranho. Isso perturbou-o muito.

 

Posso perguntar se casou para conquistar uma liberdade sexual?

Vou-lhe dizer uma coisa: eu casei virgem, quando toda a gente julgava, pela minha maneira de ser, que já tinha avançado muito na minha vida sexual com o meu futuro marido. Vivemos na Mouraria, em Lisboa. Eu estudava, mas o meu marido trabalhava. Frequentávamos sítios e pessoas, foi-me permitido conhecer os intelectuais da altura.

 

Foi nessa altura que começou a dar-se com os surrealistas? Com o António Maria Lisboa?

Sim, sim. E com o Vespeira. Eles tinham ateliers, a gente ia ao atelier. Mas a gente ia também ao café, (era uma instituição!), sabia que tinha uma série de pessoas conhecidas para conversar. Foi nessa altura que comecei a fazer teatro. Surgiu um grande movimento de realizações teatrais, de procura de novas linguagens, novos autores.

 

De qualquer modo, o teatro ainda estava longe de ser a sua vida. Quando acaba o curso, trabalha como bióloga marinha – é assistente de Mário Ruivo. E é convidada a trabalhar na Dinamarca e na Noruega. Que idade é que tinha?

25.

 

Ainda estava casada?

Não.

 

Esteve casada quanto tempo?

Cinco anos. Isso aconteceu em 57.

 

Como é que foi daqui para lá?

De avião. Fiz escala em Londres, depois fui para Berger e depois para Copenhaga.

 

O que é que aquilo foi para si?

Foi óptimo. Nunca julguei que viajar era tão fácil, tão bom e as pessoas tão simpáticas.

 

Nunca tinha saído?

Tinha ido a Espanha, uma vez.

 

Estava num hotel ou ficou alojada em casa de pessoas?

Estava num hotelzinho pequenino, era uma coisa simpatiquíssima, como se fosse uma casa de família. A cidade onde estava era linda, Berger, a segunda cidade da Noruega. Embora houvesse a separação da língua, as gerações mais novas já falavam inglês, as mais velhas não.

 

Já falava inglês?

Um bocadinho. Nunca falei muito bem, mas o suficiente para ter contacto com as pessoas, para conviver.

 

O que é que se comia?

A comida era simples, não era de grandes condimentos, mas boa. A carne era muito boa, não tinham muitos legumes, alguma fruta. Só houve uma coisa que não consegui comer: bacalhau podre.

 

Que comida fazia para si e para o seu marido?

Cozinhava, mal, mas cozinhava. Comia-se o que se come agora. A batata frita, o bife, o peixe cozido, o bacalhau cozido. Agora há talvez mais vegetais do que havia na altura.

 

Também esteve em Londres uns tempos.

Londres para mim era mais mítico do que Paris. Cheguei sábado, a um hotel encantador, com umas velinhas nas janelas e aquilo dispôs-me bem. Eu nunca me lembrava de perigo. Havia um parque, Holland Park, quando entreguei o bilhete o empregado disse-me: «Come in, darling»! Fiquei tão encantada, achei que era outro mundo. Meti-me no bus e disse para o condutor: «Quero ver Londres», ele riu-se: «Conhece Trafalgar Square?». Nessa noite perdi-me e tive só surpresas agradáveis. As pessoas ajudaram-me sempre a chegar a casa.

 

Da visita a Londres, trouxe para Lisboa as calças e as meias pretas.

Comecei a ver as raparigas todas com meias pretas e saias vermelhas, achei aquilo giro.

 

Meias opacas ou transparentes?

Opacas.

 

Aqui as viúvas é que andavam com essas meias, e era uma obrigação.

Eu era insultada, por homens e mulheres. Depois comecei a usar calças, também era insultada. «Olha p'ra ela, machona!». Tinha trazido umas galochas da Noruega, brancas, um encanto, até me insultavam por causa das galochas que não faziam mal a ninguém. Íamos sentadas no banco dos eléctricos, a saia levantava um bocadinho e havia uma alma generosa, «Dá-me licença?», e puxava-nos a saia.


Como é que era olhada por ser divorciada?

Não foi muito agradável. Você perguntava-me por que é que os meus pais se preocupavam tanto: eles tinham medo que eu, transgredindo mais, fosse lesada.

 

Lesada significa mal vista?

Exacto.

 

Quando se separou, mediu a repercussão social disso?

Na altura achei que era um falhanço meu. Afinal não tinha conseguido construir nada. Mas ficámos sempre amigos, eu e o meu marido nunca nos zangámos.

 

Foi feliz nesses anos? Ganhava o seu dinheiro, tinha uma vida independente.

Fui. Eu gostei de trabalhar em biologia.

 

E agora, parecerá que estou a falar com outra pessoa se perguntar pelo jantar em Roma com o Pablo Neruda...

