Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Anabela Mota Ribeiro

Carolina Villaverde Rosado e Joana Villaverde

28.06.22

Joana Villaverde é artista plástica. Tem 43 anos, duas filhas. Carolina Villaverde Rosado, a filha mais velha, estuda Ciências Políticas em Roma. Tem 20 anos. Constança acabou de fazer 18 anos, estuda na António Arroio, vive em Lisboa.

Joana casou com Patrícia há dois anos, estão juntas há 14. No casamento, em Aviz, estava o pai de Carolina e Constança, a família deste, as famílias das noivas, as pessoas da terra...

Carolina não tem memórias do pai e da mãe juntos. Desde que se lembra de si, tem uma madrasta e não um padrasto. Ela não gosta de dizer madrasta. É a Pat.

Como foi crescer com uma família homossexual? Fez diferença?

Mãe e filha contaram, em separado, como é esta família igual às outras, e feliz à sua maneira.

 

Carolina

Um auto-retrato? Posso dizer que sou uma menina alegre. Não, não sou alegre: sou feliz. Curiosa. Gosto de pessoas. Resumindo muito: eu é pessoas. Sou eu em relação com os outros. Não me preocupo com o que os outros dizem. Talvez um bocadinho... Ninguém é completamente livre. Antes fôssemos. Mas a relação com os outros é central. Uma vez disseram-me: “Com o teu sorriso é possível alegrar tudo”. A base da minha felicidade está na educação que os meus pais me deram. Ou seja, faz o que te faz feliz.

Separaram-se quando eu tinha dois anos. São muito novos e tiveram-me muito novos. Isso é importante porque consigo estar com eles e os amigos deles sem pensar: “Lá vêm os adultos”.

O meu pai veio viver para Portugal aos seis anos. A minha avó é inglesa, o meu avô é português. Começou a trabalhar aos 17, é designer gráfico. Nenhum dos meus pais acabou a escola. São os dois uns meninos.

A minha irmã é dois anos e quatro meses mais nova do que eu. Os meus pais separaram-se quando ela tinha três meses. Ficámos a viver com a minha mãe e ao fim de semana estávamos com o meu pai. Mas aquilo mudava. Era consoante as folgas que ele tinha. Nunca houve nada fixo. Nunca houve aqueles problemas de tribunais. São super-amigos. Não me lembro dos meus pais juntos. Tenho memórias da separação, de discussões ao telefone.

A minha mãe teve uns namorados entre o meu pai e a Pat. O meu pai foi tendo mais namoradas. Quase não me lembro da minha vida sem a Pat. Desde os quatro anos que tenho esta madrasta. Nunca digo isto! Não gosto nada de dizer madrasta. É a minha mãe e a Pat.

As minhas amigas, as principais, sabiam. A Pat era uma amiga da minha mãe que vivia lá em casa. Eu fazia questão, quando as minhas amigas dormiam lá em casa, de dizer que era uma amiga da minha mãe que dormia na mesma cama da minha mãe. Era evidente que não havia outro quarto, e preferia dizer.

Nós vivíamos na Estrela com a minha mãe. De vez em quando aparecia a Patrícia. Ficou Pat mais tarde. Perguntei porque é que ela não vinha mais. “Porque vive em Madrid.” Estava a fazer o doutoramento, é bióloga. Era bom quando estava. Era uma pessoa simpática, que gostava da minha mãe.

Depois fomos viver para casa dela, na Alameda. Eu tinha seis anos. Estava na primeira classe e lembro-me do momento em que disse que ia mudar de casa. A princípio, era a casa da Pat, da família dela. A Pat tinha vivido nessa casa quando era pequenina. A minha irmã e eu dormíamos no quarto que tinha sido dela.

Uma vez perguntei directamente à minha mãe se ela e a Pat eram namoradas. Tinha nove anos. Era para ter as coisas mais claras. A minha mãe disse que sim. Normal. Contei a uma amiga. “Olha, afinal não é só uma amiga que dorme na mesma cama. São namoradas.” Eu sabia que eram namoradas, mas passou a ser verbalizado. Antes disso, nunca tinha sido dita a palavra “namorada”.

Quando era pequena, dizia. Era uma coisa nova para mim e para os outros. Não queria que os meus amigos sentissem que era uma coisa esquisita. Foi uma forma de me proteger, para não ter os bullyings. Nunca tive, não sei o que isso é. Dizia para que percebessem que era uma coisa normal. Depois deixei de dizer. Era tão normal que nem se dizia. Tenho uma amiga antiga que só percebeu quando lhe disse que iam casar. Ficou espantada. “Mas eu nunca te tinha dito que a minha mãe é homossexual?”

Nunca percebi bem como é que o meu pai lidou com a relação da minha mãe e da Pat. Acho que lidou bem. O meu pai estava no casamento delas, foi um dos primeiros a chorar... O meu pai tem conflitos amorosos, conta à minha mãe. A minha mãe tem problemas amorosos ou outros quaisquer, conta ao meu pai.

Chorou toda a gente no casamento. Era uma coisa tão bonita... Era o triunfo do amor.

Tivemos uma educação estrangeirada. A normalidade tem a ver com o meio em que circulamos. Foi possível que fosse uma coisa normal. A minha mãe protegia-nos muito. Mas sempre se falou de tudo lá em casa. Sexo, amigos, problemas amorosos, escolares, dinheiro. O que nos perturba tem de ser dito. Se não se partilha fica ali uma bola. Acho que isto tem a ver com a minha família, que nunca fez daquilo um bicho de sete cabeças. Nunca se escondeu.

Também nunca se expôs. Não andavam aos beijos. Acho que nunca vi um grande beijo entre a minha mãe e a Pat... Também não se vêem muitos casais hetero aos beijos, como se um entrasse dentro do outro. 

Na escola fiz um trabalho de grupo. Um tema à nossa escolha. Escolhemos homossexualidade. No Liceu Francês há pessoas abertas e outras que não são tão abertas. Colegas. Os professores são abertos. São franceses fixes. O meu grupo estava a fazer um trabalho sobre a homoparentalidade. Sobretudo os rapazes eram contra. Um colega disse: “Isso é uma coisa horrível. Depois as crianças também vão ficar homossexuais”. Simplesmente respondi: “A minha mãe é homossexual. Sou homossexual, eu?” Ficaram a olhar para mim. Brancos. Nunca mais me esqueço da cara deles. “Não.” Foi assim que lhes disse que a minha mãe é homossexual. Estava a enervar-me aquilo. Estavam a ser tão estúpidos, tão estúpidos...

O trabalho ficou chato. Passaram a ter mais cuidado com aquilo que diziam. Não era preciso.

Tinha 16 anos quando isto aconteceu.

Nunca senti nenhuma vergonha, nenhum embaraço. Nunca. As minhas amigas foram ao casamento da minha mãe. Fiz questão de ir bonitinha. Fui despejar o lixo e uma senhora de Aviz, onde foi o casamento, disse-me: “Então muitos parabéns às noivas”. Como é que aquela senhora, que nunca tinha visto, sabia que era o casamento de duas noivas? E estava contente!

Quando eu tinha 15, 16 anos, elas separaram-se. Fiquei super triste. Achei que não iam voltar. Uma amiga disse-me: “Claro que vão voltar. Vê-se mesmo que gostam uma da outra”. Passou um ano, um ano e meio. A minha mãe foi viver para Nova Iorque cinco meses, ganhou uma bolsa. Voltaram. Fiquei muito feliz. Porque, lá está, é a minha mãe e a Pat. Sei que gostam muito uma da outra.

Fez-me confusão. “E agora, será que a minha mãe se vai juntar com outra mulher?” A possibilidade de vir outra mulher... Não sei se era por ser outra mulher ou por ser outra pessoa. Acho que era um misto das duas coisas.

Já com o meu pai, sempre que acaba com uma namorada, quando vem outra há sempre um nervosismo. “Ai, ai, ai, e se eu não gostar desta?”

Também me lembro de pensar: “E se agora é um homem?” E se a minha mãe não gostava de mulheres (em geral), gostava era da Pat? Também era estranho pensar na minha mãe com um homem.

Quando se começou a falar de co-adopção, disse: “Não me importava de ser co-adoptada”. Não era não ter pai ou não ter mãe. Era ter mais. Não posso ser co-adoptada porque tenho um pai, mas não me importaria. Não é uma substituição, é uma mais valia.

A minha mãe vive um pouco nas nuvens. A Pat não. Eu sou muito responsável. O meu pai também é, mas não tanto como eu. A minha mãe goza: “Ela sai a ti, Pat”. Saio à Pat nisso. E na noção de que há coisas que têm de ser feitas para não se viver só no sonho. 

Estando a minha mãe e a Pat casadas é mais fácil lidar com a coisa. “Namorada” soava um bocadinho esquisito... É mulher! É mais oficial ainda. Quanto mais oficial, mas fácil é falar das coisas. O casamento põe a coisa mais ao nível de outros relacionamentos. 

A experiência da minha irmã é diferente. Ela não é tão aberta. Quase não falámos sobre este assunto. Só um pouco, quando elas se separaram. Também não falávamos muito do meu pai e das namoradas dele. Talvez falássemos um bocadinho mais porque houve várias. Acho que nunca falámos sobre a minha mãe e a Pat porque não era preciso falar. Fazia parte.

Se calhar não faz sentido o que vou dizer, mas digo: não se questiona o pai e a mãe. São aqueles. E eu também não questionava a minha mãe e a Pat. Desde que me lembro de mim, elas existem.

A verdade é que a minha irmã e eu só começámos a falar desde que fui para Bruxelas, onde estive dois anos. Agora estou em Roma. Ela começou a crescer, começámos a ter mais proximidade. Começa a ser também uma amiga, para além de ser minha irmã.

Referências? Como tenho a referência masculina do meu pai... Mas não é por aí. Acabamos por ter referências masculinas e femininas de várias pessoas. O avô, um tio, um amigo mais próximo. Acho esse argumento um bocado estúpido. Acho que depende mais da relação com os pais. Tenho amigos que não falam com os pais. Eu falo. Com os meus pais, com a Pat. Agora também falo com a Pat sobre tudo.

Referências femininas: a minha mãe nunca se pintou, eu era a miúda mais pirosa que se possa imaginar. Ainda bem que a minha fase pirosa foi aos seis anos... Pintava-me, inventava fatiotas, ia de saltos altos para a escola. A minha mãe dizia: “Há-de passar”. E passou. O maquilhar vem da minha avó materna. Ela punha um risco nos olhos e usava uns brincos brilhantes.

A minha família é uma família alargada. O núcleo é a minha mãe, a Pat, o meu pai e a minha irmã. Não sei se as namoradas do meu pai entram na família alargada... 

Nunca tive ordens da Pat. Ordens do tipo: “Vai lavar a loiça”, sim. Decisões do tipo: “Posso ir a uma festa?”, não. Talvez entre elas houvesse um consenso, mas a informação passada era a da minha mãe. Nunca tive com a Pat uma disputa pelo poder. Posso ter dito, em criança, “Tu não és a minha mãe”. Como disse às namoradas do meu pai. O normal que os miúdos dizem. “Tu não mandas em mim.” Birras. Talvez o “vai lavar a loiça” da Pat não fosse igual ao da minha mãe. Mas tínhamos de lavar de qualquer maneira.

Não percebo essa coisa de os filhos dos homossexuais saírem homossexuais... Eu não sou. Quer dizer, ainda não me apaixonei por nenhuma mulher, nunca me senti atraída por nenhuma mulher. Mas quem sabe?

 

Joana

É igual. Mãe, pai. Mãe, mãe. Pai, pai. O principal para as crianças é sempre o amor.

Tive as minhas filhas muito cedo. A única certeza que eu tinha era que tinha amor para lhes dar. Do resto, não sabia nada. Se ia ter casa, se ia ter dinheiro para pagar as contas. Eu sabia que tinha a capacidade de as amar. Sabia mesmo. As minhas filhas cresceram a saber que são amadas. Por isso, tanto fazia, de facto, a sexualidade que a mãe tinha.

Elas são amadas pela mãe, pela mulher da mãe, pelo pai, por mais gente. Ganharam mais família.

Para elas, durante alguns anos, era uma coisa ambígua. Tive alguns cuidados, porque eram muito pequeninas quando comecei a namorar com a Patrícia. Tive medo que fosse tão natural para elas que se pusessem a dizer na escola que a mãe tinha uma namorada e que pudessem sofrer com isso.

Uma das primeiras coisas que quis fazer – por elas – foi dizer ao pai delas que tinha uma namorada. Dizer à mãe do pai delas que tinha uma namorada. À minha mãe, à minha família. Quer dizer, que o núcleo familiar delas soubesse. Soubesse tudo. Que fosse tudo claríssimo.

Vamos do princípio. Tive a Carolina com 22, quase 23, a Constança com 25. Era uma maluquice. Tem a ver com as artes. Era um amor e uma cabana. Concretizámos esse sonho, o Zé Pedro e eu. Ele é designer. Ultra-presente enquanto pai. Foi muito importante nesta revolução na minha vida. Eu própria também não sabia que havia esta possibilidade de me apaixonar por uma mulher.

Ah.

Sabe o que era? Era a capacidade de amar. O que for. Homem, mulher..., aconteceu-me assim. Não é ser uma coisa e depois ser outra. É ser-se sempre a mesma pessoa com inúmeras capacidades. A capacidade de amar – os filhos, um homem, uma mulher – existe em mim. Não houve nenhuma alteração.

Na sociedade que temos não é simples assumir a homossexualidade. Nunca quis dar entrevistas. Não tenho de expor a minha vida pessoal e a minha sexualidade ao mundo. Mas hoje, como as coisas estão, acho que é importante começar a dizer-se. Dizer que é natural. Dizer que ninguém tem nada a ver com a sexualidade do outro. Podia ser um homem. É uma mulher, que amo há muitos anos. Casámos. Somos muito felizes.

O Zé Pedro e eu começámos a namorar cedíssimo. Eu tinha 15, ele tinha 14. Começámos a viver juntos aos 18. Separámo-nos no ano em que nasceu a Constança. Foi muito mais inconsciente ter crianças na situação em que as tivemos do que juntar-me com a Patrícia e com as minhas filhas. Não havia estrutura. O Zé Pedro era o único que trabalhava, eu, como artista plástica, só tenho dinheiro sabe-se lá quando. Nunca é por mês e as contas são por mês. Não havia nada, senão o amor.

