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Anabela Mota Ribeiro

E agora, Paula (Rego)? Madrid e Londres, 2007

25.06.22

«Depois disto, não peço mais nada. A exposição no Reina Sofia é o ponto alto da minha carreira, sabe?». Estamos as duas, Paula Rego e eu, no Queen Elizabeth Hall para ouvir divas do fado; ela encanta-se com Beatriz da Conceição, queen of the night, que conhece nessa noite. Jantamos uma salada, bebemos champanhe. Ela comenta, emocionada, a exposição em Madrid.

O Outono vai adiantado em Londres. Em Madrid, semanas antes, não muitas, o Verão ainda não terminara. Tinha as cores que Otto Preminger usou no filme “Bonjour Tristesse”. Mas o cinema, que é central na vida e na obra de Paula Rego, não seria o tema dessa noite. Nem a tristeza nostálgica do filme. Nessa noite, ela fixou-se num gesto de Beatriz da Conceição, em palco: a mão pousada sobre o ombro do guitarrista. Paula fixou-se no ímpeto, na sensualidade, no fatalismo de Beatriz. Na voz que denunciava uma vida sôfrega. Adivinhou o desregramento, a perdição. Havia nesse gesto uma teatralidade que fazia sentido no universo de Paula Rego.

Em Madrid, o céu era ainda azul quando correram as portas do museu às oito da noite. As pessoas precipitaram-se para a entrada, numa ânsia bem comportada. Lá dentro, estavam dispostos os quadros que contam a vida e a obra da maior pintora portuguesa viva. São dezenas de trabalhos que organizam a obra em períodos-chave: 1953/66, 1981/93, 1993/2000, e de 2000 até 2006. Algumas peças são mostradas pela primeira vez – como quadros que datam do tempo em que estudava na Slade School.
Cenário entre salas: Lila, a modelo preferida, explica à RTP a relação de mais de 20 anos com a pintora portuguesa. Tem um rosto esculpido, uma portugalidade que é notória nas formas do corpo, no penteado, no sorriso. Ela é "O Anjo Vingador", a mulher que se contorce na agonia da série sobre o aborto, a avestruz desajeitada que quer voar e não pode - só para mencionar os mais famosos.
Outros modelos: Tony, poeta e tradutor, encena a pose de um Kafka encalacrado, tal qual aparece no quadro "Metamorfose"; um fotógrafo regista a imagem, alguém por perto ri do pó que fica no casaco. De um outro quadro, o de Pinóquio, reconhecemos o homem de pés gigantes e olhos de um azul transparente; é Ron Mueck, escultor prestigiado e genro da pintora. Há ainda Vicky, a filha, que aparece em "A Traça", o mais valioso quadro da carreira de Paula Rego, recentemente submetido a leilão. Era ela que, salas antes, se comovia frente a "A Dança". Era nesse quadro que a mãe trabalhava quando o pai faleceu, vítima de esclerose múltipla, há 21 anos.
Cá fora, a banhar o princípio de noite de Madrid, estava uma lua cheia e sensual. "Eles montam isto muito bem, não acha?", pergunta Paula Rego, em frente a uma série de quadros dos anos 80. Cumprimenta efusivamente amigos que vieram para a ver. Cumprimenta outros num tom menos afectuoso, e mesmo assim de uma enorme delicadeza. A menina Paula (como era tratada na infância) aprendeu a ser polida.
Outras pessoas, sempre muitas pessoas, interrompem-lhe o caminho, falam-lhe disto e daquilo, puxam-na para um beijo, um abraço caloroso. Ela segue a comitiva. Às vezes fica para trás, demora-se na conversa. Outras, mais à frente, alguém pergunta por ela e ninguém sabe em que momento da sua obra se encontra. Estará nas primeiras salas, onde se mostram coisas dos anos 50, pela primeira vez? Estará nos anos 80, em frente às "Vivien Girls"? Ou na sequência em que está agora, cheia de bonecos que contracenam com pessoas de verdade? Bonecos que faz com as suas mãos, que cose ponto por ponto.
Cá fora, no passeio, vendedores ambulantes, decadentes, necessitados, vendiam champôs, camisolas em segunda mão, livros amarelecidos. Uma gente pobre ocupada com quinquilharia. Vendiam, indiferentes ao que ali se passava. Paula Rego teria reparado neles.