Fui para lá frequentar um curso de teatro. O Pablo Neruda, como sabe chileno, estava fora do país dele, tinha vindo da Rússia e passou por Roma, onde estavam outros não bem-vindos nos seus países. Os meus amigos [portugueses] tinham laços de amizade com sul-americanos que estavam em Roma, quiseram jantar com o Pablo Neruda e insistiram muito para que eu fosse. Não era assim uma figura que me empolgasse muito, mas fui ao jantar. Tenho uma fotografia desse jantar no Trastevere.

 

Porque é que não a empolgava muito?

Eu não conhecia a poesia dele. Ele já tinha a aura de poeta extraordinário. Só que eu não tinha lido, só conhecia o nome e a história.

 

Viveu em Roma cerca de dois anos.  

Não estive na escola oficial, porque não sabia italiano. Estive numa escola que aceitava estrangeiros porque se baseava muito no método Stanislavski, onde o trabalho é mais corporal, emocional.

 

O estilo de representação italiano, que conhecemos através dos filmes, é mais emotivo, visceral, o corpo entra todo. Conheceu a Anna Magnani?

Vi-a uma vez a jantar com o Pasolini. Quem conheci directamente foi o Fellini. Ele estava a fazer um casting para um filme e fui ao escritório onde recebia pessoas, num bairro antigo. Olhei para as caras das pessoas que estavam à espera e reconheci-as dos filmes_ faziam os pequenos papéis, a figuração. Estabeleceu sempre entre ele e os figurantes um diálogo muito engraçado, tratavam-se por tu, com muita alegria, à italiana. O Fellini era daquelas pessoas paternalistas, grandes, não me desiludiu nada. Apresentei-me, disse que era actriz portuguesa, que estava a estudar em Itália, timidamente e atabalhoadamente fui-lhe dizendo que gostava muito dos filmes dele, que gostaria muito de poder entrar num. Deixei uma fotografia e a morada. Era um homem que olhava muito para as pessoas, nos olhos. Era uma figura que dava tranquilidade.

 

Normalmente as pessoas sentem incómodo quando outras as olham tão intimamente. Muitas fogem, não conseguem aguentar o olhar.

Eu gosto de pessoas que olham nos olhos. A não ser que eu seja culpada de alguma coisa. Olhar nos olhos é uma consideração que se está a ter com a pessoa, demonstra que se está a prestar atenção. Quem foge com os olhos é porque não nos liga. Nunca me aflige nada.

 

Quando viu Anna Magnani a jantar com o Pasolini, ficou a observá-la, a medir a distância?

Foi num restaurante ao ar livre, não me lembro qual. Ela não divergia muito. Era aquilo que eu estava à espera. Tinha um ar um bocado desleixado. O Pasolini causava sempre escândalos, ou era preso, ou saía um filme...

 

Teve o sonho de fazer parte desse universo da Cine Cità? Viveu numa Itália fervilhante.

Logo a seguir à Guerra, foi um período de ouro do cinema francês, talvez mais poético, com filmes do Marcel Carnet, do Cocteau. Depois veio o italiano com uma vitalidade extraordinária, foi uma fase de grande paixão, com a Anna Magnani, os filmes do Pasolini, do Visconti.

 

Mas teve ou não o sonho de fazer parte desse mundo?

Eu penso que sou um bocado tonta, nunca sonhei em ser protagonista, vedeta, coisas assim extraordinárias. Se me dissessem: «Gostavas de entrar num filme do Fellini?», mesmo que fosse uma figuração dizia-lhe que sim, porque era um homem que me empolgava muito. Estive em Itália, só fui a esse casting do Fellini.

 

Por que é que nunca ambicionou ser protagonista? Isto tem alguma relação com o complexo de não ser bonita?

Não era por isso que eu não sonhava ser protagonista.

 

A Magnani não era propriamente bonita.

Diziam-me assim: «Que pena, se tivesse vindo cinco anos mais cedo, tinha trabalho». Tinha mais de 35 anos, um ar neo-realista que calhava bem naqueles modelos da mulher do campo. Quando fui já havia tendência para um cinema mais burguês, as vedetas já não tinham muito a ver com as mulheres que a gente encontra todos os dias.

 

Tinha o complexo de não ser bonita.

Sei que não era bonita, mas não tinha complexos de ser tão feia que não pudesse fazer coisas.

 

Se olhamos para o seu retrato pintado por Sá Nogueira, é uma mulher de expressão muito marcada. Não é uma beleza canónica, mas tem uma boca muito pronunciada, o olhar penetrante.