O estar tudo bem com as crianças sempre foi o principal. Os fins de semana: a Carolina agarrava-se a mim como uma lapa, não queria ir. Eu tirava-lhe dedo a dedo: “Tens de ir para o pai. Porque é assim”. Depois comecei a ficar muito cansada e pedi-lhe que ficasse uma semana por mês com elas. Guarda-conjunta. Nunca tratámos de nada legalmente. Foi tudo a falarmos um com o outro. Acordo.

Quando me apaixonei, demorei algum tempo a perceber o que é que estava a acontecer. Até ao momento em que me perguntei: “Porque é que não estou mais com aquela pessoa se estou tão feliz com ela? Porque é que estou a retrair-me?” Eram os meus próprios preconceitos, os preconceitos sociais. Percebi que estaria muito melhor se estivesse sempre com aquela pessoa. A Patrícia. A Pat.

Nunca mais me vou esquecer da frase que me disse a minha sogra, a mãe do Zé Pedro, quando lhe disse que ia viver com a Patrícia. Ela é inglesa. “But you know the big step you’re doing?” Sempre do meu lado, sempre do meu lado. “Sei.”

Tinha ido falar com uma pedopsiquiatra. Estava com medos. Como é que eu ia fazer? Como é que geria isto? Ela respondeu-me: “O que é que as pessoas têm a ver com isso?” Mas eu queria que as miúdas tivessem a base segura. Que não houvesse mentiras.

Não sei mentir. Incuti-lhes a ideia de que não se mente. Se se mente perde-se a confiança e perde-se o essencial numa relação, não é? Não podia mentir às minhas filhas. Mas cheguei a dizer que a Patrícia era uma amiga muito especial... Uma amiga muito especial quando a criança tem quatro anos pode ser o que a criança quiser. Era uma espécie de mentira... Tive de esperar que elas tivessem os seus alicerces.

Retomando a história: depois de me apaixonar, demorei tempo a aceitar. Um andar assim, depois uns beijos, tudo muito estranho. [riso] Quero, não quero. Sobretudo pela responsabilidade em relação às miúdas. Eu queria ter a certeza do que estava a fazer.

Não queria criar confusões. O mesmo com namorados homens, que tive, depois de me separar do Zé Pedro. Agora a mãe anda com um e depois com outro? Se não tinha a certeza do que era aquela relação, não queria que fossem dormir lá a casa. O normal. É o que se faz aos meninos.

Contei que me tinha apaixonado no momento em que fui viver para casa da Patrícia. Foi uns dois anos depois de estarmos juntas. Antes disso a Patrícia vivia em Madrid, estava a fazer o doutoramento. É cientista.

Acho que não houve nenhuma conversa difícil. A conversa com a Melinda, a mãe do Zé Pedro, foi libertadora. Eu sabia responder ao que ela me perguntava, eu sabia que aquele era um grande passo. Estava segura.

À minha mãe perguntei: “Não sei se já percebeste o que é esta relação que eu tenho...” Ela fez-me meio desentendida. Insisti: “Nunca verbalizaste com o Grilo (era o namorado dela)?” “Por acaso já verbalizei”. Ficou assim.

O meu pai já tinha morrido. Morreu no ano em que me separei, em que nasceu a Constança, 1996. Foi um ano duro.

A minha relação com a Patrícia fez muito bem à cabeça da minha mãe. Tem 71 anos e mudou. Há uns tempos, se calhar, não acharia nada bem a co-adopção. Diria: “Coitadas das crianças. Vão ser cobaias”. Percebeu que o amor é o mais importante. E sabe o que são as crianças em instituições. Percebeu, na prática, que não há problema nenhum.

Temos duas amigas que vivem juntas e que têm duas filhas; a minha mãe acha o máximo.

Não, não temia a reacção do Zé Pedro. Porque nós temos uma relação de amizade muito grande. Somos um bocadinho irmãos. Crescemos juntos. Vem contar-me dos seus desgostos amorosos, pedir-me opiniões. Tem imensa graça. Acha que a Patrícia é a sã da família. “Ah, se a Patrícia disse isso, é melhor fazer como ela diz.” Ela é cientista, deve perceber melhor do que nós, que não percebemos nada. Nunca houve atrito entre o Zé Pedro e a Patrícia. Jamais.

O todos os dias é normalíssimo. É assim: recebo um telefonema a perguntar: “Já trataste da viagem de não sei quem que tem de ir não sei para onde, e não há dinheiro?”

A Patrícia fala muito pouco. Teve uma história parecida com a minha. Não tem é filhos. Fui a primeira mulher na vida dela. Ganhou mais uma família, a do Zé Pedro. Vamos todos ao Natal dos ingleses, da família do Zé Pedro. É o meu Natal preferido.

A Carolina tinha seis anos, a Constânça tinha quatro quando fui viveu com a Patrícia. A Carolina é muito dada, começou logo a pentear a Patrícia. A Constança é mais reservada e, muito pequenina, tudo o que viesse ter com a mãe, não era bem vindo.

A Carolina tinha necessidade de dizer às amigas. Iam lá a casa, percebiam que o quarto da mãe era da mãe e da Pat. Também para as amigas era uma coisa normal. Não faziam perguntas. Quando disse à Carolina, deu uma choradeira. “A Patrícia é minha namorada”. Mas não teve a ver com o facto de a Patrícia ser minha namorada. Foi por ter sido das últimas a saber. “Porque toda a gente já sabe e eu não...” Tive de lhe explicar que toda a gente sabia por causa dela. Para que fosse normal. Chegava a avó, chegava qualquer pessoa e não havia quartos fingidos. Ela tinha sete, oito anos.

As minhas filhas fizeram o Liceu Francês. Há lá uns meninos, sobretudo os portugueses, muito conservadores. Um dia, um estava a dizer: “Os homossexuais, que horror. E os filhos dos homossexuais são homossexuais”. A Carolina meteu-se no meio. “Desculpa, mas não são. Porque a minha mãe é homossexual e eu não sou”. Os miúdos ficaram caladíssimos e com um respeito gigante por ela. A coragem que ela teve.

À Constança perguntei: “Os teus amigos sabem a relação que a tua mãe tem?” Muitos poucos sabiam. A Constança, quanto menos se falasse do assunto, melhor. Hoje é uma activista! Em pequena, dizia: “Que é que eu tenho a ver com isso?”.

Hoje têm uma relação óptima. As duas sentiram que a Patrícia trazia alguma paz. Paz à casa, a mim.

A verdade é que a Patrícia nunca quis interferir na educação delas. Na escola, ajudava nas coisas de que não percebo nada, Matemática, Física. Está presente, às vezes zanga-se... O quotidiano. Há tempos zangou-se com a Constança porque ela ia vestida com os calções e uns collants, e estava frio e a chover. [riso] Coisas normalíssimas.

Nunca disseram muito “Não és a minha mãe, não mandas em mim”. A Patrícia nunca quis mandar nelas.   

O casamento, ao contrário do que sempre imaginei – que era uma prisão –, foi uma liberdade. Há coisas que fazemos mais vezes de mão dada. Mas a Patrícia e eu não somos o tipo de casal que está sempre aos abraços e aos beijos. Tudo o que é relacionado com o amor verdadeiro não é mostrado. Sendo que os outros, as miúdas sabem tudo. Mas não é de porta aberta. Acho que devia ser assim em casais homossexuais, heterossexuais. Há coisas que são privadas.

Com o Zé Pedro, era igual. Não dávamos a mão na rua. Tem a ver com a personalidade.

Não sei se alguma vez as minhas filhas se uniram para falar deste assunto. Gostava de achar que sim. São duas raparigas, estão sempre a zangar-se, mas são muito unidas. Adoram-se. E protegem-se imenso. Nunca ao pé de mim. Ao pé de mim estão sempre aos gritos, a competir pela atenção da mãe. Elas não vão gostar de ler isto...

Tivemos um interregno de mais de um ano, a Patrícia e eu. O medo delas era que aparecesse alguém extravagante... Foi em 2009.

Aos 40 estive sozinha, com uma bolsa, em Nova Iorque. Nunca tinha estado sozinha. Aprendi a concentrar-me. Em relação ao trabalho e à vida. Focagem. Eu não tinha isso. Nunca tinha podido concentrar-me em mim. Estava sempre a concentrar-me noutras pessoas.

Porque é que casámos? Para já porque se podia. Queríamos imenso fazer uma festa. Enlouquecemos e comprámos uma ruína em Aviz quando queríamos comprar uma casa em Lisboa. Estava escrito no jornal. Uma casa baratíssima. Era um dia de início da Primavera. Recuperámos a casa.

Escolhemos o dia da Revolução Francesa para casar. Achámos que ficava muito bem. O bolo dizia: liberté, egalité, fraternité. E tinha duas Mariannes, em azul. O interior do bolo era vermelho, branco por cima. Tudo certinho.

Foram amigos e pessoas de Aviz. Queria tudo ir à festa, participar. O senhor Zé, que tinha ali uma horta, perguntou: “Se já são tão amigas, porque é que se vão casar?” “Porque se pode.” “Então está bem.” Ficou esclarecido. O não se compreender as coisas, aprisiona. Assim ficou tudo claro.

Também aprendi assim, que ser amado é o mais importante. Sobretudo com a minha avó materna. Tinha a quarta classe e uma inteligência emocional enorme. Tenho pena que não tenha conhecido a Patrícia. Ter-lhe-ia feito confusão, mas acho que diria: “Pois, filha, se é bom para ti...”.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2014

 

 

 

 

 

 

Gilberto Gil

26.06.22

O meu quarto fica no sétimo andar de um hotel de Brasília. Começo por abrir o mapa que me deram na recepção, ponho-o contra o vidro da janela. Sigo o percurso rectilíneo de Oscar Niemeyer a partir dali. A catedral com vitrais de um azul céu e anjos suspensos sobre o altar; as fileiras de edifícios ministeriais; a Praça dos Três Poderes; o Palácio dos Congressos. Todas as grandes obras.

É meio-dia. Sei desde a véspera que o ministro Gilberto Gil me concede entrevista ao fim da tarde. Na véspera eu estava no Rio de Janeiro, e num contacto telefónico com o assessor de imprensa, obtive a confirmação da entrevista – os contactos tinham começado duas ou três semanas antes, ainda em Portugal.

Quando nessa manhã aterrei em Brasília, caía uma chuva miúda. O calor não era o mesmo do Rio, a humidade era bastante inferior. Era um dia de semana, com homens de gravata e mulheres de tailleur. A cidade surge-me exactamente como a conhecia dos postais. O elemento humano, a vivência do espaço, em nada a transforma. A sensação de estranheza advém disso mesmo. A escala não é humana, não tem botequins nas esquinas, pessoas nos passeios. A despeito da extrema elegância, do traço depurado do arquitecto Niemeyer, parece-me invivível.

O que faz um homem como Gilberto Gil, um baiano de colheita excepcional, um músico reconhecido internacionalmente numa cidade como Brasília?

Olho pela janela do sétimo andar, reconheço o edifício do Ministério da Cultura. Algures naquele espaço, no cruzamento de salas de espera e gabinetes de trabalho, o senhor ministro Gilberto Gil pensa a cultura de um desmesurado país chamado Brasil.

No seu discurso de tomada de posse, pode ler-se o seguinte: «Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos actos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. (...) Desta perspectiva, as acções do Ministério da Cultura deverão ser entendidas como exercícios de antropologia aplicada. O Ministério deve ser como uma luz que revela, no passado e no presente, as coisas e os signos que fizeram e fazem, do Brasil, o Brasil. Assim, o selo da cultura, o foco da cultura, será colocado em todos os aspectos que a revelem e expressem, para que possamos tecer o fio que os unem».

Da aventura política, quase não falámos naquele fim de tarde. A não ser do significado que tem, para ele mesmo, o cargo de que está investido. De como isso entronca na sua história pessoal.

Durante cerca de uma hora e meia, a conversa correu tal como a vão poder ler.

Reencontrámo-nos dali a pouco, no Clube do Choro de Brasília, cuja temporada era inaugurada nessa noite. O surpreendente Armandinho Macedo extasiou a plateia. O senhor ministro Gil tinha ao lado uma das suas filhas, secretária particular que vive com ele em Brasília, durante a semana. O fim-de-semana é passado no Rio. Comeu um ou outro bolinho mineiro, de queijo. Respondeu a perguntas de jornalistas no intervalo. Perguntou ele mesmo a Armandinho, da sua mesa para o palco, se a música que este acabara de tocar era dele ou do pai, fundador do Trio Eléctrico na Baía.

Desconheço se em algum momento teve vontade de saltar para o palco, de experimentar a música. 

 

Gostava que me descrevesse o tecto do seu quarto de quando era pequeno. É verdade que era transparente e a partir dele via as estrelas?

Não era todo transparente. Eram telhas de barro normais com vigas de madeira e algumas telhas de vidro em lugares estratégicos. Três delas em fila bem acima da minha cama, outras três por cima da cama da minha irmã.

 

Dividia o quarto com a sua irmã?

Sim, durante um período grande da nossa infância. Minha irmã se chama Gildina, é dentista. E havia outra fileira de telhas de vidro fora das nossas camas. Era muito interessante porque dali víamos as estrelas.

 

Conversavam?

Conversávamos. Sobre as coisas do nosso dia, da nossa vida. Dos temores da nossa avó e da nossa mãe, que eram as responsáveis pela disciplina. Tínhamos a obediência. Falávamos das pequenas transgressões, quais seriam, como seriam, quais os mecanismos de ludibrio. Recordo muito bem o dia do eclipse solar, teria sete, oito anos. Não se podia olhar para o sol no momento do eclipse. Havia duas coisas: uma era a ameaça física, o mito da ameaça da cegueira, outra era que alguma coisa mágica, encantada, podia acontecer.

 

E olhou?

Estava debaixo dos lençóis e espreitava... Hesitava entre atender ou vencer à tentação de olhar.

 

O seu pai era médico e a sua família de classe média alta – o que não é muito comum numa pessoa que tem uma cor escura como a sua. Isso representava uma responsabilidade adicional para si e para a sua irmã?

Naquela ocasião não me dava conta disso. A minha família era uma família branca no sentido social, de poder, de condição económica e educacional. Pai médico, mãe professora, avó também professora. Vivíamos numa cidade com 900 habitantes onde a minha família ocupava uma posição muito destacada, muito elevada. Por outro lado, como acontece em muitas cidades do interior da Baía, os vasos comunicantes entre as raças e as pequenas gradações sócio-económicas eram muito abertos.

 

Caetano Veloso escreve no livro «Verdade Tropical», a propósito da cor e da proveniência social...