O Reina Sofia foi o momento alto da sua carreira. E agora, Paula? O que esperar de Paula? Marco Livingstone, o curador desta exposição, considera que o melhor da sua produção artística diz respeito aos anos de maturidade. Foi depois dos 50 que pintou “O Jardim de Crivelli” para o restaurante da National Gallery, ou fez a adaptação da obra de Eça «O Crime do Padre Amaro». E agora? Talvez se possa esperar o melhor. Talvez se deva espera o melhor.

Se é verdade que a produção de décadas não é uniforme, o traço, o desenho, são o elemento comum. O fio que entretece os diferentes momentos. “Todo o risco é muito importante. A pressão, o riscar, que tem também a ver com o ferir. Todo o trabalho, desde o princípio, envolve desenho, mais do que pintura. O traço tem de dizer qualquer coisa, senão seriam riscos e gatafunhos, e eu não faço riscos e gatafunhos. Já fiz, mas agora não faço”. O que se passa nos quadros, no essencial, também é o mesmo. “Mandar nas pessoas. Obediência. Subversão. Fazer bem às pessoas más, fazer mal às pessoas boas. Poder. Desigualdade entre os sexos. Os homens mandam nas mulheres em geral. As mulheres às vezes mandam, mas é de outra maneira. A relação entre os sexos. É isso. Não é preciso mais. São tudo coisas caseiras. Tudo se passa no espaço doméstico”.

Paula Figueiroa Rego nasceu há 72 anos no seio de uma família da alta burguesia. O pai era um engenheiro electrotécnico, anglófilo, que ouvia fervorosamente a onda média da BBC para saber notícias da Guerra. Tinha uma espécie de cinema em casa e uma “Divina Comédia” ilustrada por Gustave Doré. “Era uma edição muito bonita, um livro enorme, muito pesado. Às vezes o meu pai chamava-me para a sala. Mas muito poucas vezes. Por isso é que era tão especial e tão bom. Mostrava-me. Eu gostava muito. Gostava daquele frisson de ter medo. É uma sensação agradável”.

A mãe era uma senhora elegante, que deixou em Paula o gosto pelos vestidos. “Íamos a Lisboa às compras, de comboio, e eu adorava. A minha mãe punha o chapéu, arranjávamo-nos muito bem, com luvas e sapatos, e lá íamos para o Chiado. Tomávamos chá na Marques. A Bénard era mais chique, mas a Marques era muito confortável e tinha muito bons bolos. Eu tomava sempre um café glacé com bolas de Berlim”. Compravam o bordado inglês a metro no Ramiro e Leão ou no Último Figurino. Folheavam as revistas de moda. Tiravam os modelos. A menina Francisca vinha a casa costurar. Há uma blusa desse tempo que Paula conserva. Integrou-a num quadro da série da vida de Nossa Senhora. A blusa foi toda chuleada pela Menina Francisca.

O pai e a mãe encarnavam o mundo do Estoril. Aveludado. De hierarquias vincadas, regras estabelecidas. A menina devia aparecer na sala de luvas brancas, se havia visitas. Comportar-se, obedecer. “O maior problema toda a minha vida tem sido a incapacidade de me exprimir frontalmente _ dizer a verdade. Os adultos tinham sempre razão: a menina ouve e não responde. Responder, contradizer, era a morte, era cair de repente num vazio terrível. Esse medo nunca me há-de deixar; vêm daí os disfarces infantis, os disfarces femininos. Menina pequenina, menina bonita, mulher atraente. Daí a evasão de contar histórias. Pintar para combater a injustiça». (conversa com o biógrafo John McEwen integrada no livro «Paula Rego»)

Na infância da pintora havia também o mundo da Ericeira. Com a avó Gertrudes e os seus pintainhos nos bolsos, as empregadas que engomavam o colarinho da camisa e torciam o pescoço às galinhas. Os bichos. Os bichos que hoje são constantes na sua pintura. “Ah, mas a maior parte dos bichos são pessoas conhecidas. É mais fácil dizer certas coisas através dos bichos. Também gosto dos bichos só como bichos. A maior parte dos bichos que desenhava antigamente eram copiados de livros de ilustração. Quando era pequenina, tinha nove anos, desenhava patos, patos de verdade, que havia na quinta na Ericeira. Mas depois disso, nunca mais olhei para os patos, só desenhei da minha cabeça. Não fazia bichos de jardim zoológico, eram mais bichos caseiros”.

