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Anabela Mota Ribeiro

David Ferreira (s/ D. Mourão Ferreira)

25.07.22

“Depois do sucesso do Um Amor Feliz vai ao Brasil e conta-me quando vem: “Tive um romance de amor, mas ela já morreu”. Ele nunca tinha lido a Clarice Lispector, ou tinha lido de passagem, e ficou tão fascinado que decidiu escrever um romance, que nunca escreveu: o romance de um homem por uma escritora que tinha morrido. Muito escritor, passado dos 50 anos, já não descobre coisa nenhuma. O meu pai sempre manteve um tom de assombramento.” David Mourão-Ferreira, evocado pelo filho David Ferreira.

David Mourão-Ferreira, poeta do amor? “A obra do meu pai tem muito mais do que isso. É um cliché merdoso, próprio de quem não o lê.” Escreveu poesia, teatro, ficção, ensaio. Em Junho, passaram 15 anos sobre a sua morte. A Presença reeditou o livro de contos As Quatro Estações.

O filho, David, acusa a edição de ser preguiçosa. “Em vez de perceber que na obra de um grande escritor há um trabalho permanente de descoberta, [a Presença] dedica-se à reedição. A obra de crónica e ensaio do meu pai está fora do mercado.”

Doravante, as reedições e a edição de inéditos vão ter a direcção de uma professora catedrática italiana, Fernanda Toriello. “Tem feito um trabalho notável na Universidade de Bari, onde é responsável pela Cátedra David Mourão-Ferreira de Língua e Literaturas lusófonas. Gostaríamos muito de ver envolvidas neste trabalho pessoas que sabem muito da obra do meu pai. O Vasco Graça Moura, o Eugénio Lisboa, o Fernando Pinto do Amaral, a Teresa Martins Marques, a Joana Varela”.

A entrevista teve lugar no gabinete de trabalho de Mourão-Ferreira. Os livros estão como os deixou, estão expostas fotografias de Yourcenar ou Nemésio, a secretária onde escrevia continua habitada, o cheiro a cachimbo ainda se sente mal se transpõe a porta de entrada. Aquela ainda é a casa de David.

 

 

“Que o verso seja um espelho/ ao mesmo tempo um véu”.

Na sua opinião, a poesia era para o seu pai, simultaneamente, o espelho no qual se revia e um véu que lhe permitia uma certa dissimulação?

A escrita já é, por natureza, um espelho e um véu. A execução de uma obra de arte é um ajuste de contas [que permite criar] um equilíbrio, precário que seja, que, sem a escrita, não se sente. Os grandes escritores percebem essa duplicidade da escrita como verdade e como invenção.

 

Invenção ou ocultação?

Acredito mais na invenção do que na ocultação. Não sei se o véu é uma questão de ocultação ou uma questão de pudor.

 

É também um artifício de sedução.

O meu pai não era propriamente um tímido em relação ao amor carnal. Nem no que escrevia nem no que fazia era pessoa para se reprimir. Mas não deixava de ter o seu pudor.

 

Na primeira edição de Um Amor Feliz (1986), na contra-capa, lê-se que romance é um ajuste de contas do autor consigo próprio. Não deixa de ser curioso que tenha tido necessidade de o fazer, com toda a obra que estava para trás, e quando já era consagrado.

Ele próprio aparece no romance como figura secundária, não particularmente simpática. Há dois alter-egos no livro, e nenhum deles é integral. Há um alter-ego em que ele se compraz a fazer ironia sobre si próprio, que se chama mesmo David.

 

E que fuma cachimbo.

Leva a gozação bastante longe. E há o outro alter-ego, que é a [personagem do] escultor, que também não é inteiramente ele. Ele projecta-se nos dois, e se calhar em mais. Não há uma personagem no Um Amor Feliz em relação ao qual se diga claramente: “É este”. Sem transformação – e o véu também é uma transformação – não há obra de arte. Ele também aparece num conto ou numa novela de um dos primeiros livros, referido como um tipo que escreve umas letras para a Amália.