Que eu sou um mulato suficientemente escuro para ser considerado negro, enquanto ele é um mulato suficientemente claro para ser considerado branco. E isso é verdade em conjuntos sociais onde haja mais concentração de pessoas, nas cidades grandes. Como lá era uma cidade de 900 habitantes, e como nesse momento da colonização o prefeito, Sr. Oswaldo Conceição, era negro, o dentista, Sr. Cassinho, era negro, meu pai, que era médico, também era negro, minha mãe, que era uma das cinco professoras do grupo escolar, era negra, sendo que havia uma outra que também era negra... Os negros mestiços saíam capacitados em actividades educacionais, tinham profissões liberais, iam para essas cidades e formavam ali novas elites mestiças, misturadas. Com muito menos problemas de separação, de preconceito racial do que nas grandes cidades.

 

Disseram-me que passou recentemente na televisão brasileira um documentário sobre si e uma das imagens mais deliciosas era o senhor a cantar com as lavadeiras da terra da sua infância. Já era assim nessa altura? Um menino filho de médico e que ia à escola, cantava com as lavadeiras?

Era assim. Todas essas barreiras eram bastante quebradas numa cidade pequena, num microcosmos social como era aquele. A necessidade das pessoas se valerem umas das outras era tão maior do que em qualquer outro agrupamento maior, com mais alternativas. Era tão maior que essas vivências se impunham sobre quaisquer resíduos de desejo de apartação que pudessem permanecer nos corações e nas mentes das pessoas. As festas eram oportunidades profundas para estabelecer convívios.

 

A música como uma espécie de língua franca entre os vários estratos sociais?

É. E então ali estabeleciam-se comunidades quase ideais. Só começo a ter o problema da classe social, da raça, quando vou para Salvador, na adolescência. Vou fazer o Ginásio, a complementação dos estudos que já não era possível fazer na minha terra. Fui viver para casa de uma tia, irmã do meu pai.

 

Como é que a música, a música da rua, a música das pessoas, a música que era linguagem franca, o impressiona? Como é que ela entra na sua vida?

Desde a infância. Principalmente nas feiras. No mercado municipal, aos sábados, vinham todos montar o mercado. Começavam a chegar às quintas, (alguns que vinham de mais longe), e ao sábado dava-se a feira. Vinham os cantadores dos lugarejos, era a única forma de comercializarem a sua música. Cantavam e recebiam gratificações.

 

Nas feiras havia altifalantes?

Também havia. E aí já era o rádio, passavam as grandes canções de sucesso produzidas nos grandes centros, no Rio de Janeiro, em São Paulo.

 

Que músicos ouvia mais atentamente? 

Orlando Silva, Mário Reis, Augusto Calheiros, Chico Alves, Luiz Gonzaga e vários outros. As irmãs Batista, Dalva de Oliveira, Vicente Celestino.

 

E João Gilberto? O senhor tocava acordeão e decidiu trocá-lo pelo violão depois de ouvir João Gilberto.

O acordeão chega quando eu vou para Salvador, em 51. [João Gilberto aparece com «Chega de Saudade» em 58] Para além do Ginásio, fui também para a Academia de Acordeão. Foi o primeiro instrumento que aprendi.

 

Quem é que ouvia rádio em sua casa?

Todos. Todos nos sentávamos para ouvir o rádio.

 

Sentavam-se para ouvir rádio como hoje nos sentamos para ver televisão.

Sim, claro. Sentávamo-nos a ouvir rádio onde havia, não só programas musicais, como rádio-novelas, como crónicas, (a crónica do César Ladeira, por exemplo, na Rádio Nacional). Eram crónicas como hoje lemos no jornal, sobre a cidade, sobre os costumes, sobre factos acontecidos, sobre grandes personalidades nacionais ou internacionais, sobre datas magnas. Ou programas de competição musical.

 

E aí vibravam?

Vibrávamos com tudo isso. E com as rádio-novelas como «O anjo», «Jerónimo, o herói do Sertão». Depois complementava com as foto-novelas, com as revistas em quadrinhos.

 

Mas via isso? Eu tinha a ideia que o público que consumia isso era maioritariamente feminino.

Mas eu era e sou muito feminino. Tem muitas canções minhas que falam disso. «Super-homem» é uma delas. Até por causa da minha educação. Na minha casa, o único parceiro homem era meu pai. E não vivia muito em casa. Eu vivia com a minha irmã, com a minha avó, com a minha mãe, com a minha tia.

 

Tinha um fascínio por aquele universo das mulheres?

Tinha.

 

O que era mais fascinante?

Era mesmo a diferença física. Elas eram diferentes de mim. Eram outras configurações de matéria plástica. Além disso, eram as tutoras, as disciplinadoras, tinham ascendência sobre a minha liberdade. Determinavam e criavam as regras, definiam a fronteira entre o que é possível e o que não é possível.

 

Inclusive a sua irmã, que tinha a mesma idade? Ela também tinha ascendência sobre si?

Tinha. Até porque – coisa que só vim a perceber mais tarde – ela é leonina e eu canceriano.

 

O que é que isso significa?

O signo de leão é forte, de afirmação, um signo positivo. E o meu é o caranguejo, o afectivo, receptivo, maternal, feminino. O leão é um signo do sol e o câncer é um signo da lua.

 

Uma visão estereotipada do masculino-feminino confere à mulher o atributo da sensibilidade, e ao homem a racionalidade. Mas depois na prática, isso cai tudo por terra.

Na minha comunidade esses parâmetros eram subvertidos pelas circunstâncias da vida. As mulheres se manifestaram dessa forma na minha vida, e continuaram até hoje. Tenho uma canção que fala da mulher que será sempre a minha mãe. Fui casado quatro vezes, a todas chamo de mãe.

 

Em que é que diferem as conversas e as relações que tem com mulheres e as que tem com homens?

Com as mulheres há necessariamente essa identificação com o elemento materno. Com todas as mulheres. Com os homens é o pai. E o pai era a figura distante; muito presente porque a actividade profissional era dentro de casa, o seu consultório médico era dentro da nossa casa...

 

E contudo...

Contudo, era distante porque deixava o encargo do relacionamento profundo, gostante, e o acompanhamento directo para as mulheres. A minha mãe, a minha avó e a minha tia. E mais ainda: a cozinheira. Era uma figura extraordinariamente importante. A velha Biíta, que era uma corruptela de «bonita». Quando eu, ainda muito pequeno, não sabia dizer a palavra «bonita», dizia «biíta». E ela ficou sendo chamada de Biíta, não só por mim como por todos da casa, e não só naqueles primeiros momentos da minha infância, como para o resto da minha vida, até à minha adolescência, quando ela saíu da minha vida.

 

Quando foi convidado para ministro, telefonou a alguma destas mulheres? Ou já são outras as pessoas e as mulheres da sua vida?

Neste momento, Flora, a minha mulher, é quem hoje simboliza essas outras todas, é quem está ao meu lado a representá-las todas. Ela estava ao meu lado quando recebi o telefonema do presidente.

 

O que é que ela lhe disse?

«Faça o que você quiser».

 

Deixe-me voltar à música. Gostava de perceber melhor quando é que se prefigurou na sua vida.

Como vivência interna, profunda, como forma de expressão, fio condutor, atractor de compreensões, de entendimentos, de leituras do mundo? Logo. Aos dois anos de idade. Aos dois anos de idade, minha mãe me perguntou: «O que é que ‘cê será, um dia, quando for um homem?». E eu disse: «Musgueiro».

 

O que era "musgueiro"?

Músico. Era como eu, aos dois anos de idade, me referia à palavra «músico». Mas devia ser difícil de dizer. E «musgueiro» era igual a padeiro, ferreiro, sapateiro, coisas que já eram do meu universo. O meu ofício seria o da música, então eu seria «musgueiro».

 

Todavia, vai para a faculdade tirar um curso que está nos antípodas disto. Um curso de administração de empresas.

Mas aí eu já vivia no universo da modernidade. Salvador, cidade moderna.

 

Como se operaram essas várias transições? Imagino que a primeira transição seja de um espaço onde toda a cidade era a sua casa, para um espaço inóspito, onde está na casa de uma tia...

E a casa da tia está numa cidade enorme de 400 mil habitantes.

 

E a outra transição é de menino para rapaz, que tem de escolher um ofício, além desse ofício que ele sempre disse que queria ter.

Tinha que atender aos anseios da família. Meu pai queria que eu fosse como ele, um profissional liberal. Minha mãe também queria que eu fosse como ela, uma profissional liberal. Havia um modelo social em que era importante que nos diplomássemos. Era importante ser doutor. E eu tive que aprender. Mas com muito gosto até, porque também tinha no meu coração um certo anseio de atender a essa convenção social, de corresponder a isso, de me tornar um doutor. Então escolhi uma profissão. A princípio pensei ser médico, como o meu pai, aos 12, 13 anos. Aos 17 anos, quando concluí o curso secundário e já se anunciava a hora de fazer o vestibular para a universidade, pensei em ser engenheiro. Fiz o vestibular de engenharia, não passei. E aí, no ano seguinte, apareceu esse curso de administração. Aquilo me fascinou porque era uma coisa completamente nova. Não pertencia aos cânones.

 

E foi de alguma serventia?

Acho que foi. Hoje tem-me servido muito.

 

Podia ser um curso de Letras? Um curso com palavras?

O interesse pelas palavras chegou depois, com a música.

 

Foi a sua mãe que o ensinou a ler?

Minha avó me ensinou. Enquanto a minha mãe ensinava na escola, minha avó se incumbia de me ensinar em casa. Eu não fui à escola da minha mãe. Minha avó era uma professora aposentada e se incumbiu da instrução, tanto da minha quanto da da minha irmã. Depois fui fazer o exame de admissão ao Ginásio numa escola em Salvador.

 

As palavras começam a ter importância a partir da relação com a música. Mas o modo como aprendemos a falar, a ler e a escrever é fundamental para a relação que mais tarde temos com as palavras.

E, sem dúvida, isso tudo foi forjado com «O Tesouro da Juventude», que era uma colecção de 18 livros, tipo enciclopédia, com tudo. Todos os grandes factos da História, todos os grandes personagens da História, todas as grandes descobertas científicas, todas as grandes invenções tecnológicas, todas as grandes escolas de pensamento. Tudo isso eu tive, na primeira infância, os livros do Monteiro Lobato. Literatura adulta feita para crianças.

 

Consumiu isso tudo como se se tratasse de um romance?

Só que eu não fiz a escolha da palavra. Fiz a escolha da música e não da palavra. Podia dizer que existia já em mim o embrião de poeta, de literato. Eu sentia o embrião de músico. E foi através da música que cheguei à palavra. Só comecei a necessitar dar às palavras significados meus, próprios, quando comecei a usar a palavra cantada. Quando comecei a precisar cantar coisas, cantar palavras.

 

Li numa entrevista uma coisa que me impressionou muito. Dizia que, para si, o sentimento está absolutamente em primeiro lugar, e só depois é que vem o pensamento.

É.

 

É disto, também, que estamos a falar?, da música e sensibilidade como formas primeiras e do pensamento e das palavras como passos subsequentes?

Creio que sim.

 

Quando diz que precisou de usar palavras para expressar melhor o que queria dizer, é também porque a sua música é uma espécie de reverberação da natureza.

Diria mais um prolongamento da existência.

 

Importa-se de especificar isso?

Quando falamos a natureza, corremos o risco de estarmos querendo nos referir à matéria, ao mundo material. Quando digo existência, adiciono às formas materiais – que nos incluem inclusive a nós humanos – a existência inteira. O existir, as dimensões da alma, as dimensões do espírito, as dimensões dos seres mudos que não falam connosco. Como as pedras.

 

Quando estava a dizer reverberação da natureza estava a pensar nisso. Nessa linguagem que a natureza tem e que pode ser o sopro do vento, o correr das águas. Tudo isso tem uma voz própria, uma música própria.

Mas quando eu digo existência é porque se inclui aí um mistério, que é um mistério profundo, que só pertence ao homem, que é a consciência. A alma, a especulação, a ideia do existir e do não existir. Se nós colocamos só como natureza, corremos o risco de não contemplar essa dimensão do mistério da vida.

 

Quando é que teve noção disso?

Logo cedo. Comecei a ter especulação filosófica aos sete, oito anos.

 

A sua parceira de conversa e especulação filosófica era a sua irmã?

Muito eu mesmo.

 

Era um menino solitário?

Era. Gostava de estar sozinho, brincar sozinho. Até porque era só uma irmã, e ela era mulher; diferente portanto. Eu tive de criar meu próprio mundo. Como a minha avó foi incumbida da minha formação, e ela já era velha, e eu era como um filho para ela, ela tendia a me proteger do mundo, a incentivar um certo isolamento. «Fique sozinho, é bom. Cresça você mesmo, sozinho». Então eu tive desde cedo gosto pela introspecção, pela solidão criativa, pela solidão entretida com pequenos afazeres, com a observação. Muita contemplação, muita capacidade de meditação.

 

Como é que um menino introvertido passa à situação de extroversão que é estar em cima de um palco?

Foi um parto a fórceps. Até hoje é um mistério para mim. Não sei como consegui. Me lembro bem que, quando estava a estudar acordeão, com os meus 12, 13 anos, me sentava numa sala escura que raramente era aberta. Eu ficava lá quase todas as noites. Se por exemplo chegava uma visita e minha tia ou minha avó pediam: «Toque alguma coisa para a visita ouvir», aquilo era uma tortura. Eu não gostava. Gostava de tocar para mim.

 

Tocar para as visitas foi o seu primeiro parto.

Foi. O primeiro parto nessa existência de uma audiência.

 

A noção de que existe uma audiência implica a consciência de que existimos para outros, e que o outro gosta ou não gosta, aplaude ou não.

E isso era tormentoso para mim. Na festa de formatura (eu me formei em acordeonista, tive um diploma), tive que me apresentar para um auditório, aí já num teatro.

 

Segundo parto.

Terrível. Eu tive febre. E quase que inconsciência. Fiz aquilo num estado de torpor mental, provocado por aquela agonia. Isso perdurou durante muito tempo.

 

Quando se apresentou pela primeira vez na televisão, ainda trabalhava numa multinacional, dando uso ao seu curso de administração de empresas. Esse emprego era uma espécie de âncora para si?

Era, uma âncora psicológica.

 

Porque é que era tão inseguro? Ainda não compreendi.

Porque eu sou assim. Código genético, tendências inatas. Claro que a vida adulta e a experiência vão modificando as coisas.

 

As mulheres que o rodeavam apoiavam o seu desejo de ser músico?

Minha mãe. Ela me fez. Ela guardou na memória aquela minha declaração dos dois anos de idade. «Eu quero ser musgueiro». Na verdade isso já configurava o quê? Um cuidado de mãe com a vida futura do filho. Era ela cumprindo as suas funções de mãe, cuidando do filho.