O apartamento da outra avó na Rua Damasceno Monteiro, o quintal, a capoeira, a cozinha: viveu nessa casa durante um ano e meio, quando o pai foi para Inglaterra completar um estágio na Marconi. Outras figuras faziam parte dessa galeria: uma tia-madrinha, de quem gostava muito, e um bisavô. “Extraordinariamente religioso, tinha no quarto um oratório enorme, cheio de santos; escrevia livros de orações à mão. A minha mãe lia esse livro todas as noites. Era careca, tinha a cabeça rapada”.

A genealogia de Paula Rego reaparece em toda a sua obra. Como a violência das cenas domésticas. A visceralidade do amor. A subversão social. As coisas que não se dizem. As palavras essenciais – Medo, Vergonha, Sexo, Poder.

Aos oito anos, conta Paula em Madrid, numa conversa com Marco Livingstone, perante uma plateia apinhada, ela já sabia que queria ser pintora. Uma parte da infância foi passada a pintar. A mãe contou ao biógrafo que Paula se enrodilhava sobre si, no chão do quarto, e que fazia um som gutural. Alguém pergunta na sala, em Madrid, como eram esses desenhos longínquos. Mas a resposta é evasiva. Há anos, numa conversa no seu atelier no norte de Londres, respondeu-me assim: “Não fazia para mostrar. Fazia porque me entretinha. A lengalenga do «hum, hum, hum», dava-me um certo conforto emocional e físico. A lengalenga é sensual, tem um lado sexual. A criança quando se move e faz o boneco, risca o papel, experimenta um envolvimento total. Mais tarde, na escola, quando faz para mostrar, é outra coisa. O que é muito raro é combinar as duas coisas. Quando fazemos coisas para mostrar, (as princesas, as amendoeiras em flor, Roma a arder, essas coisas…), é que interessa muito que gostem ou não gostem. Queremos que nos tomem a sério. E nessa altura, tive sorte em não ter a Dona Violeta e em ter a Miss Turnbull”.

Dona Violeta era a encarnação da Bruxa Má. Miss Turnbull era a Fada boa. A primeira sublinhava a irregularidade, o que estava mal feito. A segunda encorajava a expressão criativa. Violeta usava camisolas de angorá roxas, umas detestáveis camisolas de angorá. Miss Turnbull vestia-se como as inglesas dos anos 50: sapatos rasos, uma saia. Usava óculos e tinha os olhos azuis. O encontro entre ambas deu-se no St. Julians, onde fez a totalidade dos seus estudos. Dona Violeta foi a professora particular que os pais contrataram para preparar o seu ingresso na escola inglesa – depois de uma passagem fugaz por uma escola primária portuguesa.

“A Dona Violeta é muito importante. Se tivesse de escolher uma professora favorita seria a Dona Violeta. A Dona Violeta, à sua maneira, fez-me tão bem como a Miss Turnbull. A razão porque fiquei a fazer bonecos tem tanto a ver com uma como com outra. Bem, a Dona Violeta ia merecer castigo para sempre... Isso também é uma razão boa para fazer coisas... Ela metia tanto medo, com aquele cabelo à 1940, aquela poupa, aquele rolo... Metia muito medo! A Miss Turnbull tinha o curso e o treino da escola de arte inglesa, como ilustradora. Eu sentia-me bem com ela, porque tinha confiança nela. Confiança. Ela não ia deixar-me ficar mal, no sentido de me trair...”.

Quando Paula conheceu Vic, fazia bonecos. Talvez lhes chamasse outra coisa, mas eram os seus bonecos. Vic, Victor Willing, nas palavras da mulher: “Era um homem muito bonito e dançava muito bem. Muito bom pintor. Era mais velho que eu sete anos. Aprendi tudo com ele: de pintura, a não me ralar com muita coisa, a dar atenção a outras coisas. Ele tinha barba e eu não gostava. Quando cortou a barba, vi-lhe a cara. A mãe dele dizia que a barba era como um ninho de aranhas a correr-lhe pela cara! Ficava-lhe muito mal”.