 

Foi um académico heterodoxo. Tinha uma formação clássica e uma proximidade com os latinos e os gregos. Existia nele uma procura de equilíbrio?

Há um poema dele de que gosto muito: “Nós temos cinco sentidos: dois pares e meio d’ asas/ - Como quereis o equilíbrio? (“Hai-Kai”. O poema não é nem a apologia do equilíbrio, nem a condenação do equilíbrio.

 

 A procura de equilíbrio não o inibiu de viver intensamente, não o deixou refém de um cânone.  

O meu pai acaba a vida com o estatuto de professor extraordinário porque era escandaloso que tivesse um estatuto inferior – ele que orientava teses. Nesta casa, já com a doença muito avançada, a ponto de adormecer por vezes, orientou uma tese. Fazia-o porque tinha uma imensa cultura, e porque tinha um enorme prazer nisso. Permite-me um desvio?

 

Todos os desvios. Já voltamos ao ponto em que estamos.

O maior amigo do meu pai era o João Belchior Viegas; conhecem-se no Colégio Moderno, onde foram alunos. Mais tarde o meu pai diria que o João Belchior teria sido melhor escritor do que ele. Foi empresário da Amália, de 1965 a 1992. Era meu padrinho. Calhou ser eu a contar-lhe que o meu pai estava muito doente. Eu soube da doença com um telefone em voz alta, não sabiam que estava a ouvir... O Belchior ficou desmaiado com a notícia. Passam-se algumas semanas e voltamos a falar sobre o estado do meu pai. Contou-me uma coisa muito reveladora; o meu pai disse-lhe, quando soube da doença: “São duas as coisas que não dispenso: estar com uma mulher e ensinar. Sem elas prefiro morrer”.

Enquanto tem forças para fazer o que o realiza dá luta à doença.

 

Já doente, grava de um disco de poesia. Outra forma de se manter vivo?

Para mim foi a despedida do meu pai. Passei vários sábados e domingos em casa dele a gravar. Depois ele conta à Joana Varela: “Sabe que, afinal, o meu filho conhece a minha obra, o meu filho gosta de mim” [riso]. Tínhamos longas conversas, discutíamos a colocação, e ele achou que eu tinha um conhecimento de causa. Faz parte dos véus, os filhos não podem passar a vida a dizer aos pais: “Gosto muito de si”.

 

Esse é outro tópico: a sua relação com o seu pai e a sua relação com o poeta Mourão-Ferreira.

Estou a gravar. Há um poema em que ele diz: “Quando a vida nos agarra”, está com um cancro, e di-lo com uma força… É ele a agarrar a vida. Ele não fala em escrever, mas nas duas coisas que considera vitais. Ensinar e estar com uma mulher.Nunca tratou de se doutorar, sendo que alguns doutores (que o meu pai não era, doutor por extenso), lhe terão dito (isto foi-me transmitido pela filha de um deles), na fase dos anos 50 para os 60: “Ó David, deixe-se de fadistices e trate de se doutorar”. Fazia essa coisa inferior que era escrever letras para a Amália.

 

O encontro com Amália foi decisivo para ambos. Mas inesperado…

A relação entre o meu pai e a Amália – e, através deles, entre a poesia e o fado – foi uma relação mal quista pelas famílias de cada um. Uma fadista muito célebre ironizava, cáustica, por volta de 1965: “Agora a Amália canta letras à Picasso!” Os disparates que disseram os sectores mais conservadores da literatura e do fado (aqui se misturando tradicionalistas e pseudo-progressistas) dão hoje vontade de rir.

Ele nunca é um académico convencional. Tem um papel importantíssimo na introdução da cadeira de Teoria da Literatura. É um óptimo crítico literário (o que escreveu sobre literatura é fascinante). Era um escritor que gostava de livros.

 

“Nunca pensei em termos de público mas em termos de leitores”. Não lhe interessava o sucesso comercial? Ainda que tenha sido um autor que desde sempre gozou de reconhecimento e sucesso.