 

Como um anjo que vela.

E aos dez anos, quando fui para a cidade, ela me disse: «Você quer ser músico, vá para a escola de música. Você gosta do Luiz Gonzaga, da sanfona dele. Tem uma escola de acordeão recém fundada. Você não quer estudar acordeão? Vou-lhe comprar um acordeão e vou-lhe pôr na escola de acordeão. Está bem assim?». E eu disse: «Está bem». Quando completei 18 anos, ela me ouvia escutando Bossa Nova; quando comecei a escutar João Gilberto, ela – que já estava longe de mim há 8 anos –, me disse assim: «Eu vejo você interessado por essas músicas que têm esse violão tão forte, tão nítido, tão especial. Você não quer estudar violão?»

 

Ainda ela a insistir no seu sonho.

Ainda ela. Num dia de sábado me deu o dinheiro e disse: «Vá comprar um violão para você».

 

E tentou comprar um violão o mais parecido possível com o de João Gilberto?

Foi.

 

Queria ser o João Gilberto, nessa altura?

Queria. Queria ser muitos. Queria ser o Luiz Gonzaga, queria ser Dorival Caymmi, queria ser todos. Ainda hoje quero. O menos que eu quero ser sou eu mesmo.

 

Está a fazer género?

Não estou. Não tenho uma ambição autoral. Nunca tive uma vontade de criar meu próprio género musical. Quis sempre ser um bom reprodutor dos géneros amados, queridos por mim. Sempre quis imitá-los a todos, aos meus ídolos, mimetizá-los. Sempre gostei da ideia de que pudessem ouvir na minha música todos os outros. Minha capacidade de dizer: «Olha como eu ouço. Olha como meu coração guarda todas as músicas do mundo». E nunca tive vontade de invenção.

 

É uma existência sincrética. E «sincrética» é uma palavra que aparece no seu discurso de tomada de posse, assente como preocupação ministerial. Ao cabo de todos estes anos de carreira, continua a achar que não há uma marca autoral?

Os outros acham. A eles a incumbência de encontrar essa marca. A mim o deleite da música que me entra pelo coração. Não sou autor. Sou músico.

 

Significa que o seu modo de expressar o mundo através da música açambarca uma gama de géneros, de pessoas, de influências?

É isso. Daí que hoje eu sou reconhecido como um ecléctico, como criador e como intérprete.

 

Gosta desse epíteto?

Gosto. Faz jus à minha natureza.

 

Quando começou a apresentar-se, ainda antes da Tropicália, tocava o seu violão e vestia fato e gravata. Um terno, como no Brasil se diz, é uma moldura que confina o indivíduo ao seu corpo, não o deixa espraiar-se. Sentia-se confortável aparecendo desse modo?

Eu usava ternos e gravatas durante o dia. Quando fiz a minha estreia como artista nacional, na televisão, no disco, eu trabalhava na Lever como executivo. Saía todos os finais de tarde do meu escritório para ir viver as vivências musicais, de terno e gravata, de pasta na mão. Vários dos meus colegas se referem a isso até hoje. «Gil chegando no Redondo com seu terno, sua gravata, sua pastinha na mão!». O Redondo era um bar em São Paulo onde se reuniam muitos músicos.

 

Mas sentia-se confortável ou não?

Sentia. Eu era...

 

«Quadrado»? Porque dizem que era «quadrado».

Era quadrado. A família tinha-me programado, ou pelo menos pretendeu ter-me programado, para ser um doutor.

 

Eles sentem orgulho em si, vendo-o investido destas funções?

Sentem. Meu pai já não, porque já não vive. Não sei se onde está – se é que há um estar para ele em algum lugar hoje – gosta de me ver ministro. Mas a minha mãe agora no Carnaval me disse: «O seu pai estaria tão orgulhoso. Tão contente. Só me lembrava do seu pai, quando você foi chamado para ser ministro». O Caetano escreveu uma carta onde diz isso: «O facto de o Gil ter desejado ser ministro, ter aceite ser ministro, tem muito a ver com o pai dele. É ele querendo isso para o pai dele». E é. Óbvio. Claro que é.

 

Quando estava a ler o discurso de tomada de posse, em que coisas pensou?

Será que pensei alguma coisa de que posso ter memória hoje? Não. Pensava nisso tudo que estou conversando com você. Pensava na existência, no porquê. Porque é que estava ali, todas as coisas que tinham-me levado àquele momento, àquele lugar, a estar ali tomando posse no ministério. A família, as primeiras comunidades da minha vida... Se fosse possível fazer um condensado dessa coisa que eu estava pensando naquela hora, estava pensando na minha vida. Toda.

 

Não é tão inesperado assim que tenha sido convidado e aceite ser ministro. Se pensarmos na intenção da Tropicália ou numa coisa fundamental na sua vida, que tem que ver com a identificação da raça, com o papel dos negros no Brasil, subjacente a todo o percurso há o desejo de acolher pessoas.

Mas o que é o ministério senão um lugar de acolhimento?

 

Um ministro é aquele que serve, segundo a raiz etimológica.

Ministrar. Num sentido até religioso: aquele que ministra os sacramentos.

 

Também tinha essa sensação de ministrar, e portanto servir, quando era apenas um músico?

Sim. «Subo nesse palco, a minha alma cheira a talco, como um bumbum de bebé». Essa canção fala disso, do sacerdócio da música, de ministrar o bálsamo da canção para os outros. Sempre tive essa dimensão, do ministro religioso. E antes de ser ministro, já sou ministro de Xangô.

 

Explique-me quem é Xangô.

É um Orixá do panteon.

 

Descobriu o candomblé já adulto, disseram-lhe que é iluminado por Xangô.

Significa que eu sou um descendente de negros africanos que trouxeram para o Brasil suas religiões panteístas. Num desses panteões, o panteon Iurubá, (a etnia Iurubá está distribuída entre a Nigéria e o Benim), tem entre eles um dos seus deuses importantes, deus da Justiça, que é xangô. Eu sou um descendente.

 

Gosta de ser um descendente do deus da Justiça?

Gosto.

 

Mais do que qualquer outro deus?

Não necessariamente, mas me regozijo com a minha ancestralidade.

 

Mas que importância tem isso na sua vida? Teve uma formação católica e ainda menino pôs de lado esses ensinamentos da Igreja de Roma; já adulto, descobriu o candomblé.

E não só o candomblé. O budismo, o vedanta, várias... Especialmente as religiões orientais.

 

Qual é a presença que a religião tem na sua vida?

Muito grande. Nunca me senti mal com a sensação da transcendência.

 

Nunca teve a imagem do Deus punitivo que a Igreja Católica instiga?

Essa era uma prótese imposta pelo convencionalismo religioso ao meu redor. O meu sentimento religioso sempre foi de abraço com a divindade, abraço profundo e fraterno. Ao longo da vida fui separando o sentimento religioso dessa questão da institucionalidade. Eu tenho uma religião como vida. E portanto com tudo: com os códigos mas também com o caos, com a liberdade absoluta.

 

Uma unidade na diversidade.

Um macrocosmos num microcosmos. O cosmos e o caos. Foi a isso que cheguei.

 

Chegou em que momento da sua vida?

Foi há pouco. Foi ontem, foi hoje. É agora. Está a ser.

 

Gostava de o ouvir sobre a Tropicália, sobre o que o movimento representou. Foi uma nova fase na sua vida, que cortou com o «Gil quadrado» e inaugurou uma fase quase de desbunda.

Foi. Coincidiu com umas experiências psicadélicas, de expansão de estados de consciência para transbordo de limites, derramamento, extensionalidade, diálogo intenso entre verticalidade e horizontalidade... Caí na farra, caí na gandaia.

 

O que seria diferente em si se não tivesse conhecido Caetano Veloso, que fez consigo a Tropicália?

Essa é uma pergunta que continuo a me fazer. E para a qual tento várias respostas. Em resumo, respondo sempre da seguinte forma: teria sido um músico bem mais simples do que sou. Tenho a impressão que a presença do Caetano na minha vida chamou a atenção para a complexidade como elemento essencial da constituição da expressão. E eu busquei. Caetano trouxe a curiosidade em relação ao complexo.

 

Ele libertou-o?

É. Se ele não tivesse aparecido na minha vida, talvez eu tivesse ficado com uma visão religiosa mais estreita, com uma visão estética mais estreita, com uma visão moral mais estreita. Caetano deu facilidade de expansão à minha vida, à minha existência.

 

Foi uma espécie de irmão homem?

É o irmão que eu não tive. E não é só um irmão homem. É o irmão mais velho, o mais sábio.

 

Curiosamente ele é que é o da desbunda. Isso de ele ser o irmão mais velho é uma novidade...

Mas essas coisas são novidade o tempo todo, mesmo para mim. São graus, camadas de conhecimento, de compreensão sobre o passado, sobre as minhas relações com as pessoas que vão chegando e vão-se sobrepondo ao longo dos tempos. Várias coisas que estou falando aqui sobre Caetano e sobre mim, eu nunca disse antes. São essa complementação constante do significado da vida, do significado da origem das coisas. Eu gosto disso. Gosto de uma coisa que só tenho começado a compreender agora, nos últimos tempos da minha vida, que é a mudança.

 

Mudança?

Nada está pronto. Não há referências que possam ser eregidas como definidoras do seu presente ou do seu futuro. Não há códigos. O que há sempre é flutuações do caos. A ordem é uma flutuação do caos, efémera, passageira. Não há ordens perenes, permanentes. Nesse sentido, não há modelos. Há sempre mudança, mudança, mudança.

 

Mas há sempre uma coisa, que é a memória.

É, mas até ela muda muito. Porque as interpretações que fazemos do passado, dos factos, das vivências, daquilo que gravou-se em forma de sentimento ou de pensamento, até as reinterpretações a cada instante são novas. Não há memória, nesse sentido de que a memória está aqui dessa forma. A memória é como a própria vida. Ela também é mudança.

 

 

Publicado originalmente no DNA do Diário de Notícias em 2003

 

 

E agora, Paula (Rego)? Madrid e Londres, 2007

25.06.22

«Depois disto, não peço mais nada. A exposição no Reina Sofia é o ponto alto da minha carreira, sabe?». Estamos as duas, Paula Rego e eu, no Queen Elizabeth Hall para ouvir divas do fado; ela encanta-se com Beatriz da Conceição, queen of the night, que conhece nessa noite. Jantamos uma salada, bebemos champanhe. Ela comenta, emocionada, a exposição em Madrid.

O Outono vai adiantado em Londres. Em Madrid, semanas antes, não muitas, o Verão ainda não terminara. Tinha as cores que Otto Preminger usou no filme “Bonjour Tristesse”. Mas o cinema, que é central na vida e na obra de Paula Rego, não seria o tema dessa noite. Nem a tristeza nostálgica do filme. Nessa noite, ela fixou-se num gesto de Beatriz da Conceição, em palco: a mão pousada sobre o ombro do guitarrista. Paula fixou-se no ímpeto, na sensualidade, no fatalismo de Beatriz. Na voz que denunciava uma vida sôfrega. Adivinhou o desregramento, a perdição. Havia nesse gesto uma teatralidade que fazia sentido no universo de Paula Rego.

Em Madrid, o céu era ainda azul quando correram as portas do museu às oito da noite. As pessoas precipitaram-se para a entrada, numa ânsia bem comportada. Lá dentro, estavam dispostos os quadros que contam a vida e a obra da maior pintora portuguesa viva. São dezenas de trabalhos que organizam a obra em períodos-chave: 1953/66, 1981/93, 1993/2000, e de 2000 até 2006. Algumas peças são mostradas pela primeira vez – como quadros que datam do tempo em que estudava na Slade School.
Cenário entre salas: Lila, a modelo preferida, explica à RTP a relação de mais de 20 anos com a pintora portuguesa. Tem um rosto esculpido, uma portugalidade que é notória nas formas do corpo, no penteado, no sorriso. Ela é "O Anjo Vingador", a mulher que se contorce na agonia da série sobre o aborto, a avestruz desajeitada que quer voar e não pode - só para mencionar os mais famosos.
Outros modelos: Tony, poeta e tradutor, encena a pose de um Kafka encalacrado, tal qual aparece no quadro "Metamorfose"; um fotógrafo regista a imagem, alguém por perto ri do pó que fica no casaco. De um outro quadro, o de Pinóquio, reconhecemos o homem de pés gigantes e olhos de um azul transparente; é Ron Mueck, escultor prestigiado e genro da pintora. Há ainda Vicky, a filha, que aparece em "A Traça", o mais valioso quadro da carreira de Paula Rego, recentemente submetido a leilão. Era ela que, salas antes, se comovia frente a "A Dança". Era nesse quadro que a mãe trabalhava quando o pai faleceu, vítima de esclerose múltipla, há 21 anos.
Cá fora, a banhar o princípio de noite de Madrid, estava uma lua cheia e sensual. "Eles montam isto muito bem, não acha?", pergunta Paula Rego, em frente a uma série de quadros dos anos 80. Cumprimenta efusivamente amigos que vieram para a ver. Cumprimenta outros num tom menos afectuoso, e mesmo assim de uma enorme delicadeza. A menina Paula (como era tratada na infância) aprendeu a ser polida.
Outras pessoas, sempre muitas pessoas, interrompem-lhe o caminho, falam-lhe disto e daquilo, puxam-na para um beijo, um abraço caloroso. Ela segue a comitiva. Às vezes fica para trás, demora-se na conversa. Outras, mais à frente, alguém pergunta por ela e ninguém sabe em que momento da sua obra se encontra. Estará nas primeiras salas, onde se mostram coisas dos anos 50, pela primeira vez? Estará nos anos 80, em frente às "Vivien Girls"? Ou na sequência em que está agora, cheia de bonecos que contracenam com pessoas de verdade? Bonecos que faz com as suas mãos, que cose ponto por ponto.
Cá fora, no passeio, vendedores ambulantes, decadentes, necessitados, vendiam champôs, camisolas em segunda mão, livros amarelecidos. Uma gente pobre ocupada com quinquilharia. Vendiam, indiferentes ao que ali se passava. Paula Rego teria reparado neles.

O Reina Sofia foi o momento alto da sua carreira. E agora, Paula? O que esperar de Paula? Marco Livingstone, o curador desta exposição, considera que o melhor da sua produção artística diz respeito aos anos de maturidade. Foi depois dos 50 que pintou “O Jardim de Crivelli” para o restaurante da National Gallery, ou fez a adaptação da obra de Eça «O Crime do Padre Amaro». E agora? Talvez se possa esperar o melhor. Talvez se deva espera o melhor.