Vic foi a figura central na vida e na obra da Paula Rego. Teve com ele três filhos (Caroline, Nick e Victoria), viveram uma desmedida história de amor até à morte dele, em 86. “Uma tara. Tive a grande sorte de o meu anjo da guarda olhar por mim; se não, estava tramada. É uma coisa extraordinária. E é ter tudo quanto há: raivas, ciúmes, uns sentimentos brutais. Se não tivesse tido, se calhar gostaria de ter tido. Mas na altura a gente não sabe essas coisas. É-se levado, assim como numa passadeira rolante, daquelas dos aeroportos, sem poder pôr o pé no chão”.

A famosa série “A Menina e o Cão” retrata a última fase desta relação: o cuidado, a dependência, a ternura. Nesses últimos anos, Vic vivia confinado ao seu quarto. Paula regressava ao fim do dia, desenrolava o que tinha pintado, pedia-lhe opinião. Estava a pintar “A Dança”, uma tela imensa e triste, quando ele morreu. Demorou seis meses a completá-la. “A fumar brutalmente e a pintar”. Ficou entregue a si própria. Sem ninguém a quem perguntar. Perguntar se está bem, perguntar o que fazer. Seguiu o conselho de Vic, a dádiva, segredado pouco antes de morrer: aprendeu a confiar nela.

Vic Willing era um dos poucos estudantes da Slade School curiosos em relação a um mundo que existia fora das fronteiras do Reino Unido. Lucien Freud fazia parte do grupo. Era o pós-Guerra, e a cidade era um meio instigante. Paula mudara-se para Londres por “ordem” do pai, que não achava o Portugal bolorento um sítio para mulheres. Tinha 17 anos.

“Fala-se muito da minha infância e da minha juventude em Portugal, mas eu vivo em Londres há muitos, muitos anos. Gosto de viver em Londres. Todos os meus estudos, o meu treino como artista, foi feito cá. Seria muito diferente se fosse em Portugal. Estou muito ligada à arte de ilustração inglesa. Alguns pintores ingleses, como o Hogarth, têm imensa influência em mim. E viver em Londres tem importância. Porque apanho o autocarro todas as manhãs e tenho dez nacionalidades diferentes naquele autocarro. Gosto dessa variedade, dos fatos diferentes, das línguas diferentes, da individualidade de cada pessoa. Embora seja perigosa, por vezes, porque há muitas facas...”.

Londres, anos 50. Assistia às conversas dos outros, passava tardes no cinema, desenhava o seu mundo paralelo. O meio era masculino, as raparigas não eram levadas a sério – comenta mais tarde. “Eles falavam e eu ouvia. Falavam do que se passava em quadros e em filmes. Eu era muito envergonhada e não dizia nada. Não dizia nada mas ouvia. E assim, vai-se aprendendo muito”.

Depois vieram os filhos (teve a primeira filha com 20 anos). A Ama Luzia foi de Portugal para ajudar. Contaram com o apoio e a generosidade do pai. Continuou a pintar, prosseguiu os estudos. A cena é recuperada 20 anos mais tarde em “Coelha confessa aos pais que está grávida”. É revelador da delicadeza do momento que Paula tenha precisado de todo esse tempo para pintar o quadro…

As bonecadas desse tempo eram as mesmas, ainda que assumissem formas diferentes. O desenho que ilustra isto mesmo abre a retrospectiva de Madrid: uma mulher-cão datada de 1953. Décadas antes da famosa mulher-cão de 1994, a pintora fez um desenho em que o essencial já estava lá: a posição, a ferocidade, a narrativa. Paula simplesmente esqueceu que a tinha feito! Como esqueceu que tinha feito um homem-carocha até que a amiga Marina Warner a desafiou a pintar a “Metamorfose” de Kafka. Neste caso, lembrou-se do desenho antigo em conversa. No caso da mulher-cão, deu de caras com ele quando folheava cadernos antigos.

A primeira fase da obra de Paula Rego é marcada pelas colagens. Primeiro desenhava, depois recortava, por fim colava. Quadros como “Cães de Barcelona”, “O Regicídio” (ambos de 1965) ou “Salazar a vomitar a Pátria” (de 1960) são os mais ilustrativos deste período. O pai gostava destes quadros mais políticos, consentâneos com as suas ideias de liberdade. A mãe pronunciava-se perante quadros mais explícitos e provocadores…: “Esta minha filha faz estas coisas… E depois fica cheia de vergonha…”. A primeira exposição foi em 1965, na Gulbenkian. Não foi propriamente um sucesso. Olhava-se com estranheza para o mundo privado de Paula Rego.

