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Anabela Mota Ribeiro

José Eduardo Agualusa e Mia Couto

22.05.22

Muxima é a palavra que em quimbundo designa coração. E amigo, como se diz? Que palavras dizem a amizade de José Eduardo Agualusa e Mia Couto? Alguns pontos de uma genética comum: livros, identidade, a vida secreta das plantas, as cores que temos e que uma menina de quatro anos vê e um adulto não vê. Mas esta é a maneira poética de ler as suas vidas. Falta a guerra, as guerras, a procura de respostas, o empenhamento cívico e político. A felicidade que floresceu na infância apesar do horror.

São criaturas de fronteira.

Mia Couto, nascido António, em Moçambique, já disse de si: “Sou um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve prosa; um homem que tem nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas na ciência; um escritor numa terra deoralidade.”

José Eduardo Agualusa é um “angolano em viagem, quase sem raça.” Se a raça vier do ar e do chão, é da raça dos pássaros e das árvores.

São amigos há tanto tempo que parece uma amizade de sempre. Têm percursos quase coincidentes, apesar da especificidade das suas histórias e a dos seus países. Mia nasceu em 1955, Agualusa em 1960.

Esta semana Agualusa lançou o romance história Rainha Ginga – E de como os Africanos Inventaram o Mundo. Mia fez a apresentação.

A entrevista foi na casa de Agualusa. Mia não-surpreendentemente estava em casa. É preciso dizer que se riem muito. Um do outro, de si próprios, de imbecilidades (a palavra é deles). Os risos são muito mais recorrentes do que aqueles que são anotados no texto. Porquê? Deve ser da graça que encontram no mundo. (Graça no dicionário: mercê, benefício, dádiva; benevolência, estima, boa vontade; beleza, elegância.)

 

 

Qual é a palavra de que mais gosta em quimbundo? Pode ser pela sonoridade ou pelo conteúdo.

Agualusa – Sou da zona do umbundo, o Huambo. O quimbundo tem uma tradição escrita que o umbundo não tem. Ainda cheguei a aprender quimbundo. É mais fácil responder em umbundo: ombembua. Significa paz.

 

O som de ombembua faz-me pensar numa nuvem.

Mia – Flutua.

Agualusa – É uma língua inventada pelos pássaros.

Mia – É piado.

 

Mia, o biólogo e inventor de palavras, fala a língua dos pássaros? Qual é a palavra de que mais gosta num dialecto moçambicano?

Mia – Estou a aprender aquilo a que presunçosamente chamaria a língua da vida. O que me apaixona na Biologia é a parte linguística, não é a parte científica. No sentido de decifrar códigos. Há linguagens que estão ali, presentes, e a gente está surda. E cega.

 

Por exemplo.

Mia – Fui-me apercebendo com mais clareza como é que as plantas dizem coisas. Têm de as dizer porque têm relações simbióticas com pássaros, com morcegos, por causa da polinização. Quando um fruto muda de cor, está a dizer que aquele é o momento. Está a falar connosco. Isso, o cheiro, são formas de diálogo.

Agualusa – O fruto é mesmo para ser colhido e disseminado. Diz: “Vem comer-me e propaga-me”. Concordo com o Mia. Pensamos que as coisas estão ocultas, os grandes segredos, e está tudo à luz do sol. Não somos capazes de ver. As crianças muitas vezes vêem.

 

Os adultos não vêem?

Agualusa – Nalguns casos, vêem à medida que envelhecem. As crianças vêem o evidente. Costumo contar uma história da minha filha, de quando era bem pequenina. Uma senhora fez-lhe uma pergunta muito idiota. “De que raça és tu?” Ela não entendeu. Não tinha sequer o conceito de raça. A senhora tentou corrigir a pergunta, errando ainda mais. “De que cor és tu?” A minha filha olhou muito espantada. “Mas tu não vês que sou uma menina? As meninas são pessoas. As pessoas têm cores diferentes. A minha língua é vermelha, os meus dentes são brancos, o meu cabelo é castanho.” Temos todas as cores. É preciso uma criança de quatro anos para dizer o óbvio.

 

Como é que perdemos a capacidade de ouvir, ver, ler o mundo? Tem que ver com a perda da inocência? Junto a experiência do medo. Eram muito jovens, um e outro, quando viveram a guerra dos vossos países. Não consigo imaginar o que é ter 15 anos e ter a guerra a rebentar à porta. Ou 22.

Agualusa – Éramos mais novos. Eu nasci com a guerra, em 1960.

 

A guerra fratricida começa mais tarde, quando está na adolescência. Aquela que está lá, antes disso, é a guerra colonial.  

Agualusa – Tenho a noção da presença da guerra no meu quotidiano desde sempre. A questão é essa: quando temos desde sempre, também olhamos para a guerra de uma outra maneira. O meu pai trabalhava nos caminhos de ferro.

Mia – O meu pai também.

Agualusa – O meu pai começou a dar aulas às populações ao longo da linha do caminho de ferro. Tinha um vagão especial, com uma sala de aulas. 

 

Como era o vagão?

Agualusa – Muito bonito. A companhia era inglesa, vagões em mogno, com salões, quartos. Tinha um quarto para mim e para a minha irmã, com beliches. Havia um cozinheiro, uma cozinha, sala de jantar. Nas férias acompanhávamos o meu pai. Lembro-me muito bem de o comboio ser atacado. Várias vezes. Descarrilavam os comboios, et cetera. O caminho de ferro de Benguela era a principal empresa, na época. Portanto, um interesse estratégico. Tu deves ter sentido o mesmo.

Mia – Sim.

Agualusa – Toda a minha infância teve a guerra como pano de fundo. Não estava dentro das casas. Estava ali ao lado.

Mia – A guerra que não está ao lado de casa chega através de vozes e de histórias. Coisas que assumem um carácter ficcional. Com nove anos, ouvia falar do que se passava na guerra de libertação nacional.

 

Além da guerra, estava lá desde sempre o quadro colonial.

Agualusa – A violência, a injustiça colonial... Se eu, uma criança privilegiada, fui afectado por isso (são memórias que tenho até hoje), imagino o menino...

Mia – ... que sofria do outro lado do muro.

Agualusa – Custa-me muito ouvir um certo saudosismo colonial. O discurso do retornado com saudade de África. Como se fosse um paraíso intocado.

Mia – Como se fosse diferente. [Porque] “os portugueses nunca fizeram como os outros”.

Agualusa – Era uma sociedade profundamente distorcida, e só não via quem fosse completamente cego. Era explícito para uma criança de poucos anos.

 

Não era preciso que lhe explicassem ou chamassem a atenção?

Mia – Não. 

Agualusa – Estava exposto. Era obsceno.

Mia – O sentimento de inocência, ali perdia-se rapidamente.

Agualusa – Antes da guerra, percebíamos a violência colonial, a injustiça colonial.

 

Era uma discriminação de que tipo, para começar?

Agualusa – De todo o tipo. O colonialismo é feito com pessoas. Pessoas boas e pessoas más. Os sistemas maus puxam pelo pior das pessoas. O sistema colonial é um sistema de dominação. Se não, não é um sistema colonial. E a qualquer reacção, a pessoa era considerada terrorista. Ouvi “terrorista” ou “turra” contra pessoas que não eram nem estavam ligadas ao movimento nacionalista. Eram simplesmente pessoas que contestavam uma injustiça.

 

Conte-me da sua experiência em Moçambique.

Mia – É muito semelhante. Vivia numa cidade, que, sendo a segunda de Moçambique, era pequena. Na Beira, esse carácter colonial estava tão à flor da pele que ninguém teve de me explicar nada. Quando tenho consciência do mundo e tenho que tomar partido, já sabia quem eu era e o que é que ia fazer.

 

Militou na Frelimo muito cedo.

Mia – Quando vou para a universidade com 17 anos, sabia que não ia estudar. Sabia que ia aderir ao movimento de libertação nacional. Não porque tivesse sido doutrinado. Mas por aquilo que vivi. Sabia que queria fazer uma ruptura completa com o passado. Devo dizer uma coisa: fui muito feliz nesta infância. Tive uma infância infinita.

 

Como é que se inventa esse espaço para a felicidade?

Agualusa – Porque se cria. Porque as coisas acontecem assim. Mesmo durante o período de maior violência, pode-se ser feliz. Também fui muito feliz na infância.

Mia – Imagina que era outro tipo de violência... O espaço da minha casa era de grande afecto.

Agualusa – O da minha casa, também.

Mia – Se calhar era pior ter a experiência da violência interna, dentro de casa.

Agualusa – Com certeza. Fui muito protegido. Tive uma família sem... história.

 

Parece uma coisa terrível, uma família sem história. E afinal, não.

Mia – Antes isso do que uma história sem família.

 

Já voltamos à felicidade na infância. Antes: sentia discriminação pelo facto se ser branco?

Mia – Sim. Havia várias discriminações. Na cidade circulavam autocarros. Na África do Sul estava escrito “Negros/ Não Negros”. Ali não estava escrito, mas era assim que se vivia. Não era preciso escrever. Estava escrito dentro da cabeça das pessoas. Sabia-se que um negro nunca podia sentar-se no banco da frente. Havia um banco traseiro, corrido, que era o lugar onde ficavam os negros. Outra discriminação: não havia “os brancos”. Havia os brancos de primeira e os brancos de segunda. Os brancos de segunda (era o meu caso) nunca poderiam chegar a chefe da função pública.

 

Tinha que ver com dinheiro e status, essa discriminação?

Mia – Tinha que ver com nascimento, com os que já nasciam na colónia. Esses eram os brancos de segunda classe.

Agualusa – Isso chegou a ser uma coisa instituída. Havia os assimilados, os brancos de segunda, os brancos de primeira.

Mia – Os assimilados eram portugueses de pele preta.

Agualusa – Era uma coisa horrível! A pessoa tinha de provar que comia de garfo e faca.

Mia – Além das boas maneiras, tinha de ser católico, monógamo.

 

A marca do dinheiro era notória? Havia colégios em Moçambique frequentados por portugueses brancos e goeses. A distinção aí não era em função da cor.

Mia – Mesmo entre os goeses havia uma discriminação enorme. O goês tinha direito a pertencer a um certo clube social em função da sua casta. Havia vários clubes. Bastava dizer: “Sou do clube indo-português”, e sabia logo qual era o estatuto social daquele fulano.

Agualusa – É legítimo pensar (é o pensamento comum) que em Moçambique havia mais discriminação (não-instituída, mas havia) do que em Angola?  

Mia – Não sei comparar, mas acredito que sim. Por causa da influência directa da África do Sul e da Rodésia.

 

Um momento de felicidade da infância: que é que primeiro vos ocorre?

Agualusa – Não tive momentos. Tive imensos momentos. Tinha um quintal enorme. Cães. Brincava muito sozinho. Inventava mundo sozinho. O meu espaço de felicidade era esse quintal. Além disso, a minha casa era o limite da cidade. À frente, não havia nada. Vivi nesse infinito. Fui uma criança com um pé no asfalto e um pé no mato.

Mia – Sabes, a varanda colonial que circundava a casa e que fazia a transição? Nunca percebi bem o que era o dentro e o fora. Havia uma porta de rede, batente. Sabíamos que saímos de casa porque ouvíamos aquela porta bater. Nunca percebíamos se estávamos dentro ou fora. Foi uma coisa muito mágica.

 

Isso dura até quando? O que caracteriza essa noção de infinito, o não haver barreiras, é a ausência de medo, de ameaça. Ou não?

Mia – Ausência de medo é uma coisa que funciona bem para caracterizar aquilo. Não?

Agualusa – Não estou seguro. A minha filha diz-me uma coisa sobre o ser criança. Primeiro, há sempre alguém que manda em nós. Crescer é deixar de ter alguém a mandar em nós. Ou ter menos pessoas a mandar em nós. Diminui a cadeia de comando. A outra coisa é o medo. O medo está muito presente nas crianças. Vamos perdendo medos à medida que crescemos. Não?

Mia – Vais mudando de medos.

Agualusa – Não sei se não vais mesmo atenuando os medos.

Mia – Tínhamos medos. É melhor confessar!

Agualusa – Tínhamos medos e éramos felizes!

Mia – Eram medos domesticáveis. Medo do escuro. Vinguei-me quando fiz um primeiro livro para crianças [O Gato e o Escuro]. O medo cumpre a função de primeiro grande conselheiro.

 

Não entendo.

Mia – Precisamos de ter medos porque os medos nos conduzem. É um alerta, um sistema de avisos. O problema é quando os medos nos dominam, nos paralisam.  

Agualusa – [Sobre os medos domésticos]: tive uma professora especial, de uma família nacionalista, uma senhora de grande coragem. Não tive de aprender a geografia ou a história portuguesas. Não tínhamos Salazar na parede. Estudávamos poesia angolana. Ela criou o seu próprio programa de ensino. Em contrapartida, era muito violenta. Vivia no terror de ir ao quadro. Passámos tormentos que hoje seriam impossíveis.

 

Fez alguma redacção, para essa professora ou outra, de que se lembre especialmente? Em relação à qual tenham dito: “Que bem escreve”. 

Agualusa – Não tenho a menor ideia. Era considerado um mau aluno. Estava na chamada fila dos burros irrecuperáveis. 

 

Nunca teve essa ideia de si próprio, pois não? A sério.

Agualusa – Não me achava muito inteligente. A minha irmã era muito mais inteligente do que eu. Fazia tudo mais depressa, melhor.

Mia – Eu também vivi essa situação.  

 

Estão a fazer género, os dois.

Agualusa e Mia – Não! [gargalhada]

Agualusa – Fui melhorando. Eu era feliz em casa. E inventava.

 

Inventava dentro da sua cabeça ou já escrevendo alguma coisa? Quando pergunto por uma redacção, tento compreender quando estabelece uma relação com a palavra escrita.

Agualusa – Mais tarde, muito mais tarde. É preciso ler muito [para escrever].

 

Como foi consigo, Mia?

Mia – Era mau aluno e a escola foi penosa. Apurei o sentido de não estar no lugar [onde efectivamente estava] na escola.

Agualusa – Eu também!

Mia – Isso foi uma escola fantástica. De alheamento. Com os olhos abertos, fingindo estar atento. É uma coisa que procuro ensinar aos meus filhos: a capacidade de não estar.  

Agualusa – É uma coisa de budista avançado.

Mia – A escrever comecei cedo. A única coisa que me salvava de ter nota negativa a português era a redacção.

Agualusa – A minha mãe era professora de português. Tinha muitos livros em casa. Também devias ter. O teu pai, o pai do Fernando, era poeta.

 

Que é que lhe chamou?

Mia – O meu pai chamava-se Fernando. Foi salvá-lo [com este lapso].

Agualusa – Não me proibiam o acesso aos livros. Lemos os livros que podemos ler. Pegamos num livro e percebemos se é para nós ou não. Tento fazer isso com os meus filhos. Li dicionários e enciclopédias. Tenho ali dois tomos de uma enciclopédia que os meus pais me deram há pouco tempo, porque eu tinha muitas saudades daquela enciclopédia, uma Lello Universal. [levanta-se e vai buscar]    

 

Edição dos anos 30, com figuras, capa dura. Linda.

Agualusa – Nesta enciclopédia o Fernando Pessoa tinha morrido há pouco tempo e só tem direito a duas linhas. Para se ver que não lhe davam muita atenção. O Hitler ainda é tratado com benevolência.

 

E assim se aprende o mundo. Ando às voltas para tentar saber de onde vem o vosso mundo fantástico.

Mia – Posso contar uma história da escola? Tinha um professor magro, alto que um dia leu uma redacção que fez. Era uma redacção para a mãe dele. Sobre as mãos da mãe dele. Comoveu-me tanto. Era estranho. Ele também estava comovido. Tinha uma relação de paixão com o texto. Falava das mãos da mãe como eu pensei que podia falar das mãos da minha mãe. As mãos da mãe dele só tinham marcas. Do tempo, do trabalho. Aquilo foi importantíssimo. Aquele professor ficou um menino frágil.

 

Esse professor era o Zeca Afonso? Sei que foi aluno dele.

Mia – Não. O Zeca foi meu professor por um período curto de tempo. Foi substituir a minha professora de geografia. Toda a gente o considerava um óptimo professor. [em surdina] Eu achava-o péssimo. Mas era divertido e ensinava outras coisas.

 

O vosso mundo fantástico, poético, o talento para ver a realidade nos seus aspectos mais espantosos, e a converter em palavras, de onde vem?

Mia – É difícil falarmos de nós próprios. Vem de várias coisas. Por exemplo. Sou de uma geração educada a ser homem, macho.

 

Quais eram os códigos?

Mia – Um homem não chora. Um homem não confessa certo tipo de sentimentos. É duro. A relação com o lado sentimental era diferente desta que tomei para mim. Quando se escreve e se tem de ser mulher e ser outro, dentro de nós há uma briga. Há uma ousadia que é preciso ter. A capacidade de nos aceitarmos múltiplos, plurais, é um bom ponto de partida para escrever.

Agualusa – Não sei dizer. Talvez tenha a ver com essa infância.

Mia – Posso dizer o que é que ele tem de especial?

 

Pode. É capaz de ser mais fácil falarem um do outro. Verem-se de fora.  

Mia – Ele é uma criatura de fronteira. Alguém que esteve entre mundos e que não quis nunca construir um lugar físico. Vive em histórias permanentemente. A moradia dele não é um lugar e um tempo. O tempo só serve para a travessia, para a viagem. E nunca está em lado nenhum. Está aqui mas está a fingir que está aqui. [gargalhada de Agualusa] Estando nós a viajar no meio da Ucrânia ou num musseque em Angola, ele está sempre na criação de histórias. Não tem um onde.

Agualusa – Na minha família toda a gente contava histórias. Toda a gente queria contar as melhores histórias.

 

Mia, esperavam de si grandes histórias, grandes coisas?

Mia – Eu era o mais desvalido da casa. Era o pasmado, o que não sabia fazer coisas práticas. Tinha de haver um território onde dissesse – onde disséssemos – que somos visíveis.

Agualusa – [Contar histórias] é uma afirmação identitária. O que é importante no nosso caso, tu como moçambicano, eu como angolano, é que na escrita há uma afirmação identitária.

Mia – Começa por ser isso. Depois já não queremos saber disso.

Agualusa – O meu primeiro livro, A Conjura, um romance histórico sobre o século XIX, é claro para mim que surge como afirmação identitária. Depois é como o Mia diz. A gente toma o gosto naquilo. E vai.

 

Resolver e afirmar uma identidade, através da escrita, é também uma maneira de suturar feridas?

Agualusa – Afirmação identitária mesmo. Um modo de dizer: “Estou aqui neste país e sou angolano desta maneira”.

 

E a ferida? Não havia como não estarem em ferida, doridos, quando começaram a escrever. O fim da guerra, das guerras, era recente. A escrita ajudou a organizar o mundo?

Mia – A ideia de alguém ter uma ferida particular... Todos temos.    

Agualusa – A escrita ajuda sempre. A escrita é um processo de reflexão. Ajuda-nos a situar-nos naquele momento, naquele universo. Depois vem a fruição, o prazer de que falava o Mia. Escreve-se pelo prazer que a escrita dá.

 

Descreva.

Agualusa – É muito bom. Tem aquela coisa da descoberta, certo, é um exercício de alteridade, maravilha, compreende-se melhor o outro e compreendemo-nos melhor a nós, verdade. E além disso, e o mais importante não é nada disso, há o prazer. De repente as palavras organizam-se, há uma luz ali, os personagens começam a desenhar uma história. É como ler. Mas sou eu que estou a fazer. É um duplo prazer. É um mundo que vai nascendo de dentro de nós.

 

É bonito que fale desse prazer, sobretudo porque temos a imagem do escritor angustiado.   

Agualusa – Em Portugal há a escola do escritor angustiado. Portugal tem um culto do sofrimento, da tristeza, da melancolia. Aquilo que é prazer tem de ser [também] sofrimento.

Mia – O sofrimento como elemento identitário é [marca] do catolicismo. Quando me ofereci para ser membro da Frelimo, fui a uma sessão em que era o único gajo jovem e o único gajo branco. Havia um grupo que ajuizava os candidatos e estes tinham que apresentar uma “narração do sofrimento”.

 

“Narração do sofrimento”?

Mia – Cada candidato chegava e dizia o que é que sofreu. Comecei a ficar atrapalhado. Eu não tinha sofrido nada, na verdade. Aquilo era gente mesmo sofredora. Gente que tinha sido presa, que passava fome, que tinha sido espancada, discriminada racialmente. Percebi a minha felicidade como nunca tinha percebido. Entendi mais tarde que aquilo era uma marca do cristianismo.

 

A confissão e partilha?

Mia – O sofrimento como prova de identidade.

Agualusa – Cristianismo na sua versão mais calvinista, que era a que vocês mais tinham.  

 

Voltemos atrás para que o Agualusa diga o que é que o Mia tem de especial.

Mia – Ele não me acha nada de especial.

Agualusa – Provavelmente o facto de o Mia ser o irmão do meio [é decisivo]. O irmão do meio tem de dar provas. Tem a ver sempre com a necessidade de afirmação. Chamar a atenção numa área. Chamar a atenção da mãe. Estamos a tentar explicar coisas que não se explicam. Nasceu com isto..., com esta deformidade. [riso]

 

A deformidade de ser um poeta que escreve prosa? Foi assim que o Mia se apresentou uma vez. 

Agualusa – Como é que nasce um xamã? Um xamã tem um lado que é de formação e um lado que não é de formação – é de condição. É poeta, nasceu poeta!, coitado, podia ter nascido com uma perna torta.

Mia – Imagina que tinhas jeito para fazer coisas? Tens jeito? Hoje podias ser um engenheiro de pontes. São também as portas que se fecham.

Agualusa – Se tivesse terminado agronomia, podia não ser hoje escritor.