Se é verdade que a produção de décadas não é uniforme, o traço, o desenho, são o elemento comum. O fio que entretece os diferentes momentos. “Todo o risco é muito importante. A pressão, o riscar, que tem também a ver com o ferir. Todo o trabalho, desde o princípio, envolve desenho, mais do que pintura. O traço tem de dizer qualquer coisa, senão seriam riscos e gatafunhos, e eu não faço riscos e gatafunhos. Já fiz, mas agora não faço”. O que se passa nos quadros, no essencial, também é o mesmo. “Mandar nas pessoas. Obediência. Subversão. Fazer bem às pessoas más, fazer mal às pessoas boas. Poder. Desigualdade entre os sexos. Os homens mandam nas mulheres em geral. As mulheres às vezes mandam, mas é de outra maneira. A relação entre os sexos. É isso. Não é preciso mais. São tudo coisas caseiras. Tudo se passa no espaço doméstico”.

Paula Figueiroa Rego nasceu há 72 anos no seio de uma família da alta burguesia. O pai era um engenheiro electrotécnico, anglófilo, que ouvia fervorosamente a onda média da BBC para saber notícias da Guerra. Tinha uma espécie de cinema em casa e uma “Divina Comédia” ilustrada por Gustave Doré. “Era uma edição muito bonita, um livro enorme, muito pesado. Às vezes o meu pai chamava-me para a sala. Mas muito poucas vezes. Por isso é que era tão especial e tão bom. Mostrava-me. Eu gostava muito. Gostava daquele frisson de ter medo. É uma sensação agradável”.

A mãe era uma senhora elegante, que deixou em Paula o gosto pelos vestidos. “Íamos a Lisboa às compras, de comboio, e eu adorava. A minha mãe punha o chapéu, arranjávamo-nos muito bem, com luvas e sapatos, e lá íamos para o Chiado. Tomávamos chá na Marques. A Bénard era mais chique, mas a Marques era muito confortável e tinha muito bons bolos. Eu tomava sempre um café glacé com bolas de Berlim”. Compravam o bordado inglês a metro no Ramiro e Leão ou no Último Figurino. Folheavam as revistas de moda. Tiravam os modelos. A menina Francisca vinha a casa costurar. Há uma blusa desse tempo que Paula conserva. Integrou-a num quadro da série da vida de Nossa Senhora. A blusa foi toda chuleada pela Menina Francisca.

O pai e a mãe encarnavam o mundo do Estoril. Aveludado. De hierarquias vincadas, regras estabelecidas. A menina devia aparecer na sala de luvas brancas, se havia visitas. Comportar-se, obedecer. “O maior problema toda a minha vida tem sido a incapacidade de me exprimir frontalmente _ dizer a verdade. Os adultos tinham sempre razão: a menina ouve e não responde. Responder, contradizer, era a morte, era cair de repente num vazio terrível. Esse medo nunca me há-de deixar; vêm daí os disfarces infantis, os disfarces femininos. Menina pequenina, menina bonita, mulher atraente. Daí a evasão de contar histórias. Pintar para combater a injustiça». (conversa com o biógrafo John McEwen integrada no livro «Paula Rego»)

Na infância da pintora havia também o mundo da Ericeira. Com a avó Gertrudes e os seus pintainhos nos bolsos, as empregadas que engomavam o colarinho da camisa e torciam o pescoço às galinhas. Os bichos. Os bichos que hoje são constantes na sua pintura. “Ah, mas a maior parte dos bichos são pessoas conhecidas. É mais fácil dizer certas coisas através dos bichos. Também gosto dos bichos só como bichos. A maior parte dos bichos que desenhava antigamente eram copiados de livros de ilustração. Quando era pequenina, tinha nove anos, desenhava patos, patos de verdade, que havia na quinta na Ericeira. Mas depois disso, nunca mais olhei para os patos, só desenhei da minha cabeça. Não fazia bichos de jardim zoológico, eram mais bichos caseiros”.

O apartamento da outra avó na Rua Damasceno Monteiro, o quintal, a capoeira, a cozinha: viveu nessa casa durante um ano e meio, quando o pai foi para Inglaterra completar um estágio na Marconi. Outras figuras faziam parte dessa galeria: uma tia-madrinha, de quem gostava muito, e um bisavô. “Extraordinariamente religioso, tinha no quarto um oratório enorme, cheio de santos; escrevia livros de orações à mão. A minha mãe lia esse livro todas as noites. Era careca, tinha a cabeça rapada”.

A genealogia de Paula Rego reaparece em toda a sua obra. Como a violência das cenas domésticas. A visceralidade do amor. A subversão social. As coisas que não se dizem. As palavras essenciais – Medo, Vergonha, Sexo, Poder.

Aos oito anos, conta Paula em Madrid, numa conversa com Marco Livingstone, perante uma plateia apinhada, ela já sabia que queria ser pintora. Uma parte da infância foi passada a pintar. A mãe contou ao biógrafo que Paula se enrodilhava sobre si, no chão do quarto, e que fazia um som gutural. Alguém pergunta na sala, em Madrid, como eram esses desenhos longínquos. Mas a resposta é evasiva. Há anos, numa conversa no seu atelier no norte de Londres, respondeu-me assim: “Não fazia para mostrar. Fazia porque me entretinha. A lengalenga do «hum, hum, hum», dava-me um certo conforto emocional e físico. A lengalenga é sensual, tem um lado sexual. A criança quando se move e faz o boneco, risca o papel, experimenta um envolvimento total. Mais tarde, na escola, quando faz para mostrar, é outra coisa. O que é muito raro é combinar as duas coisas. Quando fazemos coisas para mostrar, (as princesas, as amendoeiras em flor, Roma a arder, essas coisas…), é que interessa muito que gostem ou não gostem. Queremos que nos tomem a sério. E nessa altura, tive sorte em não ter a Dona Violeta e em ter a Miss Turnbull”.

Dona Violeta era a encarnação da Bruxa Má. Miss Turnbull era a Fada boa. A primeira sublinhava a irregularidade, o que estava mal feito. A segunda encorajava a expressão criativa. Violeta usava camisolas de angorá roxas, umas detestáveis camisolas de angorá. Miss Turnbull vestia-se como as inglesas dos anos 50: sapatos rasos, uma saia. Usava óculos e tinha os olhos azuis. O encontro entre ambas deu-se no St. Julians, onde fez a totalidade dos seus estudos. Dona Violeta foi a professora particular que os pais contrataram para preparar o seu ingresso na escola inglesa – depois de uma passagem fugaz por uma escola primária portuguesa.

“A Dona Violeta é muito importante. Se tivesse de escolher uma professora favorita seria a Dona Violeta. A Dona Violeta, à sua maneira, fez-me tão bem como a Miss Turnbull. A razão porque fiquei a fazer bonecos tem tanto a ver com uma como com outra. Bem, a Dona Violeta ia merecer castigo para sempre... Isso também é uma razão boa para fazer coisas... Ela metia tanto medo, com aquele cabelo à 1940, aquela poupa, aquele rolo... Metia muito medo! A Miss Turnbull tinha o curso e o treino da escola de arte inglesa, como ilustradora. Eu sentia-me bem com ela, porque tinha confiança nela. Confiança. Ela não ia deixar-me ficar mal, no sentido de me trair...”.

Quando Paula conheceu Vic, fazia bonecos. Talvez lhes chamasse outra coisa, mas eram os seus bonecos. Vic, Victor Willing, nas palavras da mulher: “Era um homem muito bonito e dançava muito bem. Muito bom pintor. Era mais velho que eu sete anos. Aprendi tudo com ele: de pintura, a não me ralar com muita coisa, a dar atenção a outras coisas. Ele tinha barba e eu não gostava. Quando cortou a barba, vi-lhe a cara. A mãe dele dizia que a barba era como um ninho de aranhas a correr-lhe pela cara! Ficava-lhe muito mal”.

Vic foi a figura central na vida e na obra da Paula Rego. Teve com ele três filhos (Caroline, Nick e Victoria), viveram uma desmedida história de amor até à morte dele, em 86. “Uma tara. Tive a grande sorte de o meu anjo da guarda olhar por mim; se não, estava tramada. É uma coisa extraordinária. E é ter tudo quanto há: raivas, ciúmes, uns sentimentos brutais. Se não tivesse tido, se calhar gostaria de ter tido. Mas na altura a gente não sabe essas coisas. É-se levado, assim como numa passadeira rolante, daquelas dos aeroportos, sem poder pôr o pé no chão”.

A famosa série “A Menina e o Cão” retrata a última fase desta relação: o cuidado, a dependência, a ternura. Nesses últimos anos, Vic vivia confinado ao seu quarto. Paula regressava ao fim do dia, desenrolava o que tinha pintado, pedia-lhe opinião. Estava a pintar “A Dança”, uma tela imensa e triste, quando ele morreu. Demorou seis meses a completá-la. “A fumar brutalmente e a pintar”. Ficou entregue a si própria. Sem ninguém a quem perguntar. Perguntar se está bem, perguntar o que fazer. Seguiu o conselho de Vic, a dádiva, segredado pouco antes de morrer: aprendeu a confiar nela.

Vic Willing era um dos poucos estudantes da Slade School curiosos em relação a um mundo que existia fora das fronteiras do Reino Unido. Lucien Freud fazia parte do grupo. Era o pós-Guerra, e a cidade era um meio instigante. Paula mudara-se para Londres por “ordem” do pai, que não achava o Portugal bolorento um sítio para mulheres. Tinha 17 anos.

“Fala-se muito da minha infância e da minha juventude em Portugal, mas eu vivo em Londres há muitos, muitos anos. Gosto de viver em Londres. Todos os meus estudos, o meu treino como artista, foi feito cá. Seria muito diferente se fosse em Portugal. Estou muito ligada à arte de ilustração inglesa. Alguns pintores ingleses, como o Hogarth, têm imensa influência em mim. E viver em Londres tem importância. Porque apanho o autocarro todas as manhãs e tenho dez nacionalidades diferentes naquele autocarro. Gosto dessa variedade, dos fatos diferentes, das línguas diferentes, da individualidade de cada pessoa. Embora seja perigosa, por vezes, porque há muitas facas...”.

Londres, anos 50. Assistia às conversas dos outros, passava tardes no cinema, desenhava o seu mundo paralelo. O meio era masculino, as raparigas não eram levadas a sério – comenta mais tarde. “Eles falavam e eu ouvia. Falavam do que se passava em quadros e em filmes. Eu era muito envergonhada e não dizia nada. Não dizia nada mas ouvia. E assim, vai-se aprendendo muito”.

Depois vieram os filhos (teve a primeira filha com 20 anos). A Ama Luzia foi de Portugal para ajudar. Contaram com o apoio e a generosidade do pai. Continuou a pintar, prosseguiu os estudos. A cena é recuperada 20 anos mais tarde em “Coelha confessa aos pais que está grávida”. É revelador da delicadeza do momento que Paula tenha precisado de todo esse tempo para pintar o quadro…

As bonecadas desse tempo eram as mesmas, ainda que assumissem formas diferentes. O desenho que ilustra isto mesmo abre a retrospectiva de Madrid: uma mulher-cão datada de 1953. Décadas antes da famosa mulher-cão de 1994, a pintora fez um desenho em que o essencial já estava lá: a posição, a ferocidade, a narrativa. Paula simplesmente esqueceu que a tinha feito! Como esqueceu que tinha feito um homem-carocha até que a amiga Marina Warner a desafiou a pintar a “Metamorfose” de Kafka. Neste caso, lembrou-se do desenho antigo em conversa. No caso da mulher-cão, deu de caras com ele quando folheava cadernos antigos.

A primeira fase da obra de Paula Rego é marcada pelas colagens. Primeiro desenhava, depois recortava, por fim colava. Quadros como “Cães de Barcelona”, “O Regicídio” (ambos de 1965) ou “Salazar a vomitar a Pátria” (de 1960) são os mais ilustrativos deste período. O pai gostava destes quadros mais políticos, consentâneos com as suas ideias de liberdade. A mãe pronunciava-se perante quadros mais explícitos e provocadores…: “Esta minha filha faz estas coisas… E depois fica cheia de vergonha…”. A primeira exposição foi em 1965, na Gulbenkian. Não foi propriamente um sucesso. Olhava-se com estranheza para o mundo privado de Paula Rego.

Manuel Brito, o Brito da 111, apostou naquele talento desde o princípio. Persistiu na sua aposta, mesmo que a artista só se tornasse um fenómeno no final dos anos 80. É verdade que em Portugal sempre vendeu bem, mas a dimensão de Paula Rego não seria aquela que tem hoje se não fosse a associação à Malborough, a galeria inglesa que a contratou justamente nesses anos. O reconhecimento, o aplauso consensual, a maturidade artística, como dizia Marco Livingstone, só aconteceria depois dos 50 anos.

Que fez ela entretanto? A exposição de Madrid, que segue uma organização cronológica, explica passo a passo: há um grande buraco entre 65 e os anos 80. A artista diz brutalmente sobre a produção desses anos: não presta. Di-lo com humildade, perante uma plateia estarrecida, em Madrid. Por várias razões, explica, depois da morte do pai, o mundo desmoronou e a qualidade caiu.

O que a fez reerguer-se foram as histórias. A ideia de voltar a qualquer coisa que era do seu passado. Do seu passado feliz. Pediu uma bolsa à Gulbenkian e passou meses a estudar contos tradicionais do mundo todo. Concentrou-se no desenho, na fúria e na sensualidade do risco. Pôs de parte as colagens. As tesouras. Deixou de se ferir. “Estes bonecos que eu agora faço são uma espécie de colagem. Mas não é destruir, é fazer. É usar a imaginação de outra maneira. Posso brincar com eles como quiser. É uma coisa óptima, esse prazer físico. Modelar é satisfatório. Mexer no barro. Tenho um barro que seca automaticamente, como aquele que as crianças usam”.

Muito do que se passa nos quadros de Paula Rego parece saído de um terrível conto para a infância. Lá está a magia de Disney. Ou a perversidade de Buñuel – dois dos realizadores que prefere. Lá está a crueldade, e a inocência. O mundo de Paula Rego só pode ser lido como uma alegoria. Nada ali tem um sentido literal. Como quando era pequena e cortou os dedos de um boneco… “Só cortei uma vez. Esse boneco devia ser dos primeiros de plástico; parecia carne. Lembro-me de terem dito «Olha que engraçado...». Os bonecos até aí eram rijos, este era mole. Cortei-o porque era mole. Os dedos eram a única coisa saliente. As orelhas estavam coladas à cabeça. Os dedos dos pés também estavam juntos. Não havia outra coisa para cortar senão os dedos. E cortei um a seguir ao outro, não foram todos ao mesmo tempo. Eu queria ter a sensação da tesoura a cortar, a cortar. As crianças gostam muito de cortar. Também cortei um grande pedaço das cortinas da minha tia. Depois deitei a tesoura pela janela fora”.