Manuel Brito, o Brito da 111, apostou naquele talento desde o princípio. Persistiu na sua aposta, mesmo que a artista só se tornasse um fenómeno no final dos anos 80. É verdade que em Portugal sempre vendeu bem, mas a dimensão de Paula Rego não seria aquela que tem hoje se não fosse a associação à Malborough, a galeria inglesa que a contratou justamente nesses anos. O reconhecimento, o aplauso consensual, a maturidade artística, como dizia Marco Livingstone, só aconteceria depois dos 50 anos.

Que fez ela entretanto? A exposição de Madrid, que segue uma organização cronológica, explica passo a passo: há um grande buraco entre 65 e os anos 80. A artista diz brutalmente sobre a produção desses anos: não presta. Di-lo com humildade, perante uma plateia estarrecida, em Madrid. Por várias razões, explica, depois da morte do pai, o mundo desmoronou e a qualidade caiu.

O que a fez reerguer-se foram as histórias. A ideia de voltar a qualquer coisa que era do seu passado. Do seu passado feliz. Pediu uma bolsa à Gulbenkian e passou meses a estudar contos tradicionais do mundo todo. Concentrou-se no desenho, na fúria e na sensualidade do risco. Pôs de parte as colagens. As tesouras. Deixou de se ferir. “Estes bonecos que eu agora faço são uma espécie de colagem. Mas não é destruir, é fazer. É usar a imaginação de outra maneira. Posso brincar com eles como quiser. É uma coisa óptima, esse prazer físico. Modelar é satisfatório. Mexer no barro. Tenho um barro que seca automaticamente, como aquele que as crianças usam”.

Muito do que se passa nos quadros de Paula Rego parece saído de um terrível conto para a infância. Lá está a magia de Disney. Ou a perversidade de Buñuel – dois dos realizadores que prefere. Lá está a crueldade, e a inocência. O mundo de Paula Rego só pode ser lido como uma alegoria. Nada ali tem um sentido literal. Como quando era pequena e cortou os dedos de um boneco… “Só cortei uma vez. Esse boneco devia ser dos primeiros de plástico; parecia carne. Lembro-me de terem dito «Olha que engraçado...». Os bonecos até aí eram rijos, este era mole. Cortei-o porque era mole. Os dedos eram a única coisa saliente. As orelhas estavam coladas à cabeça. Os dedos dos pés também estavam juntos. Não havia outra coisa para cortar senão os dedos. E cortei um a seguir ao outro, não foram todos ao mesmo tempo. Eu queria ter a sensação da tesoura a cortar, a cortar. As crianças gostam muito de cortar. Também cortei um grande pedaço das cortinas da minha tia. Depois deitei a tesoura pela janela fora”.

Porque é que nada disto surpreende? Todas as crianças adorariam cortar os dedos a um boneco mole, que parece de carne. Um competidor – um irmão? Tudo isso está n’ “Os Desastres de Sofia”. O capítulo favorito de Paula era especialmente requintado… “Lembro-me de a mãe de Sofia a obrigar a usar as abelhas todas cortadas num colar de abelhas. Ela pegou numa faquinha e também cortou os peixinhos. Todas as meninas bem comportadas adoravam ler sobre meninas marotas. E más. Esse era o meu mundo”.

Foi filha única. Está na fase de fazer bonecos. Tudo começou com o “Pillow Man”, a partir da história homónima de Martin McDonagh. História aterradora. Os quadros dos últimos anos fazem contracenar esses personagens gigantescos com pessoas de carne e osso. Com a Lila, sobretudo. São uma nova forma de espantar o medo. Representam uma forma construtiva de cuidar de si. Restabelecer-se. Das depressões. Da solidão. Do medo, do eterno medo. “Sair, sair, sair. Desenrolar as ligaduras e sair. Fiz muitas figuras ligadas. Depois desliga-se e já se pode a pessoa mexer melhor… À solidão estou habituada, que sempre tive solidão. É qualquer coisa física que não sei bem o que é. É o escuro. A gente quando é pequena tem medo do escuro, à noite, tem de dormir com a luz acesa, não é? É a mesma coisa, só que ninguém nos acende a luz. Estamos sempre no escuro. E os medos chegam muito perto de nós – o que não é nada agradável. Medo do medo. Não tem explicação, nem se pode dizer que é medo dos papões. É medo de uma coisa indefinida. Se eu pudesse, como dizia o Alberto Lacerda, dar uma cara ao medo, estava bem, não havia perigo. Mas quando não se pode, é uma chatice”.