Mia – Tenho uma tese sobre porque é que não terminaste. 

 

Qual é?

Mia – Agronomia implica um tipo que tem raiz. Este gajo não pode ter raiz. Só pode ter asa.

 

É uma leitura poética.

Mia – É a verdade. Isto explica duas coisas. Porque é que aderiste ao curso – porque precisas de ter raiz. E não concluíste porque não podes ficar numa raiz só.

Agualusa – Devia ter ido para artes levitatórias. Ou ser condutor de balões.

 

Quando é que se conheceram?

Agualusa – Posso estar a criar ficção, mas acho que fui a primeira pessoa a fazer uma recensão de um livro do Mia, aqui em Portugal, no Expresso. Na sequência disso uma amiga comum organizou um jantar, onde o Mia esteve com a Patrícia [mulher].

Mia – Antes disso, cruzámo-nos e falámos sobre o teu texto. Percebemos que tínhamos muita coisa em comum. Sendo africanos, brancos, de um certo tipo de família...

 

Está a enunciar as coisas que vos aproximaram?

Mia – Havia um (termo horrível) destino. Parece uma confissão. Daqui a bocado, uma confissão gay. Parecia que estávamos fadados um para o outro. O Zé já era apaixonado pela escrita e pela leitura. Ele era jornalista, eu já tinha sido jornalista.

Agualusa – E havia o interesse pela Biologia.

Mia – Falámos de nomes de plantas.

 

De política, falaram muito?

Agualusa – Claro.

Mia – Tínhamos zangas e discórdias.

Agualusa – Não me lembro.

Mia – O Zé tinha uma coisa mais clarividente do que eu. Maior distância crítica. Eu estava muito dentro do processo político da Frente de Libertação. Seres mais novo também ajudou. Quando ele punha dúvidas, eu estava naquela postura do militante mais convicto.

 

Quando é que deixou de ser convicto? E militante?

Agualusa – Luto por causas. Continuo a combater provavelmente pelas mesmas causas. Pela pacificação e democratização de Angola. Nesse aspecto não mudei nem perdi a fé.

 

Não? Se olho para um livro como o Barroco Tropical, que se passa no futuro angolano, e que dá uma visão tão negra, tão ácida desse futuro, penso que está desencantado.

Mia – É o livro do não-futuro.

Agualusa – O Barroco é uma distopia, um retrato de um mundo que não quero para mim, para os meus filhos, para as pessoas que amo. As distopias servem para alertar para os erros do presente na intenção de corrigir esses erros. Se for olhado dessa maneira, não é um livro pessimista. Pode haver muito horror, e há, em alguns dos meus livros. Na Estação das Chuvas, por exemplo. [O que escrevo é] também uma denúncia desse horror.

Mia – O Zé está condenado a não sair mais de Angola.

Agualusa – Como assim?

Mia – Angola está tão dentro de ti que mesmo estando ausente, Angola persegue-te. Não vais ter outro território de sonho. Comigo é a mesma coisa em relação a Moçambique. Talvez pela condição histórica de termos nascido no momento em que os países se estavam a afirmar. Não temos casa – casa da alma – se não for aquela que está ali.

 

Assistiram à celebração da paz, tiveram o sonho. Os países cresceram com as suas desigualdades, injustiças.

Agualusa – Mas a paz não foi feita ainda. Em Angola, o fim da guerra foi um triunfo militar. Não foi através do diálogo. Não se constrói a paz assim. A paz implica uma conversa que nunca foi feita. Implica compreender as razões do outro. As razões do outro não foram ouvidas, foram apagadas. Estão calcadas, não estão resolvidas. A guerra civil tem uma razão de ser que se percebe ao longo da História. Tem a ver com a construção da cidade, do mundo urbano, que cresceu à custa do mundo rural, através da escravatura. A sociedade mestiça de Luanda enriqueceu com o tráfico negreiro. Há um rancor histórico que persiste até hoje. É preciso ir mais longe, fazer uma reconciliação. Eu teria preferido uma paz negociada. Eu preferia sobretudo que nunca tivesse havido confronto físico, bélico, guerra! Os territórios sujeitos à guerra têm durante uma eternidade essa guerra. A violência sempre eclode de novo.

 

Como se fosse um eco.

Agualusa – Um eco. Aquela violência foi, está lá, ficou. Como quebrar esse ciclo de violência? É o desafio que temos. Vamos a todos os grandes filósofos, profetas, de Cristo a Buda. Todos ensinam o mesmo. Dá a outra face. Faz com que o outro se coloque no teu lugar. Coloca-te no lugar do outro. Tenta compreender o outro. Não é nada que a gente não saiba. Só que não se faz. O pior é isso: não é que não saibamos como fazer.

 

Não se faz por causa de diamantes, petróleo, orgulho, por tudo isto?

Agualusa – [suspiro] Acho que por estupidez. Falta de inteligência, mesmo.  

 

Fale de como viu o processo de paz em Moçambique.

Mia – Tenho de rectificar um bocado o discurso que andava a fazer até há pouco tempo. Depois do fim da guerra civil, em 92, os moçambicanos decidiram não falar sobre o assunto. Um ano, dois anos depois, e não tinha acontecido nada. Ninguém queria abrir aquela caixa. Pensei que era a maneira mais sábia. As pessoas percebiam que qualquer coisa não tinha sido resolvida. Essa qualquer coisa era tão essencial que era melhor não tocar nela. Afinal, acho que não se resolveu bem quando se resolveu não falar. [Não foi uma boa decisão] enterrar isso no esquecimento. A solução esquecimento não é uma solução.

Agualusa – Estás a dar-me razão. Tivemos este combate durante anos. Sempre defendi que é preciso criar rituais de reconciliação, de perdão. As pessoas têm de chorar em conjunto. Como os casais. Como os amigos desavindos.

 

Como as famílias.

Agualusa – Exactamente, é uma família. As pessoas têm de ser capazes de fazer o luto e de se perdoarem.

Mia – De alguma maneira esse ritual foi feito [em Moçambique]. Mudei de atitude, mas não estou de acordo com uma solução de tipo sul-africano, muito institucionalizada, que não toca os rituais mais profundos das pessoas.

 

Rainha Ginga, o novo livro de Agualusa, tem no centro uma figura icónica da história angolana. Mia está a escrever sobre Gungunhana. Está para breve?

Mia – Não sei. Quando quero escrever um romance, aparece-me poesia. Acabei um livro de poesia. Agora encaro a prosa como um filho que resta. Vou demorar ainda uns seis meses a acabar o que já tenho feito.

 

 

Na contracapa da Rainha Ginga, diz que “Angola tem muito passado pela frente, no sentido de que há tanto passado angolano por descobrir e ficcionar”. Anos depois da ratificação da paz, mesmo que ela não seja tão efectiva quanto gostaria, há tempo para ir lá atrás e falar de uma figura assim, do século XVI?

Agualusa – Escrevi este livro ao mesmo tempo que o Mia escrevia sobre Gungunhana e em Angola se produzia um filme sobre a Rainha Ginga. Talvez haja em África uma demanda comum. É uma tentativa de redescobrir o passado numa perspectiva africana. O que temos, normalmente, é uma perspectiva europeia ou uma perspectiva um pouco extremada, nacionalista, que também é mentirosa. Este livro responde a uma inquietação comum ao continente (e não apenas à África de língua portuguesa). 

 

Porque é que Ginga o fascina?

Agualusa – Por ser uma mulher que foi capaz de subverter todas as regras, a sua própria tradição, e de construir um mundo que era o seu mundo. De inventar um mundo à sua imagem.

 

É um pouco o que fazem com a escrita: inventar um mundo.

Agualusa – Pois, mas ela põe no terreno, nós pomos no papel. Menos corajoso.

 

Gungunhana interessou-o porquê?

 Mia – Por aquilo que não foi. Há dois discursos que o esmagam. Houve uma ficção daquele personagem por parte dos portugueses, que o queriam maior do que era. Era preciso ter um inimigo grande para engrandecer o feito de o ter vencido. A Frelimo, o governo moçambicano precisou de construir nele um herói nacional. Houve uma mistificação daquele personagem. O que procuro é a pessoa que sobrou no meio destas duas ficções.

Agualusa – Gosto dessa ideia [a pessoa que sobrou].   

Mia – Ainda sobre a coincidência de escrevermos romances históricos: este sede pelo passado vem da falta de futuro. O Barroco Tropical do Zé era uma maneira de dizer que queremos outro futuro. A necessidade de desenhar um futuro faz com que a gente tenha que recomeçar lá atrás, a recriar um tempo que não foi aquele que nos disseram que existia. Houve uma tentativa de impor só um passado.

 

Uma visão única da história?

Mia – Como se o passado fosse uma coisa simples, singular, única. E houve vários passados.

Agualusa – Parece que o passado nunca passa. Uma das coisas mais interessantes ao estudar esta época da Rainha Ginga foi perceber que aquilo é tão presente... A forma como aqueles conflitos se desenrolam, as alianças feitas..., e tudo com pessoas. Por vezes perdemos a noção de que eram pessoas.

 

Porque os vemos apenas como mitos.

Agualusa – Sim. Eram pessoas inseridas em processos históricos complicadíssimos. Quando comparamos a época da independência, que é uma época de redesenhar as fronteiras, com a da Rainha Ginga, que era também de redesenhar fronteiras, e de fazer um país, ou países, porque é Angola que está em construção, é o Brasil que está em construção, é Portugal que de certa forma está em construção, as situações são semelhantes. E essas pessoas são pessoas. Procuravam o mesmo que procuramos hoje.      

 

O quê? Felicidade, amor, glória?

Agualusa – Isso tudo que realmente conta, essas coisas básicas, simples.  Falámos tanto do medo: procuravam perder o medo.

 

O que é busca na sua viagem incessante?

Agualusa – Compreender. Compreender o outro para perceber o que faço aqui. É tão cliché, mas é assim mesmo. À medida que vamos crescendo percebemos que o outro somos nós. Que não há um outro. Cada vez sou mais fascinado (voltando à Biologia) pelas formigas. Há a tese de que o formigueiro é que é o animal. As formigas são células do animal; não são sequer células autónomas porque não sobrevivem longe, sozinhas. Talvez não estejamos longe disto. Talvez sejamos um único animal.

Mia – O teu próximo curso é Biologia, vais ver.

Agualusa – A Humanidade é uma única entidade. Sempre fomos o mesmo ao longo do tempo. É o mesmo animal, o mesmo ser. Daí o absurdo dos conflitos. Estamos a combater-nos a nós próprios. Uma guerra civil é uma guerra na qual nos combatemos a nós próprios, o nosso organismo.

 

Como um cancro. Que nasce de nós e nos mata.

Agualusa – É.

Mia – Porque é que deixamos de ver os outros como uma parte de nós? Porque aprendemos a olhar de mais para nós. Há uma anulação de nós próprios que temos que aprender. No fundo, o escritor é um escutador. Aprendeu a ouvir os outros. E percebendo no fim que quem está ali é ele próprio. Mas tem de começar por fora.

 

Agora que estamos a terminar, estava a perguntar-me se seria diferente esta entrevista se eu fosse um homem. Será que falaríamos mais dos conflitos africanos?

Agualusa – Pode ser. E pode ser que não soubéssemos responder!

Mia – Se calhar também estamos a procurar ser engraçados por ser uma mulher. [gargalhada dos dois]

 

Isto é também uma maneira de perguntar se querem falar mais de política, de guerra. Têm um discurso muito crítico politicamente.

Agualusa – Eu recebo notícias de Luanda todos os dias. Sou atingido pelo facto de o regime existir e se comportar de uma determinada maneira. E reajo a isso, como é óbvio.

 

Mas não é o centro da sua vida como no passado a política foi um centro.

Agualusa – Na minha vida, nunca foi.

Mia – Na minha, foi.

Agualusa – O centro são as pessoas.

Mia – A política é uma maneira de chegar às pessoas.

Agualusa – Tu foste militante partidário, eu nunca fui. Completamente diferente. Sou militante de ideias. Não sou militante de movimentos políticos. Como cidadão, intervenho todos os dias. Com certeza. Mas a minha vida é muito mais.

 

Sente alguma limitação quando intervém? Perseguem-no?

Agualusa – Eu tinha uma crónica no jornal, A Capital, e deixei de ter. Alguém comprou o jornal e não pude continuar a escrever. Claro que há limitações. O Rafael Marques escrevia no mesmo jornal e pela mesma razão [foi dispensado]. Fomos apagados. Agora escrevo num jornal online, na Rede Angola.

Mia – Aos 17 anos procurava uma extensão da família num partido político. Abandonei os estudos de Medicina, tudo, para me dedicar àquela causa. Foi muito complicado pensar que [a política] era outra coisa. A ruptura, em 1986, magoou-me muito. Ao mesmo tempo foi uma grande libertação. Quiseram pagar-me os estudos, quando [saí da política activa]. Felizmente não aceitei. Não queria ter dívidas.

 

São o melhor amigo um do outro? Como irmãos?

Mia – Alguém é um grande amigo se temos um momento intenso, uma coisa bonita que estamos a ver, e pensamos: “Gostaria que ele estivesse aqui”. Penso nele. Rimo-nos muito das mesmas coisas, imbecilidades. Partilhamos coisas que os escritores normalmente não partilham. Ideias para livros. Sem receio. Agora diz lá porque é que tu és meu amigo!

Agualusa – Concordo inteiramente com o que disseste. Há uma alegria no Mia, na escrita do Mia... E uma melancolia. Uma tristeza elegante.

Mia – Ele faz uma coisa de que tenho inveja: uma poesia que faz de conta que não é. Há um trabalho poético que ele não põe à varanda. Quanto é que me pagas por ter dito isto?

 

         

Publicado originalmente no Público em 2014

 

Ensaio sobre a Cegueira

22.05.22
Sábado, 21 Maio, em Paris: Noite da Literatura Europeia.
A convite do Camões, da sua directora Isabel Corte Real, falei do Ensaio sobre a Cegueira de Saramago.
Partilho convosco algumas notas da minha intervenção, feita em francês, nos 20 minutos de que dispunha.
 
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
Livro dos Conselhos (epígrafe)
Publicado em 1995, quase a terminar o milénio: visão pessimista do fim do século. Distopia literária.
A viver em Lanzarote desde 1993. Livro foi já escrito entre os vulcões da ilha. Cor negra. Isolamento.
Deus, a relação com a religião, é um tema central na obra de Saramago. Neste livro, questiona as origens da nossa civilização ocidental. Na base, Saramago, encontrou a mentira, o dogma, a crueldade. Esse questionamento, iniciado no Evangelho segundo Jesus Cristo, é o que prossegue no Ensaio sobre a Cegueira.
 
Celebramos o centenário de Saramago.
Nasceu em 1922, morreu em 2010.
Prémio Nobel em 1998
“... que, com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia”.
Depois do “Ensaio sobre a Cegueira”, disse que se pudesse ser recordado por alguma coisa no futuro, queria ser recordado como o criador do Cão das Lágrimas.
 
Este é o livro mais lido de Saramago e, depois de dois anos de pandemia, a sua escolha é inevitável. Como no romance, vivemos uma pandemia altamente contagiosa, que nos pôs em contacto com o medo, a doença, a mortalidade, com uma situação limite. E o que se revela nessas situações limite? E agora que saímos, perguntamos: como seguimos em frente?
No romance: pergunta-se porque cegámos?
Na nossa vida: a pandemia não foi uma alegoria, mas obrigou-nos a repensar o modo como vivemos. Os sentidos de ver e reparar.
 
Romance de ideias, com perguntas:
Apocalipse: uma inexplicável epidemia de cegueira branca, os olhos vêem um mar de leite.
- Epidemia é física e espiritual?
- Quem vê?, olhos ou cérebro?
“O médico sorriu sem querer. Os olhos não são mais do que umas lentes. É o cérebro quem realmente vê”.
- O que vemos realmente? Somos cegos que vêem, como se escreve no romance?
 
“Como quem vai por um caminho e encontra uma pedra, levanta-a para ver o que está debaixo: isso é o que faço”: ou seja, é preciso voltar as coisas para as ver de verdade — diz Saramago.
Questiona as fronteiras entre aparência e realidade, porque olhar para o invisível aumenta a compreensão do real, ajuda a ver a indignidade, a decomposição.
Precisamos olhar a realidade cara a cara.
No livro, há a intenção de estimular o espírito crítico, manter a inquietude.
“A palavra que mais gosto de dizer é não.” Não é a palavra transformadora, agente de mudança do status quo.
 
Compreendemos que, nas relações de domínio, e em situações limite: aparece o monstro que temos em nós, a crueldade, o egoísmo, a irracionalidade humana, a violência, a brutalidade, a desumanidade, aparece o “homem lobo do homem”, Homo Homini Lupus, expressão latina tornada célebre pelo filósofo inglês Thomas Hobbes.
Ou seja, neste livro de Saramago, como em todos, há uma dimensão ética e política. O humano é aquele que faz escolhas. Então, que escolhas fazemos?
 
Espaço e tempo não são concretos.
Personagens sem nome, e por isso universais. Humano e global.
A rapariga de óculos escuros. O velho da venda preta. O primeiro cego. O rapazinho estrábico. O cão das lágrimas.
A excepção: a mulher do médico.
 
Género: romance, ensaio.
Fábula, alegoria, analogia, parábola sobre os males contemporâneos, sobre o mundo capitalista.
 
Reparar: deter-se, olhar de outro modo, abandonar a ligeireza, recapacitar-se.
Epígrafe do Livro dos Conselhos. Ressonância bíblica.
 
A parábola dos cegos de Bruegel, o Velho. Século XVI, conduzidos também por um cego. “A prova definitiva de que Deus não existe é a queda dos cegos de Bruegel”.
 
 

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Julião Sarmento e Vicente Todolí

15.05.22

Naquela terça feira fazia-se o jantar de despedida de Vicente Todolí da Tate Modern. Desde há semanas que é público que deixará a instituição no dia 15 deste mês. Não se sabe o que fará a seguir. Nem é conhecido, ainda, o nome da pessoa que o irá substituir na direcção de um dos mais prestigiados museus de arte contemporânea do mundo.

O espanhol, que os portugueses conhecem da fundação do Museu de Serralves, e que em cinco anos impôs o museu no mapa internacional, saiu do Porto para Londres há sete anos. Numa entrevista que então me concedeu, dizia que a Tate Modern seria a última instituição a que estaria ligado. Relendo a entrevista, é espantoso reconhecer nele a estratégia desenhada de modo preciso, a decisão irredutível. A pergunta a fazer não é tanto: porquê?, a pergunta a fazer é: o que é que o desafia depois de ter atingido o topo da carreira tão cedo? Para já, promete-se um longo período sabático. Não por acaso, as últimas palavras desta entrevista são “pensar, pensar, pensar”.

Nasceu em 1958, numa aldeia perto de Valência.

Julião Sarmento nasceu em 1948, em Lisboa. Foi a Londres, participar no jantar de despedida. Antes de se falar da sua relação com Vicente, falemos da sala que ocupa na Tate Modern.

É um espaço de dimensão considerável, onde estão cinco peças de diferentes períodos, e representa, evidentemente, uma consagração na carreira do artista. Basta dizer que na sala do lado está Joseph Beuys para se ter uma ideia da sua importância e repercussão. As obras funcionam como uma amostra dos seus temas essenciais, e estão dispostas desde 13 de Abril; podem ser vistas até final de Abril de 2011.

Após a entrevista, Julião voltou à sala, e o contentamento era indisfarçável. Até agora, Sarmento era apontado como o mais internacional dos artistas plásticos portugueses. Agora, é apontado, também, por ser o primeiro a ter um artist room na Tate.

Encontrámo-nos nas traseiras do edifício desenhado por Herzog & de Meuron. A zona envolvente está em obras, e os cartazes circundantes apontam para a renovação do museu e para as iniciativas comemorativas do décimo aniversário. Subimos em conjunto. Todolí estava com pressa, como sempre se está quando se está em contagem decrescente. Apesar de termos combinado uma hora e meia para a entrevista, Vicente esbugalha os olhos, incrédulo, sem poder entender como é que vai inventar uma hora e meia numa tarde tão preenchida. Mas é importante dizer que uma vez que começámos a conversar, a sua disponibilidade foi total.

Os pontos de partida eram: a sua saída da Tate, a exposição de Julião, de que Vicente é comissário, e a relação de amizade que têm há mais de 20 anos.

Falou-se de filmes, de Liberdade, de a amizade não se intrometer no trabalho, de conversas em espiral… Vicente fala uma estranha mistura de português, espanhol, inglês e italiano. Decidi manter essa versão, que dá uma respiração mais exacta da conversa. Foi quase sempre uma conversa entre um que olha e outro que é olhado.

 

 

Quando é que a vossa relação começou?

Vicente – Começou assim que regressei dos Estados Unidos, em 1985. Voltei para Espanha. Conheci o Julião através da Cristina Iglesias e do Juan [Munõz], em Madrid. Tenho a impressão que estivemos o tempo todo a falar de cinema. Não de arte, mas de filmes.

 

De que filmes falavam, lembra-se de algum especificamente que tenha detonado a amizade entre os dois?

Julião – Fundamentalmente lembro-me de trocarmos ideias sobre cinema. Lembro-me de dois filmes que me foram dados a conhecer pelo Vicente. Henry, a Portrait of a Serial Killer [de John McNaughton] e Reservoir Dogs [de Quentin Tarantino], que ainda ninguém tinha visto, mas o Vicente sim.

Vicente – Outro filme de que falei muito: Things change, do David Mamet. Era o Mamet como cineasta, e não apenas como dramaturgo. E de certeza que falámos do Stalker [de Tarkovsky].

Julião – Falámos do filme que o Mamet fez antes do Things Change, o House of Games.

Vicente – Mas eu gostava mais do Things Change. Até pelo título e pela filosofia que há nele. As coisas mudam. Podemos pôr entre parêntesis: all the time!