Porque é que nada disto surpreende? Todas as crianças adorariam cortar os dedos a um boneco mole, que parece de carne. Um competidor – um irmão? Tudo isso está n’ “Os Desastres de Sofia”. O capítulo favorito de Paula era especialmente requintado… “Lembro-me de a mãe de Sofia a obrigar a usar as abelhas todas cortadas num colar de abelhas. Ela pegou numa faquinha e também cortou os peixinhos. Todas as meninas bem comportadas adoravam ler sobre meninas marotas. E más. Esse era o meu mundo”.

Foi filha única. Está na fase de fazer bonecos. Tudo começou com o “Pillow Man”, a partir da história homónima de Martin McDonagh. História aterradora. Os quadros dos últimos anos fazem contracenar esses personagens gigantescos com pessoas de carne e osso. Com a Lila, sobretudo. São uma nova forma de espantar o medo. Representam uma forma construtiva de cuidar de si. Restabelecer-se. Das depressões. Da solidão. Do medo, do eterno medo. “Sair, sair, sair. Desenrolar as ligaduras e sair. Fiz muitas figuras ligadas. Depois desliga-se e já se pode a pessoa mexer melhor… À solidão estou habituada, que sempre tive solidão. É qualquer coisa física que não sei bem o que é. É o escuro. A gente quando é pequena tem medo do escuro, à noite, tem de dormir com a luz acesa, não é? É a mesma coisa, só que ninguém nos acende a luz. Estamos sempre no escuro. E os medos chegam muito perto de nós – o que não é nada agradável. Medo do medo. Não tem explicação, nem se pode dizer que é medo dos papões. É medo de uma coisa indefinida. Se eu pudesse, como dizia o Alberto Lacerda, dar uma cara ao medo, estava bem, não havia perigo. Mas quando não se pode, é uma chatice”.

Madrid. A exposição retoma com a produção fulgurante dos anos 80. “As Óperas” (83), as “Vivien Girls” (84), “A Menina e o Cão” (86). Os “Nursery Rhymes” (92),  “As Avestruzes Dançarinas” (95), todos os personagens dos anos 90. As adaptações de “Jane Eyre”, a partir de Brontë. Os bichos, sempre os bichos – o pelicano, com uma fortíssima conotação sexual, é um dos mais usados.

Tudo feito com modelo, concentrado numa cena que podia ser a de uma peça de teatro. Com a roupa e os adereços postos no sítio certo, os gestos que traduzem a intensidade que se quer. “Ver uma coisa ao vivo e vê-la na nossa imaginação, são duas coisas muito diferentes. Põem-se os panos com a cor que se pretende, vestem-se as figuras. Faz-se como se fosse um teatro. Um teatrinho como o das crianças a representar a história do Cristo no Natal”.

O seu teatro não será nunca de uma beleza irreal, etérea. A sua pintura será sempre de uma beleza terrena, corpórea. Como acontecia nos quadros de todos os grandes pintores que admira: Goya, Velasquez, Murillo, Hogarth. Quando lhe falam da sua Nossa Senhora, em posição parturiente, da originalidade da representação, ela responde com a sensualidade da Madonna de Caravaggio. E claro que ela tinha de estar numa posição de quem vai dar à luz… Em que outra posição se dá à luz? “Natividade” (2003) é um dos oito quadros sobre a vida de Nossa Senhora que fez para a capela do Palácio de Belém.

Paula Rego, pintora da comédia humana, pinta os corredores da sua infância, os bonecos, as mobílias, os fantasmas, os personagens dos romances, os personagens da vida real. Tudo o que a despegue um pouco de si mesma. “Eu pôr-me a fazer a mim própria, em frente de um espelho, é uma grandessíssima chatice e uma grande solidão. Se isso é assim, então prefiro fazer um boneco, que é outra entidade, outra criatura, e posso projectar em cima dessa criatura outras histórias que não são as minhas. Tudo o que seja fazer bonecos é o contrário de fugir: é ir ao encontro do que a gente é. A pintura é muito complicada. O nós não interessa, não interessa absolutamente nada. O que interessa é o quadro. É só assim, fazendo, que a gente descobre o que está a fazer”.

Quem é ela, quem é Paula Rego? Há um quadro especialmente revelador… “Target” (1994), o alvo. “É a menina de costas, a abrir o vestido, cúmplice na maldade que lhe estão a fazer. Vão dar-lhe um tiro nas costas, ou uma seta, como ao São Sebastião. (Gosto muito do São Sebastião por causa das setas). E ela está a ser cúmplice naquilo que lhe estão a fazer: está a abrir o vestidinho para lhe fazerem mal. É um quadro que me saiu muito simples e que tem muita coisa de que gosto”. Paula Rego é esta mulher, sacrificial, entregue ao prazer e à culpa.

Outono em Londres. Noite escura sobre o rio Tamisa. Não nos víamos desde a inauguração no Reina Sofia. Brindámos ao sucesso da exposição. Depois daquilo, ela não pede mais nada. O ponto alto. Perguntei-me em quem pensaria ela? “As coisas que faço são para o meu pai. That’s true. Se hoje tenho algum sucesso, ou se as exposições correm bem, penso: «O meu pai gostaria de saber disto». Gosto de fazer coisas para o lembrar”.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007. Neste texto foram usados excertos de entrevistas que Paula Rego me concedeu e que foram publicados no DNa (2003), revista das Selecções do Reader’s Digest (2005) e Máxima (2007).

 

Paula Rego p/ Manuela Correia

08.06.22

É tão difícil entrevistar como falar sobre Paula Rego. Falar sobre Paula Rego é falar da pintura de Paula Rego, que por sua vez é a vida de Paula Rego, que é a Paula Rego.

Deve-se à inteligência, sensibilidade e intuição de Anabela Mota Ribeiro, a originalidade do dispositivo para construir este livro - cinco entrevistas contínuas ao longo de oito anos, que possibilitam pouco, algum, ou muito conhecimento, e ambicionam uma Revelação. Quem é Paula Rego?

O método para alcançar este fim, foi ouvir e deixar-se conduzir pelas múltiplas vozes de Paula Rego, para chegar à Voz de Paula Rego, num jogo de ocultação e revelação. A Voz está no seu território - o mundo da infância e a infância do mundo. A Voz fala e as histórias contam-se e recontam-se ao longo de oito anos e a entrevistadora deixa-se levar, escuta, habita esse lugar primordial - o espaço doméstico e a liberdade para sentir.

É aqui que o psicodrama se joga e revela - põe e tira, magoa e cuida, mostra e esconde, mata e ressuscita, salva ou condena. Salva-se!

Paula Rego coloca no palco os mesmos temas, recorrentemente - escuro, medo, dor, destruição, violência, vingança, morte, curiosidade, confiança, coragem, ambição, poder. Transgredir para prosseguir - sexo, família, infância, velhice, homem, mulher, amor. Trabalho, trabalho, trabalho. Fazer, fazer, fazer. “Fazer uma coisa que não se consegue fazer”, na fala de Paula Rego.

A persona são figuras, bonecos pintados, cozidos, ligados; imagens e papéis cortados, recortados, colados; bichos, hortícolas e seres biformes; são riscos, traços, posições, acções congeladas no tempo, estátuas emocionais. Tudo eu posso fazer e destruir, tudo eu posso matar. Tudo menos a Angústia.

O caminho das pedras é brutal, de “uma brutalidade sem filtro”, como refere Anabela Mota Ribeiro, pois ele emerge do pensamento mágico e concreto, onde o poder é total e absoluta é a Angústia. Não há filtros, não há pensamento abstracto, não há mentalização. Está sempre escuro, dentro e fora e há sempre uma saída de emergência - um cadeirão dourado para quando está ou se sente ameaçada. Aqui, a escatologia emerge, na forma falada, de uma transgressão total, como podemos ler na página 71 do livro, quando Anabela Mota Ribeiro fala do quadro “A Filha do Polícia”, que tem uma menina com o braço enfiado na bota do pai.

AMR - A aconchegar, seria uma posição mais amorosa. Assim, com a mão lá dentro, é mais uma penetração.

PR - Ok. Há um quadro do Mapplethorpe que mostra uma fist fucking, que é uma coisa homossexual com a mão dentro do rabo. Vem daí.

Um trovão, para continuar viva, para se defender do medo de ter medo, para se proteger da Angústia. Esta é Paula Rego - o mundo mágico, das coisas concretas, tenebroso, onde não há paz. Uma fala concreta para dizer quem é. “Não há nada de diferente para dizer para além dos seus desenhos e dos seus quadros”, diz João Fernandes no prefácio ao livro. E é verdade.

Não conheço todos os determinismos, acasos e circunstâncias que levaram ao seu nascimento. Mas conheço muito bem o lugar que Paula Rego habitou depois do seu Big Bang - um lugar escuro, onde está só, abandonada, possuída por um medo físico. Uma máquina biológica que comia, dormia, desejava e também riscava. A metamorfose do corpo pré-programado para explodir e romper para fora, atravessar o buraco negro “para o mundo, um lugar também escuro mas ainda maior”, sussurra Paula Rego.

Há duas Paula Rego - a que pinta para viver e a que vive para pintar. E para viver tem que pintar e para pintar tem que estar viva. A que vive para pintar, teve uma vida relativamente fácil até às primeiras mortes e à chegada da velhice. Agora tem um obstáculo intransponível que não pode controlar.Tem medo de não ter forças para continuar, para desenhar, desenhar, pintar. Fazer, fazer, fazer. A que pinta para viver, teve sempre uma vida difícil, dolorosa, transgressiva, impetuosa. Trabalho, trabalho, muito trabalho. “No quarto escuro é onde estou. E abrir a porta para ver lá para fora? Está outro escuro. Nem pensar nisso. Desde os três anos começaram a aparecer coisas desagradáveis - o abandono. A solidão. O porco que anda com o rabo de cá para lá a mexer a cabeça”, vai contando Paula Rego.

A sabedoria para sobreviver foi sendo construída, passo a passo, através da pintura, das histórias, das metamorfoses, do mundo mágico que convoca o irracional com um sentido e um devir.

Na vida lá fora estão os objectos de Adoração e Admiração. Os adorados, os do amor incondicional - O avô José e o Vic, seu marido. Já todos morreram. Mesmo, mesmo. Os admirados, os do amor condicional - o bisavô, a avó Gertrudes, a tia, a tia-madrinha, o pai, a mãe. Morreram também, mesmo, mesmo. Só lhe resta os transitivos - a Lila e por vezes outros objectos afectivos, como alguns familiares.

O enigma Paula Rego - “Eu se tivesse de morrer, levava o Anjo comigo. Se eu morresse, morria com ele”. Se, condição de Paula Rego. O Anjo mensageiro, divino e incorpóreo que não está sujeito à dissolução. Nunca morre, é eterno. O Anjo com duas faces - vingador e protector. A espada, a esponja e a ausência de desejo animal.

“Tenho medo da morte tenho.Tenho desde pequenina, não é só de agora. Tinha medo da morte quando entrava pelo meu quarto dentro, aquela morte tradicional”

Eu não sei o que vejo quando estou a olhar para a minha imagem. Só vejo as máscaras. Não sei quem sou. Preciso de atravessar o espelho. Preciso de uma idéia para me salvar. É isso que me dá a vontade de viver, diz a Voz - o que posso fazer a seguir. “Toda a gente precisa, não sou só eu. Toda a gente precisa de encorajamento para conseguir fazer aquilo que gostava de fazer”

Paula Rego necessita hoje, mais do que nunca, de ser surpreendida, ter uma Visão, uma Aparição, de ser salva e cuidada pelo Anjo, precisa de acender a luz - já não há ninguém para o fazer. Necessita urgentemente de uma ideia, de uma outra Voz, de se ver sem máscara, não esconder os verdadeiros pensamentos e sentimentos e de olhar para a Angústia mortal. Dor, medo, muito medo. É preciso muita curiosidade, imaginação e ímpeto. É preciso superar-se. Riscar, riscar, desenhar, desenhar, desenhar. Ver-se, reconhecer-se e suspirar - voar e regressar para dentro dos porcos e coelhos, para dentro do escuro imortal.

T. S. Eliot, “Burnt Norton” - 1º Quarteto

O tempo presente e o tempo passado, estão ambos talvez no tempo futuro. E o tempo futuro contido no tempo passado. Se todo o tempo é eternamente presente todo o tempo é irredimível.

Memória, tempo, passado. Conflitos do futuro. O corpo-máquina gasto, vai um dia parar. Apoptose - morte celular. Agora enrola-se para dentro, fundo, mais e mais fundo. É preciso reconstruir, reparar, refazer, reinvestir. É preciso ter uma ideia, uma liberdade, ter um nome, um coração, uma história para contar. É preciso ter assunto. Tem que ser uma surpresa, pode ser um conto de fadas, uma aparição, uma visão, uma revelação. “É importante ter uma história, pois a parte final é suspiro”, diz Paula Rego. Este quadro ainda está por fazer. Riscar, desenhar, magoar. Ter esperança, ímpeto e continuar sem paz. Quando não pintar a Voz acaba e a vida também. Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Agora espera o seu último milagre. A linha invisível de tensão no céu azul, que vai do seu rosto ao do Anjo. A bela e brutal catarse da tragédia da condição humana.

 

PINTO LOGO EXISTO - O MILAGRE PAULA REGO, de Manuela Correia (psiquiatra), foi lido na apresentação de "Paula Rego por Paula Rego", na Casa das Histórias, em Novembro de 2016, e publicado semanas mais tarde na revista digital Blimunda, da Fundação Saramago. 

 

Paula Rego p/ Fátima S. Cabral

08.06.22

O que sempre me interessou vivamente como psicanalista no trabalho da Paula Rego, foi, não o desejo de a analisar ou às suas obras, mas a qualidade do seu funcionamento mental que, em determinada altura em que esteve deprimida, foi ainda mais desenvolvida pela psicoterapia que fez; diz ela que ficou “com menos medo e menos vergonha de ser ela própria. Libertava-me a imaginação. A liberdade que cria é totalmente inconsciente. As coisas que aparecem!”, exclama, referindo-se à psicoterapia.

         Sempre me impressionou a sua facilidade em ir com ironia, com humor e, também, com horror ao mais recôndito da sua mente, aos mistérios do ser humano, aos sentimentos mais terríveis – facilidade pelo menos aparente pois, como diz, “é com muito esforço e muita coragem que chego lá”.