Sucesso comercial, não tanto. Até escrever Um Amor Feliz tem mais notoriedade do que sucesso comercial.

 

As pessoas conhecem-no muito.

Por causa da televisão, e a partir de certa altura por causa do que escreve para a Amália. O volume de vendas era baixo. Publica poesia, novelas e contos, ensaio e crónica. Um Amor Feliz passa a marca dos 100 mil, e é uma coisa que o apanha de surpresa. Sobre essa frase: o leitor, o que se dá ao trabalho de ler, que gosta ou não gosta, tem importância. O público-entidade anónima pode comprar para ter na estante, ou comprar e não perceber.

 

Pode falar-me da sua avó? Sendo Mourão-Ferreira o poeta que amava as mulheres, é interessante perceber como é que aprendeu a olhar para as mulheres.  

Não sei se não terá começado a olhar para as mulheres pelos olhos do meu avô. O meu avô era um amador de mulheres, que nunca saiu de casa embora tenha chegado a fugir (não sei ao certo se com uma francesa ou com uma argentina). Um dia, a minha avó telefona-me, aflita, porque não sabe do meu avô. Vamos para o banco do hospital de São José, andamos no meios de macas a ver se o reconhecemos. Dizem-nos que o Sr. David Ferreira tinha ido para casa e que estava bem. Em casa, toca o telefone, o meu pai atende: “Era uma senhora, muito simpática, da Casa Africana, que viu o papá cair e estava preocupada”. E a minha avó: “Alguma flausina a quem ele dá troco” [riso]. E dava troco. Tinha 80 e muitos anos.

 

Como é que na sua família os homens se fizeram assim amadores das mulheres? O seu pai, a propósito do seu avô, diz que era um “um discreto Don Juan”. Como ele.

O meu pai talvez menos discreto. O meu avô chegou a ser agente de ligação do Afonso Costa. Uma pessoa com origens humildes, filho de um militar, criado na Casa Pia, órfão de pai aos quatro anos. Não tem curso superior. Está metido na primeira revolta armada contra Salazar, em Fevereiro de 1927. Tanto que o meu pai nasce prematuro – tinha o sangue vermelho nos genes como outros têm o azul – porque o meu avô anda fugido e a minha avó não sabe dele. O meu avô gostava de fazer cara de mau. Era muito de falar do dever, da dignidade, aquela linguagem dos republicanos. Depois tinha um fraco muito forte por senhoras.

 

Porque é que o seu pai é um Don Juan menos discreto?

É outro tempo. E era uma figura pública, isso também atrai.

 

Que relação é que o seu pai tinha com a mãe?

Difícil. Já ouvi a teoria, que acho absurda, de que o meu pai teve muitas mulheres para se vingar da mãe dele, porque no fundo a minha avó gostava mais do meu tio [Jaime]. O meu pai tinha um sentido do dever muito forte. Uma vez, na altura em que o meu cabelo chegava aos ombros, tive um problema escolar. O meu pai disse assim: “Se há desgraça nesta família, é a morte do teu bisavô. Nenhum destes problemas teríamos se tivesses sido educado no Colégio Militar”.

 

Portanto, enquanto pai, tinha acessos de fúria, era exigente.

O meu pai estava zangado a sério, e quando se zangava falava alto. Ameaçava que me punha a trabalhar numa mercearia, e acho que punha. Estávamos a almoçar. A Pilar olha para ele: “No Colégio Militar?”, e desatámos os três a rir.

O meu tio Jaime era muito mais estroina. Três anos mais novo, um sedutor, nunca se fixou numa profissão. Foi relações públicas, publicitário, chegou a apresentar um concurso na televisão. A minha avó, em muitas coisas, ou gostava mais do meu tio, ou sentia que era mais necessária ao meu tio – o que causava ciúmes ao meu pai. Ainda por cima o meu tio morreu aos 46 anos.

 

Incompatibilizavam-se?