Madrid. A exposição retoma com a produção fulgurante dos anos 80. “As Óperas” (83), as “Vivien Girls” (84), “A Menina e o Cão” (86). Os “Nursery Rhymes” (92),  “As Avestruzes Dançarinas” (95), todos os personagens dos anos 90. As adaptações de “Jane Eyre”, a partir de Brontë. Os bichos, sempre os bichos – o pelicano, com uma fortíssima conotação sexual, é um dos mais usados.

Tudo feito com modelo, concentrado numa cena que podia ser a de uma peça de teatro. Com a roupa e os adereços postos no sítio certo, os gestos que traduzem a intensidade que se quer. “Ver uma coisa ao vivo e vê-la na nossa imaginação, são duas coisas muito diferentes. Põem-se os panos com a cor que se pretende, vestem-se as figuras. Faz-se como se fosse um teatro. Um teatrinho como o das crianças a representar a história do Cristo no Natal”.

O seu teatro não será nunca de uma beleza irreal, etérea. A sua pintura será sempre de uma beleza terrena, corpórea. Como acontecia nos quadros de todos os grandes pintores que admira: Goya, Velasquez, Murillo, Hogarth. Quando lhe falam da sua Nossa Senhora, em posição parturiente, da originalidade da representação, ela responde com a sensualidade da Madonna de Caravaggio. E claro que ela tinha de estar numa posição de quem vai dar à luz… Em que outra posição se dá à luz? “Natividade” (2003) é um dos oito quadros sobre a vida de Nossa Senhora que fez para a capela do Palácio de Belém.

Paula Rego, pintora da comédia humana, pinta os corredores da sua infância, os bonecos, as mobílias, os fantasmas, os personagens dos romances, os personagens da vida real. Tudo o que a despegue um pouco de si mesma. “Eu pôr-me a fazer a mim própria, em frente de um espelho, é uma grandessíssima chatice e uma grande solidão. Se isso é assim, então prefiro fazer um boneco, que é outra entidade, outra criatura, e posso projectar em cima dessa criatura outras histórias que não são as minhas. Tudo o que seja fazer bonecos é o contrário de fugir: é ir ao encontro do que a gente é. A pintura é muito complicada. O nós não interessa, não interessa absolutamente nada. O que interessa é o quadro. É só assim, fazendo, que a gente descobre o que está a fazer”.

Quem é ela, quem é Paula Rego? Há um quadro especialmente revelador… “Target” (1994), o alvo. “É a menina de costas, a abrir o vestido, cúmplice na maldade que lhe estão a fazer. Vão dar-lhe um tiro nas costas, ou uma seta, como ao São Sebastião. (Gosto muito do São Sebastião por causa das setas). E ela está a ser cúmplice naquilo que lhe estão a fazer: está a abrir o vestidinho para lhe fazerem mal. É um quadro que me saiu muito simples e que tem muita coisa de que gosto”. Paula Rego é esta mulher, sacrificial, entregue ao prazer e à culpa.

Outono em Londres. Noite escura sobre o rio Tamisa. Não nos víamos desde a inauguração no Reina Sofia. Brindámos ao sucesso da exposição. Depois daquilo, ela não pede mais nada. O ponto alto. Perguntei-me em quem pensaria ela? “As coisas que faço são para o meu pai. That’s true. Se hoje tenho algum sucesso, ou se as exposições correm bem, penso: «O meu pai gostaria de saber disto». Gosto de fazer coisas para o lembrar”.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007. Neste texto foram usados excertos de entrevistas que Paula Rego me concedeu e que foram publicados no DNa (2003), revista das Selecções do Reader’s Digest (2005) e Máxima (2007).