Sabe que esta coisa da beleza varia com o tempo. Quem me salvou foi a Joan Crawford e a Katherine Hepburn, porque tinham uma boca muito grande. Quando era miúda diziam-me: «Ai que boca tão grande». Às vezes os adultos são muito estúpidos, sem querer estão-nos a aferroar. Acho que não ajuda a crescer. Tive sorte porque elas rebentaram com as boquinhas pequeninas, feitios de coraçãozinho...

 

Sobretudo a Joan Crawford tinha uma boca enorme. Mas o que é mais impressionante na Joan Crawford, o que é mais impressionante num actor ou uma actriz? Não é o olhar?

A boca também tem importância. Mas sim, é o olhar.

 

Os sentimentos passam-se nos olhos, não é?

Essa história do olhar tem importância. As pessoas achavam que eu era feia, mas ao mesmo tempo atraente. E quando me deram um papel em que não era a mulher feia, mas a mulher provocante e sedutora, (foi a «Maluquinha de Arroios), foi um abrir de boca, porque ninguém esperava que fizesse aquele papel.

 

Quando lhe deram esse papel, sabia que o podia fazer bem? Confiava em si enquanto mulher sedutora?

Sim. Eu não era a Ingrid Bergman, mas sabia criar esse clima de atracção.

 

Era uma coisa mais explicitamente sexual.

Sim, foi isso que abanou mais as pessoas, «Ai que engraçada, que bem que se mexe». Nunca tinham descoberto, devo-o ao Carlos Avillez. Diz-se sexual ou sensual, mas não tem nada a ver com a beleza.


Mudou de vida já depois dos 30 anos. Abandonou a Biologia e dedicou-se à representação.
Foi na sequência desta decisão que foi estudar para Roma. 

Eu disse: «É agora ou nunca». Continuava a fazer o meu trabalho de investigadora no laboratório, não fazia contrariada...

 

Fazia-o sem chama.

Sim. Fazia uma rotina de registos sobre um peixinho que toda a gente conhece, o bacalhau. Já feito o filme «Dom Roberto», e devo dizer que ao ver-me no ecrã, a desempenhar aquele papel, convenci-me finalmente de que podia ser actriz, de que valia a pena fazer a jogada. Foi uma surpresa ver aquela imagem em que não era eu. Os primeiros momentos foram um bocado dolorosos. Para mim, actor não é o que se exibe, é aquele que se transforma.

 

Onde é que a pessoa vai buscar esse outro lado?

Está nela, em primeiro lugar, e depois em tudo aquilo que vai observando e assimilando, quase sem dar por isso.

 

Quer dizer que podemos ter todas as emoções, dizer todas as coisas? Elas só precisam de ser desencadeadas? Precisam de um detonador, que pode ser um texto, um encontro?

Claro. Queria dizer-lhe que nós não estamos a mentir, estamos a procurar memórias de sentimentos que foram vividos, passaram pelo coração, e que somos capazes de transmitir. Atinge-se essa facilidade com a experiência. O desenvolvimento do que é representar é muito complexo.

 

Foi professora muitos anos. O que é que pedia e o que é que ensinava aos seus alunos?

Não me pergunte o que é que ensinava. Tentava dar-lhes a noção de que eles próprios tinham o seu caminho, que uma emoção feita por um aluno e essa mesma emoção repetida por outro não era igual, porque ambos tinham tido experiências diferentes e são caixas de ressonância diferentes. Portanto, emocionei-me ao ver que podia fazer qualquer coisa de diferente. Eu já tinha feito muito teatro, mas nunca me tinha visualizado. E disse: «Estou a perder o meu tempo, daqui a uns tempos não tenho forças e já não tenho actualidade». Depois houve uma questão de foro trabalhista com o meu chefe, o Comandante Tenreiro, uma das figuras importantes do regime, que veio interferir com a minha vida. E eu: «Pronto, é agora, vou-me embora». Podem dizer: «É doida, largou a biologia e foi para o teatro». Eu não sou doida. Enquanto não sei o chão que piso, não dou o passo. Não era bem calculismo, era não criar problemas, os problemas que eu sabia que ia criar se ficasse desempregada. As coisas eram bastante observadas e medidas para comigo: «Tenho coragem para», «Posso fazer isto». 

 

Participar na fundação da Cornucópia foi um marco importante na sua vida?

Importantíssimo. Tenho a impressão de que se não tivesse encontrado a Cornucópia através do Luís Miguel [Cintra] e do Jorge [Silva Melo], talvez não perseguisse a minha carreira teatral. Como lhe disse, nunca pensei ir para o teatro para ser protagonista. Não estou a fazer romance, era verdade. Hoje até digo: «Mas que parva, por que é que não fiz isso?».


Se calhar, o mais importante era outra coisa. Que outra coisa era?

Fazer parte daquele jogo.