Eles gostavam muito um do outro mas havia um conflito. Tinham um feitio parecido naquelas coisas em que as pessoas fazem faísca. Já perto do fim da vida do meu pai tinham brigas por tudo e por nada. Depois, ficava cada qual uma hora ao telefone a queixar-se do outro, com o seu quê de imaturo da parte dos dois.

 

É extraordinário que, apesar dessa relação com a mãe, tenha feito das mulheres substância essencial da sua obra poética, e também do seu carinho e interesse pessoal.

O meu pai é um conquistador não-machista. Quem o disse muitas vezes foi a [Maria] Teresa Horta, que era muito amiga dele: “É raro uma poesia masculina e erótica tão pouco machista e agressiva contra as mulheres”.

 

O que é que acha que o fez procurar as mulheres, dar-se bem com as mulheres, e até, de uma certa maneira, reconciliar-se com as mulheres?

Ele aprende a ler com a mãe – como eu aprendi com a minha avó. O papel da minha avó não entra na história, corre em paralelo. Há um filme do Truffaut, O Homem que Amava as Mulheres, que fui ver porque o meu pai me disse que se tinha reconhecido a ver o filme.

 

Do que é que ele gostava nas mulheres?

Muita coisa. Em 1995 morreu uma amiga dele, e ele já estava com o cancro. Era Setembro ou Outubro, estava uma tarde quentíssima, eu não queria que ele fosse ao cemitério. (Ouvia-se aquela respiração pesada… O meu pai teve um cancro num rim e depois um recidiva tratada com a maior incompetência. Andou oito meses a queixar-se de dores nas costas e o médico a dizer-lhe que precisava de massagens, ou então que estava deprimido. Detectou-se o cancro com duas costelas e meia comidas pela doença num raio X… Era um cancro no pulmão, na cabeça, pele, ossos, um bombardeamento.)

Almoçámos os dois no Conventual, na Praça das Flores, entram duas raparigas muito bonitas. Era impossível não olhar. Olhámos. O meu pai: “De qual é que gostaste mais?”. E eu disse de qual, e porquê. E isto é das melhores medalhas que tenho na vida!, o meu pai disse: “Sabes ver!” [riso]. Isto de que estou a falar não se esgota numa psicanálise de trazer por casa. Gostava de mulheres, ponto.

 

Era um homem sensível, quando não era suposto que os homens fossem sensíveis. Como é que naquela Lisboa, na primeira metade do séc. XX, com estas raízes familiares, aparece um homem com esta sensibilidade e abertura?

Esteticamente e intelectualmente, vai definir-se entre pessoas que são contra o regime. Mas não só não adere ao neo-realismo como combate o neo-realismo. A maioria dos escritores da [revista] Távola Redonda é de direita; o meu pai não é. Não aceita o primado da política. O seu maître à penser, nesse aspecto, é o Régio.

 

Porque é que o Régio se torna tão central na sua formação?

É um irmão da minha avó, chamado Raimundo, que oferece um livro do Régio ao meu pai. Na altura em que o meu pai o lê, no princípio dos anos 40, o Régio é o adversário escolhido pelo Cunhal para ter uma polémica. O Cunhal está numa fase de afirmação dogmática, não lhe interessa andar à pancada com pessoas do regime. O Régio é um opositor do regime, foi preso pela última vez perto dos 80 anos, tem simpatias socialistas, mas não aceita o primado do político sobre a estética; e tem um lado religioso.

 

Que o seu pai também vem a assumir. Convertendo-se, tardiamente.

O meu pai baptiza-se para casar, porque a minha mãe era católica. Mas a presença do cristianismo no meu pai situo-a nos primeiros poemas sobre o Natal, que já são dos anos 60, aos 30 e tal anos. Não sei se o baptismo é muito mais do que uma coisa de conveniência.

Nunca se deixa reduzir ao cânone neo-realista. Também tem coisas escritas que têm um teor político. Pôs a Amália a cantar Abandono.

 

“Por teu livre pensamento/ Foram-te longe encerrar/ Tão longe que o meu lamento/ Não te consegue alcançar…”

Está a falar da prisão de Peniche. Mas isto existe como exercício de liberdade. O meu pai tem uma paciência muito pequena para os neo-realistas, tem interesse pelo Surrealismo, mas também não lhe agrada o lado de cartilha.