 

Quando conheceu a obra do Julião, ela coincidia com aquele que conhecia nas conversas sobre cinema?

Vicente – Conheci-a paralelamente. Ele estava a trabalhar com os cartões do bacalhau.

Julião – Papel de embrulhar bacalhau.

Vicente – As primeiras séries que vi eram muito fílmicas, eram sequências. Eu tinha um fascínio por este suporte, que era ao mesmo tempo pobre e rico. Pobre porque servia para embrulhar bacalhau. Rico porque tinha uma textura muito especial. Se calhar trabalhou com este material por casualidade, ou por não ter dinheiro, ou foi premeditado.

Julião – Objectivamente foi porque não tinha dinheiro para comprar outro material. Comprava maços de papel de embrulhar bacalhau, umas 200 folhas, que me saíam pelo preço de 10 folhas de papel fabriano. Por outro lado, comecei a trabalhar naquilo e a aperceber-me da riqueza do material.

 

Um dos trabalhos expostos na Tate data desse período. É uma colagem de papel de embrulhar bacalhau e papel de jornal, sobre os quais pintou. A obra chama-se Mehr Licht e é de 1985.   

Julião – Juntei o útil ao agradável. Era barato, pobre e bom.

Vicente – Os italianos diriam: se non è vero, è ben trovato. Neste caso, primeiro foi o encontro (o trovato), e depois a verdade (o material).

 

Fale-me do Vicente como interlocutor desse período, não só dos filmes, mas da obra que tinha em mãos. Isto partindo do princípio que essa discussão existia.

Julião – Conheci o Vicente numa altura em que comecei a afastar-me de Portugal. Houve uma cisão ideológica, e até afectiva, com certas pessoas com quem andava. Virei-me mais para fora, nomeadamente para Espanha. De repente, só tinha um interlocutor: o Juan (e a Cristina, um pouco, por via do Juan). Conheci o Juan antes de conhecer o Vicente, quando entrei na Documenta 7, em 1982. Foi extremamente importante encontrar o Vicente, porque passei a ter dois interlocutores. Contavam-se pelas mãos o número de pessoas com quem tinha discussões sobre arte.

 

Os interlocutores eram diferentes, estavam em diferentes lados. Um era artista, outro era curador.

Julião – O Juan era um colega de trabalho, o Vicente era uma espécie de mentor. Era o tipo que trabalhava sobre o trabalho que nós fazíamos – que é uma coisa extremamente importante. Eu não tinha isso em Portugal, nem em lado nenhum.  

 

O que é que encontrou no Vicente que permitiu essas discussões sobre arte?

Julião – Se eu fosse maricas, diria que é a alma gémea. [gargalhada] Essa identificação deriva disto: ter uma absoluta certeza do que se quer fazer, uma absoluta certeza na maneira como se faz, ser obsessivamente coerente com aquilo que se pensa, não se afastar um milímetro das suas intenções. Essa profunda seriedade intelectual interessou-me no Vicente, e mantém-se até agora. Existe nele um lado purista, incorruptível. Que chega a ser ridículo. O Vicente é das pessoas mais maniacamente incorruptíveis que conheço.

 

É ao cabo de sete anos de trabalho do Vicente na Tate que aparece uma sala com obras suas. Algumas pessoas esperariam que, pelo facto de terem uma relação de amizade, isso acontecesse antes? É disso que está a falar quando fala da incorruptibilidade do Vicente?

Julião – Não é disso que estou a falar. Nem é um assunto de que gostaria de falar. Falo de ser incorruptível a nível intelectual. Ou seja, há pessoas que são corruptíveis a nível intelectual. Por exemplo, a pessoa tem uma ideia, que está substanciada; mas depois vem você e diz-lhe duas tretas; e a cabeça dela é permeável a uma determinada mudança, mesmo que não seja uma mudança em que ela crê absolutamente. O Vicente não é assim. Não é burro, ele próprio pode mudar de opinião em relação a certas pessoas, a certas coisas; mas tem uma cabeça incorruptível.

 

Sobre o vosso interesse pelo cinema: há sete anos, numa entrevista que o Vicente me concedeu, falava do seu trabalho como sendo o de um realizador e montador de cinema. Um realizador de não-ficção? Um montador de ficções de outros?

Vicente – Um montajeur, sim.

 

Mas nunca quis para si o estatuto do artista.

Vicente – Claro que não. O Julião faz filmes de autor, eu faço filmes sobre autores. Ele tem a liberdade de fazer o filme que quer. Eu não. Faço de intermediário, de “selector” e de amplificador da voz do artista para com a audiência. Quando dizia que era um montajeur, falava de ser um não-ficcionista. O que é que estou a fazer? A ter um ponto de vista sobre a obra do artista. Um ponto de vista que acho que é interessante, relevante, para mim e para o público. Às vezes, quando organizo uma exposição estou a apresentar uma visão do artista que nem o artista reconhecia antes. Só o faço se tenho alguma coisa nova para dizer. Não repito o que já foi feito. Para isso, é melhor o silêncio.

 

O que é que quis dar a ver com a organização de peças que está na Tate?

Vicente – O Julião e eu começámos por trabalhar numa exposição em Valência, uma retrospectiva [1994, IVAM, Instituto Valenciano de Arte Moderno]. Aquela foi a minha visão, naquele momento, sobre a sua obra. Passaram cerca de quinze anos, agora faria outra. Esta sala, aliás, mostra isso; se não tivesse nada de novo para dizer, não seria o curador.

 

A sala com obras de Julião Sarmento faz parte da apresentação da colecção do museu, que se divide em quadro tópicos. Esta está na secção Poesia e Sonho.

Vicente – Temos nessa secção uma série de salas individuais. Procuramos dar a conhecer um artista com bastante profundidade. Quem vier aqui e vir os quadros do Julião, pode fazer uma ideia do que é o seu universo, de quais são os seus interesses. Não profundamente, porque é só uma sala, mas uma ideia mais ou menos. Num total de cinco obras, pode perceber a sua evolução como artista – a evolução de acordo com o curator. E dependente do contexto. Qual é o contexto? Uma parte destas obras deve pertencer à colecção do museu. E quando a Tate compra as obras, depende do que está disponível, do que tinha o artista ou as galerias [que o representam]. Se este exercício se fizesse daqui a dez anos, a escolha seria diversa, porque haveria outras coisas para escolher. Este é o ponto de partida. Completámos a escolha com obras que são ou doação do Julião, ou empréstimo para esta exposição.

 

As cinco obras cobrem um arco temporal abrangente. Procurou-se isso?

Vicente – Há obras dos anos 70, que não eram conhecidas a nível internacional. Há obras dos anos 80, que é quando começa a ser conhecido, sobretudo depois da sua participação na Documenta 7. Aparentemente é possível ver conexões entre obras aparentemente desconexas.

 

Há uma diversidade de suportes. Da fotografia à pintura.

Vicente – Sim. De Bataille [em fotografia], às pinturas feitas sobre papel de embrulhar bacalhau, às colagens, (que, para mim, são uma parte fundamental da obra do Julião), há diversos registos. Bataille [1976], por exemplo, é um pequeno ensaio fílmico e literário. Neste conjunto de obras estão também as chamadas pinturas brancas, uma dos anos 90 e outra mais recente. Quando eu vivia nos Estados Unidos havia uma estação de rádio que tinha como ideia base: give us 24 minutes, we’ll give you the world. Neste caso, nesta sala, é um pouco assim. We’ll give you the artist. O que é interessante, também, é que por esta sala passaram Francis Alÿs, Juan Muñoz, Miroslaw Balka. Nesta escolha pode ver-se toda uma continuidade. Há uma espécie de ligação espiritual.

 

Entre estes artistas e aquela sala?

Vicente – Sim. Isto é o tipo de coisa que se faz sem pensar.

Julião – E que faz sentido, também, porque todos estes artistas são amigos entre si.

Vicente – Mas a amizade não tem nada que ver com os programas dos museus por onde passei. Muitas vezes, quando conheço a obra de um artista, prefiro não o conhecer, até saber o que é que penso da obra. Não quero ser influenciado pelo carácter mais ou menos simpático da pessoa. Tanto com o Julião, como com o Juan, como com o Balka, ficámos amigos só depois de eu saber que eram artistas que queria trabalhar. Senão, teria mantido as distâncias. 

 

Isso deixa-o mais confortável?

Julião – Não, porque o que ele está a dizer, sei-o eu perfeitamente. Conheço-o há muitos anos e admiro esta sua maneira de ser. Por isso disse que não gostaria de ter esta conversa. O Vicente toma tanto cuidado em não misturar a relação pessoal com a relação profissional que, muitas vezes, as pessoas de quem está mais próximo, até conceptualmente, são aquelas que estão mais separadas dele profissionalmente. A pessoa que estava mais perto do Vicente era o Juan, que morreu. Não pense que o Vicente lhe fez exposições…

Vicente – Uma.

 

Coincidência ou não, foi uma exposição retrospectiva que só aconteceu postumamente. Juan Muñoz morreu em 2001 e a exposição na Tate foi em 2008.

Vicente – Quando chegou a hora de decidir, deixei que interviessem outros curators. Eu estava demasiado envolvido emocionalmente.

Julião – O Vicente não é caso único. Tive um grande amigo, o Fernando Calhau, que era como se fosse meu irmão, que fazia parte do conselho técnico da Sociedade Portuguesa de Belas Artes; quando eu concorria [aos apoios para as exposições], o Fernando saía do júri.

 

Como é que olhou para as suas obras segundo a organização do Vicente?

Julião – Como o Vicente já especificou, esta mostra tem limitações. Apesar desta limitação, acho que a sala está exemplar. Não devia ser eu a dizê-lo, mas digo. Reconheço-me muito no que ali está. Embora eu assine sempre o trabalho que faço – não digo: não fiz isto – há coisas das quais nos sentimos mais perto do que de outras.

 

Estão naquelas obras as suas palavras essenciais?

Julião – Está ali tudo o que é essencial. A primeira obra, Untitled (Bataille), refere um texto do Bataille; e a última obra refere uma visão do Foucault sobre um texto do Bataille [Forget Me, 2005]. Um gajo parte no Bataille e acaba no Bataille!

Vicente – E passámos pelo [James] Joyce e pelo Goethe.

 

A obra das folhas de embrulhar bacalhau chama-se Mehr Licht, que se crê que tenham sido as últimas palavras de Goethe. A série de desenho e colagem [Dublin-Trieste, 2 December 1909, de 1996, cita uma carta que Joyce escreveu para a mulher, Nora.

Julião – Sim. E passámos pelo Flaubert, com a Emma [Bovary, título de uma das obras expostas, de 1991].   

 

Chamou a atenção para o facto de duas obras, distanciadas no tempo, falarem do mesmo autor; o que levanta uma questão fundamental na sua obra: a da circularidade. As obras, em diferentes momentos, são como que átomos de um mesmo corpo, que reencontramos mais à frente.

Julião – Tenho várias obsessões. Ando sempre à volta das mesmas coisas. Três obsessões fundamentais: arte, cinema e literatura.  

Vicente – E sexo!

Julião – Essa é a mais importante de todas!

Vicente – Sexo, não: o desejo! [riso]

Julião – Num escalão piramidal, essa é a que está lá em cima. Tudo o resto são sucedâneos.

Vicente – Isto é seguramente o que o grosso da população pensa, mas não se atreve a dizer, e o artista tem a liberdade de o dizer. Tem imunidade.

Julião – Imunidade ma non troppo. Tenho alguma. Essa história do eros e do thanatos é muito velha. Todos temos essa obsessão. E os que dizem que não a têm, mentem.

Vicente – Sexo e morte: tudo está nisto.

Julião – Independentemente disso, que é óbvio e que goes without saying, tenho essas três vertentes (literatura, cinema e arte). Estes elementos juntam-se, intercalam-se, visitam-se. Há muitas imagens e ideias que voltam. São compelling.

Vicente – São motivos, como na música. Motiv. [fragmento recorrente]  

Julião – Eu próprio, às vezes, fico espantado! Estou muito interessado numa coisa e de repente lembro-me que já a trabalhei há 25 anos. Há uma espécie de banco de ideias e imagens que me revisita constantemente. De certa maneira, mas de outra maneira, sou uma espécie de Vicente: faço montagens com a essência do meu próprio trabalho.

Vicente – O Julião já foi curator

Julião – Mas não era profissional. Trabalhei na galeria de arte moderna em Belém e fazia a programação.

Vicente – Curioso: o Juan também começou por fazer curadoria de exposições.

 

Quando olha para o ponto de partida, quando diz: já fiz isto, é com surpresa, é com reconhecimento?

Julião – Às vezes não me lembrava objectivamente de ter feito aquilo, mas logo depois de o ter visto, recordo-me. Não, não me esqueço das coisas, e quando me revisito sou bastante consciente do que fiz. Gosto de me perder nas minhas próprias coisas. Tenho uma imagética muito rica e diversificada, tenho ideias constantes que se atropelam dentro da minha cabeça.

 

Voyeurismo é também um vocábulo essencial do seu universo criativo.

Julião – Mas não somos todos? Quem não é, não tem graça.

 

Como quem está sempre a espreitar pelo buraco da fechadura?

Julião – Não. Sim, se calhar.

 

A câmara é uma maneira de espreitar pelo buraco da fechadura.

Julião – Claro que sim.

Vicente – Há que dizer que ele é mirador. Se se trabalha no mundo da cultura, a percepção é fundamental. Pensamento sem percepção é filosofia, só. A maior parte dos artistas são miradores compulsivos.

Julião – Acho que são todos, na realidade. Têm que ser.

 

O olhar está sempre ligado ao sexo?

Vicente – Não só. O dominante da mirada é, às vezes, o desejo, outras vezes, a distância. A mirada pode ser, ao contrário, detachment. Podes ser um olhador de uma cena, que te interessa não forçosamente pela componente de desejo, mas por outras componentes formais.

 

Insisto: a câmara, o cinema, não são senão intermediários nesse exercício de ver. E formam ao mesmo tempo uma barreira.

Julião – Obviamente. E é óbvio também que há um lado muito voyeurístico na relação com o cinema. O cinema é visto dentro de uma sala escura, onde ninguém nos está a ver e só nós estamos a ver. O olhar é unilateral. Podem estar 400 pessoas na sala e sentir-se sozinho.

 

Há ainda o rectângulo onde tudo é projectado. Como numa das peças em exibição, Bataille, onde há uma sucessão de fotografias dispostas como se fossem fotogramas de um filme. São pequenos rectângulos onde é possível ver, seguir a sequência.

Vicente – É a mais fílmica de todas as peças.

Julião – Formalmente, sim, é a mais fílmica.

 

Outro dos conceitos essenciais na sua obra é o da insatisfação. É isso que faz que volte às mesmas ideias e imagens? Estão por esgotar, por saciar.

Julião – Não há muito para dizer acerca disso. Acho que posso generalizar e dizer que todos os artistas são insatisfeitos. Nunca nenhum artista fica todo contente com aquilo que faz. 

Vicente – Se está muito contente, é mau sinal…

Julião – É a insatisfação que permite avançar.

Vicente – É o motor da própria obra. Se não, o risco é o da obra ser vazia, decorativa. Sem anima [alma].

 

Quando olha para a obra de um artista, para estas especificamente, consegue perceber o que é que ficou por dizer?

Vicente – Consigo perceber que há nelas insatisfação. O que ficou por dizer: nem o artista sabe. Para mim, é interessante essa tensão de estar quase a chegar, e de nunca lá chegar. Essa tensão é o que cria anima. Uma solução que é encontrada e repetida ad nauseam, não me interessa. 

 

Está presente na obra de Julião Sarmento a noção de ameaça. Por exemplo, em Mehr Licht, ou num desenho em que o dedo parece penetrar a mão. Há uma ameaça a pender sobre as coisas, mas ficamos sem saber se ela é perpetrada ou não.

Vicente – A ameaça é o que traduz o momento da tensão. O Julião utiliza essa expressão, outros artistas utilizam outras. É necessária para que a obra tenha conteúdo. Imagino que também isso venha da literatura e dos filmes. 

Julião – No Mehr Licht, há uma mulher e um homem e ele tem uma mão no pescoço dela. Essa tensão existe por causa da ambiguidade que há na peça. Não se percebem, objectivamente, quais são as intenções daquele personagem. Não percebemos se é uma atitude violenta, se é uma atitude terna.

Vicente – Ou se é teatral. Para mim é uma cena mais teatral do que real. It’s only art. [riso] It’s only art, but I like it!

Julião – Interessa-me sempre, até a nível semântico, jogar com essa ambiguidade, com isso de as coisas nunca serem claras. Costumo dizer que não me interessam nada as respostas, interessam-me as perguntas. Interessa-me tudo o que provoca a tensão da interrogação. Mesmo em relação a outros artistas, interessa-me chegar a uma exposição e ficar cheio de dúvidas.

Gosto de me sentir na corda bamba. Também enquanto espectador.

 

Se, em pleno processo, tiver dúvidas que o paralisam, se não conseguir deslindá-las, uma coisa dita pelo Vicente pode ajudar à sua solução?

Julião – Já me aconteceu. Aí é que se têm as afinidades electivas. Por isso é que as pessoas conseguem ter diálogo com umas e não com outras.

 

Vamos pôr uma situação prática para que os leitores consigam perceber como tudo se processa, como é que o entendimento se faz. Entendimento ou desentendimento…

Vicente – São conversas em espiral. Nunca são directas. Ele sabe muito bem o que tem de fazer. Eu não faço, mas há muitos curators que fazem…

Julião – “Ah, isto tem de ser azul…”

Vicente – Não sou o tipo de curator que dá os axiomas aos artistas. Sou o observador. Falo sempre ao redor de. Mas sempre sem perder de vista a obra. Falo de alusões e de sensações. Também porque, afinal, o artista é quem está a correr o risco. E porque, no momento em que a obra está a ser feita, o outro não percebe bem o que ali está. Não posso dizer nunca: este é o caminho por onde deves ir. Usemos como imagem o jogador de ténis; o artista faz um treino comigo, mas não sou um tenista.

 

Não é um igual – é isso que está a dizer?

Vicente – Exactamente.

Julião – O Vicente é dos curators mais intuitivos que conheço. Não estou dentro da cabeça dele, mas pelas conversas que temos julgo poder dizer isto: há um momento em que não lhe interessa demasiado a análise, não lhe interessa intelectualizar demasiado a obra. É extremamente intuitivo na maneira como olha. Mesmo quando olha para a obra de um artista que não conhece, porque intuitivamente percebe o que se passa. Não vai à procura, não vai ler 500 mil livros, arranjar uma fundamentação teórica. Essa intuição do olhar é uma das coisas que me aproximam mais dele.

 

Como é que aprendeu a confiar na sua intuição? É preciso um longo caminho para chegar aí. O normal seria procurar a fundamentação teórica.

Vicente – É uma pergunta que nunca me fiz.

Julião – Acho que há pessoas que nascem com isso. Se não se nasce com isso, por muito que se estude, não se chega lá.

Vicente – Sempre tive a habilidade de fazer relações, de meter umas coisas perto de outras. Olhar pode ser uma base. Depois, é preciso fazer o treino. Respondendo à sua pergunta, acho que aprendi quando estava em Nova Iorque, a estudar. Não fazia outra coisa que não olhar. Claro que via muitas exposições, frequentava muitas galerias e museus; mas quando passeava nas ruas, também era uma máquina de olhar. Se calhar foi isso: olhar para tudo. Em Nova Iorque tive a sensação de que era apenas um corpo que servia dois olhos. Pode ser muito perigoso. É o primeiro passo para a loucura. [riso]

 

Quando regressou à pintura, nos anos 80, disse que estava cansado da experimentação de suportes que fez na década de 70; suportes mais conceptuais, mais máquina. Precisou de voltar ao prazer sensual do pintar.

Julião – Mais do que tudo, o que me entediou, (a mim e a outros, não fui o único artista nessa aventura), foi o facto de as obras não me surpreenderem. Aconteceu no final dos anos 70. Antes de as fazer, já sabia o que ia fazer, e como ia resultar.

Vicente – O mistério é necessário.

Julião – É preciso um passo no escuro.

 

Essas mudanças, fazem-se por ciclos? Os cortes, delimitam períodos? É fácil perceber que há fases em que faz mais instalação, outras mais vídeo, outras mais pintura.

Julião – Com a figura, sempre estive obcecado.

Vicente – Mas fragmentada, sempre.

Julião – Claro. Senão, seria um pintor figurativo. No meu trabalho aparecem memórias da figura, resquícios da figura. Mas acho que não podemos confundir a tradução daquilo que queremos fazer – a técnica – com a singularidade do trabalho. Ou seja, há muito a mania de a pessoa dizer assim: “Tu agora fazer pintura, tu agora fazes fotografia, tu agora fazes cinema”. Não. Faço sempre a mesma coisa. Utilizo é suportes diferentes. Ou porque me dão mais jeito, ou porque fazem mais sentido. Em termos práticos, neste momento estou a trabalhar muito em cinema. Porque calha. Porque me dão dinheiro para isso. Se não me dessem, não estava. Funciono dessa maneira um bocado azarada.

 

Azarada?

Julião – No sentido francês de hasard, acaso. É uma característica que tenho (não é defeito nem feitio): não sou perdulário no meu trabalho. Se aquilo de que preciso para fazer este risco é de um pincel que me custa um euro, para que é que vou comprar um pincel que custa 200? Não me vejo capaz de andar a correr e a pedir subsídios para fazer um filme que custa um milhão de dólares. Se calhar era capaz, mas não me vejo. Como não me vejo, não vou fazer um filme que custa um milhão de dólares. Faço um filme que custa 50 mil. Adapto muito as coisas que quero fazer às minhas possibilidades. Vivo num mundo prático, tenho que sobreviver num mundo prático.