         Sempre me fascinou o modo como é capaz de mergulhar nas suas entranhas, encará-las, contê-las e expô-las transformadas em desenhos, recortes, bonecos, pinturas. É que, para mim, o trabalho dela representa o que é raro e, possivelmente, de génios: conseguir um funcionamento psíquico capaz de ligar o inconsciente e o consciente, a fantasia e a realidade, transformando a dor, dando nome ao inominável, dando forma ao desconhecido, sonhando, pensando, criando e expondo-se.       

         Numa das entrevistas que compõem o livro "Paula Rego por Paula Rego", de que parto para a construção deste texto, ela diz: “Interessa-me pintar aquilo que dói, que me magoa, que arranha, que não é confortável a fazer… borro tudo mal e é preciso apanhar aquilo outra vez, puxar o que desconheço e fazer daquilo uma entidade”.

         E noutra entrevista: “O que interessa é o quadro, o trabalho. Entram coisas no trabalho que nos vêm informar do que se trata o que estamos a fazer. É só fazendo que se descobre o que estamos a fazer. Sobre o que somos e mesmo fora de nós próprios. O que nós somos não tem grande importância. Há mistérios e enredos que se passam no mundo imaginário, que são muito mais interessantes do que nós”. E Anabela Mota Ribeiro, a autora do livro, pergunta: “Esses enredos também fazem parte de nós?”. “Muitas vezes não. Têm mistérios e contam histórias que não ouvimos nunca. E isso é fascinante”.

         Este trabalho – a que os psicanalistas chamam “trabalho de sonho” - é também o que a psicanálise pretende ajudar as pessoas a fazer. Falando do funcionamento mental de uma forma muito superficial e esquemática, as pessoas ou funcionem estando completamente perdidas na fantasia, não tendo em conta a realidade (em que a área psicótica da mente predomina); ou, ao contrário, estando completamente presas à “realidade” (não sonham, uma mesa é apenas uma mesa, um cão é apenas um cão, tendo pavor à metáfora, à incerteza). O trabalho na análise será então o de tentar flexibilizar, de permeabilizar essa espécie de “pele psíquica”, a que chamamos “barreira de contacto”, permitindo o trânsito entre inconsciente e consciente, a comunicação entre fantasia e realidade, a transformação, a criatividade, o sonho e a realização. O “trabalho de sonho” da análise vai permitir a reconstrução ou a optimização da área transicional da mente: um espaço de ligação/separação, de jogo, de simbolização, de criatividade, de possibilidade de dar novos sentidos e perspectivas. Ou seja, ter um funcionamento mental mais saudável.

         Paula Rego confidencia: "O quadro oferece uma liberdade total. A pessoa pode estar a fazer uma coisa pavorosa e de repente começar a gostar da pessoa que faz coisas más. Há uma atracção pelo grotesco e pela maldade. Não é só não ter medo para não virar a cara. Não. É preciso ter curiosidade”.

         Falando da fase do Pillowman, um boneco muito grande que construiu com meias e um edredon, tudo cosido, e que mais tarde descobrirá que era o pai disfarçado de boneco, diz: “É uma história terrível. Estive muito doente – uma depressão – não é a solidão a que já me habituei porque sempre a tive. É o escuro. Medo do escuro como as crianças que querem a luz acesa. Mas nós estamos sempre no escuro e os medos chegam muito perto de nós; não é medo de morrer; é medo do medo, de uma coisa indefinida. Se eu pudesse dar cara ao medo, estava bem, não havia perigo. Mas quando não se pode, é uma chatice. Os bonecos são sair, sair... Desenrolar as ligaduras e sair. Fiz muitas figuras ligadas e depois desliga-se e já se pode a pessoa mexer melhor. Oxalá, nunca se sabe...”.

         A sabedoria de Paula Rego fá-la afirmar ainda que “pintar é uma forma de contar histórias, de dar uma forma, uma ordem à vida. A natureza humana é o que está dentro de nós – zangar-se, ter raiva –, não pode sair por outro lado, então sai pelos quadros”.

         Sobre a dificuldade em começar um quadro, e chega a pedir que lhe dêem ideias, diz: “Quando a gente está a olhar para dentro é muito mais difícil, não é como desenhar à vista; e muitas vezes não se vê, nem vem nada à cabeça. Mas o que importa é o que se vai fazer a seguir. O encher-me de medo. Pode ser que saia alguma coisa brutal, interessante”. Há também, depois de começar a obra, um grande prazer no lado grotesco, cómico, sexual e nas contradições: “A beleza e o grotesco vêm do amor [...]. Há uma atracção, uma curiosidade pelo grotesco e pela maldade”. E mais à frente: “Há coisas perversas – [o quadro] "Salazar a vomitar a Pátria": não há explicação para a pena que eu tive do Salazar! A contradição está sempre presente, a compensação de sentimentos está sempre presente. O sentimento engana as pessoas permanentemente. É muito importante a pessoa ser honesta consigo própria, com o que sente. Por exemplo, detestarem a mãe ou o pai. Têm a liberdade de sentir, como compensação para a falta de liberdade que existe noutros terrenos”.

         Com a habilidade, a sensibilidade e a curiosidade contida da Anabela Mota Ribeiro, com a sua capacidade de não se impor, de dar espaço para compreender, possibilitando uma abertura mútua para a com-versa (a fala em comunhão) enquanto olhavam os quadros, Paula Rego vai-se abrindo, aparentemente repetindo o que já tinha dito. “Não tenho nada de diferente a dizer”: assim começa a última entrevista. Mas na continuidade das entrevistas nota-se uma intimidade cada vez maior, um encontro com a mudança – a idade, os temas dos quadros -, “o reencontro com coisas passadas e infantis que falam com aquela voz, com urros das crianças: os últimos que fiz vão outra vez buscar coisas aos sítios onde elas já estiveram. [...] Agora há menos sexo. É o tempo, o passado. Pintar salva-me da depressão”. E também, diria eu, o humor que Paula Rego sempre conservou e que salta como quando fala da sua própria “maluqueira”, ou da beleza dos grotescos contos tradicionais portugueses, dizendo, com uma gargalhada, que “é uma tradição um bocado masoquista a mulher cortar os seios para os dar de comer ao marido mas, pelo menos nesses contos, os pais não matam os filhos”.

         João Fernandes escreve no prefácio do livro: “Uma cadeia de simpatia e de curiosidade é gerada no leitor a partir destas entrevistas”. Cadeia essa que repete o que aconteceu ao longo das entrevistas, qual jogo de revelação-ocultação. Eu agradeço a oportunidade única de tentar perceber melhor a riqueza humana, poética e artística de um processo criativo genial, como é o da Paula Rego.

 

 

Texto de Fátima Sarsfield Cabral (psicanalista), lido na apresentação do livro "Paula Rego por Paula Rego", na Bertrand do shopping Cidade do Porto, em Novembro de 2016, e publicado semanas depois no Jornal de Letras.

 

 

 

Desigualdade de género

01.06.22

1. Ana Luísa Amaral publicou o primeiro livro aos 33 anos. Título: Minha Senhora de Quê. Nasceu em 1956. Lembra-se bem do tempo em que as senhoras frequentavam confeitarias e os homens iam ao café (que não era frequentado por senhoras, que estavam confinadas à confeitaria). Filha única, a família mudou-se de Sintra para Leça da Palmeira, quando era criança. Em Leça, havia apenas um café, não havia confeitarias. Muitos anos mais tarde, nos Estados Unidos, Ana Luísa deleitava-se com idas à pesca, apanhava insolações, trutas.

Tarefa imprópria, sentenciaria o coro, se o houvesse, para uma mulher. Que importa. Ana Luísa já tinha aprendido a importância da subversão, da explosão que se dá dentro, como a dos vulcões, constantes na poesia de Emily Dickinson. E nunca quis ser uma jeune fille bien rangée, retratada no famoso título de Simone de Beauvoir.  

 

2. Emily Dickinson é a mulher que um dia escreveu: “’Não’ é a palavra mais selvagem que podemos outorgar a uma língua”. Emily Dickinson, poeta americana, 1830-1886, foi estudada pela poeta portuguesa Ana Luísa Amaral, no doutoramento desta.

 

3. Não, palavra feroz. Não à discriminação, não à desigualdade. Como está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948).

Artigo 1: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade."  Artigo 7: "Todos são iguais perante a lei e [...] têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação."

 

4. Teresa Pizarro Beleza, que recebeu uma educação igualitária, iniciou o curso de Direito em 1968/1969 num quadro de flagrante desigualdade perante a lei. "Desde logo na impossibilidade de prosseguir as mais importantes carreiras jurídicas em função do meu sexo: Magistratura Judicial, Ministério Público, Diplomacia."

As questões de género constituem um dos seus focos de interesse e investigação. Em 2013, escreveu para a revista "Pontos de Vista" da Faculdade de Direito da Universidade Nova sobre o estatuto da mulher no Estado Novo. Alguns pontos aí sistematizados são recuperados a seguir.

 

5. "A Mulher no Estado Novo não existe. Existiam mulheres de muito diferente condição económica, social, cultural e até sexual. Entre uma camponesa, uma empregada doméstica, uma operária, uma intelectual, uma prostituta e uma senhora mulher de um ministro do Governo de Salazar – que ministras não havia – as diferenças eram abissais. Em comum teriam apenas as limitações à sua capacidade que lhes eram impostas pela Lei, mas também pelos hábitos e convicções sociais dominantes, pelos quadros ideológicos e pela prática política e social do regime. Essas limitações eram, no que respeita à Lei, sobretudo impostas às mulheres casadas – porque o destino ‘natural’ das mulheres era o casamento e a família, aliás fundamento constitucional de desigualdade (Constituição de 1933). A ligação das mulheres ao Estado era estabelecida de forma indirecta, tipicamente através do marido, que sucedia ao pai – como simbolicamente se poderia ver na cerimónia religiosa (católica) do casamento, então dominante, e na mudança de nome da mulher em função do mesmo, prática ainda corrente. Não eram, portanto, cidadãs de pleno direito."

 

6. No Código Civil de 1966, no artigo "Da incapacidade da mulher casada", as mulheres casadas (e pressupõe-se que antes de casadas, a autoridade era o pai) são consideradas (ou seja, tornadas por força de lei) incapazes de decidir autonomamente e legitimamente coisas que têm que ver com a alienação de propriedade, voto em empresas em que eram accionistas, saídas do país.

 

7. Num tempo que parece antiquíssimo, por ser tão absurdo e incompreensível, mas que foi ontem, à mulher competia o governo doméstico, o tratar da casa e da família. "No Código Civil que vigorava em 1973, o marido detinha em geral os poderes de administração e podia denunciar qualquer contrato de trabalho livremente assinado pela mulher, sem necessidade de qualquer fundamento ou explicação. A licença marital para sair do país por escrito deixara de ser necessária em 1969, poucos anos antes de a Constituição ser alterada (1971) – pela ‘mão’ de Marcello Caetano – e o voto para a Assembleia Nacional é concedido às mulheres (mas não a total igualdade eleitoral, que só chegaria com a Revolução de Abril de 1974). O divórcio estava vedado aos casamentos católicos (Concordata com a Santa Sé) e na esfera civil só existia na forma litigiosa", enuncia Teresa Pizarro Beleza, directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova.

No plano profissional, as limitações estavam contidas em vários diplomas: estavam vedados às mulheres lugares de chefia na Administração pública local e profissões como a enfermagem ou o professorado eram consideradas incompatíveis com o estatuto de casada.

 

8. Constituição de 1976. Estabelecimento de quadro igualitário também em função do género. Revogação de normas anteriores contrárias à igualdade e à não discriminação. "Fica formalmente consagrada a plena igualdade de direitos. Mas em termos substanciais a igualdade ainda vinha e vem longe", conclui a jurista.

 

9. Irene Flunser Pimentel é historiadora. Foi-lhe atribuído o prémio Pessoa em 2007. A Cada um o seu Lugar - a Política Feminina do Estado Novo (2012) é um dos livros em que se debruça sobre o Antigo Regime e sobre o lugar específico que estava destinado às mulheres, consoante a sua classe social. "O lugar da mulher... devia-se falar em lugar das mulheres, de tal forma ele pode ser diverso". Nascida em 1950, a sua vida não se parece com a das mulheres que estudou. Em parte por ser meia estrangeira, em parte por ser de uma família burguesa. O apelido Flunser é da mãe, suíça.

"No contexto específico do Estado Novo, homens e mulheres tinham funções e espaços de actuação diferentes. Elas a cuidar do lar e dos maridos e a educar os filhos, eles a trabalhar no espaço público, a ganhar a vida para toda a família. Porém, este ideal salazarista esbarrava na realidade. As mulheres das classes mais baixas e pobres trabalhavam fora e dentro de casa. Em qualquer caso, as funções não eram qualificadas da mesma forma. As das mulheres eram desvalorizadas relativamente às dos homens."

Portugal, Europa, sociedade ocidental em 2017: a desigualdade persiste, apesar das alterações significativas. Os salários não são os mesmos e as mulheres são desconsideradas, ainda que a igualdade esteja consagrada nos princípios constitucionais e as mudanças sejam abissais desde a instauração da democracia. "A realidade não acompanhou as leis, que são muito mais igualitárias do que a sua (não)-aplicação. Os homens aceitam e cultivam a desigualdade porque lhes convém!: ela favorece os que estão em posição privilegiada. Mesmo quando reconhecem que tal constitui uma injustiça. Muitas mulheres também não lutam por mais igualdade, por razões de hábito, culturais e de hegemonia masculina. Aquilo que Gramsci apontava na hegemonia das classes dominantes que fazia com que os seus valores fossem aceites e partilhados pelas classes não-dominantes. O que as mulheres deveriam fazer, que é exigir, pelo menos, a aplicação da lei, não o fazem ou por dependência física e/ou dependência psicológica, ou porque partilham os valores hegemónicos dos detentores do poder."

 

10. Num livro que não é só sobre mulheres, num livro que é sobre a repressão e a liberdade, pode ler-se: “A repressão perfeita é a que não é sentida por quem a sofre, a que é assumida, ao longo duma sábia educação, por tal forma que os mecanismos da repressão passam a estar no próprio indivíduo, e que este retira daí as suas próprias satisfações”.

Esse livro foi editado em 1972, esteve disponível apenas dois dias nas livrarias, após o que foi retirado e movido um processo às suas autoras. Tem por título Novas Cartas Portuguesas e a assinatura de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.