 

Não tem um desejo ou uma necessidade de pertença a um grupo. Ele é ele.

A Távola, que é o grupo onde está, tem outro grande poeta, o Luís de Macedo, que escreve também para a Amália. (Os três primeiros poetas que não vêm do fado, mas que vão parar ao fado, são o Pedro Homem de Melo, o meu pai e o Luís de Macedo.) A Fernanda Botelho, que vai ser uma grande romancista, era muito próxima do meu pai.

Começa a ler muito novo, tem a paixão da leitura, e não é uma pessoa de grupo. Tem 17 ou 18 anos quando um colega do colégio o leva a fazer uma ou duas conferências em centros operários, para tentar levá-lo para o PC. Era o Mário Soares.

 

A amizade com Soares é tão antiga que vem do tempo em que este era PC?

O Soares é mais velho. O João Soares [pai de Mário Soares] era amigo do meu avô, havia em comum o lado republicano. A certa altura, a pessoa que coordena os estudos vai para a clandestinidade e escreve uma mensagem muito bonita aos alunos. Era o Cunhal. Cruzam-se na mesma altura: o meu pai, o Belchior, o Soares e o Cunhal.

 

Parte da formação do seu pai fez-se no Colégio Moderno.

Tem primeiro um professor privado. O Dr. Teófilo, um republicano que não pode ensinar no ensino oficial, e que o meu avô põe a dar aulas ao meu pai.

 

O seu avô foi educado na Casa Pia. Como é que dá a volta ao seu destino?

O meu avô vem para Lisboa como aluno da Casa Pia, e a certa altura, porque nasce em 1897, torna-se republicano. Como os heróis dele são da literatura francesa, o Dumas, o Victor Hugo, começa a estudar História para escrever romances históricos. E a frequentar bibliotecas. (Terá, quando muito, o curso do liceu.) Na Biblioteca Nacional chega ao Jaime Cortesão, (padrinho do meu tio Jaime), frequenta o círculo do Cortesão, do Câmara Reis, do Raul Proença, do [António] Sérgio. São todos demitidos, e todos readmitidos depois do 25 de Abril. O meu avô é autor de uma das primeiras histórias políticas da Primeira República; no prefácio considera-se republicano, democrata, de tendência socialista, e é faccioso na defesa do Afonso Costa.

 

Mas foi um homem sensível ao saber, que se afirmou pelo saber. Daí ter puxado o Dr. Teófilo para casa.

O meu avô dá aquele salto. A minha avó tinha a 3ª classe.

 

Apesar dessa limitação, é quem o ensina a ler.

Se é o pai que o introduz nos livros, é a mãe que o introduz na escrita. Escreve no poema Jogo de Espelhos: “Foi a mãe que lhe ensinou a ler; e a entender. O pai, a reflectir; e a contemplar”. Os dois fascinados por França. Fui a Paris a primeira vez com os meus avós e o meu primo Jaime. Tínhamos 13, 14 anos, e fomos às Folies Bergère.

 

França naquela altura era o farol do conhecimento, assim apelidado. E acolhia muitos emigrantes políticos.

O prazer que o meu avô tinha em estar em livrarias de Paris a dizer mal do Salazar… Falavam um francês bastante decente, e quase nada de inglês.

 

O seu pai estuda Filologia Românica cumprindo, de certa maneira, um desejo dos pais de aproximação à cultura francesa?

O meu avô acarinhava a ideia de o meu pai estudar Direito. Mas como o meu pai revelava outras tendências, o meu avô levou-o a uma pessoa que respeitava e cuja idade ficava entre a dos dois – o Agostinho da Silva. O Agostinho da Silva é que diz: “Não faça isso. Este rapaz tem que ir para literatura”. O meu pai vai para a faculdade de Letras, onde conhece a minha mãe. Apaixonam-se e chumbam. A minha mãe irreversivelmente larga os estudos e vai para dactilógrafa, para o Valentim de Carvalho, que era tio dela, meu tio-avô. Casam-se passados oito anos de namoro.