 

E há um mundo (paralelo) que vai construindo, mercê dessas possibilidades.

Julião – Claro. Neste momento trabalho com tudo.   

 

Quando quis ser artista, era claro para si que não queria ser “o pintor”?

Julião – Não.

Vicente – Como se diria em Portugal: Pintor Sarmento!

Julião – Imagino que em Espanha tenha acontecido o mesmo. Desde muito novinho que queria ser artista. Gostava de ir aos museus, gostava de ver coisas. Quem é que eram os artistas que em Portugal conhecíamos? A mais geração mais nova esquece-se (porque não viveu este período) que os artistas de quem ouvíamos falar eram o Salvador Dalì, o Picasso, o Matisse. Não tínhamos outros referentes. Quando comecei, queria ser como o Matisse.

 

As coisas chegavam como? Como é que o mundo se abria? É verdade que ia ver revistas para a embaixada americana em Lisboa?

Julião – Tal e qual. Portugal era uma ditadura fascista, não tão brutal quanto em Espanha, mas uma ditadura, em que nos era cerceada a informação, de carácter cultural, sexual, religioso... O único sítio onde um gajo podia ver, e por acaso, porque não ia lá a PIDE, revistas de arte, era na embaixada americana.

 

Sentiu o mesmo em Espanha?

Vicente – Sim. Franco morreu quando eu tinha 17 anos. Mas a informação cultural não começou imediatamente a chegar. Tive a boa sorte de, no departamento de História de Arte [da universidade], por erro, terem subscrito por dois anos uma assinatura da Art Forum! Apanhei a folha de subscrição e subscrevi-me pessoalmente. O meu inglês ainda não era muito bom, mas fi-lo. Uma vez ouvi um professor dizer a outro: “Está aqui aquele maluco que só estuda arte contemporânea”! [gargalhada] Maluco. Para quê estudar uma coisa se não se vai fazer exame? Era absurdo. Mas para mim, o importante era aprender, era saber mais. Eu era curioso. A Art Forum e o estudo fizeram-me perceber que havia um tipo de arte que não chegava a Espanha, de que nem se falava. Essa foi a minha razão para fugir para os Estados Unidos. Queria fazer parte daquele mundo, queria estar lá. Comecei a fazer investigação sobre universidades americanas, a pedir informação, bolsas, etc, e tive a fortuna de me terem aceite. Isso é que me salvou.

 

A vossa relação era mais próxima, ou constante, quando o Vicente estava em Serralves?

Julião – Não acho.

Vicente – Era o mesmo que em Valência. No por mucho madrugar, amanece más temprano. Conhece isto? Não é por acordar mais cedo que o sol sai antes.

Julião – Isso não existe em português. Ele não acredita no ditado “Longe da vista, longe do coração”. Provavelmente, eu via mais, fisicamente, o Vicente quando ele estava no Porto – porque é mais fácil ir ao Porto. Mas acabou por ser o mesmo: durante estes anos, vim muito a Londres, víamo-nos em Espanha, aqui e ali. 

 

O que é que estes sete anos em Londres lhe fizeram?

Vicente – Agora é o imediato, e os efeitos vêem-se passado um tempo. A nível imediato posso dizer o seguinte: há mais liberdade e há menos poder. Quando se está numa instituição, se temos mais poder para fazer coisas, também temos mais impedimentos. Por causa da natureza da própria instituição. É o mesmo que o barco à vela e o porta-aviões. Num porta-aviões podemos ir a outros lugares, mas se estamos parados, não sentimos o mar. O que é que aprendi? Aprendi o que é estar num porta-aviões. Pero, agora é tempo de saber se sou um marinheiro de barco à vela se sou um marinheiro de porta-aviões. Acho que sou mais de barco à vela. Mas aqui, pude fazer coisas que não poderia fazer de outro modo. Tudo isto são etapas, são capítulos de um filme. E quando os começo, sei quando vou acabar.

 

Decide-o antecipadamente? Quando a notícia da sua saída da Tate foi tornada pública, disse que não gosta de ficar mais do que sete anos no mesmo sítio.

Vicente – Sim, decido antecipadamente. Sete anos é o meu máximo, se tudo correr bem. Senão, é menos. Conheço os meus ciclos.  

 

Se o ciclo é de sete anos, há um filme que fala disso: Seven Years Itch, de Billy Wilder. Após os quais, há uma crise no casamento…

Vicente – Mas o próximo não será de sete anos. Já percebi que sete não são necessários; em cinco, posso dizer tudo o que tenho a dizer. É a minha natureza. Há pessoas que precisam de trinta. Eu posso manter a tensão e dar o melhor de mim sempre que consigo ver a meta num determinado ponto. Talvez agora, com outra maturidade, quatro ou cinco anos seja suficiente.

Julião – Vou efabular: se tu fosses convidado para construir um museu de raiz num lado qualquer, isso demora mais do que cinco anos.

Vicente – Não consigo! Já fiz isso duas vezes! [Em Valência, o IVAM, e no Porto, Museu de Serralves]

Julião – Imagina que era uma coisa que te interessava… Em Palmera!

 

Em Palmera, terra natal de Vicente, o que faz é plantar laranjas… (O pai de Vicente era fruticultor.)

Vicente – Palmera é uma base da qual parto para o mundo. Não estou a voltar a Espanha. Não volto a lugar nenhum. Não sou de voltar. Nunca me fui embora de lá. As minhas raízes estão lá. É certo que vou lá cada dois meses. Nunca tive essa sensação de voltar a um lugar. Ocorre-me a imagem do Robert Mitchum num filme que Nicholas Ray nunca acabou e que se chama You Can’t Go Home Again. O Robert Mitchum é um cowboy, chega ao lugar onde nasceu, a uma cabana de madeira, e debaixo da cama está uma pistola de brincar e uns comics [revistas de banda desenhada]. Home é a tua vida hoje. Agora quero ter uma base minha. Se volto a algum lugar, é à liberdade.

 

Liberdade?

Vicente – Liberdade de estar sozinho. Liberdade de não ter uma obrigação institucional. Quando é que tive essa liberdade? Quando vivia em Nova Iorque.

 

Não tem nenhuma inquietação em relação ao futuro?

Vicente – Não! Nenhuma.

 

Nem em relação ao dinheiro?

Vicente – Nada.

Julião – Não há-de morrer à fome… [gargalhada dos dois] Aliás, já tem víveres lá em casa…

Vicente – Não morro à fome porque tenho uma casa e tenho terras. Tenho hortas, tenho um grande celeiro. Treinei-me durante anos para este momento. E treinei-me de modo a não ter inquietações em relação ao futuro. Se tivesse inquietações em relação ao futuro, não seria livre. Tive de ser capaz de interrogar-me livremente sobre o que queria fazer. Mas vou fazer muitas coisas. Nunca estou sem fazer nada.

 

Alguma vez sentiu uma coisa parecida com isto que o Vicente descreve?

Vicente – Claro que não!, os artistas são livres. O que vou fazer é sentir a mesma liberdade, mas sem ser artista.

Julião – Devo dizer que houve uma altura em que não fui livre. Os dez anos em que trabalhei no Ministério da Cultura. Tinha de ter um trabalho alimentar, que era esse. Até que em Junho de 1985 lancei o grito do Ipiranga, mandei tudo à fava, e agora sou completamente livre – tanto quanto um gajo pode ser livre.

Vicente – Se os artistas não são livres, é porque não o querem ser.

Julião – A prática artística é o supremo exercício da liberdade.

Vicente – Não se pode fazer no horário de trabalho… Não é das tantas às tantas.

 

Para terminar: é verdade que uma vez viajaram juntos e levaram uma garrafa de vinho e um queijo para dentro do avião? Era com certeza no tempo em que se podiam levar líquidos nos aviões…

Julião – Uma vez aconteceu comigo, sim. Mas é uma prática comum do Vicente.

Vicente – Beat the system. É a minha máxima. You can go around and so something else. Em 25 anos viajei tantíssimo… Gosto de comer bem e não gosto da comida dos aviões. Cozinho, levo a comida num tupperware e levo o meu vinho. Até que foi proibido.

Julião – Mesmo assim, arranjaste uns esquemas…

Vicente – Mas não posso dizer como! Tenho um sistema legal para viajar e levar o meu vinho e a minha comida. Eu como e bebo porque me distrai. Esqueço-me que estou no avião, esqueço o medo. Tenho muitas ideias. O cérebro toma conta de tudo e esqueço-me do físico. Faz uma diferença imensa. Tudo o que faço na vida é assim: como posso dar um twist de modo a viver com mais qualidade ou trazer mais qualidade àquilo que faço? É uma questão de pensar, pensar, pensar.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011

 

    

    

 

Catarina Furtado e Helena Furtado

10.05.22

A primeira coisa que surpreende é a Catarina Furtado ser sempre a Catarina Furtado. Com a mãe, numa tarde de sol, a recordar o tempo em que foi filha, mantém a fisionomia, a cadência do discurso, o riso que conhecemos da televisão. A gestualidade também é a mesma. A autenticidade é talvez uma maneira de compreender a razão por que, há mais de 20 anos, é uma das apresentadoras mais populares no país. Mas há um mundo anterior ao sorriso, que marca a atitude, e que está na relação entre mãe e filha, que importa identificar. Sem a Crinabel não seria possível compreender a Corações com Coroa... Sem a Helena não se compreenderia a Catarina.

Os bastidores da entrevista: o pedido é feito ao assessor de Catarina Furtado. Hora e local combinados em função da disponibilidade da apresentadora, que anda pelo país a gravar um programa para a RTP. Mãe e filha chegam em separado. São calorosas, cúmplices, entregam-se à conversa. Catarina traz uma blusa cor de mostarda de Nuno Baltazar, o criador de moda que a veste há anos, e que põe para as fotografias. Está maquilhada, penteada, está a Catarina Furtado. Sabe evidentemente como posar, domina as questões da imagens. Evidentemente. O trabalho dela passa por aqui. Tem 42 anos e é desde os 19 um sorriso que todos os portugueses conhecem.

Helena acabou de fazer 70. É fácil perceber como foi uma mulher bonita, o olhar profundo, a herança goesa. Mais do que tudo, fala embevecida da filha, das filhas, do marido. É uma mulher interessante, com um percurso social e familiar insólito. De certa maneira, parece encarnar a alegria que acompanha a filha.

Na entrevista concordaram, discordaram, interpelaram-se, surpreenderam-se.

Mais do que de televisão, falou-se da Catarina embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, da vocação solidária que sempre teve, do ambiente em que nasceu e que permite identificar os pontos nucleares do percurso, da estrutura. O que Vejo e Não Esqueço, o livro que convoca a experiência de Catarina em acções de solidariedade e voluntariado, a ser lançado amanhã, não estava sobre a mesa. Helena ainda não o tinha visto.

 

Ocorre-lhe alguma carta que a Catarina tenha escrito, daquelas cartas que as crianças escrevem à mãe?

Helena Furtado – Ocorre. Aquela que escreveste de Bruxelas.

Catarina Furtado – Dessa falo no livro.

Helena – Ainda não li o livro, não sei o que diz... Tenho a carta muito presente. Senti um orgulho por, com aquela idade, escrever uma carta com aquelas referências. Eu tinha um irmão que tinha umas possibilidades económicas muito maiores do que as nossas, e que levou a Catarina a passar férias com ele.

Catarina – Eu tinha 14 ou 15 anos.

Helena – E tudo era muito fácil. Comprava-se tudo. Os condomínios eram os melhores, as melhores habitações.

Catarina – Era mais das compras nas lojas que eu falava.

Helena – Falaste de tudo. O sítio onde estavam, que era maravilhoso. E depois dizias: “Agradeço a forma como me educaram, porque é uma maneira melhor.”

Catarina – “Porque assim não se dá valor ao que se compra”. Helena – Mesmo que se possa, a vida não deve ser assim tão fácil, dar às crianças tudo o que elas querem.

 

Lembra-se bem desta carta, tanto que a incluiu no livro.

Catarina – Não fui eu que me lembrei de a pôr no livro. Foi o meu pai.

Helena – O pai sentiu-me um bocado vaidoso. Sem ter estado a martelar, a Catarina e a Marta absorveram princípios que ele achava que eram os correctos. E eu também.

Catarina – Não tinha consciência que a tinha escrito. Fui recuperá-la no baú das coisas do meu pai. O meu pai guarda tudo.

Helena – O pai deu-lhes um dossier, a cada uma, no dia do pai, com tudo, tudo.

Catarina – Desde o primeiro desenho.

Helena – Aconselho os pais a fazerem isso, a guardarem tudo. Parece que não é nada, mas é muito importante para ver a evolução.

 

Quando olha para essas cartas e desenhos, quando olha para os seus anos de formação, o que é que aparece mais flagrantemente?

Catarina – O meu pai guardou todas as folhas da escola primária, onde aparecem os comentários sobre a aluna. A timidez, o ser atenta aos outros. No livro falo de um colega por quem a professora tinha um carinho especial, que vinha de um meio difícil. Ele desenhava super bem. (A professora também era especial. Assim como a minha mãe, como professora foi sempre especial.) Essa professora tinha a capacidade de olhar para ele e de lhe dar aquilo de que ele precisava, enquadrá-lo. Nunca mais o vi. E não é que o encontro na semana passada? “Nelson, passaram 30 e tal anos”. Ele disse: “Sabes o meu nome! Foste tão importante, tu e a professora.”

 

Vamos ao princípio, ao momento em que conheceu o pai da Catarina. A história começa aí.

Helena – Conheci o pai da Catarina só pela voz. Tinha tido um acidente a cavalo, estava numa clínica e ouvi uma voz. Viro-me para o José Nuno Martins e digo: “De quem é esta voz tão gira que apareceu agora?”. “É um puto que entrou para a rádio este ano. Vais ver que vai ser alguém”.

Catarina – Vai ser alguém é uma expressão tão tola. A pessoa já é alguém.

Helena – Alguém na rádio.

 

Conhecia o José Nuno Martins e o meio da rádio porquê?

Helena – Porque andei na Rádio Universidade e o Zé Nuno também.

Catarina – A minha mãe, vinda da família tradicional, cheia de recursos, brasonada, saiu uma grande rebelde. Mas porque é que a mãe quis ir para a rádio?

Helena – Porque era giro.

 

Como é que era a sua família?

Helena – Era muito conservadora. Super católicos.

Catarina – Havia aulas de piano e Francês em casa.

Helena – A minha mãe foi uma das primeiras pessoas a tirar Belas Artes. E o meu pai também. Era suposto terem uma abertura. Os filhos podiam fazer a vida que quisessem, mas as filhas, não. Iam levar-nos à escola. Iam buscar-nos à escola.

Catarina – Esperavam que a mãe fizesse o quê, na vida?

Helena – Esperavam que tirasse o curso de Pintura. E quando chegasse a idade, casasse. Éramos sete irmãos, seis foram para Pintura e Escultura. Só o mais velho é que foi para Medicina.

 

A riqueza da família...

Helena – Era dos meus avôs, quer de uma parte quer da outra.

Catarina – A parte da minha avó vem de Goa. A parte do meu avô vem do norte.

 

Como é que foi a sua infância?

Helena – Foi muito feliz, cortada pela censura do meu pai. Vou mostrar-lhe esta fotografia...

Catarina – A minha mãe é esta. Esta é a piscina em casa dos meus avós. Uma beleza de Hollywood.

Helena – Vivíamos em Lisboa num prédio que o meu avô tinha comprado. Um andar para cada filho. Um jardim enorme por cada andar.

 

Porque é que a Helena ficou tão exterior a esse ambiente?

Helena – O pai [Joaquim Furtado] tem a mania que foi pela presença dele, mas não. Já antes de o conhecer andei em coisas irreverentes. Na Tarantela (um café) convivi com pessoas da Rádio Universidade, quando ainda frequentava a António Arroio. O Quim muito chateado porque tudo girava à minha volta.

 

Era especialmente bonita. Quando se vêem as fotografias desse tempo, é como se se estivesse a olhar para a Catarina.

Catarina – É mais a minha irmã.

Helena – Eu tinha noivo, para casar. Olhei para o Quim: “É giro. Pena ser tão novo.” Ele é três anos mais novo que eu.

Catarina – Ele está mais bonito agora do que antes.

 

O que é que foi tão atraente no Joaquim quando o conheceu? Além de ser bonito e novo.

Helena – Era a forma de ele ser.

 

Imagino que se distinguisse do seu noivo, conservador, com um perfil adequado à expectativa do seu pai.

Helena – A minha mãe já tinha ido escolher as alcatifas ao Rossio para a casa que íamos habitar [risos]. Era um chalé no Campo Grande.

Catarina – Depois foram para umas águas-furtadas de uma assoalhada, quase. Estou a brincar, mas o contraste...

Helena – Não me arrependo de nada.

 

O que é que sabe da história de amor dos seus pais?

Catarina – Sei mais pela minha mãe do que pelo meu pai. O meu pai não conta muito. O meu pai vem de um meio mais humilde. Isso deu-me os ingredientes complementares. Se tivesse só [o estilo de vida] de uma família tradicional como a da minha mãe, apesar de a minha mãe ser rebelde, tolerante... Há questões muito evidentes na sua educação que se mantêm.

 

Por exemplo.

Catarina – A nível religioso. A minha mãe só viveu dificuldades já casada com o meu pai – o que demonstra uma coragem muito grande. É uma das coisas que mais admiro na minha mãe. Isto são provas muito evidentes de que o amor salva. O amor reorganiza, abana e acrescenta. A minha mãe ficou acrescentada e o meu pai ficou acrescentado. Não só pelo que viveram, mas pelas vidas que trouxeram um ao outro. Têm raízes completamente diferentes. O meu pai tem muito mais medo de arriscar do que a minha mãe. E tem a ver com isso.

 

Há uma confiança de base em relação à vida quando se nasce bem – é isso?

Helena – Tenho uma posição muito positiva. Acho sempre que vamos ultrapassar [as dificuldades].

Catarina – Tenho a certeza de que este meu olhar atento aos outros tem a ver com estes dois pólos antagónicos.

 

A Catarina e a Marta cresceram sempre em contacto com esses dois mundos.

Catarina – Sempre.

 

De um modo geral, as pessoas têm pudor em falar de dinheiro e de como isso marca as suas expectativas e percursos. Em Portugal, o preconceito de classe era vincado quando casaram. Nos nossos dias, apesar dos passos dados, as pessoas continuam, de uma maneira geral, a casar com os do seu meio.

Catarina – E quem não o faz tem de atravessar [um deserto].

 

O pai do Joaquim era bombeiro.

Catarina – Mas o meu avô até sabia ler e escrever. A minha avó, não. Fruto das circunstâncias do tempo, da desigualdade com base no género, nunca aprendeu. E é das pessoas mais inteligentes que conheci até hoje. Com as características que tinha, se lhe tivessem sido dadas oportunidades, podia ter sido o quisesse. Isto é uma das coisas que me fazem mais confusão.

 

Imagino que a Helena tenha tido que lutar contra esse preconceito generalizado. Como é que foi?

Helena – No primeiros anos foi difícil. Não tanto para mim. Julgo que até mais para o meu marido.

Catarina – Comigo nunca falou de nada.

Helena – Falava. Contigo não, mas falava. Havia aquelas festas na casa da minha mãe...

Catarina – O meu pai também nunca se calava. Se se falava de Deus, o meu pai punha imensas questões. Se se falava de política, o meu pai punha imensas questões.

Helena – Eu dava-lhe muitos pontapés debaixo da mesa [risos]. Depois foi o maior amigo da minha mãe. Engraçado. A minha mãe adorava-o. A minha mãe passou meses em minha casa e ele sempre muito preocupado com o bem-estar dela.

 

Por mais irreverente que fosse, para olhar e se apaixonar desta maneira, o Joaquim tinha que ter qualquer coisa especial. Que é que era? Há pouco foi sumária na descrição.

Helena – Coisas que as pessoas não sabem muito bem dizer. Tinha um olhar. Era sedutor. E era uma pessoa com uns princípios claros e definidos que me encantaram.

Catarina – Não foi o sentido de humor?

Helena – Muito, também. E a poesia. Ele nunca publicou, mas tem cadernos de poesia.

Catarina – Agora tenho que ser eu a roubar aquilo lá em casa. Esta carta que o pai lhe escreveu ontem [pelos 70 anos de Helena], foi poesia?

Helena – Foi. Vamos fazer 44 anos de casados.

Catarina – Isso é maravilhoso. Está a ver? Tem que se portar melhor, a mãe porta-se muito mal.

 

Quando é que a Catarina começou com isto de a repreender?

Catarina – Sou a conservadora lá de casa.

Helena – É desde sempre. Não me deixava fumar. Tomava sempre a parte do pai.

Catarina – Não é verdade, não tomo sempre a parte do pai.

 

A Catarina é muito maternal, o que se exprime de diferentes maneiras, também nesta do tomar conta. Sendo mais disciplinadora ou mais terna.

Catarina – A minha mãe diz que sou muito autoritária.

Helena – Pode ser, um bocadinho [risos]. Mas tenho a noção completíssima que é por julgar que é o meu bem.

Catarina – Por julgar não: por ter a certeza. [risos]

Helena – Temos assim alguns arrufos. Sei que o faz pelo meu bem-estar, mas às tantas penso: “Tenho 70 anos!”.

Catarina – Há diferenças em nós. E há muitas coisas que nos unem. Até escolhas. O exemplo que a minha mãe teve com o meu pai é o exemplo que tenho com o meu marido.

 

No fundo, é um replicar da história de amor com que cresceu.

Catarina – Sim, e inconscientemente. Temos em comum a tolerância e o combate à discriminação. Se há coisa que os quatro temos é uma alergia à injustiça.