 

Disse numa entrevista antiga: «Uma carreira não justifica uma vida». O que é que é mais importante?

Quer saber como é que isto liga? Ninguém pensava em dar à Palmira Bastos um papel que não fosse o centro de cena. Essa obsessão exige da pessoa uma atenção espantosa, não perder oportunidades. Incomodava-me se tivesse que fazer isso. Interessava-me a obra, o papel, o gozo, que transmitisse alguma coisa que gostava de ver transmitido. Quando fui para a Cornucópia estava a pôr em questão a minha vida no teatro. Eu queria era fazer parte de bom teatro, tinha uma certa exigência, estética, de conteúdos. Tinha acabado de fazer um espectáculo por minha decisão, «As criadas», do [Jean] Genet, (uma encenação do Vítor Garcia, com a Eunice Muñoz e a Lourdes Norberto). Quando acabei aquilo senti um vazio, o que viesse nunca seria próximo daquele, como inovação, como experiência. Fiquei um bocado sucumbida. Aparece a Cornucópia, um grupo da Faculdade de Letras, apresentaram um espectáculo e fui ver.

 

Foi assim que os conheceu, foi ver o espectáculo à universidade?

Foi.

 

O que é que os distinguia?

Tinham especial talento, vi-os a fazer «O Judeu», vinham com uma frescura, uma linguagem... Eles vieram ter comigo, tinham um certo interesse pelo tipo de actriz que eu era, e fiquei com eles.

 

Fez teatro para crianças. A Glicínia não teve filhos...

 Dirigi um teatro que teve muito êxito, «Emílio e os Detectives», ali no Villaret. Nunca tive desejos de ser mãe. Não tenho pena nenhuma. Não ser mãe nunca me perturbou. Gosto da criança pela criança, é um ser humano, um ser que tem todas as possibilidades e que devemos ajudar o mais possível a ser feliz. Que não tenha a preocupação de ser um bom advogado ou um bom engenheiro: que seja feliz! O resto vem por acréscimo.

 

Pode-se ensinar a ser feliz?

Eu não ensino a ser feliz. Eu gostava de educar as pessoas de modo a que elas pudessem abrir os olhos à sua volta e crescer. Acho mais importante do que saber muita coisa. Pelo saber também chega o crescimento, acho que isso é que é importante, e muitas vezes não se faz.

 

Parece uma mulher feliz.

Não sou infeliz.

 

Parece bem consigo.

Sim, estou.

 

Isso é uma conquista ou sempre foi assim?

Acho que sou também assim. Tem sempre que haver qualquer coisa de nós. Depois a vida favorecer-nos, não ser contrária, abrir-nos caminhos, «Agora vem mais isto, que bom, que interessante!», e não ficar muito tempo a resmungar, «Porque é que aquilo aconteceu?». Dá -me a impressão de que tudo o que me aconteceu foi aquilo que devia ter acontecido.

 

Não deprimiu com a velhice.

Não, deprimir não deprimi... Mas se quer que lhe faça uma confidência, hoje estou a sentir uma baixa. Gozar a vida, ainda gozo, ainda me riu com facilidade, ainda me interesso por coisas muito simples. Depois penso assim: «Isto está a acabar».

 

A parte extraordinária é que continua a saborear. Há pessoas que soçobram, e amargam...

Espero que não, mas estou no princípio da velhice.

 

O que seria um bom presente de aniversário? [A entrevista é anterior aos 80 anos de Glicínia, a 19 de Dezembro]

Não sei. Uma festa, com amigos, com gargalhadas, com graças. Durante muitos anos não me lembro de haver o «Parabéns a você». Tenho impressão de que o «Parabéns a você» foi uma importação, através dos filmes americanos. Eu nunca gozei o Natal, os meus pais não eram católicos. Mas este ano é que vou enfeitar a minha casa!, parece que este ano vai ser! Como eu recebia presentes e bonecos no dia dos anos, era quase como um Natal.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004

Glicínia Quartin morreu em 2006

 

 

Nikias Skapinakis

14.03.22

"Nikias, o observador de mãos frias", escreveu sobre ele José Gomes Ferreira. O "Provocador Tranquilo", chamaram-lhe em Serralves. O que habita/encena/cria o "Teatro dos Outros", para ir ao título do documentário de Jorge Silva Melo que lhe é dedicado. O que treina a mão na observação do assunto. Qualquer assunto. A vida cá fora. O impacto cá dentro. A contracena. "O pintor do silêncio e da cor" – título de um jornal antigo que lhe assenta bem.

O que fica entretanto? Fica, por exemplo, uma "Cortina Mirabolante". Uma peça dos últimos anos que é pintada à medida que é desenrolada. Pintada à medida que é vivida.