 

É especialmente difícil fazer-lhe esta pergunta a si, mas porque é que acha que foi a sua mãe a pessoa com quem casou? O seu pai conta numa entrevista que dá à Colóquio que ela casa virgem. Ela sabe que ele não é casto, que há aventuras ao longo desses anos de namoro.

Um amigo do meu pai, o Urbano Tavares Rodrigues, num programa de televisão, gaba duas coisas na minha mãe: a beleza e o imenso sentido de humor. O meu pai escreve muito cedo no diário que não é homem de uma mulher só.

 

Ele estimava o desejo da sua mãe de se manter casta até ao casamento? Sabe se tinha algum fascínio por isso? Resultava como uma dificuldade, uma forma de resistência da parte dela.

Não tenho nada que me permita responder a isso. Tenho a sensação, a partir das coisas que apanho, de que a intimidade entre eles não deve ter sido extraordinária. Naquela época, não é grave.

 

Uma época em que faziam umas coisas com as de fora e outras com as de casa.

Aí, o meu pai era apenas mais visível. E se calhar tinha o sucesso bastante para poder escolher entre as de fora.

 

Acha que era sobretudo um amoroso ou um sexual?

As duas coisas.

 

Estou a perguntar por ele e sempre a pensar na obra. Que é marcadamente erótica e também profundamente amorosa. Ou ele não fazia esta dissociação entre o amoroso e o erótico?

Tem muitos poemas de amor físico, tem muitos poemas de enamoramento. Não teria o preconceito de achar que o físico sem a alma não tinha legitimidade. Ao mesmo tempo, escreve num dos poemas: “Por que há-de sob a pele o sangue amotinar-se quando apenas a pele havemos convocado” (Sob a pele). Existem as duas coisas na poesia dele, e um trânsito entre as duas componentes. Não me estou a lembrar de uma situação na obra de paixão deliberadamente casta.

 

Uma das traduções que fez, com Natália Correia, foi A Arte de Amar, de Ovídio. Ele falava do que entendia por amar, do que o amor fosse, ou não mantinha este tipo de conversas?

Os meus pais separam-se, não sei se tinha 12, 13 anos. Tenho um grande desgosto. Não contava com aquilo, mesmo que se dessem muito mal, grandes discussões. O meu pai vai viver com a Pilar na Rua dos Ferreiros à Estrela, numa casa pequenina com águas furtadas. Em casa da minha mãe, numa época que já não existe, de criada de dentro e criada de fora, o almoço e o jantar eram na cozinha. Quando os meus pais se separam começo a ser tratado como adulto. Oiço anedotas de adultos, picantes, muitas. Entro nas discussões de política. Fazia parte do charme do meu pai sobre mim. Adorei. Em 1967 não era como hoje. De repente estava num universo de homens recém separados, com mulheres mais novas, e algumas giras.

 

O seu pai começou a contar as suas histórias amorosas?

Muitas das histórias que contava, também contava à frente da Pilar. Mas não se gabava.

 

Não respondeu: era de falar sobre o amor? O amor é isto, o amor é aquilo.

Não, era um mistério, para ele. Isso nunca. Nunca se assume como aquele que sabe. A poesia é isso, é o amador aprendiz. O meu pai achava que eu era um exemplo porque fui durante décadas homem de uma mulher só. Fazia-me confidências. Uma vez deu-me um grande abraço, disse-me uma coisa lindíssima: “Ah, meu filho. Meu filho, meu pai”. Havia coisas em que achava que eu era o adulto, porque vivia numa estabilidade, e ele sentia-se frágil.

 

Quais eram as suas grandes angústias e dores?

A obra dele está marcada pela obsessão da morte.

 

O amor e o sexo não são senão uma forma de contrariar esse fantasma. Eros e Tanatos.