Helena – Desde criança, com a minha mãe, desagradava-me a maneira como ela tratava as empregadas. “Criadas”, na altura. Despedia-as por nada, não se importando com a relação que tínhamos com elas. Eram mais que mães para mim.

Catarina – O meu pai é um humanista por natureza. E um feminista. E o João [Reis, marido de Catarina] também.

A coisa que mais nos diferencia, e que justifica esta tendência para o autoritarismo (às vezes sou até manipuladora) é a minha mãe não ter força de vontade nenhuma.

 

Para quê?

Helena – Para as dietas [risos].

Catarina – Não é só para as dietas. É para tomar conta de si. São as coisas que lhe fazem mal à saúde – e a minha mãe está-se nas tintas. Os comprimidos não são tomados até ao fim. É preciso fazer exercício e não faz.

 

Porque é que desistiu de tomar conta de si?

Helena – Não desisti. Até fiz duas operações. Tenho dor de cabeça diária. Não há dia nenhum em que não acorde cheia de dores de cabeça. Mas não desisti. De vez em quando tenho umas fases... Apetece-me um doce, pronto. Gosto de comer bem.

Catarina – Todas as pessoas da minha família materna são pessoas grandes. Têm o culto da mesa.

Helena – Está no ADN, também.

Catarina – No meu felizmente, não está.

Helena – É sorte.

 

A Helena começou a engordar com que idade? Tinha a idade da Catarina?

Helena – Não, muito depois.

Catarina – Não foi nada, mãe. Foi antes.

Helena – Amor, a tua idade foi a minha melhor idade. Até aos 50 foi a minha melhor idade.

Catarina – Ontem encontrei uma professora minha do ballet. Foi uma emoção. De repente vejo a minha filha, com nove anos, no Conservatório onde andei toda a vida, com a mesma professora. “Catarina, estás na melhor idade de todas. A partir dos 50 tudo cai.”

Helena – Ainda ontem o pai disse isso. Dos 40 aos 50, sentia-me bem, bonita. Isto é um disparate! [riso]

 

Há uma fotografia do Facebook da Helena e da Catarina em que se percebe como era. Bonita e elegante.

Helena – Nessa fotografia, a Catarina tem seis. Eu tinha 32 anos. A marta nasceu em 1977.

Catarina – Nessa fotografia vê-se bem que o João Maria [filho] sou eu.

Helena – Também dizem que é a Beatriz [filha].

 

Começou a desenvolver esse sentido maternal muito cedo. Quando é que quis ter filhos?

Catarina – Sempre achei que ia ter filhos.

Helena – Todos os meus sobrinhos têm uma adoração por ela, todos.

Catarina – E eu tenho uma coisa muito especial por todos eles. Alguns até são mais velhos do que eu. Os filhos: não sei, desde sempre. Se estivermos a analisar, deep, deep, deep, esta vocação foi muito potenciada pelo facto de a minha mãe ter enxaquecas desde sempre. Não me lembro da minha mãe sem enxaquecas. A minha mãe passava muito tempo na cama e nós não podíamos fazer barulho. A partir do momento em que a minha irmã nasce, comecei a tomar conta dela. Mas aquilo para mim era natural. Não foi uma coisa que os meus pais me tivessem dito para fazer.

Helena – A Marta só vestia, só calçava o que a Catarina lhe dizia. “Tu não sabes, a Catarina é que sabe.”

Catarina – Sempre quis ter imensos filhos. Mas nunca pensei na questão do casamento.

Helena – O casamento pela igreja foi mais por mim, tenho a impressão. Por mim e pelos avós.

Catarina – Acho que não. Se tivesse que repetir, repetia tudo. Tirava os paparazzi e a avioneta a sobrevoar!

 

Na sua carreira, nos vários programas que foi fazendo, assumiu muitas vezes a atitude daquela que toma conta. Toma conta dos candidatos que vão prestar provas.

Catarina – Sim. Vou tendo afilhados, pessoas que tenho debaixo da minha asa. Os miúdos da culinária, os da dança..., tomo conta. Mesmo ao longe.

Helena – Vai sendo madrinha.

 

E de quem é afilhada? Quem são as pessoas a quem se entrega para que tomem conta de si?

Catarina – Não tenho muito jeito para que tomem conta de mim, tenho mais jeito para tomar conta. Pessoas de quem gosto e que tomem conta, mesmo que eu não precise e que faça a pessoa acreditar que está a tomar conta? O Diogo Infante. Era um sonho que tinha desde sempre, ter um irmão mais velho. Adoptei-o.

 

Quando baixa a guarda, quem é que toma conta de si? A sua mãe, o seu pai?

Helena – Eu, um bocadinho, em certos aspectos.

Catarina – Acho que são os meus filhos – sem perceberem que são eles. Quando estou em momentos mais frágeis, ou de maior instabilidade, são eles. Não há nada mais arrebatador do que o amor que sinto pelos meus filhos. Ali está tudo certo.

Normalmente, não preciso muito de desabafar, falar. Pergunto imenso, mas há um momento em que decido, mesmo contra todas os conselhos que me dão.

 

Os filhos é que são a passagem da menina para a mulher?

Catarina – [pequena pausa] Não.

Helena – Eu acho que sim.

Catarina – Acha?

Helena – O teu comportamento mudou. Passou tudo a ser em função dos filhos, tudo.

Catarina – Há 15 anos que sou embaixadora das Nações Unidas. As minhas duas gravidezes coincidiram com algumas viagens. Na primeira viagem que fiz [para a gravação do programa] “Príncipes do Nada” ainda não tinha feito os três meses de gravidez. Fui sem ninguém saber, a não ser o meu médico e o João. Muito francamente, penso que são as vivências a que tenho assistido ao longo destes anos que me fizeram, em tudo, mulher. A entender as mulheres. Mulher a entender-me a mim. Mulher a defender as mulheres. Muito mais do que ser mãe.

 

O que é que a Helena nota de diferente no comportamento da sua filha?

Catarina – Eu sei. Passei a arriscar menos.

Helena – Era muito aventureira e deixou de ser tanto.

Catarina – Por eles. Por pensar que se me acontecer alguma coisa… Nas viagens, na forma de viver. Apesar de não ser muito radical, era destemida.

 

Isso surpreende. Tem a imagem da menina bem comportada. Onde é que está esse lado destemido, aventureiro?

Catarina – Toda a gente diz isso. Ser bem comportada é uma coisa que foi mudando. Tinha muito mais pudor em dizer o que pensava. Sempre numa perspectiva de que havia alguém que podia não concordar e ficar ferido. Hoje não me incomoda nada dizer o que penso.

Helena – Mudaste muito desde o primeiro “Príncipes do Nada”. Ela vinha completamente transtornada.

 

De repente tinha encontrado a vida em cru, depois de anos vividos sob o estrelato. Contraste absoluto.

Catarina – Tinha consciência desse mundo. Apesar de viver no estrelato – cá para fora –, dentro de minha casa sempre se falou de desigualdade. O meu pai, jornalista, sempre trouxe o mundo real. O impacto resulta de ver com os meus olhos. O verdadeiro impacto resulta de estar tempo com as pessoas, e não passar por elas [de raspão]. E sentir que todos nós, em cada uma das nossas funções, podemos fazer muito mais do que fazemos. Isso deixou-me, nos primeiros tempos, quase paralisada.

 

Com a sensação de que tinha estado a desperdiçar tempo para trás?

Catarina – Sim. E a pensar que tem de haver uma fórmula de isto ficar mais equilibrado. Foi tudo muito inquietante. O maior impacto de todos – isso sim, mudou-me radicalmente – foi ver mortes evitáveis. Fazia o paralelismo constantemente.

Helena – Como ela tinha tido as crianças e os partos foram tão assistidos...

Catarina – Aí dá uma revolta. E todas as vezes que vou, volto muito revoltada.

Helena – Ela ficou com uma criança nas mãos [cuja] mãe morreu. Também julgo que a tua sensibilidade partiu um bocado da Crinabel.

 

Ainda não falámos da Crinabel, uma escola de ensino especial, onde a Helena trabalhou anos e de que foi fundadora.

Helena – Eu era professora do ensino oficial, mas escolhi ir dar aulas para a Crinabel. As minhas filhas foram para lá muito cedo. A Marta tinha três meses.

 

Dava aulas de Desenho?

Helena – De EVT, Educação Visual e Tecnológica. Depois criei um atelier de Artes Plásticas. Fizeram coisas maravilhosas, os alunos. Nos meses de férias, em que era preciso ir para a praia, e como tinha o problema das enxaquecas, a Catarina começou a ajudar-me a fazer o meu papel. Tinha para aí uns nove anos. “A mãe vai, fica à sombra”. E ela entretinha os miúdos, que gostavam muito mais de brincar com ela do que comigo, evidente. Ela conseguia jogar, brincar, levá-los à água. Havia lá um miúdo que andava sempre com um rádio. Naquele dia não pôde levar o rádio e ouviu um casal que estava a ouvir rádio. Chegou-se para lá para ir buscar o rádio. Tinha a mania de cumprimentar todas as pessoas, todos muito simpáticos... Mas a senhora disse para a Catarina: “Tire-me isto daqui!”.

 

Começa o livro por este episódio. A Catarina conta que cuspiu à senhora por esta se referir ao menino como “isso” e pedir que lho tirasse dali.

Helena – Foi de tal maneira que [aquele casal] foi pedir à capitania para nos obrigar a ir para outro sítio.

 

Fale da importância que a Crinabel teve para si. Foi uma primeira forma de lidar com o diferente.

Catarina – Com a discriminação.

 

Eram sobretudo meninos com Trissomia 21?

Helena – E com autismo e problemas cerebrais.

Catarina – Havia também crianças com dificuldades de aprendizagem.

 

Sentia-se afortunada porque as suas filhas não tinham nenhum daqueles problemas?

Helena – Eu sentia-me muito agradecida, todas as noites. É muito duro para os pais. Íamos de propósito fazer uma semana fora com eles para que os pais tivessem uns dias [de descanso].

Catarina – Eu não me sentia afortunada porque não tinha essa consciência. Quando fazia o voluntariado, com esta idade, não sentia diferença. Para mim era muito estranho alguém estar a apontar. Só sabia que eram alunos da minha mãe. OK, não eram exactamente iguais a mim, mas nunca os vi como menores ou diminuídos. Nunca. O que sentia pairar no ar, porque a minha mãe devia falar sobre isso, era a ideia de que os pais iam morrer.

 

E que aqueles meninos iam ficar desamparados?

Catarina – A Trissomia 21, agora não tanto, estava muito associado a mães mais velhas. Havia uma nuvem negra e pensava: “Coitadinhos, vão ficar sem os pais”.

 

Quais eram os seus medos de infância?

Catarina – Só tinha um medo: morrer. Ainda é o mesmo, ainda não o resolvi.

Helena – Muito, muito.

Falava nisso?

Catarina – Sim, tinha pânico de morrer. Não me imaginava a morrer de nenhuma forma concreta, nem de doenças. Mas imaginava que um dia isto acaba. É a frase que me tem perseguido.

Helena – O pai dela também tem isto. Eu não.

Catarina – O medo intensificou-se. Porque tenho os filhos. Um dia não vou ver mais os meus filhos? E os meus pais? Fico sem chão. Viro a menina não-mulher. Uma criança autêntica. Não consigo resolver isto. Ninguém dá uma resposta.

 

Voltemos lá atrás. Muito rapidamente, a Catarina transformou-se no fenómeno que todos conhecemos. Temeu por ela, que o estrelado a desestabilizasse demasiado?

Helena – Não. Tinha tanta confiança nela, na força dela. Só fiquei muito triste quando decidiu ir para Londres.

 

Era uma miúda de 19 anos apontada como “a namoradinha do país”. Uma pessoa está ainda a formar-se, é muito fácil perder o pé.

Catarina – Sim, vemos tantos exemplos.

 

Há um processo de passagem do tempo que é feito à vista de todos. Pode ser cruel. É seguramente difícil de gerir.

Catarina – É violento.

Helena – Nunca tive medo. Ela não procurou a glória.

Catarina – Glória: que palavra antiga e bonita. Não sou nada ambiciosa, é verdade.

Helena – Não queria nada dar nas vistas.

Catarina – É curioso, ninguém acredita nisso [risos].

Helena – Mas eu sei que é assim. Fomos uma vez para a casa da minha irmã, para uma praia deserta, entre rochas: “Pronto, aqui estás segura, aqui estás bem”. Ela tinha essa preocupação, não queria que as pessoas se metessem.

Catarina – Não é que se metessem, com isso não tenho problema nenhum.

Helena – Tu falas com as pessoas. Se forem velhotes e criancinhas, estás na maior.

Catarina – Se for a minha geração, tenho menos paciência.

 

“E se não gostarem de mim amanhã? E se não tiver audiências e perder a graça?” Teve este fantasma? Uma parte do sucesso tem que ver com a juventude, com a graciosidade.

Catarina – Tem. Mas até nisso as coisas têm sido harmoniosas. Não tenho hoje a audiência que tinha há uns tempos.

Helena – Também por conta do trabalho que fazes.

Catarina – Há coisas que são opções minhas, outras não. Tenho tido o privilégio de poder fazer escolhas. A passagem da SIC para a RTP ainda vem no apogeu de formatos como o “Dança Comigo”, que foi top de audiências. Na RTP, baixaram as audiências, não só as minhas. Sei que é uma coisa com a qual tenho que lidar todos os dias. Vou lidando porque encontrei um caminho onde me sinto completamente feliz, que é este meu lado [solidário]. Não sei se consigo sobreviver dele. Por enquanto tenho conseguido conciliá-lo [com outros formatos e projectos]. O facto de saber muito bem o que quero, onde me sinto bem, dá-me essa tranquilidade.

 

Como é que se fez tão segura de si, tão a saber o que quer?

Catarina – Não sei. Há aqui uma coisa importante. Não quero um império Catarina Furtado. Nunca quis. A descentralização é o segredo para a minha tranquilidade. Não vivo mesmo a pensar em mim. Preocupo-me com o meu projecto profissional, sou muito obstinada, muito trabalhadora.

 

Toda a gente diz que chega sempre a horas, é dedicada, profissionalíssima. Não se permite não ser assim?

Catarina – Nem o permito aos que trabalham comigo. Sou muito exigente comigo e sou muito exigente com os outros. Só assim alguém pode dar passos seguros em qualquer profissão. Mas as coisas não estão no meu umbigo. Não é o meu umbigo que dita os meus passos.

Helena – Sempre deste passos com os outros. Isto leva a que não tenhas preocupações excessivas contigo própria.

Catarina – Não foi premeditado. Foi natural ter criado a [associação] Corações com Coroa. Não seria nada natural construir um emprego à volta da minha imagem. Não me sentiria realizada. Isso sim, trar-me-ia muitas inseguranças.

Helena – A segurança dela é inata.

Catarina – Mãe, não é verdade. Em criança não era nada segura. Era tímida, e a timidez passa por uma certa insegurança.

Helena – Eras tímida até certa altura.

Catarina – Até entrar no Conservatório. Mais do que segura, adoro andar cá. Adoro pessoas, adoro lidar com pessoas. Gosto muito de viver, gosto muito de rir. Sempre fui assim.

Helena – Nesse aspecto, sais a mim.

 

Então, sai mais a si ou ao Joaquim?

Helena – Vou ser muito franca. O rigor, a disciplina, algum pessimismo: sai ao pai. O rir, a alegria, é mais eu.

Catarina – Sou uma boa mistura.

 

Ele vai divertir-se se ler isto?

Catarina – Vai censurar. O meu pai sempre afirmou o que pensava, mesmo que isso significasse um despedimento logo a seguir. O não ter medo, vem dele. Isto deu-me um mundo enorme.

 

Querem dizer uma última palavra? Uma palavra para a sua mãe.

Catarina – Luz.

 

Uma palavra para a sua filha.

Helena – Tudo.

Catarina – Oh, querida.

Helena – É mesmo.

 

Publicada originalmente no Público em 2015

 

 

 

 

 

Yvette Kapferer

09.05.22

Yvette Kapferer viveu uma vida aventurosa de que se lembra bem. Nasceu numa família judia, abastada, em Paris. Foi campeã de golfe francesa. Entre 1940 e 1945 trabalhou na Escócia, numa base militar. Servia sanduíches, limpava o chão, sentia-se útil. Permitiu-se chorar quando viu E Tudo o Vento Levou, numa ida a Londres, durante a guerra. Antes disso, passou brevemente por Portugal, em 1940. O seu visto, muito provavelmente, foi passado por Aristides Sousa Mendes em Baiona.

Nasceu no dia 19 de Agosto de 1917, em Paris. Viveu cinco anos a pensar que, nesse dia, ou no seguinte, ou no outro depois desse, “seria eu ou outra pessoa a morrer”. Era a Segunda Guerra mundial, na Escócia. Casou com um inglês (em 1937), um holandês (em 1947) e um dinamarquês (em 1956). Teve dois filhos, Phillip e Sandra, do primeiro e do segundo marido, respectivamente. Deu-se com as famílias reais europeias. Teve um restaurante chamado Três Porquinhos, em Cascais.

Não era a primeira vez que estava em Portugal quando em 1940 escapou por Lisboa, então o último porto livre da Europa. Vivera aqui com o marido, uns meses apenas. Ao contrário de milhares de judeus, a sua intenção era voltar à Escócia, para servir durante a guerra. Foi uma refugiada sem medo.

Findo o conflito, regressou a França. Viveu novamente em Portugal entre 56 e 68. Em França entre 68 e 76 (onde teve um château-hotel). Na Califórnia, entre 77 e 89. Desde então, vive em Portugal.

Sandra van Heel, a filha, assistiu e participou eventualmente na entrevista. Nasceu em Paris em 1948. Nesse tempo, os pais eram amigos do rei da Bélgica, Leopoldo, e da mulher, Liliane de Rethy. “Jogavam golfe juntos, faziam férias juntos. Era suposto Liliane ser a minha madrinha – eu chamo-me Sandra Liliane. O meu quarto de criança foi todo pago pela corte belga!”

Quando Yvette Kapferer fez 90 anos, Sandra fez um discurso no qual disse que a mãe tinha sido uma péssima mãe, mas que era uma amiga maravilhosa.

É também uma maravilhosa contadora de histórias.  

 

 

Que significado tem, para si, a palavra perigo?

Creio que estive em perigo na guerra, todos os dias. Conduzia uma cantina móvel, servia os pilotos noite e dia. Levantava-me às sete da manha, ia ao padeiro buscar comida, e no aeroporto de Drem [North Berwick, Escócia] fazia cerca de mil sanduíches. Servia em dez sítios diferentes, onde estavam os pilotos e os mecânicos, e depois ia a outro aeródromo chamado East Fortune. Chamavam-lhe Misfortune [Infortúnio], porque muitos aviões se tinham despenhado ali... Mas o perigo nunca me preocupou.

 

Como é que se pode ignorar o perigo em toda essa rotina?

Eu sabia que eles iriam despenhar-se. Seria eu ou outra pessoa a morrer. Trabalhava em dois aeródromos, podia tirar dois dias de licença, se quisesse. Costumava ir num comboio, de Edimburgo para Londres, que era bombardeado e metralhado pelos alemães, todas as vezes. Não me importava. Ninguém se importava.

 

Soa mágico, e simultaneamente aterrador. Como é que as pessoas conseguiam seguir a sua vida?

Eram fatalistas. Tem que se ser fatalista durante a guerra. Sabia que podia morrer a qualquer instante. Às seis da tarde sabíamos que os aviões alemães estavam a chegar, ouvíamos as sirenes. Depois andávamos pela rua, dançávamos nos night clubs, com os pilotos, que sabiam que iam morrer, e morriam, no dia seguinte, ou no dia depois desse. Bebíamos, fazíamos brindes, ríamos, íamos ao Hotel Ritz. Os ingleses eram incríveis. Nunca se dizia: “Vemo-nos amanhã”. Ninguém sabia se se veria no dia seguinte. Provavelmente não.

 

Alguma vez esteve numa situação de perigo agudo?

Um night club muito famoso em Londres, o Cafe De Paris, foi atingido directamente. Eu estava com o meu marido, ele estava de licença antes de ir para o Egipto três anos. Tínhamos feito uma reserva e no último minuto ele disse que tinha alterado a reserva, que íamos a um restaurante italiano muito bom, na mesma praça, em Leicester Square. Por volta das oito começaram os bombardeamentos. No restaurante tudo abanava, os candeeiros, as louças. A polícia entrou a pedir ajuda. No Cafe De Paris tinham morrido todos.

 

Se não tivesse essa atitude fatalista, teria medo o tempo todo, é isso?

Sim. Amei cada minuto no aeródromo, as rondas a servir chá durante a noite, cheia de frio, com as mãos geladas. Odiava cada dia ou hora que estava longe dali.

 

Se entendo correctamente, estar numa situação tão intensa como aquela que descreve é como tocar a vida com as mãos.

Não sei. Para mim cada dia era outro dia, qualquer coisa iria acontecer. No dia 8 de Maio de 1945, estava de licença em Londres e queria ver o filme E Tudo o Vento Levou. Acho que chorei. Depois saí e toda a gente na rua tinha bandeiras. “A guerra acabou!” Eu só disse: “Merda!”

 

Como assim?

Porque, para mim, era o fim de um trabalho. Não iam precisar mais de mim. O que é que eu ia fazer? Teria que voltar para Paris, para junto dos meus pais e irmãos? Foi o que fiz, dois meses depois. Mas tinha muitas saudades do meu trabalho. Então, trabalhei na messe dos British Officers, servindo soldados britânicos, na Rue du Faubourg Saint-Honoré, durante seis meses.

 

A sua família era muito rica. Presumo que nunca tenha tido um trabalho, a oportunidade de ser útil aos outros. Sentia-se útil, durante a guerra, mais do que na sua vida anterior?

Muito mais. Eu andava às volta com os carros, as cantinas móveis, e trabalhava no barracão da cantina. Tinha que limpar o chão, tinha que fazer todo o trabalho sujo.