Ana Luísa Amaral orgulha-se de ter organizado uma reedição da obra, anotada, três décadas depois. "A obra traz a crítica às formas sociais do patriarcado, além do questionamento de vários aspectos da vida nacional (a condição das mulheres, a guerra, a emigração, entre outros). E note-se que pretendeu ser, antes de tudo, não um manifesto feminista, mas matéria literária. E continua a sê-lo: uma grande obra literária. O livro afrontava não só o conservadorismo geralmente defendido ou praticado pela direita política, mas era igualmente incómodo para as ideologias “autorizadas” da esquerda. Uma das frases diz: “Pois clausura rompemos, já rompemos”. É sobre o rompimento de clausuras várias (das quais as mulheres constituem uma parte) que o livro fala."

 

11. Clio é a musa da História e da criatividade, é a mulher que guarda a tradição e estabelece a ligação entre gerações, entre passado, presente e futuro. Na mitologia grega, Clio, uma das nove musas, é filha de Mnemosine, a deusa da memória, e de Zeus.

 

12. Irene Flunser Pimental estuda também outros contextos de discriminação e de relações de poder tortuosas. Que constantes há? O que é que provoca a discriminação em geral e das mulheres em particular? "Os contextos de discriminação são os que entram em contradição com os valores democráticos, de igualdade, solidariedade e liberdade que queremos proteger, defender e desenvolver. Constantes são as relações de força em que uns estão e as de fragilidade em que os outros estão. Há muitos factores que provocam as discriminações, mas basicamente elas estão relacionadas com relações de poder e a defesa dos interesses próprios, em confronto com os interesses gerais e, por isso, também próprios."

 

13. Voltaremos a falar desta sinuosa forma de egoísmo.

 

14. "Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas

Geram pros seus maridos

Os novos filhos de Atenas

Elas não têm gosto ou vontade

Nem defeito, nem qualidade

Têm medo apenas

Não têm sonhos, só têm presságios

O seu homem, mares, naufrágios

Lindas sirenas, morenas"

Mulheres de Atenas

Que mulher está na Grécia Antiga, que mulher está na canção de Chico Buarque, de 1976? A gestante. A submissa. A que cuida. A que espera. A frágil. A bela. A sereia (de natureza misteriosa e feiticeira). 

 

15. Definição de matriarcado no dicionário Aurélio: ordem ou regime social caracterizado pela preponderância da autoridade materna ou feminina. Como conceito, está ligado à hipótese, difundida no século XIX, de que teria prevalecido em épocas arcaicas. Não há registos históricos ou etnográficos que comprovem tal suposição.

 

16. "Não há nenhuma evidência história de que haja, ou tenha havido, algum tipo de sociedade matriarcal", esclarece Antónia Pedroso de Lima, antropóloga, professora do ISCTE. "A ideia do matriarcado reflecte uma noção evolucionista da História. A organização social é imaginada a partir de um contexto primitivo, ligado à natureza, para algo mais civilizado. Nessa suposta ordem em que a biologia manda, é tida como natural a associação da mulher à casa, à família, ao cuidado dos filhos; a própria ideia de que existe um instinto maternal, e que as mulheres cuidam melhor das crianças, é obviamente uma construção social. São treinadas para isso! E, sendo treinadas para isso, acabam por ser melhores a fazer isso. Aquilo de que temos evidência histórica é de sociedades matrilineares. Ou seja, as formas de descendência e as formas de passagem de propriedade ou conhecimento ou nome, são feitas por via feminina e não por via masculina. Isso dá simbolicamente um poder maior (mas relativo) ao feminino. Nessas sociedades, apesar de essa transmissão ser feita por via feminina, quem ocupa os cargos de poder são os homens, e não as mulheres. Faz-se, assim, um equilíbrio."

Encontramos sociedades matrilineares em África ou no Sudoeste Asiático. Lovedu é um reino africano na África do Sul cuja rainha tem o privilégio de casar com outra mulher. Os filhos da rainha, os príncipes, têm uma dupla ascendência feminina. Outra sociedade matrilinear: os Ashanti do Gana.

"A questão importante resulta disto: a nossa tradição cultural tem por base esta oposição entre o masculino e o feminino. Mas há outras sociedades em que esta oposição não é pensada como oposição mas permanente relação. Onde é que elas estão? Na Oceania, no Pacífico, várias sociedades em contextos amazónicos, comunidades de native americans."

Portanto, o próprio colocar da questão, considera Antónia Pedroso de Lima, já é algo culturalmente construído, assente no pressuposto de que há dois géneros e que eles são opostos e que um deles deve ter poder sobre o outro. Falamos de sociedade matriarcal? Não pensamos: se calhar, antigamente eram iguais. Pensamos que um tem de mandar.

 

17. Patriarcado: regime social em que o pai exerce autoridade preponderante. Regime social que tem regra de descendência de tipo patrilinear, herança e sucessão determinados pelo lado masculino (definição que consta no dicionário Aurélio).

O desequilíbrio, radica onde? Como é que o homem ganhou tanto poder? Antónia Pedroso de Lima: "É muito difícil apontar a origem. Há muitas tentativas de explicação, a maior parte delas associadas ao desenvolvimento das sociedades. Uma possibilidade: os homens começam a organizar-se para caçar, e caçar cada vez mais longe dos lugares onde residem, e as mulheres ficam mais presas à terra, porque acabaram de dar à luz, para cuidar dos filhos. O outro lado: as mulheres que educam as crianças e têm um papel muitíssimo importante na formação desses que virão a ser os bons caçadores."

Não suscita controvérsia a asserção de que já fomos uma sociedade muito mais desigual. O que nos surpreende é que hoje em dia esteja legislada a obrigatoriedade de igualdade (o que era impensável há uns anos) e que mesmo assim persistam desigualdades. Porquê? A antropóloga, cujo estudo tem incidido sobre questões relacionadas com o género e a família, é contundente: "A desigualdade salarial ou a limitação no acesso a lugares de poder têm a ver com a manutenção das estruturas simbólicas de hierarquização do masculino e do feminino. Continuamos, em muitas dimensões da nossa vida social, a ver uma valorização do masculino e uma associação das mulheres com as crianças. Nas empresas, o discurso é o de que as mulheres faltam mais porque têm de ficar em casa a tratar dos filhos quando estes ficam doentes. Nas questões patrimoniais, eles herdam as terras e as empresas, elas o recheio das casas e as jóias. Mas a percepção sobre o estatuto da mulher e a discriminação regista diferenças enormes em termos de estatuto social. Muda muito se estivermos a falar de uma família comunista do Barreiro ou de uma família de contexto católico e tradicional que vota no PDS."

 

18. No fundo, estamos sempre a falar de poder. Voltaremos ao tema.

 

19. José Tavares estudou Economia em Harvard. Dá aulas na Universidade Nova. Sob o pseudónimo José Gardeazabal tem dois livros publicados, História do Século XX (2015) e Dicionário de Ideias Feitas em Literatura (2016). Estabeleceu duas equivalências interessantes, cirúrgicas:

Mulher = Atenção

Homem = Velocidade

Outras: a mulher é o cimento. O homem, o risco.

Nenhum de nós sabia se o interlocutor se chamava José Tavares ou José Gardeazabal. Ele sabe que não quer misturá-los. Usa a Literatura e a Economia como formas de auscultar o mundo. Foram convocadas linhas duplas na conversa. Foram interrogadas as palavras, elas mesmas, como portadoras de um conteúdo que é preciso atender. Matriarcal e patriarcal têm que ver com origem, com procriação, pai e mãe. O seu uso remete-nos para o lugar de onde vimos. "A ideia da geração seguinte e da continuidade é central para as sociedades. As mulheres estão no centro, em muitos sentidos. Um deles: o acolhimento físico, interior, do novo ser. Outro (associação válida até há pouco): o acompanhamento mais próximo dessa nova geração. Estão neste lugar privilegiado: tudo o que vai continuar (homens e mulheres) passa pelas mulheres. Mas, simultaneamente, este processo pode travar a mulher, colá-la ao solo. O que a faz essencial e central é, ao mesmo tempo, o que diminui a sua capacidade e o seu poder. Coisa dura: pensar que a especialização, criada durante anos, da mulher como cuidadora, se tenha transformado numa coisa prejudicial à mulher."

José Gardeazabal é o único homem ouvido para este trabalho. Quatro mulheres e um homem. Talvez o desequilíbrio só espante, e para ele se chama a atenção, por ser uma situação invulgar. O inverso, uma desproporção das mulheres ouvidas em relação aos homens, é comum. 

 

20. Porque é que aceitamos, e perpetuamos, esta desigualdade? "Temos todos maus instintos, maus impulsos. Um dos impulsos colectivos é discriminar contra quem podemos discriminar, proteger as nossas vantagens. É como se tivéssemos um recurso, resultado da malícia, que nos permite afirmar uma suposta supremacia. Há um egoísmo que está em todos e que se pode expressar de uma maneira muito fácil. A discriminação de género, como outras, não é inocente e tem uma profunda relação com outras discriminações; tem raiz num egoísmo puro e numa dinâmica de grupo. Mesmo que as pessoas acreditem que estão a fazer - só - uma discriminação cultural, de facto elas estão a perceber: é mais gente a concorrer pelas mesmas coisas que eu também quero. Como é que divido o mundo de modo a ficar do lado confortável da equação?"

 

21. "Robin Wright exigiu o mesmo salário que Kevin Spacey em House of Cards." Huffington Post, 17/ 5/ 2016.

A actriz, que interpreta a primeira-dama Claire Underwood, mulher do presidente Frank Underwood, revelou numa sessão pública na Rockefeller Foundation, que analisou as audiências e concluiu que Claire foi mais popular do que Frank durante um determinado período. Exigiu aos produtores da série que os salários fossem equiparados.

 

22. José Tavares em Harvard. "Um dos trabalhos que fiz, com Tiago Cavalcanti, da Universidade de Cambridge, analisa o custo social da discriminação de género. O trabalho tem por título "The Output Cost of Gender Discrimination", e foi publicado no Economic Journal. Nele criámos uma caixa, um modelo de uma economia a funcionar, com as suas várias facetas, trabalho, consumo, poupança, progresso técnico. Usámos os Estados Unidos como ponto de referência. Ao que essa economia produz, poupa, ao que cresce, importámos de outras economias um parâmetro que sintetiza o grau de discriminação de género, associado ao grau de participação das mulheres no mundo laboral, às diferenças de salário entre homens e mulheres. Depois usámos a caixa-modelo para estimar o quanto a economia americana empobreceria (ou o contrário) se sujeita à discriminação de género observada em outros países: o Egipto, a Irlanda, a Arábia Saudita, etc. Os resultados foram esclarecedores: para alguns países, no longo prazo, até 40 por cento da diferença entre o seu grau de prosperidade e o dos Estados Unidos deve-se, apenas, à discriminação de género.

O modelo trabalha duas áreas: o grau de participação laboral e a taxa de fertilidade, as duas juntas. As economias que discriminam perdem porque excluem as mulheres de participar na criação de riqueza, na produção, e relegam-nas, culturalmente, à reprodução. A equação produção versus reprodução, é algo muito palpável. Se acrescentarmos a esta análise a discriminação no acesso à educação e à saúde os custos são com certeza muito superiores."

 

23. Na prática, a igualdade de género é possível? Teresa Pizarro Beleza pensa que é tão possível eliminar a discriminação com base no género como com o pretexto de qualquer outro factor: raça, etnia, religião, crença, nacionalidade. "Mas talvez seja mais interessante e porventura mais profícuo compreender que a desigualdade em si mesma parte da compreensão de uma ‘diferença’ (na verdade, uma hierarquia) entre os géneros que nem sequer do ponto de vista biológico é, estritamente falando, sustentável. Não só a ideia de diferença esconde a realidade da hierarquia, de superioridade / subordinação (a complementaridade é um dos seus correntes disfarces) mas consolida a falsa convicção de que existe uma homogeneidade dentro de cada grupo (homens / mulheres), gerando expectativas normativas e normalizadoras de comportamento, com as respectivas sanções para os não conformistas, vistos como anti-naturais e desviantes. Na verdade, aquilo que se tornou mais ou menos evidente quanto à invalidade científica do conceito de raça terá de ser levado a cabo (está sendo, mas com enormes resistências) quanto à divisão / separação entre os dois supostamente únicos géneros humanos".

 

24. “On ne naît pas femme, on le devient”, O Segundo Sexo (1949), Simone de Beauvoir.

Frase-bomba que antecipou os movimentos feministas da segunda metade do século XX. Deriva daqui a apropriação da palavra “género” para significar a construção social de uma diferença orientada em função da biologia, por oposição a “sexo”, que designaria somente a componente biológica. A proposta de Beauvoir denuncia o carácter artificial da categoria “mulher”: um ser humano do sexo feminino “não nasce mulher”, antes “se torna mulher”, através da aprendizagem e repetição de gestos, posturas e expressões que lhe são transmitidos ao longo da vida.

Ana Luísa Amaral, que leccionou seminários sobre o tema na Universidade do Porto, faz um mapa das deflagrações subsequentes. "É a partir desta frase que teóricas feministas como Joan Scott, irão, nos anos 1980, questionar a noção de que a biologia é determinante para os papéis atribuídos às mulheres e de que existe uma “essência feminina. A leitura revisionista da frase por Judith Butler, nos anos 1990, acentua a ideia de que a identidade é fluida e instável e de que “género” é um conjunto de actos performativos. Neste caso, em lugar de se ler “Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”, poderia ler-se “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Ou seja, todos e todas nós aprendemos a construir identidades a partir de modelos aparentemente matriciais, que se foram depois cristalizando, mas que são, eles próprios, simulacros."

 

25. De novo Não, a palavra selvagem de Emily Dickinson. Não à desigualdade. Mas ela deixou de bastar. Precisamos de dizer Sim à diferença. "A segunda vaga do feminismo, que emerge nos anos 60, reivindica não a igualdade, mas a diferença", explica Ana Luísa Amaral, "no reconhecimento de que as mulheres são todas diferentes, como os homens o são também. A categoria “mulher” é um conceito instável, com múltiplos significados e variantes (raça, classe social, idade, orientação sexual). Por isso é que, para mim, é curto falar-se só em igualdade de género. E é por isso que gosto da teoria queer: ela desafia as certezas relativamente às continuidades entre o sexo anatómico, a identidade sexual, a escolha do objecto sexual e a prática sexual."

Um mundo ideal seria, então, um mundo onde as diferenças não importassem, mas um mundo onde tivéssemos e respeitássemos a diferença.

 

Publicado originalmente na revista XXI, Ter Opinião editada pela FFMS, no Verão de 2017.