Num poema, dos que gosto mais, O Romance de Pompeia, fala do casal que morre no acto, que fica eternizado na lava. A morte é uma preocupação fortíssima, que aparece muito cedo. Nos últimos anos de vida, dez, 15, tem a angústia do regresso à barbárie.

 

Barbárie civilizacional?

Sim. Sabe que pertence a uma cidadela sitiada. A partir de 1967, fazia pelo menos uma viagem por ano a Itália com a Pilar. Ficava angustiado antes de partir. Telefonava para se despedir, e começava a dizer mal de Itália. Depois voltava e adorava. Ele ia claramente ter com uma velha amante, e tinha medo que ela tivesse envelhecido mal. A amante era a cidade de Roma. (Está em Londres, para ser visto pelos médicos, num apartamento onde vive duas ou três semanas: o primeiro livro que se vê é um guia de Roma. Está sempre nos planos, durante os meses da doença: quando estiver melhor tem que ir a Roma).

Depois de Portugal aderir à União Europeia, volta e meia vai a Bruxelas, convidado para fazer conferências, e fica desgostado com os eurocratas. Conta-me da vergonha que tinha dos que se sentavam no avião e pediam logo A Bola.

 

Não gostava de futebol?

Nunca gostou de futebol. Por solidariedade para comigo passou a vibrar pelo Benfica. O meu avô queria que perdessem todos, achava a bola um atraso. O que o chocava era que estávamos entregues a brutos.

 

Há um momento em que ele percebe que vai morrer. Como é que ele lida com a morte concreta, física, não com a questão metafísica que atravessa a sua obra?

O meu pai era um hipocondríaco. A partir de uma dor de garganta era capaz de criar a ficção de uma doença terminal. E perante o cancro, foi de uma bravura extraordinária. Como as pessoas sabem do estado em que está, servem-se do pretexto do disco de poesia para lhe dizer que gostam dele. O disco tem críticas óptimas por todo o lado. Ele gostou, mas sabia que as pessoas se estavam a despedir.

 

O disco é também uma forma de ele se despedir, até da poesia?

É, é uma escolha que faz, é a última antologia dele. Sabe perfeitamente que vai morrer. Era um homem muito bonito e dá entrevistas para a televisão desfigurado.

 

Era um esteta.

Penteava-se, ia ao barbeiro, perfumava-se, vestia com gosto. Era um homem que gostava da sua aparência, e não se esconde. Continuámos a ir a restaurantes, e há uma ou outra situação em que as pessoas não o conhecem à primeira. Foi uma coisa dolorosa.

 

Porque é que ele capitulou? Estava esgotado?

Porque cada vez tinha menos as coisas boas da vida.

 

Porque já não podia ensinar nem estar com uma mulher.

É isso. Há uma aluna desse grupo de estudantes que vinha cá para casa, e que tinham 20 e tal anos, que fica um ano com uma depressão profunda por causa da morte do meu pai. Nesta sala, acontecia estar a ver cadernetas velhas e a falar-me de alunos, do Eduardo Prado Coelho, do Artur Anselmo. O prazer que tinha nos grandes alunos...

 

Era sobretudo a ideia da transmissão do conhecimento, da corrente, de tocar a outra pessoa?

Ele também tinha sido tocado. Tinha tido acesso privilegiado, lendo ou através do contacto pessoal, a pessoas excepcionais, e transmitia isso. A noção da água de um rio usa-a num poema em que, numa das versões, fala do meu avô e de mim. O poema chama-se Xácara dos Campos de Elvas e tem três versões. A que ele virá a considerar piegas, a primeira, acaba: “Que nestes campos sem água/ eu sinto-me água dum rio/ David José meu pai/ David João meu filho”. Mais tarde corrige, e os últimos versos passam a ser: “Água que vem do meu pai, que se prolonga em meu filho”. Grava para o disco uma terceira versão onde faz questão de dizer outra vez o meu nome e o do meu avô.

Adora saber coisas de família. Andam aí por casa esquemas que fazia, quem é que vinha de quem. Fascinava-o saber se o avô do meu avô era judeu (esta teimosia nos David dá-o a entender).