Não muito diferente do que sempre foi. Viver e pintar. E aí entra o observador. De mãos precisas. O do traço frio, rigoroso. Por vezes melancólico, tantas vezes melancólico. O que vive e se reinventa no espaço da pintura. "O pintor vive no rectângulo da sua tela", sabe Nikias.

Há um lirismo em alguns dos seus retratos, sobretudo femininos, dos longínquos anos 50 e 60. E um registo diferente quando pintava paisagens, no mesmo período. Abordagem expressionista. Porque é que é assim? Porque é que, nessa vez, como noutras, ele está em cenários diferentes, recorre a traduções diferentes para aquilo que quer dizer?
Nikias. Quase não é preciso dizer Skapinakis. Nikias basta para o identificar. O pintor português de ascendência grega.

Fala sem sotaque. É lisboeta. (Lisboa também está a tempo inteiro nas suas telas.) Minucioso, perfeccionista. A chegar aos 79. "Vamos manter isto no plano da pintura, sim?". Entrevista realizada por escrito, por razões que à frente se explicam.

Como pretexto, se preciso fosse, para olhar para uma vida: o filme de Jorge Silva Melo, a ser lançado em DVD, e uma exposição e um álbum com a sua obra gráfica ("Desenho a preto e branco e a cores, 1958-2009", no Centro Cultural de Cascais, até 14 de Fevereiro). Mais do que tudo: as coisas que nos interpelam e que estão na sua pintura. De onde vêm estas coisas?

 

 

Não há muitos anos, pintou uma série de quartos imaginários. Quartos ficcionados – disse – de pessoas que gostaria de ter conhecido. Comecemos pelo seu quarto ficcionado. Que elementos teria? O de Frida Kahlo, por exemplo, tem a cama com o espelho, o retrato de Rivera. O de Klee é geométrico e claustrofóbico...

Comecemos pelo Quarto de Frida: as colunas da cama, que suportam o espelho, são pontiagudas e referem-se ao facto de ela ter sido trespassada. O Quarto de Klee é geométrico mas um sol do final do dia aparece, ainda visível na janela. O meu quarto ficcionado será, se calhar, todos aqueles que pintei. [O ensaísta] Michel Butor escreveu a propósito: "Pintar o seu próprio quarto, que coisa mais rara ou mais preciosa. Mas pintar o de um outro artista ou de um poeta, deitar-se nos seus lençóis, mergulhar no tingimento dos seus sonhos, que transmigração!". 

 

Como era o quarto da sua infância? Que objectos, que cenografia ali constavam e que importam? – nem que seja por persistirem na memória. Que sonhos acolhiam? Estou a perguntar pelo menino que era.

Era um menino feliz. Se for à procura desse tempo perdido o que ressalta são os álbuns do Prado, do Louvre e de outros museus que o meu pai me mostrava e eu procuro copiar.

 

Os quartos de Kavafis e El Greco são particularmente importantes? Por terem a ressonância da sua ascendência grega.

Recorro, outra vez, a um escritor: Vasco Graça Moura escreveu no catálogo da Fundação Vieira e Arpad que "o Greco e Kavafis têm o seu lugar numa genealogia que não é apenas cultural. Uma origem que Nikias partilha com eles e aqui acentua discretamente, nos vários cenários do seu teatro de sombras". Penso que a origem grega (paterna) me fez amar a Grécia desde sempre. Kavafis chega-me primeiro pelo "Quarteto de Alexandria" de Durrell, depois por Yourcenar. Greco vem da infância e, mais tarde, admiro profundamente o último Apostolado de Toledo – os quadros ditos incompletos, que não podiam ser acabados porque já o estavam, e se encontram na origem da modernidade: Goya, Cezanne, Picasso.   

 

Para ficarmos ainda na infância: a série dos circos atira-nos para esse tempo em que éramos, justamente, levados ao circo. Mas nos que pintou há quase sempre uma melancolia e uma rarefacção de pessoas. Porquê?

Não sei exactamente porquê. Os meus circos são o prolongamento das paisagens de Lisboa e referem-se a locais precisos, Campolide, Luz, Algés, Areeiro. Este último é o primeiro porque data de 1955, ainda a zona era campo. Em 1964 apareceu o circo da Quarteira que resultou de uma insólita visão de uma barraca no meio de uma praça de terra batida, rodeada de casario de pescadores. A mesma Quarteira que vi ao longe, 30 anos depois, pontuada de arranha-céus. Terá sido essa minha melancólica visão uma premonição urbanística?

 

Fale-me do momento em que percebeu que esta era a sua maneira de se exprimir. E porquê esta linguagem. Ainda que recorra a uma multiplicidade de linguagens: óleo, desenho, litografia... A verdade é que interveio muito, escrevendo, e não é escritor. A verdade é que alguns dos quartos são de escritores e poetas – que admira – e não é escritor.