Mas houve uma coisa que me tornou muito dura. É que quando morria um marido ou um namorado de uma das raparigas que trabalhavam comigo mandavam-me a mim dar a notícia. Levava dois copos e um pouco de sherry e bebíamos por eles.

 

Permitiu-se chorar no E Tudo o Vento Levou....

Exactamente. Estava irritada porque a Scarlett [O’Hara] não disse  ao Rhett Butler que o amava. Creio que foi a última vez que chorei. [Para a filha, que está presente] Nunca me viste chorar, pois não?

 

A sua filha nunca a viu chorar. Porque é que nunca chora?

Passa-me por cima. Não vou a funerais, só fui ao dos meus pais. Para mim, as pessoas não estão mortas. Acredito que as vou encontrar novamente, noutro sítio. Porquê acreditar na morte? É estúpido. Vou fazer 96 anos. Se pensar que daqui a um mês não vou estar cá, é bem aborrecido. Mais vale viver.

 

Não compreendo porque é que nesse filme, nesse momento específico, se permitiu chorar.

Devo ter pensado em todas as aventuras amorosas que tive durante a guerra. Quando me apaixonava por um piloto, sabia que, provavelmente, não o veria de novo. Não era permitido dizer adeus. Não era permitido amar. Não era permitido amar nada. Caso contrário, teria sido corrida do aeródromo. Nunca sabíamos quando partiriam. Depois apaixonávamo-nos por outro, vinham outros esquadrões.

 

Portanto não é uma pessoa pesada. Consegue aligeirar.

Sim. Mesmo quando morreu uma das minhas melhores amigas, a Solange, há três ou quatro anos... Ela era ginecologista e lutou durante a guerra. Eu disse: “Espero que tenha sido pacífico, que tenham estado ao lado dela.” É tudo. Quem sabe se um dia a encontro na rua...

 

(Sandra, a filha – E como se sentiria se eu morresse?

Yvette – Pensaria que tu e eu vivemos momentos maravilhosos.

Sandra – Não iria chorar?

Yvette – Não. Não consigo, Sandra. Só choro com cebolas!)

 

Na sua infância, chorava?

Creio que não. Os meus pais nunca nos bateram. Não tomavam conta de nós. Tínhamos amas. Na escola, eu era a melhor aluna. Não tinha motivo para chorar. Ah..., chorei quando joguei pela França pela primeira vez, contra a equipa americana de golfe.

 

O choro pode não ser a sua maneira de expressar sofrimento. Mas sofreu, com certeza.

Não acho que tenha sofrido.

 

(Sandra – Sim, mamã. Quando o Robert lhe foi infiel.

Yvette – Estava zangada. Mas não chorei. E não durou muito.)

 

Qual é a sua definição de medo e de coragem?

Conto uma história. Em Junho de 1940, em França tínhamos os alemães no encalço.

 

A entrada das tropas alemãs em Paris data de 14 de Junho de 1940.

Disseram-nos que todos os cidadãos britânicos, com passaporte, seriam levados para a Alemanha, e que todos os judeus seriam enviados para Auschwitz. Eu tinha passaporte britânico, mesmo sendo francesa, porque o meu primeiro marido, Francis Ricardo, era inglês. Casámos em 1937 e estávamos a viver em Inglaterra quando a guerra começou. Antes disso tínhamos vivido uns meses em Portugal. Ele era attaché [adido] na embaixada em Lisboa.

A família do meu marido estava na Escócia, ele estava no exército inglês. Em 1940 fui a França visitar a minha família. Com a ocupação de Paris, tive que deixar os meus pais, tentei escapar. Tinha o meu bebé, a ama, fui de carro até Espanha.

 

(Sandra – O passaporte da minha mãe tem um carimbo de 21 de Junho de 1940, do Consulado de Portugal em Baiona. É bem provável que o seu visto tenha sido passado por Aristides Sousa Mendes.

 

Depois de Bordéus, Sousa Mendes desloca-se para Baiona, que estava a cargo do cônsul José Faria Machado, com o apoio do vice-cônsul honorário, Vieira Braga. Eram dependentes do Consulado de Bordéus. E continua a passar vistos, de 20 a 23 de Junho. Dia 23 é demitido por Salazar.

Sandra – O sogro da minha tia, irmã da minha mãe, conhecia o cônsul em Baiona. Tentavam escapar juntas. Mas a mãe ficou no carro, não entrou no consulado.)

 

Em Espanha vendi o carro e segui de comboio até Lisboa, onde apanhei um navio para Inglaterra. A minha irmã seguiu para os Estados Unidos. Eu era uma refugiada. Mas medo, nunca tive. Era sempre: “Vai! Vai!” Tinha que ir, ir.

 

O que é que lhe dizia ao ouvido: “Vai! Vai!”?

Era na minha cabeça. “Vai!” Tenho gosto em ajudar. Tinha um restaurante, Os Três Porquinhos; entrava nas cozinhas, perguntava se podia ajudar a arranjar o peixe, o que fosse. Julgo que o que me fez ser assim foi a guerra, foi ter trabalhado naquelas cantinas, sem me preocupar comigo, ou com o meu filho.

 

Em criança, entrava na cozinha?

Não, não era permitido. Ao jantar havia uma criada e um criado, serviam os dois. Nunca podíamos falar à mesa. Até aos 14 anos comíamos nos nossos quartos com as amas. Quando comecei a ser uma boa jogadora de golfe, pude sentar-me à mesa.

Eu adorava os meus pais, mas se quisesse fazer uma pergunta sobre o meu trabalho, ou qualquer outra coisa, o meu pai responderia: “Tu devias saber.” A minha mãe vinha para a escola connosco. Sentava-se atrás de mim, com as agulhas de tricot. Eu não podia fazer isto, nem aquilo. Era muito rígida. E tinha aulas de piano todos os dias – odiava. Não podíamos dizer “não”. Está tudo escrito no meu diário. (Consegui ficar com os meus diários de 1931, 32, 33, 39).

 

Nunca se tornou rebelde?

Sim, no dia em que casei com o meu primeiro marido. Tinha 19 anos, conheci-o quando a França jogou contra a Inglaterra. Estivemos juntos seis dias. Depois ele seguiu-me até Paris, pediu-me em casamento e eu disse “sim”.

 

Assim?

Assim. E não tinha qualquer ideia sobre o aspecto de um homem. As estátuas de homens, que víamos em Versalhes, têm o zizi partido. Como eu não tinha irmãos e o meu pai não se mostrava, nunca soube como era um homem. Nos quadros, viam-se mais mulheres, nunca se viam homens.

 

Nunca falou sobre sexo com amigas ou com as suas irmãs?

Nem pensar.

 

O seu primeiro marido foi a personificação do príncipe que a salva (desse mundo rígido)?

Sim. Eu não o amava assim tanto... Quando foi para longe durante a guerra e conheci todos aquele pilotos simpáticos... Um dos meus primeiros amantes foi um piloto, obviamente. E quando o meu marido regressou, três anos depois, não quis voltar para ele. Foi aí que iniciámos o processo de divórcio.

 

Trabalhando nas cantinas durante a guerra, estranhamente, compreendeu o significado de liberdade? Finalmente era livre para viver a sua vida.

Exacto. Descobri o sexo também.

 

Que papel teve o sexo na sua vida?

Sexo? Eu adoro sexo! [risos]

 

Quem foi o amor da sua vida?

Essa é uma pergunta muito complicada. Não foi o meu [primeiro] marido. Todos gostavam dele, tudo muito bem, mas amor, não. [Para Sandra] O teu pai [segundo marido]... Em 1945, acabada de regressar a Paris, fui com uma amiga a um apartamento onde se lia a sina. Aquela mulher, que não me conhecia de lado nenhum, disse: “Ah, é divorciada e vai conhecer um homem alto e louro. Provavelmente, casa-se com ele.” No ano seguinte fui jogar à Holanda. A primeira pessoa que vi foi um homem alto e louro. Pensei: “Se calhar era este que estava na sina.” Jogámos golfe, dois ou três dias, e uns dias depois propôs-me casamento.

 

(Sandra – Disse-me que houve um homem que amou realmente.

Yvette – Foi o Olivier Massard. Era um piloto francês. Esteve um mês doente, apaixonámo-nos. Depois partiu. Eu tinha certeza de que ele ia morrer, mas dois anos depois regressou ao aeródromo. Tinha sido feito prisioneiro de guerra.)

 

Imagine um amor como o que Rhett e Scarlett tiveram...

Isso acho que não tive.

 

Como é que a sua família lidava com a sua vida amorosa?

Uma vez, quando estava casada com o pai da Sandra, fui jogar ao Luxemburgo. Um americano deu-me boleia para casa. Mas em vez de me levar para casa, levou-me para um sítio na costa. Estava lá alojado o namorado da minha irmã mais velha, que me viu, e que lhe contou que eu estava a passar a noite com um americano. Ela ficou horrorizada e contou aos meus pais, que também ficaram horrorizados. A minha mãe ligou ao pai da Sandra, que se estava nas tintas (ele estava com uma amiga belga...).

Quando voltei para Paris, dois dias depois, o meu pai veio ao meu quarto. Disse-me que se eu voltasse a fazer aquilo nunca mais entraria naquela casa.

 

Tinha vergonha?

Sim, vergonha. Se eu saísse com amigos, mesmo depois de me ter divorciado do pai da Sandra, e se voltasse a casa à uma da manhã, o meu pai esperava numa cadeira no cimo da escada. (Depois do divórcio vivi uns anos com eles.)

 

(Sandra – Talvez o meu avô gostasse mais de ti... Ou talvez fosse mais possessivo.)

 

O seu terceiro casamento foi com um dinamarquês.

Tinha-o visto três vezes, na Dinamarca. Seguia-me para todo o lado. Ficou três horas à minha porta, até eu fazer as malas e ir com ele para a Dinamarca. Ele teria ficado toda a noite. (O que é que tu terias feito, Sandra?

 

Sandra – Depende do dinamarquês! [risos])

 

Depois da Sandra não pude ter mais filhos. Porque é que me casei com todos estes homens? Porque eu não podia continuar com os meus pais e não tinha dinheiro.

 

Houve períodos com menos dinheiro na sua vida, mas, no fundo, houve sempre dinheiro. Que relação tem com o dinheiro?

Durante a guerra, estava com o meu filho e a ama numa pensão horrorosa. Fiquei lá cinco anos. Não tinha dinheiro, vivíamos no sótão sem aquecimento, excepto quando estávamos doentes. Eu não pagava nada, eram os meus sogros que pagavam. A minha sogra era riquíssima. Pagavam a pensão e a ama e eu era voluntária no YMCA [Young Men’s Christian Association].

[Em 1940], quando fugi de França, o meu pai tinha-me dado, a mim e à minha irmã, um envelope, fechado. Quando cheguei à Escócia pu-lo num banco, no Barclay’s, e esqueci-me completamente. Depois de ter casado novamente, com o pai da Sandra, (o teu pai não tinha dinheiro nenhum, vivíamos com muito pouco), o meu pai deu-me um carro e perguntou-me pelo envelope. Ainda estava no banco! Eram acções e valiam algo como 15 milhões de francos antigos no total, cinco milhões para cada irmã.

 

Sandra – Poderia ter vivido muito bem durante a guerra! Para a mamã, o dinheiro não tem importância. Ela ainda vive como se...)

 

Agora já não resta quase nenhum! Eu conto os anos. Penso: “Se tiver mais dois anos, tudo bem.” Tenho mais cuidado. Em vez de ir a restaurantes caros vou a outros onde pago sete euros por refeição. E sabem que eu tive o Três Porquinhos, sabem quem eu sou...

 

Qual é a história do Três Porquinhos?

(Sandra – Quando a mamã veio viver para Portugal com o marido dinamarquês abriram uma charcutaria e um restaurante francês. Os meus avós acharam estranho... A família é judia, portanto ter um restaurante chamado Os Três Porquinhos... [risos])

Eu vendia na loja! Trabalhava, servia, comprava as coisas. Comprei a maquinaria, tudo caríssimo. Costumava entregar no hotel Ritz, e ia de colar de pérolas. Mas não funcionou. Os portugueses ricos, na época, tinham todos cozinheiros, não precisavam de nada. Depois comecei um negócio de frango, uma vez mais com ajuda dos meus amigos chefs franceses. Aqui nunca se tinha visto frango no espeto.

 

Para as pessoas do seu meio, trabalhar durante a guerra era um acto de resistência e coragem. Trabalhar num restaurante ou numa charcutaria, em Portugal, era declassée?

Eu costumava jogar golfe com os Espírito Santo. Quando abri a charcutaria, nenhum deles vinha à minha loja. Achavam que era abaixo [da sua condição social]. Até que o Conde de Barcelona, o rei [Juan de Bourbon, pai do actual rei Juan Carlos], veio ao meu restaurante. Eu jogava golfe duas vezes por semana com ele. Vinha comer omelettes com a condessa, com as filhas, vinham todos. O Rei de Itália só ia se eu estivesse lá. Depois disso, todos os meus amigos snobs passaram a aparecer.

 

Os seus pais alguma vez a visitaram em Portugal, no restaurante?

Uma vez, sim. O meu pai morreu em 1964, a minha mãe em 66, eu abri o restaurante em 1958.

 

O que sentiu quando morreram?

Lembro-me muito bem do dia, 17 de Março de 1964. Estava a jogar golfe no campeonato português, estava no décimo nono buraco; apareceu a correr a secretária do Golfe do Estoril que me disse: “Tem aqui um bilhete, tem um táxi à sua espera. O seu pai acabou de morrer”. Nem acabei o jogo. Em 1966, quando morreu a minha mãe, aconteceu exactamente a mesma coisa.

 

Isso é uma descrição de como aconteceu. Eu pergunto-lhe o que sentiu.

Os meus sentimentos... Cheguei a Paris e estive com o meu pai, sozinha, no quarto. Queria falar com ele... A minha mãe, quando a vi no caixão, disse: “Não quero ver mais ninguém assim. É a última vez.”

 

Desculpe dizer isto a uma senhora que passou os 90, mas às vezes parece fazer uma recusa infantil da morte.

Não faz mal, pode dizer. O meu pai era lindo. Não o queria ver assim, morto, no caixão. E no dia em que eu for, não quero que chorem por mim. Quero que bebam champagne por mim. Como com um piloto.

 

Gostava de saber mais sobre a sua infância e a sua família. Pode fazer-me um retrato?

O meu pai nasceu em Paris, em 1872. A minha mãe nasceu em 1885. O meu pai era muito inteligente e quando tinha 20 anos começou a trabalhar na companhia de petróleo [Royal Dutch] Shell; era presidente do conselho de administração da Shell francesa. Continuou lá até aos 85 anos.

 

(Sandra – Pensei que ele e o tio Henri Kapferer tinham encontrado petróleo em Sumatra.

 

Isso foi o tio Henry, não foi o meu pai.) O meu tio, irmão do meu pai, e um ano mais velho que ele, encontrou um [poço] em Sumatra. Era sobrinho do [magnata do petróleo] Deutsch de la Meurthe, fundou a Air France e ajudou Santos Dumont a construir um pequeno avião.

 

Deutsch de la Meurthe patrocinou a aviação no começo do século XX. Instituiu um importante prémio, que foi ganho por Santos Dumont. Foi esse montante que lhe permitiu construir os primeiros balões dirigíveis com motor a gasolina. Santos Dumont era brasileiro. Um dos aeroportos do Rio de Janeiro chama-se Santos Dumont.

Era um grande amigo nosso. Ensinou-me a esquiar. Dumont costumava aterrar um pequeno avião nos Campos Elísios, em Paris, sair e ir ao restaurante.

 

Como se estacionasse um carro.

Sim. Santos Dumont pediu ao Cartier, que conhecia pessoalmente, para lhe fazer um relógio com uma correia, [para o pulso], porque quando conduzia tinha que usar as duas mãos e não podia olhar para as horas no relógio de bolso.

Construiu um zeppelin para atravessar o Atlântico e o meu tio foi com ele. Ali ao pé das escadas, encontra um quadro que um pintor francês pintou para o meu tio no seu aniversário: é um desenho desse famoso avião, que era dele e do Santos Dumont.

 

Dê-me mais detalhes. Como era o seu quarto? Como era a sua casa? Como era o seu dia-a-dia?

Era uma casa muito grande numa avenida grande, em frente à câmara municipal. Tinha quatro andares mais um quinto, para os cozinheiros, o porteiro, todo o pessoal. Tínhamos um jardim grande e uma outra casa no fundo do jardim e uma garagem. A casa de jantar era interessante. Havia frescos e telas pintadas por Maurice Denis. Durante a guerra a nossa casa foi ocupada por generais da Gestapo, e quando se foram embora, em 1944, levaram todos os quadros e enviaram-nos para Göring. Mas não levaram as pinturas de Maurice Denis porque acharam que estavam pintadas na parede [e que não eram transportáveis]. Depois da guerra, a família conseguiu reaver muitos quadros. Muitos deles tinham as iniciais do meu pai no verso da tela.  

 

A colecção de arte da família era importante.

Todas as salas, a escadaria, estavam cheias de quadros. Não havia um milímetro sem quadros. Eu e as minhas irmãs fomos pintadas por Maurice Denis, a família foi pintada por Édouard Vuillard. Recentemente houve uma exposição no Jewish Museum em Nova Iorque, e esses retratos da família constituíam alguns dos quadros mais importantes da exposição. Outra vez fomos ao Metropolitan [em Nova Iorque] e vimos quadros do Maurice Denis: “Este estava na nossa sala de jantar!”, disse à Sandra.

Depois subíamos as escadas e os quartos não eram muito simpáticos. Partilhava o quarto com a minha irmã mais velha. Tínhamos duas camas.

 

Numa casa tão grande, porquê?

É espantoso, mas era assim. Tínhamos uma casa de banho para três quartos. Lá em cima havia um grande estúdio onde a minha irmã viveu depois. Os nossos pais recebiam imenso. Não era permitido, mas sentávamo-nos no topo das escadas para ver as pessoas chegar. Refeições de sete pratos.

 

Parece a série de televisão Downton Abbey.

Sim, sim.

 

Sofreu quando soube que a sua casa tinha sido ocupada por generais alemães?

E com a bandeira da Gestapo no exterior. Eu não sabia. Só soube muito depois. Nem os meus pais sabiam.

 

(Sandra – Mas ninguém tentou dizer-lhes, ou a si. A mãe tinha uns amigos na Resistência; podiam tê-lo mencionado, que tinham visto uma bandeira da Gestapo à porta da sua casa.)

 

Não tínhamos autorização para dizer quem éramos durante os anos da guerra. E os pilotos, não sabíamos quem eram. Em 1945 quando voltei para casa dos meus pais, estava no jardim e de repente entrou um piloto. Não o tinha visto senão uma vez durante toda a guerra, pensei que estava morto. Ele tinha tentado encontrar-me para me agradecer todo o trabalho que tinha feito, juntamente com outros pilotos que estavam vivos. Chamávamos-lhe Pupi. O seu nome era Henri de Bordas [era um ás da aviação]. Morreu o ano passado. Vi-o todos os anos depois disso.

Mas tenho de lhe contar uma história muito importante. No dia 24 de Dezembro de 1942 disse que ia passar o Natal com um amigo meu. Era o irmão da Madame Citröen, dos carros.

 

Os Citröen eram amigos da sua família?

Sim. A Madame Citröen tinha um irmão 20 anos mais novo, Jacques. Sabia que ele estava em Londres, costumava ficar no apartamento dele se não ficasse com os pilotos em qualquer lado. Ele estava de roupas civis e eu disse-lhe: “Estou sempre de uniforme, a trabalhar noite e dia, e aí estás tu...”. Ele respondeu: “Vou levar-te a sair”. Pôs-me uma venda nos olhos. Apanhámos um táxi. Entrámos num restaurante (perguntei-me onde estaria). Uma passagem, degraus, ele abre uma porta, tira-me a venda. Toda a Resistência francesa estava lá. Quase desmaiei. Ele era o líder. Sabe quem foi Jean Moulin?

 

Sim, o herói da Resistência que foi morto por Klaus Barbie, o homem da Gestapo que ficou conhecido como “o terror de Lyon”.

Foi ele, Jacques Bingen, irmão de Madame Citröen, que substituiu Jean Moulin quando este morreu. Há uma rua em Paris com o nome de Bingen. Foi traído pelo assistente, belga, que estava com ele há um ano. Foi torturado pela Gestapo e conseguiu matar-se antes de falar, de revelar nomes [de outros membros da Resistência].

Nesse 24 de Dezembro, Bingen disse-me que uma coisa muito importante ia acontecer, e foi a noite em que o [François] Darlan foi morto, na Argélia.

 

General Darlan, primeiro-ministro francês, foi acusado de colaborar com a Alemanha nazi e foi morto pela Resistência em 24 Dezembro de 1942. Quanto à sua família, onde é que passou o período da guerra?

Quando fugi para a Grã-Bretanha em Junho de 1940, deixei em Paris os meus pais. Os alemães estavam a chegar muito depressa, no dia seguinte chegariam. Os meus pais foram primeiro para Périgueux, em Bordéus, onde estava o meu tio, e ficaram lá. Daí foram para Cannes, que não estava ocupada pelos alemães. Montecarlo também não estava ocupada. Em 1943 o meu pai teve uma amante russa – teve-a durante anos; a criada da amante tinha um namorado alemão. Foi através da criada que [a amante do meu pai] conseguiu uma lista de todos os judeus que estavam em Cannes e Montecarlo. Nessa lista viu o nome dos meus pais, e de imediato, nessa noite, saíram, com a minha irmã, para o centro de França.

 

Sandra – Depois da guerra, a minha avó teve que agradecer à amante [o facto de lhe ter salvo a vida, revelando que os nomes estavam na lista e fazendo-os fugir].