É verdade que recorro a uma certa variedade de linguagens. Elas respeitam sobretudo à expressão e não às modalidades técnicas. Como a minha obra acabou por se tornar extensa, tenho uma imperiosa necessidade de mudar, não direi de vida, mas de estilo, se este termo ainda significa alguma coisa. Evito cansar-me de mim mesmo praticando maneiras opostas, partindo de uma fase para o seu contraditório e, às vezes, praticando-as ao mesmo tempo. Enfim, se Pessoa tinha tantos heterónimos... Mas, de facto, não sou escritor, nunca o fui, embora nos anos 50 e 60 tenha feito parte das redacções da "Revista de Arquitectura" e da "Seara Nova". A pintura e o estudo da sua história constituem, ainda, o meu ponto de partida. Não tenho outro.

 

Porque é que são estas as coisas que aparecem na sua pintura? As paisagens. Os retratos. A natureza-morta. As mulheres. O diálogo com Pompeia. O abstracto. A melancolia. A alta e a baixa cultura. Os mitos. As personagens presentes e ausentes. São um acesso enviesado ao seu mundo? 

Os retratos, as naturezas mortas, as paisagens, são géneros figurativos que pratiquei mais ou menos regularmente. A parafiguração, abstractizante, que apareceu nos últimos anos de 60, contrariou essa tendência figurativa. Contudo, nunca fui um pintor abstracto, na medida em que os meus quadros, mesmo os mais depurados, permaneceram sempre com uma ligação à realidade. A abstracção na minha pintura deve entender-se como uma disciplina estruturante, aprendida com os mestres da não figuração modernista. Essa disciplina tornou-se evidente na parafiguração que referi e abrangeu diversos períodos, desde os objectos recortados simuladamente nos fundos brancos, às "Paisagens dos Vale dos Reis" e à série "TAG", relativamente recente. Esta série, relacionada com os graffiti, tal como a série mitológica das "Metamorfoses de Zeus", que ilustra as aventuras eróticas do Pai dos Deuses, associaram a cultura erudita com os aspectos emergentes e diversificados da chamada baixa cultura.

Mas é possível que um sentido melancólico envolva todo o meu trabalho, mesmo aquele que refere, agressiva ou ironicamente, as imagens publicitárias ou os murais populares, que exprimem as pulsões do presente.

Interessa-me fundamentalmente o presente, mas analiso a sua diversidade cultural procurando destacar-me e compreender o passado. O passado é omnipresente na minha pintura e também respeita à literatura e até à música. Procuro, talvez enviesadamente, um sentido, um fio de Ariadne que evite perder-me no labirinto dos acontecimentos.  

 

Se estas coisas são a sua cabeça – "Bovary c'est moi" - alguns quadros presumem-se mais autobiográficos do que outros. Porque é que "Mulher com flores à cabeça", de 1955, é um auto-retrato?

"Mulher com Flores à Cabeça" não é propriamente um auto-retrato, género que, aliás, nunca pratiquei. Nesse tempo, em 1955, vi por acaso uma florista que me impressionou e pintei-a, de cor, no atelier. O meu amigo Sena da Silva, quando viu o quadro, disse-me que se parecia comigo e eu concordei. Algo de mim, passou para a mulher, um pouco à maneira de Virginia Woolf, que eu não tinha lido. O quadro representa uma figura campesina, na cidade que aparecia no fundo; realmente não trazia flores, trazia esperança, que era um sentimento que me habitava nesses anos.

 

Outro auto-retrato, assumido, é "O Minotauro expectante", de 1991.

O quadro do Minotauro, que pertence ao período monocromático, encerrou a Retrospectiva de Retratos no Museu do Chiado. Mas aí a esperança tinha desaparecido e dado lugar a um olhar distante, expectante. Os dois quadros estão separados por cerca de quarenta anos e são muito diferentes entre si, relativamente às aparências e ao sentido pictórico. Mas, em ambos os casos, creio que são reveladores de uma minha maneira de olhar o mundo. Por aí, até podem considerar-se auto-retratos.

 

Os críticos dividem a sua obra em vários períodos. O primeiro momento vai dos anos 1950 a 1965. Masculino/Feminino e Rústico/Citadino são dois binómios tratados. Mas também Lisboa e os circos. São as traves essenciais desse período?

É uma análise perfeitamente possível. As paisagens abrangem os campos e as cidades, os retratos, os homens e as mulheres. Lisboa é um tema privilegiado e aparecem óleos, guaches, litografias que assinalam figuras populares, uma espécie de contraponto dos retratos dos intelectuais. A minha ligação é à pintura moderna, aos mestres franceses, italianos, russos e portugueses como Eduardo Viana, Amadeo, Eloy – eles são as traves mestras das minhas origens figurativas, modernistas.