 

E eu também, eu também lhe agradeci. Ela era muito feia, devo dizer, e gorda. As minhas irmãs não quiseram vê-la. Mas ela salvou os meus pais.

 

Já contou que esteve em Lisboa, em Junho de 1940. Lisboa era o último porto livre da Europa e a maior parte dos que aqui conseguiam chegar queria seguir para a América. Apenas uma pequena percentagem desses refugiados ficou em Lisboa. A América não era uma hipótese para si, como foi para a sua irmã?

Eu queria voltar para a Escócia, não queria ir para a América. A minha irmã queria ir para a América, porque o sogro tinha casas em Nova Iorque. Embarquei num navio de tropas, no qual conseguiram colocar alguns refugiados. Levou uns cinco ou seis dias. As cabines eram horríveis, não tínhamos nada. Desembarcámos em Glasgow, tivemos de ser vistos por médicos. Eu disse que queria ir para Edimburgo, de onde tinha saído um mês antes. “Quero voltar para onde estava”. Em Edimburgo fui para um dos hotéis mais caros. Sem dinheiro. A única coisa que eu queria era caviar e champanhe [riso]. Precisava muito, depois de um mês a tentar fugir. E de um banho.

No dia seguinte fui para North Berwick, onde fiquei cinco anos. Um dia o oficial dos Serviços Secretos chamou-me e disse: “Mrs. Ricardo – que era o meu nome naquela altura – “descobrimos que não é uma espia. Sendo você francesa, com um passaporte que acabou de vir de Lisboa – onde havia tantos espiões durante a guerra –, pensámos que era uma espia”.

 

O nome de família do seu primeiro marido era Ricardo. Uma família de judeus sefarditas?

É um nome espanhol. Eram judeus, mas converteram-se ao catolicismo há séculos. O meu marido era bisneto do David Ricardo, o [famoso] economista.

 

Em nenhum momento mencionou, mesmo quando falou da sua família, a importância da religião. Ser judia influenciou toda a sua vida, as suas decisões?

A minha mãe era mais judia, o meu pai não se interessava. Tive de fazer a minha iniciação, toda vestida de branco, quando tinha 13 anos. Aprendi hebraico, mas já não sei nada. Não era religiosa, não rezava aos sábados. O pai da Sandra era da Igreja Reformista Holandesa, toda a família era. Protestantes. Casei também toda vestida de branco. O meu marido dinamarquês era luterano.

 

(Sandra – Há um filme sobre a vida de Alain Oulman, feito pelo filho há dois anos. Perguntam a dada altura: “Então, são uma família judia?”. E uma das irmãs responde: “Judia, mas não muito”. Com os meus avós era também assim.)

 

Fui a um casamento judeu em Genebra, há três anos, numa sexta-feira à noite. Estavam 60 pessoas no jantar. Por ser uma das mais velhas, deram-me o pão para partir. Eu não sabia o que fazer com ele... A minha vizinha, que não era judia, muito engraçada, disse: “Parta-o e distribua-o por toda a gente”.

Cada pessoa tinha um livro de orações, de um lado em hebraico, do outro em francês. Foi muito impressionante porque todos os homens se levantaram e cantaram, em hebraico.

 

Em suma, a religião não é uma dimensão essencial na sua vida.

Não. Mas tenho primos que foram levados para Auschwitz e mortos lá. Uma das primas, quando voltou, tinha 25 quilos. Casou com um indivíduo que a salvou de morrer obrigando-a a comer relva da estrada quando trabalhavam nos carris.

 

Mais que tudo, o que é que a fez lutar em Inglaterra, fazer o seu trabalho?

Foi porque tinha que ser. Todos tinham de trabalhar, cumprir o seu dever. Até uma certa idade, tinha de se contribuir para o esforço da guerra. A ama do meu filho tinha 35 anos, eu tinha 20. Disse-lhe: “Eu é que vou fazer o trabalho de guerra. Você toma conta do bebé”. Eu não queria tomar conta de um bebé.

O meu primeiro trabalho foi trabalhar numa fábrica de tomate. Odiava tomate. Eles sabiam que pelo menos não os ia comer. Ninguém queria trabalhar lá porque cheirava muito mal, a enxofre, e as pessoas ficavam doentes.

 

Houve um período, durante a guerra, em que dormiu com quadros valiosos debaixo da cama. Quadros de pintores célebres, valiosos, da colecção da sua família.  

O que tinha debaixo da minha cama, durante a guerra: um [Raoul] Dufy, um [Odilon] Redon, coisas dos meus pais. Podiam ter sido bombardeados ou desaparecido, e por isso achei que o melhor era usar o dinheiro. Vendi o Dufy por uns trocos, infelizmente.

Quando o meu pai descobriu que eu não tinha dinheiro nenhum (ele estava em Cannes), mandou-me 400 libras. Era muito dinheiro naquele tempo. Pagavam-me uma libra por semana no YMCA... Gastei-o. E também o de todos os amigos que me emprestaram dinheiro. Com champanhe e outras coisas. Quando tinha um dia livre, ia a Londres divertir-me. Quando se sabe que se vai morrer, o que é que interessa [o dinheiro]?

 

Depois da guerra, mudou-se para Portugal. Em que circunstâncias veio?

Mudei-me em 1957. Casei em 1956, vim a Portugal na minha lua-de-mel, com o meu marido dinamarquês. Ele nunca tinha visitado Portugal. Na Dinamarca, durante o Inverno, nevava, estava frio. Eu não falava a língua. Vivíamos numa casa pequena, simpática, que comprei (ele não tinha dinheiro). Aqui, em Fevereiro, estava muito agradável, ensolarado. Ele disse: “ Se conseguires alugar ou vender a casa, podemos ir viver para Portugal”.

 

Por causa do tempo mudou de país?

(Sandra – Fico tão feliz por isso ter acontecido. Adoro Portugal.)

Vendi a casa ao consulado belga.

 

O golfe era uma grande paixão? Foi campeã de França.

Depois, talvez. Comecei a jogar golfe quando tinha sete anos, nas montanhas, no Verão. Está no meu livro de bebé: ganhei um relógio de ouro aos sete anos porque ganhei, fiz um bom resultado. Depois, como os meus pais sempre nos incentivaram a jogar ténis ou golfe, escolhi o golfe. Estava na equipa francesa quando ganhei o primeiro campeonato, em 1934. As francesas, ao contrário das inglesas, que iam muito mal vestidas, eram muito elegantes.

 

Como é que era a roupa?

Tínhamos calças muito justas. Jogámos na Escócia contra os ingleses (deve ter sido em 1955); elas ainda jogavam de saia, não consentiam calças às raparigas.

Em 1940, quando estava na Escócia, antes de ir para Paris, decidi comprar um novo conjunto de tacos a um famoso professor. Cheguei a Paris com eles e nunca esquecerei a cara dos meus pais: “Mas que raio vais fazer com isso?”, “Vou jogar golfe”. Em França não se jogava golfe durante a guerra, mas eu não sabia isso. Quando fugi da casa de Paris, os meus pais obrigaram-me a deixar os tacos de golfe lá. E também todos os meus vestidos de noite. No final, foram os alemães que os usaram.

 

No início da nossa conversa, antes de começarmos a gravar, disse-me que nunca beijava os seus filhos quando eram novos. Esse tipo de ternura não é o seu género. Com quem é que tem, hoje, uma relação íntima?

Julgo que com ninguém, além da Sandra. Mas provavelmente também não te conto tudo, conto? Agora não tenho vida sexual [risos].

 

(Sandra – Quando a mãe fez 90 anos, fiz um discurso. Expliquei a todas as pessoas – vieram de todo o lado para a ver –, que ela era uma péssima mãe. Na verdade não gostava de crianças. Devia preferir jogar golfe, tomar conta do cão, tudo menos crianças. Mas ambas tivemos muita sorte. A minha mãe esteve muito doente. Teve tuberculose aos 60 anos, passou um ano num sanatório em França, entre 1976 e 1977. Eu estava a passar por um divórcio. Calhou que eu tinha tempo e fui passar dez dias todos os meses com ela: tornámo-nos boas amigas. No final do discurso disse: “Pode não ser uma grande mãe, mas é uma amiga maravilhosa”. A mãe tem amizades muito profundas. Não é de abraços... Em vez do abraço dá atenção, lembra-se dos aniversários, liga.)

 

Quer dizer que muito depois da guerra voltou a sentir a morte a rondar...

E no Vietname cortaram-me uma parte da perna. Fizemos a viagem juntas. Quando saí da sala de operações às sete ou oito horas da manhã, a única coisa que dizia à Sandra era: “Vai buscar-me o patê, vai buscar-me o gelado”. Lembras-te? Todos os dias tinha que saber o que era a comida. E quando estava a fugir [em 1940] era a mesma coisa.

 

Pensar em comida numa situação extrema pode ser uma forma de fuga. Ou simplesmente uma expressão de vitalidade.

Adoro ir a restaurantes. Vou às tascas. [Para Sandra]: tu não gostas de ir. Sou tão bem tratada. Há empregados à minha volta, todos me conhecem. Não sou snobe, nunca fui. O meu restaurante era frequentado por reis. Recebia-os com um vestido, as minhas pérolas. Não tinha dinheiro [risos], mas tinha um maravilhoso [relógio] Cartier em diamantes.

 

Termino perguntando sobre a sua última refeição. O que é que gostaria de comer, se pudesse escolher?

Sei qual seria a sobremesa: pudim de sêmola. E um pregado com molho holandês. E um pouco de caviar para começar. E para beber Pimms #1. Quando estava na Escócia, a cada pub que íamos, a primeira coisa que pedíamos era Pimms #1.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013

 

 

200 anos, 200 livros

05.05.22

ESAÚ E JACÓ

MACHADO DE ASSIS

“Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se.” Todos os países têm um falar inexplicável, um quê de Flora. Mas em Esaú e Jacó, os signos deste mistério que é o Brasil, conhecem alguma decifração.

Pedro e Paulo brigam desde o ventre. Como não brigar com o outro lado de si? Os gémeos são os apóstolos, Ulisses e Aquiles, Portugal e Brasil, Monarquia e República, a cabocla e o espírita, encarnam um infante absolutista, o outro liberal, são o passado e o futuro.

Os olhos de Machado de Assis estão na fractura e na transição, revelam as coisas que ainda não são e as coisas que já deixaram de ser. A vida nunca fica parada. A História também não.

 

TANTAS PALAVRAS

CHICO BUARQUE

Chico é um poeta dos maiores. Há anos que profetizo que um dia vai ao Nobel, bem antes de Bob Dylan, e agora difícil ou impossível por causa de Dylan.

Nas letras das suas canções, encontro as raízes do Brasil, uma genealogia sem fim, Noel Rosa, Vinicius, o subúrbio e a orla do mar, o futebol, a política, o samba da Mangueira, a erudição de, por exemplo, Leite Derramado, um gingado sincrético que só ele é capaz de fazer. Jobim resumiu bem: Chico é génio da raça.

Leio Tantas Palavras e desenrola-se um mapa. Ainda que não ouça a melodia, a voz de Chico, escuto uma sinfonia. O seu nome é Brasil.

 

VISTA CHINESA

TATIANA SALEM LEVY

Não se pode entender o Brasil sem o negro, sem o índio, sem a pobreza, sem o terreiro, sem a imigração, sem a violência sobre a mulher.

Vista Chinesa é um romance-soco, é o corpo da mulher transformado em campo de batalha. Batalha contínua, ancestral. Como se não fosse nada. No silêncio da carta que a protagonista escreve aos filhos, e que importante a noção de transmissão, escutamos um grito que esteve surdo, e que finalmente começa a ser audível. É corajoso, é urgente, é potente. Revela o medo, a lâmina afiada sobre a cabeça das mulheres, o sabor da jaca. E aponta para o futuro, a superação, a luz.

 

200 anos, 200 livros é um projecto que, no Bicentenário da Independência do Brasil, elabora uma lista de livros que ajudam a entender o Brasil. Fui convidada a integrar um conselho de 169 pessoas que amam e lêem o Brasil (obrigada) pelo José Manuel Diogo e pelo Sérgio Dávila (da Folha de São Paulo), indicando três livros. A coordenação científica do projecto, que permitiu chegar à lista agora divulgada pelo jornal brasileiro, é da historiadora Heloísa Starling. Estes são os três livros que indiquei. A lista final dos 200 está disponível no site da Folha. 
 
 
 

 

 

Júlio Pomar e Mário Soares

02.05.22

Como é que é quando dois velhos amigos se encontram? “Velhos?!”, graceja Júlio Pomar. Como é que é quando dois homens que se conhecem há coisa de 70 anos se reencontram? Fizeram-se amigos numa altura em que respirar e reagir eram quase sinónimos. Foram opositores da ditadura. Partilharam cela. Cumpriram o que então se prognosticou. Um afirmou-se como um grande pintor, o outro foi presidente da República. 

Conheceram-se num tempo em que Mário já prometia ser tudo e Júlio, mais novo, já entabulara a conversa consigo mesmo que é pintar. Eram jovens. Tão jovens que Júlio ainda tinha a cara marcada de acne. Nasceram com dois anos de intervalo, em 1924 e 1926.

Militaram na política num tempo em que inevitavelmente se intervinha. Inevitável é uma palavra recorrente no discurso de Pomar. Acaso podiam não o fazer? “Era preciso reagir”? – escreve Soares em Um Político Assume-se. A reacção, a intervenção, o comprometimento eram as palavras nucleares de um certo modo de estar.

Encontrámo-nos na casa do pintor, o político chega pontualmente pelas seis da tarde. Sentam-se lado a lado. Parecem sempre prontos a cumprir um verso da cantora chilena Violeta Parra: “Voltar aos dezassete, depois de viver um século”. Falam do passado com o entusiasmo de quem não desiste de sentir entusiasmo – segredo da longevidade? Falam do passado com o orgulho de não terem traído aqueles que eles eram, ao viver um século. Falam com a satisfação de quem sabe que empreendeu uma aventura extraordinária. Não se falou da caixa de aguarelas roxa de Júlio, primeiro grande presente. Nem do período em que Cunhal foi professor de Mário – apesar de o PC estar em toda a entrevista. Não se falou das diferentes fases da pintura de Pomar. Nem das prisões, do desterro, do exílio de Soares. O âmago da conversa é o tempo em que partilharam cela, em Abril de 1947, e se fizeram amigos, e os seus percursos se cruzaram. Um certo mundo estava a começar. 

Como foi isto? Um chá para Soares, um chá de outro tipo para Pomar (whisky, bem entendido). O desarrumo de Júlio, que vinha de dormir a sesta, contrastava com o fato elegante de Mário. Soares tinha manifestado alguma preocupação: “O Pomar fala pouco”. Mas Pomar parecia subitamente loquaz, e anunciava um novo fado…

 

Começamos pelo seu fado novo?

Júlio Pomar – Tem muito a ver com o presente. “Ó Liberdade chamei-te, tu não deste pelo nome, uma coisa é o apetite, outra coisa é a fome…”.

 

Porque é que escreveu sobre a liberdade?

JP – Estas coisas acontecem naturalmente. Não sei fazer nada por encomenda. Ou coincide com um período, com um desejo, com uma necessidade, ou então nada a fazer. Se falei de liberdade é porque os tempos e as condições em que vivemos nos levam a pensar em como a dita liberdade está longe de ser um direito adquirido.

 

A palavra da sua vida é liberdade?

Mário Soares – Sempre me bati pela liberdade. Em certos momentos achei que me tinha enganado no caminho para a conquistar – mas isso é outra questão. Toda a vida fomos partidários da liberdade. É uma das razões porque somos amigos desde sempre, desde a nossa juventude.

 

Vamos ao princípio. Como é que se forjou a vossa amizade?

MS – A nossa amizade é simples: tive sempre uma grande admiração pelo Pomar. Coisa que ele não teve por mim.

JP – [gargalhada]

MS – Eu acho isto. Eu era, quando o conheci, um estudante de Letras. Sem nenhuma importância, de nenhuma espécie. Era um aluno bastante medíocre, mas muito empenhado nas coisas políticas. Ele também. Eu ia a casa dele, via-lhe os quadros.

 

A relação faz-se, primeiro, pela admiração pela pintura, e só depois pelo vínculo político?

MS – Não. Pertencíamos ambos à comissão central do MUD Juvenil. Fomos julgados no mesmo tribunal, estivemos presos juntos. Inicialmente a amizade foi política. Mas quando me apercebi da importância do Pomar enquanto pintor – era já, nessa altura, um pintor excepcional – fiquei com uma admiração que ele não podia ter por mim, porque eu não era excepcional em coisa nenhuma.   

 

Não era?

JP – Posso entrar? O Mário é um político naturalmente. Eu, em tudo o que fiz, fui amador, no bom e no mau sentido. Uma coisa ficou-me da actividade política: a atitude de tentar usar a palavra no seu momento exacto. Não atrapalhar, não falar atabalhoadamente se se participa numa reunião. Isto para dizer que ouvi uma série de afirmações, muito simpáticas, mas que estou longe de apoiar. Quando o Mário diz que eu já era um grande pintor… Eu tinha era vontade de ser. Este peso da vontade é muito importante. Este querer era uma coisa muito sensível nos nossos amigos. Não havia indiferença.

 

Era fome e não apetite, como diz no fado?

JP – Ora aí está (fui entendido, o que é uma felicidade).

MS – Era fome de liberdade.  

 

Pomar era jovem. Mas tinha uma aura. Almada Negreiros foi a primeira pessoa a comprar-lhe um quadro, tinha feito uma primeira exposição muito badalada na Praça das Flores, num atelier forrado a jornais, Mário Dionísio tinha escrito sobre si. Eram sinais de um reconhecimento.

JP – Naquela altura, não acontecia nada, e havia uma curiosidade por acontecimentos mínimos. Como é que seria hoje possível um grupo de miúdos (que era o que éramos) serem vistos por pessoas que eram alguém?

 

Surpreendeu-o que a sua primeira exposição tivesse esse impacto?

JP – A capacidade de achar as coisas boas naturais não se deve perder. Infelizmente as pessoas sentem-se vocacionadas para a desgraça e o mal. Pessoa, aliás Álvaro de Campos, remata o seu poema Tabacaria assim: “…e o universo/ Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança”. Nós não tínhamos nada, estávamos desmunidos. Mas tínhamos uma esperança, que era talvez o melhor que tínhamos. Hoje é muito diferente. Não estou a dizer que é melhor ou pior.

MS – É preciso notar que quando nos conhecemos foi no final da [Segunda] Guerra. Estávamos esperançados de que as coisas viessem a acontecer melhor do que aconteceram. Havia muita gente que tinha olhado para nós. Aparecemos a fazer manifestações de rua, a desafiar os rapazes dos liceus, da universidade para fazer uma grande manifestação (como fizemos). Eu conheci pessoalmente bem, por exemplo, o Mário Dionísio. Tinha muito respeito por ele. Era professor no colégio do meu pai. Conhecia também, vagamente, o Almada. O Almada e o Mário Dionísio dizerem, já nessa altura, o que diziam do Pomar, toda a geração anterior ter por ele uma consideração extraordinária, também me fez a mim ter por ele um respeito que não tinha por outras pessoas.

 

A amizade reforçou-se quando estiveram presos?

MS – Reforçou. Fomos condenados. Pouca coisa, mas fomos condenados. Era um grupo grande, muitas pessoas. Fomos parar a Caxias. Passámos, ele e eu e mais dois ou três – o Zenha estava noutra sala, sozinho, era considerado o mais perigoso – muitos meses [numa cela].

JP – Quatro [meses].

 

Que recordações têm desse período?

MS – Estávamos juntos de manhã, à tarde e à noite. Ele a desenhar, eu a ler. E outros a jogarem as cartas. Era o que podíamos fazer.

 

Como é que era o jovem Mário de 20 anos? Porque é que teve tanta certeza de que o futuro político dele seria brilhante?

JP – Era evidente. Era feito para a actividade política. Não era difícil de prever. E o contacto diário, não há coisa melhor, ou pior, para se conhecer as pessoas, para perceber como funciona um grupo. É curiosa a necessidade de, inevitavelmente, aparecer um líder e um bode expiatório. Há um texto de um psicanalista húngaro que estudou com muita clareza o modo como um grupo acaba por se reger. A prisão é o sítio ideal (salvo seja!) para isso. É um retrato em caricatura da vida social.

MS – Tínhamos às vezes uma visitinha, mas era pouco tempo. Estávamos ali fechados, falávamos de tudo. Um dia, um de nós disse: “Vamos lá ver o que é que seremos daqui a 40 anos”. Eu disse logo: “O Pomar? O maior pintor português”. E ele, não sei se foi para me ser agradável: “Tu vais ser presidente da República”. Realmente acabei por ser. E pedi-lhe a ele para me fazer o retrato [oficial].

 

Um famoso retrato, pouco convencional. Retratou o seu amigo Mário e menos o estadista Mário Soares. Até aí, havia uma galeria de homens sisudos.   

MS – Foi da melhor maneira que podia ter acontecido. Tive alguns amigos que me disseram o diabo. O Almeida Santos disse-me: “Ó Mário, você guarde esse retrato em casa, e faça uma outra coisa que se perceba melhor”. O que é importante é este retrato. Não há dúvida de que é um retrato sensacional, porque me dá como eu sou.

JP – Mais uma vez se vê como as pessoas podem ser condicionadas. Entende-se que um político deve ser apresentado de determinada maneira, e tudo o que não vá dentro dessa maneira (há uma autoridade que deve ser expressa claramente), aqui d’el rei!, que ele não está nas suas funções. Se um dia um pobre de um pintor se lembra de pintar um homem que é político no seu aspecto mais natural – do homem participante, que não está quieto, que tem um sorriso – as pessoas ficam escandalizadas. O José Augusto França, que não discutia a sua qualidade pictórica, considerava o retrato impróprio.