 

Em 1958 pinta um retrato de Almada Negreiros. Fale-me da convivência com os intelectuais do seu tempo. De como eram as mesas de café. Do que se aprendia/discutia nelas.

Se me lembro bem, como diria [Vitorino] Nemésio, que conheci em casa de Natália Correia, os cafés eram tertúlias da época, nas quais se discutia tudo e, que eu saiba, não se aprendia nada. Almada, que também aparecia com Sarah Afonso em casa de Natália, foi sobretudo para mim uma referência intelectual. Quando pintei o seu retrato (que está no Museu de Luanda) disse-me que o tinha envelhecido. Mas estava muito parecido; o espírito dele é que atravessava o tempo.

Natália recebia regularmente como se sabe, escritores, poetas, pintores, actores, filósofos. Era gente que prezava a independência de espírito e que encontrava ali acolhimento inteligente - raro na época salazarista. Aliás, pintei dela dois retratos, um individual em 1959, corresponde aos últimos anos da sua excepcional beleza, e outro participando num "Trouble Trio", como referiu "The Times", e que está na Gulbenkian. Natália era uma força da natureza operando singularmente nas circunstâncias entediantes que nos rodeavam.

Encontrava-me também, nos cafés do Chiado e da Baixa, regularmente, com José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira e Augusto Abelaira. Eram meus amigos e pintei-os a todos. Lembro-me que Gomes Ferreira me dedicou um poema onde dizia: "A morte é o outro lado das flores".

 

Nos anos 50, instalou-se no Atelier Vila Martel, que partilhou com Bartolomeu Cid dos Santos e Sá Nogueira. Um e outro partiram para o estrangeiro. Porque é que ficou em Lisboa?

Creio que eles fizeram bem em partir e eu terei feito bem em ficar. A minha actividade política, legal e subversiva, na época, emprestava-me uma motivação que influenciou a minha capacidade de resistência ao ambiente que defrontava. De resto, não creio que de outra maneira pudesse ter pintado os retratos colectivos dos "Caminhos da Liberdade" e da "Melancolia em Portugal".

 

Descobrir a modernidade, num país que vivia sob uma ditadura: como foi?

As viagens permitiram-me conhecer um grande número de países que me interessavam do meu ponto de vista de pintor. Pude estudar o passado e acompanhar as experiências contemporâneas. Nesse tempo, como se sabe, a informação não chegava, como agora, quase instantaneamente. A solução para acompanhar o que se verificava de significativo, não só no que respeitava à pintura mas à literatura, à música e, sobretudo, ao cinema, era mudar de País, como foi o caso dos artistas auto-exilados, nos anos 60. Ou ficar e tentar retemperar o espírito, viajando sempre que possível. Foi o que fiz.

 

"Um pintor luta quando pinta", escreveu num manifesto em 1958. Esteve na prisão, no Aljube. Como é que o biográfico e o pessoal se inscrevem na sua pintura? Neste caso concreto.  

A minha prisão, em 1962, não teve qualquer consequência no meu processo artístico. Todavia, em 2000, pintei dois quadros ("Paisagem Entrevista" e "As Grades"), acentuadamente monocromáticos, onde reconheci, a posteriori, o ambiente opressivo do Aljube.

 

Como nos circos, é notória a ausência de pessoas nas paisagens deste período. São muitas vezes desamparadas e silenciosas. Ainda mais contrastante se pensarmos no que fez nos anos 60, marcadamente figurativo.

"O Teatro dos Outros", filme de Jorge Silva Melo sobre o meu trabalho, documenta com fotografias, quadros, filmes, de diversos autores meus contemporâneos, esse tempo do negrume português. A sequência fílmica que mostra Lisboa, a preto e branco, nas fotografias de Sena da Silva, Carlos Calvet, Gérard Castello Lopes, Victor Palla, culminando nas cenas de Fernando Lopes, que evocam as noites quentes do Hot Clube ["Belarmino"], remete-nos para um tempo do qual já não há referências.

As pessoas subiam e desciam o Chiado, vestidas de escuro, a cidade era triste, os entretenimentos parcos e vigiados. É uma apagada tristeza o que se conta nessa reportagem breve, por assim dizer, sociológica. E creio que dá uma nova luz às minhas desoladas paisagens e aos meus entediados, ensimesmados, modelos.

 

Em alguns trabalhos, o desenho fica à mostra. Como se fossem costuras. Ou o interior. Porquê essa opção?

Não opto no sentido de determinar previamente que o desenho fique à mostra. O que acontece, mais complicado e difícil de explicar, é que certas coisas aparecem, e dão origem a outras que vão definindo um processo do qual posso, ou não, apoderar-me.

 

O passo seguinte na sua obra, entre finais dos anos 60 e finais dos anos 70, é dominado pelo recorte. Recorte de figuras de um fundo de uma só cor. Aparecem então mulheres, muitas vezes nuas. São muito diferentes das mulheres que apareciam nos anos 50.

A partir de 1965 termina o período lírico-expressionista do meu trabalho. O recorte que se lhe segue é abstractizante em si mesmo e convergem nele simultaneamente leituras do passado e imagens avulsas da publicidade. Esse recortar pode ser simulado na pintura, figurativa ou parafigurativa, ou pode ser efectuado à tesoura, nos guaches que realizo nessa altura.

 

Nessas séries, faz-se a revisitação do espaço de Pompeia e de mitos da antiguidade. "As três graças", por exemplo, decalca o movimento das "Graças" de Pompeia. Explique essa aproximação.

As "Variações sobre o Nu", dos anos 60, são uma obra da transição que antecede a intenção do recorte. Referiam-se às Três Graças mitológicas de um quadro barroco, mas a sua execução está intimamente ligada aos frescos que tinha visto na "Vila dos Mistérios", em Pompeia. A memória dos frescos vem assim juntar-se às imagens publicitárias e da impressão cartazista, na identificação das séries que se desenvolveram entre o final dos anos 60 e o princípio dos anos 80. O quadro de 1967 das "Três graças": são retratos reais de três mulheres que se recortam num fundo branco. Natália Correia, dirá num poema: "Em campo de linho sendo verdadeiras de inventadas." Será uma explicação?

 

Depois de um sentido do real muito marcado, surge uma longa fase abstracta. Que coisas diferentes estão nesses trabalhos?

Não se trata propriamente de pintura abstracta mas de uma tendência parafigurativa anterior. Chamei à série "Paisagens do Vale dos Reis", aludindo às pinturas dos túmulos egípcios que me tinham impressionado. Na generalidade, são paisagens da "crosta terrestre" e parecem corresponder ao ponto de vista distorcido que se verifica quando um avião se inclina para uma aproximação à pista.

 

Outra diferença substancial é a passagem de uma fase em que a pintura parecia dominada pela cor para uma fase monocromática. Revela um ensimesmamento? Por acaso, o segundo auto-retrato assumido é deste período...

Esse monocromatismo, isto é, uma cor avermelhada, cor de barro, onde o desenho se inscreve a negro delineando figuras e objectos, representou para mim a necessidade de uma contenção cromática depois do cromatismo intenso do Vale dos Reis. O "Minotauro Expectante", que já referi, beneficia dessa contenção que me parece propícia à sua postura distanciada.

 

Em 2001 fez uma série de mulheres que poderiam parecer próximas das mulheres dos anos 70. Mas são manequins, que descobriu numa casa algarvia. São personagens e não são pessoas? É ainda um modo de falar da ausência? Formam um teatro? Que dizem elas na história em que interagem?

Esses manequins constituíam uma espécie de teatro surreal, espalhados pela mansão que "habitavam". Retratei-os individual e colectivamente assinalando as afinidades dos seus trajes e as suas atitudes ausentes. Talvez a sua ausência de alma pressinta a clonagem.

 

Disse que não é um repentista, e impôs a condição de a entrevista ser escrita. Porquê esta reserva, esta distância, este silêncio? O que seria diferente se fosse sem rede, ou seja, sem tempo para pensar e digerir as perguntas?

Fui algumas vezes entrevistado para a rádio e a televisão - naturalmente sem rede. Uma entrevista para ser lida, que pretende resumir 60 anos da minha preciosa existência, obriga-me, porém, a consultar diversos elementos e a ponderar a economia das respostas. Realmente, embora converse e discuta com facilidade, não sou repentista. Seria um péssimo advogado de barra e um político inábil, porque a resposta correcta pode não me ocorrer - o que acontece a muita gente boa.

Por exemplo, fiz recentemente uma intervenção na Universidade Nova, no âmbito da História de Arte Contemporânea, e a seguir alguém perguntou se a arte devia escandalizar. Já não recordo o que respondi, mas, rememorando a pergunta, julgo que estava viciada na origem. Isto é, o verbo "dever" não se adequa à obra de arte. Manet não pensou certamente em escandalizar Napoleão III quando pintou Olímpia nua. A lição a tirar é que no processo artístico as intenções não contam, conta a inspiração que não é uma invenção romântica. Na arte não há deveres. E não me lembrei de o afirmar!

 

Produziu muito ao longo dos anos. O que é que acha que ficará? Aponte-me três quadros de que goste especialmente.

Não posso garantir que fique o que quer que seja. As escolhas são apanágio dos críticos e do público. O tempo encarrega-se da rectificação. Se for caso disso.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2009