 

O retrato é muitos anos mais tarde. Voltemos ao tempo em que estiveram presos. No livro Um Político Assume-se escreve: “A prisão foi para mim uma grande escola de conhecimento de mim próprio. Ganhei uma confiança em mim que não tinha antes. Comecei a pensar, mais do que então, pela minha própria cabeça.” Tinha 24 anos.  

MS – Mais do que quando estivemos presos juntos, isso aconteceu quando estive preso sozinho. Quer na Penitenciária, quer no Aljube. Estive numa cela pequena, sozinho. Pensa-se mais. Quando estive preso com ele, éramos uns cinco ou seis ou sete. E era agradável, contávamos coisas uns aos outros. Tínhamos um burro de um agente que tinha um cabelo que começava aqui [no meio da testa]. Um tipo enorme, com muito mau aspecto. Metia os dedos – como víamos pelo buraco da fechadura (às vezes não fechavam aquilo bem, e víamos para fora) – na comida que nos mandavam. Embirrávamos com ele, e ele também connosco. Um dia, o Pomar decidiu fazer o retrato deles todos, dos carcereiros. Acho que isso está publicado. Disse: “Vamos chamar aquele tipo e mostrar-lhe o retrato”. Chamámos. “Conhece este senhor?”. “Sou eu! Quero isso, quero mostrar à minha mulher”. “Ai quer? O senhor tem-nos tratado muito mal…”. [riso] Anos depois, já eu era primeiro-ministro, meteram na cadeia o Edmundo Pedro. Eu sabia que era uma injustiça absoluta.

 

Conte a história toda.

MS – No tempo do PREC, os militares tinham-nos dado armas. Depois, a normalidade estava reconstituída, era preciso entregar as armas. Disse ao Edmundo Pedro: “Não posso ficar com as armas aqui. Tens de as entregar ao sítio de onde vieram.” Ele falou com um militar, que se portou bastante mal (o Edmundo Pedro explica isso nas memórias). Quando foi numa camioneta com as armas, para as devolver, apareceram jornalistas. Fotografaram-no, prenderam-no, acusaram-no de ser contrabandista de armas! Fiquei furioso. “É preciso pô-lo já em liberdade”. O ministro da Justiça, que era um homem sério, seguro, disse que não havia maneira de proceder assim. “Eu tenho a certeza de que foi uma malandrice”.

Bem, disse que queria visitá-lo imediatamente. Estava toda a hierarquia [dos serviços prisionais]. Fui falar com ele, a sós, apenas com uma pessoa a mostrar-me o caminho. Quando cheguei ao quarto andar, quem é que estava a fazer o serviço? O tal guarda a quem o Júlio tirou o retrato. Com aquela mesma cabeça! Volta-se para mim e diz-me assim: “Ah, tu também já cá estás outra vez?”. [gargalhada]

 

Têm em comum uma proveniência republicana, no pai de Mário Soares e no tio de Júlio Pomar. (O tio Bernardino foi a figura masculina da sua vida, uma vez que o pai morreu quando tinha apenas uns meses). Isto foi determinante da forma como se aproximaram da política e se fizeram homens interventivos?

JP – É completamente diferente a posição do meu tio, Bernardino Simões, do Professor João Soares. O meu tio era um comerciante que gostava muito da companhia de jornalistas e através dessa relação, das tertúlias diárias, foi formando a sua posição política. Esteve sempre contra o governo. A ponto de ter sido preso e deportado para Timor. O Tarrafal não existia ainda. Eram frequentes as tentativas [de derrube], as conspirações, a turbulência política. Passou um ano longe da família. Quando regressou à vida normal, facilmente pôs a correr que lá em casa havia um miúdo que estava sempre a desenhar. Um dos ex-companheiros de prisão, escultor, que era professor do ensino técnico, disse-lhe: “Manda o rapaz lá para a aula”.

 

A aula era na escola António Arroio.

JP – Eu tinha sete anos. Na escola eram só meninas por todos os lados. E foi assim que, antes mesmo da instrução primária, fui posto a desenhar. Podia ter ganho um horror a tudo quanto tivesse que ver com a pintura. Mas não. O facto é que entrei cedo por essa porta. O condicionamento político, não só condicionou como estimulou uma certa vocação.

MS – O meu pai era um conspirador republicano. Toda a família era republicana. Eu era republicano, mas fui mais além, porque era comunista.

 

Isso já não merecia a aprovação do seu pai.

MS – Mas também não fez repressão. Pelo contrário. O meu pai, quando falava comigo dos meus colegas, dos que iam lá a casa, e éramos todos pró-comunistas nessa altura, chamava-lhes: “Os teus camaradinhas”. Não era agressivo. E nunca tentou evitar que eu fosse o que fosse. Nem na política nem na religião. O meu pai sempre foi muito católico. Começou por ser padre, depois despadrou-se e casou com a minha mãe pela igreja (teve que fazer um processo na cúria romana), e nunca me obrigou a ir à missa. Como andou muito por fora, fugido, nas revoltas e tal, quando regressou, tinha eu onze anos, já tinha umas ideias que não eram as dele. “A tua mãe nunca te ensinou…?”. “A mãe tinha mais que fazer, nunca me ensinou nada de rezas.” A minha mãe acreditava em Santa Bárbara quando trovejava.

Já agora conto: quando era miúdo, estive muito doente. Uma doença de brônquios. A minha mãe não me deixava apanhar frio, não me deixava apanhar sol. Os médicos diziam que eu ia morrer. Tinha três anos de idade, coisa assim. Resolveu fazer uma promessa. “Se ele escapar, vou à Senhora de Fátima com uma grande vela, do tamanho dele!”. Pus-me bom. Passou um mês, um ano, dois anos, três, quatro, e não havia maneira de ir a Fátima. Quando a vida do meu pai estabilizou, e fundou o colégio, disse à minha mãe: “Tu não fizeste uma promessa? Tens de a cumprir”. E então lá vou eu, com os meus doze anos, já espigadote, com uma vela para entregar à Senhora de Fátima! Foi uma das grandes humilhações da minha vida!

 

Pouco depois, em 1937, morria Afonso Costa. Pôs uma gravata preta como os crescidos, em sinal de luto.

MS – Os meus irmãos também eram todos republicanos – nunca comunistas. Os dois. Eram muito mais velhos do que eu. Puseram gravata. “Tu também tens que pôr gravata”. E eu pus. Nem sabia quem era o Afonso Costa.

 

Porque é que aderiu/aderiram ao PC? Os vossos familiares tinham esta costela republicana acentuada, e de oposição, mas nenhum deles tinha simpatias comunistas.

MS – A [Segunda] Guerra foi ganha, em parte, pelos soviéticos. No final da Guerra havia a ideia de aquilo ser um mundo novo; [o período em que] os comunistas mataram uns tipos, passou; agora estão aliados aos democratas, vai ser tudo bom. Por isso, aderi.

 

Aderiu em 1942. A sua decisão teve que ver directamente com a invasão das tropas de Hitler, em 1941, da União Soviética?

MS – Claro, foi decisivo. E também pela contra-corrente, pela maneira como resistiram, que foi extraordinária.

JP – Nas condições da altura, era quase que inevitável. Era um partido jovem. Embora a ideia de partido fosse uma blasfémia. Era uma maneira de sublinhar a oposição ao mundo que encontrávamos. Com toda a mitologia em que colaborávamos, cheios de boa vontade.

 

A mitologia dos amanhãs que cantam?

JP – Exactamente. E as grandes figuras, do Brasil, por exemplo, de que se ouvia falar, eram comunistas. Um Jorge Amado, um Oscar Niemeyer.

MS – O Niemeyer ainda hoje é comunista. Eu tinha bastantes relações com ele. Era grande amigo de um grande amigo meu, o Aparecido de Oliveira. Quando eu ia ao Brasil, o Aparecido levava-me ao Niemeyer, era obrigatório. Um dia, à mesa, estávamos a discutir, e eu disse: “Como é que um homem da sua categoria, um génio, é comunista?” Eu também fui. Mas os comunistas mataram nos gulags mais de um milhão de pessoas. Ele volta-se para mim: “Isso é mentira! Quando muito, mataram aí metade disso que você está a dizer!”.

 

É conhecida a circunstância da saída de Soares do PC. No último livro, conta que houve uma tentativa de o trazer novamente para o partido, que recusou. Nenhuma hesitação quanto àquele caminho?

MS – Nenhuma. Convenci-me de que, se aquilo viesse, seria uma desgraça para nós.

 

Cortar com o PC significava cortar com os amigos, com um modo de vida. Não é conhecido o afastamento de Pomar. Como foi?

JP – É uma saída quase insensível, muito mais tarde da do Mário.

MS – Quando fui em visita oficial à União Soviética [1987], já com Gorbachev, convidei várias pessoas, como é costume, e convidei o Pomar, que nunca tinha ido lá. No avião iam muitos jornalistas, que naturalmente procuravam notícias, perguntavam a opinião a toda a gente. O Pomar sempre calado. No regresso, um perguntou-lhe o que é que ele pensava. O Pomar, que é muito parco em palavras, mas muito lúcido, diz assim: “Ver para descrer!” Foi a coisa melhor que apareceu no jornal.

 

Quando é que descreu?

JP – Ah, muito antes. A actividade política era muito intensa. Foi total, mas não durou muito tempo. Fui-me desgostando, por um lado, e por outro, fui dando mais importância à tentativa de fazer bonecos. Por ali, pela militância política com os meus contemporâneos, não havia furo. Vamos lá ver o que é que isto quer dizer… Na actividade política sentia-me contrafeito.

MS – Sucedeu a muita gente.

 

Mas a si não.

MS – Eu era um engagé político.

JP – Claro. Eu não. Era episodicamente, ou inevitavelmente um engagement político. Inevitável pelas próprias condições do país. Não havia alternativa [senão intervir].

 

A sua actividade enquanto pintor era marcada pelo seu engajamento político. Toda a fase neo-realista, quadros como O Ganhadeiro (1946) ou O Almoço do Trolha (1947), traduzem esse comprometimento. Ou até o retrato que fez de Norton de Matos (1949), sabendo que isso lhe podia custar o lugar de professor do ensino secundário.

JP – [riso]

MS – Nós estávamos muito aflitos porque não havia dinheiro para a candidatura de Norton de Matos. Eu era do secretariado da candidatura à presidência. Era um homem notabilíssimo. Foi o único que vi – ouvi – falar com arrogância ao Salazar. Pelo telefone.

 

Como é que foi essa conversa?

MS – Disseram-lhe que a Pide tinha feito assim e assado, e o Norton agarrou no telefone e disse-me: “Quer ver?”. Telefonou para o presidente do Conselho (que apareceu ao telefone, ao contrário do que eu julgava) e disse-lhe das boas. “Vou tomar medidas”. Quer dizer: ele tinha muito respeito pelo Norton de Matos.

A candidatura: estávamos sem dinheiro e lembrei-me do seguinte: “Vamos fazer um desenho. Arranjo-lhe um pintor, grande pintor, que faz um retrato, e [pomos] uma frase sua. Vamos vender aquilo a dez tostões cada um. Vai dar um dinheirão!”. Assim foi. Quando ele viu o Pomar, um rapazinho novo, mais novo do que eu, ainda, perguntou: “Foi isto que você me arranjou?”. “Ó senhor general, esteja descansado. Ponha-se a falar comigo, vamos lá ao despacho.” O Pomar olhou para ele, [faz gestos com a mão], dez minutos no máximo, fez-me sinal. Fui lá ver. Era um retrato excepcional. O Norton de Matos disse: “Oh, é um génio”. Nunca o viu? Tenho em casa, sempre, no meu escritório. 

 

Porque é que tem perto de si o retrato de Norton de Matos? 

MS – Tinha muita consideração e amizade por ele, não obstante ele me ter tratado mal.

 

Achou que defraudou a expectativa que ele tinha em si, quando lhe contou que era do Partido Comunista? Foi a seguir que ele o tratou mal.

MS – Foi uma das razões por que saí do Partido Comunista. Obrigaram-me a dizer que eu era o representante deles dentro da comissão. Levar-me-ia à cadeira, tornando-se público. Mas disse! Eu não teria sido secretário-geral da candidatura se não tivesse havido uma pressão que fizeram para me pôr lá. “Não aceito que me façam isto. Como vocês é que me puseram aqui, vou cumprir. Mas nunca mais farei nada com vocês”.

 

Como é que foi a reacção do general?

MS – Ficou a olhar para mim com um ar que não sei explicar, sem dizer nada. “Se não há mais despacho, posso sair?” “Com certeza.” Umas horas depois estavam os arquivos todos, máquinas de escrever, tudo retirado. Eu estava banido. E não fui posto fora da candidatura porque o Azevedo Gomes, figura extraordinária da política daquela época, foi lá dizer: “Se o põe fora, sou solidário com ele e vou também”. Mas nunca mais pude ir a um comício onde estivesse. Apesar de tudo, tenho por ele simpatia. E foi um homem extraordinário, isso é que é indiscutível. Também percebo que estivesse danado… Falava comigo todos os dias, em confidências, era um tipo de quem ele gostava, era amigo do meu pai; e depois eu vou dizer-lhe que sou comunista?

 

Estava à espera de uma reacção diluviana à sua confissão?

MS – Estava à espera de uma reacção terrível. A sede era no rés-do-chão, no primeiro andar a casa dele. Tinha uma sobrinha (que gostava imenso de mim, por acaso), muito simpática; vivia com ele, era uma espécie de filha. Quando lá cheguei, queria falar com ele, ela disse: “Ó Mário, não lhe posso abrir a porta. Não sei o que é que você fez ao meu tio, mas ele não deixa que entre aqui de maneira nenhuma”.

 

Qual foi o destino do desenho? Sempre foi vendido a dez tostões?

MS – Então não foi? Milhares de cópias.

JP – Eu era professor do ensino técnico. Deu-me popularidade entre os colegas. “Foi o sr. dr. que fez a caricatura do senhor general? Faça a minha, faça a minha!” A seguir fui corridíssimo, sem apelo nem agravo. Olho da rua!

MS – Houve outra coisa que tu fizeste no cinema [Batalha] e que destruíram… Conta lá.

JP – Eu não tinha nem 20 anos quando me deram aquele trabalho, no centro do Porto. Isto era possível. Eu tinha já uma posição política definida. Isso permitia uma confiança entre várias gerações. E havia um ideal democrático que nos ligava e que promovia o encontro. A Brasileira, o Majestic eram pontos de cruzamento.

 

Era um tempo em que as discussões aconteciam na mesa do café.

JP – O Abel Manta ia à Brasileira pelo menos três vezes por dia. Havia um convívio entre pessoas que não existe mais. As pessoas não têm tempo. Outra coisa: não se passava rigorosamente nada no país. Foi isso que me permitiu que não fosse funcionário público. Dá que pensar: qualquer miúdo com as mesmas qualidades teria dificuldade em fazer hoje o mesmo percurso.

 

A mesma coisa para a política. Apesar das juventudes partidárias. Soares fez o primeiro discurso com 18 anos.

MS – A grande diferença é que nós fizemos aquilo tudo por nós próprios. E os tipos de cima reconheciam-nos.

 

Voltemos à história do mural para o cinema Batalha, em 1946.

JP – Acontece que entretanto sou preso. Essa vez em que estive preso com o Mário. Estava quase tudo pronto, faltava uma coisinha cá em baixo. O cinema não podia estar parado, as obras estavam prontas, abre mesmo, com a [minha] pintura interrompida. Quando saio da prisão, vou acabar aquilo. Um governador civil do Porto dirige-se ao cinema. “Isto não pode ser. Deita abaixo”. Durante a execução houve um pequeno acontecimento; eu já estava nos andaimes e vejo um reputado artista da altura sentado diante da minha parede. Vou directo ao arquitecto: “Que história é esta?”. Este artista, que era um tipo de certo mérito, faz um movimento no sentido de dizer que eu, um miúdo, era incapaz de fazer aquilo, e que devia ser ele, o artista por excelência do Porto, a fazer. Já sabia como é que as coisas se faziam, fui para os jornais, e o homem meteu a viola no saco. Muitas vezes associa-se a destruição [dos frescos] a este episódio.

MS – Deu muita repercussão. Houve muitos protestos por te terem feito isso [a destruição, pintando por cima do que Júlio havia feito]. 

 

Era um tempo turbulento politicamente. Uma das estratégias da PIDE era minar as relações, criar a suspeição. Este é de confiança, aquele não é. Como é que se construíam as amizades sem medo que o outro fosse um traidor, um delator?

MS – Suponho que não tivemos casos desses. Tínhamos uma espontaneidade na adesão, no desejo de fazer coisas… Nunca apagámos nenhum tipo. Houve tipos que saíram, mas nunca fizeram denúncias, nada de especial.

 

Nunca sofreu nenhuma desilusão deste género? Alguém amigo que o traiu.

JP – Não. Evidentemente houve pessoas que eu achei que eram extraordinárias e que depois, no convívio, não eram tão extraordinárias como pareciam.

 

A cadeia é um lugar que permite perceber a consistência de um sujeito. Se o que dizem coincide com o seu comportamento.

MS – Ah, sim. Mas não tivemos nenhum problema desses. Tivemos um camarada que era filho de um que era da Maçonaria, Ramon de la Féria. Íamos a ser transportados para Caxias e ele tinha a mania de fumar (fumava-se em todo o lado). Pôs o cigarro assim [faz um gesto com a mão] e antes de chegarmos a Caxias começou a sair fumo por todos os lados. Os próprios pides que iam lá dentro ficaram aflitos. Estivemos uma hora até apagar o fogo.  

 

Conta isso e ri-se. Como se ri de quase tudo. Parece ser uma coisa essencial em si: encontra sempre um elemento de graça mesmo nas situações mais dramáticas. Uma das suas histórias mais famosas é quando, sabendo que vai deportado daí a horas, tem mesmo assim um jantar extraordinário.

MS – Não tive um jantar extraordinário. Fui deportado e ia muito irritado por ser deportado. Mas quando me puseram em primeira classe no avião, para não contactar nem ser visto pelos outros, e vem um tipo a perguntar o que é que queria comer – “tem ali lagosta…” – nessa altura pensei: “Bem, se calhar é a última refeição.

 

[O telemóvel toca e Mário Soares diz está a acabar a entrevista. Que é mais minuto, menos minuto. E que não leva ninguém para jantar. Quando desliga, diz: “Era a Maria de Jesus”.]

 

É um fundo de esperança que nunca perde? Não há nada que o deite abaixo. 

MS – Acho que há.

 

Alguma vez viu o seu amigo quebrado?

JP – Nem às paredes confesso!

MS – É isso mesmo.

 

São amigos de contarem coisas íntimas um ao outro?

MS – Sabe, o Pomar foi cedo para o estrangeiro.  

JP – Instalei-me em 1963 em Paris.

MS – Até essa altura, tive relações com ele. Só que não eram muito frequentes. Ele ia para o atelier, eu ia para as minhas coisas. Quando ele cá vinha, de vez em quando encontrávamo-nos. Depois do 25 de Abril, voltámos a ligar-nos mais. Acho que é isto, não é?

JP – É.

 

Coincidiram em Paris quando Soares esteve aí exilado (1970/74)?

JP – Sim. Mas os nossos caminhos eram diferentes. Eu vivia muito isolado. Mais do que cá, até.

 

Respondam: são amigos de contar coisas íntimas um ao outro?

JP – Que é isso de contar coisas íntimas? Espera lá, espera lá. Uma coisa é o detalhe preciso, outra coisa é o que leva as pessoas a viver certos detalhes. Não tenho nada o sentido…

MS – … de te andares a queixar? É isso, no fundo.

JP – Há uma necessidade que nos leva a determinado acto, a determinada parte, a determinados convívios. O que importa é essa necessidade e o reconhecimento dela. Muitas vezes as pessoas não têm coragem para isso. Que isto de viver é difícil, não é brincadeira nenhuma. Não sabemos viver com as nossas contradições. “É um indivíduo cheio de contradições”, dizem as famílias. Ainda bem! Se não tem consciência das suas contradições, o bicho homem anda com as quatro patas no chão.

 

Voltando ao fado, que fala de política: falam de política?

MS – Quando nos encontramos, não temos problema nenhum em falar de tudo. Encontramo-nos relativamente pouco, temos vidas muito cheias, ele e eu. Falamos de política, com certeza.

JP – Nem só do momento, nem só do passado.

MS – Vou contar uma coisa para terminar: um dia ele foi, mais o António Lobo Antunes, que eu conheci por intermédio dele, fazer uma coisa no Lux (que é uma espécie de cabaret junto à Bica do Sapato). Era para ser uma discussão entre os dois – lembras-te? O Lobo Antunes fala pouco (pensa bem, fala pouco, escreve melhor). O Pomar também não é de muitas palavras.

 

Hoje falou bastante.

MS – Falou. Mas é uma excepção. O jornalista pôs perguntas. Mas aquilo não andava nem desandava. Em desespero de causa, o jornalista chamou-me: “Não quer vir fazer umas perguntas?”. Eu estava ali para assistir. Lá fui. Entre outras coisas, contei que o conheci quando ele era um rapazinho pequeno, jovem, 17 anos no máximo, ainda com umas coisas na cara. E era feio. A gente toda riu. Quando o programa acabou, a mulher do Júlio disse-me: “Foi muito injusto. O Júlio sempre foi um bonito homem”. Quem feio ama, bonito lhe parece!

JP – [gargalhada]

MS – Ele estava ao lado, não disse nada, nem uma palavra. Passado um mês, nem tanto, recebo um quadro, que lá está pendurado, um auto-retrato dele. Parecia verdadeiramente um macaco. Mas era ele, toda a gente o reconhecia. Dizia assim: “Ao Mário, para veres que ainda sou mais feio do que tu julgas!”.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012