 

Ocorre-me que a forma como arruma os livros é uma espécie de genealogia. Arruma-os a partir da data de nascimento dos autores. O que vem, de onde vem, vai dar a quem.

Nunca tinha pensado, mas tem toda a razão. Sabia quase todas as datas de cor, tinha uma memória extraordinária. O meu avô é um historiador amador, o meu pai tem muitos livros de história. Escreve uma novela que se chama Nem Tudo é História. Até como professor, tem uma noção do que vem, para onde vai.

 

Começa por arrumar por línguas, e depois, dentro de cada língua, segue, não a ordem alfabética, mas a cronológica.

São os rios. Copiei-lhe isso, e faz muito mais sentido. O que faz sentido é encontrar o Garrett ao pé do Herculano e do Castilho. Tinha uma paixão muito grande pelo Garrett, é dos primeiros poetas acerca de quem escreve. O Garrett foi uma espécie de ministro da Cultura, o meu pai foi secretário de Estado da Cultura. O Garrett foi um homem que se interessou pelo direito de autor. O meu pai trabalhou na Sociedade Portuguesa de Autores, a certa altura. Além da ligação ao teatro.

Um dia conta-me a história do enterro do Garrett. O Castilho, que era cego, terá feito, para os risinhos da sua corte, um comentário puritano e maldoso às mulheres da vida do Garrett, que eram muitas: “Mas a família que está cá é a verdadeira”. O Herculano terá respondido: “Dêem dois tostões para calar esse cego”. O meu pai estava a falar do enterro dele. Sabe que tem mais do que uma mulher a chorá-lo.

 

Disse que o outro autor com o qual sente uma grande identificação, além do Garrett, é o Paul Valéry.

Que é um tipo de uma inteligência muito fina. Uma noite, ainda é solteiro, põe-se a ler o Valéry, e faz uma directa, de entusiasmo, não consegue parar. Uns dias mais tarde vem a saber que o Valéry tinha morrido naquela altura.

 

Ele explicava o porquê dessa identificação tão íntima?

Não é exagero dizer que o meu pai acreditava que a comunicação entre os espíritos não se esgotava naquilo que sabemos. Cinco ou seis anos antes de morrer, no aeroporto, há uma mulher de leste, uma cigana, que olha para ele e de repente desata a chorar convulsivamente. Quanto tem a doença, acha que ela viu a doença dele. Há outras coisas deste tipo que atravessam a vida dele. Vai à Baixa [de Lisboa] pela mão do meu avô, há um atentado bombista, e escapam por um acaso. Mais tarde vai ao Brasil, há um travesti que é extraditado e que quer mandar o avião abaixo; o avião baixa de 10 mil para mil metros, param nas Canárias. O meu pai achava que várias vezes na vida alguém lhe tinha posto a mão por baixo.

Mais tarde, alguém atribui o interesse do meu pai pelo catolicismo a uma beatice, por ter apanhado esse susto. É completamente falso. Isso passa-se já em princípios dos anos 90, e os poemas cristãos são do início dos anos 70. Sobretudo o fascínio pela figura de Jesus.

 

Um fascínio humanista? É menos a figura de Deus e mais a figura do homem.

Sim. Ou um homem de uma bondade tão extraordinária que é por isso que é Deus. O nome do meu pai é David de Jesus porque a minha avó é Teresa de Jesus. Um poema diz: “Sou David, mas de Jesus”. Havendo o humanismo, a dimensão transcendente não está fora. É um humanismo enriquecido, que não encara o homem sob uma visão meramente materialista.

 

Preocupava-se com a imortalidade da obra dele? E enquanto católico, o post mortem era uma coisa que o preocupava?

Era um católico especial. Há um poema de Natal – nunca o percebi, a Joana Varela é que me chamou a atenção – que de edição para edição passa sempre para último poema do livro; e todos os outros têm data, menos esse. O poema começa: “Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que se veja à mesa o meu lugar vazio”. Aquilo vai num crescendo: “Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que não viva já ninguém meu conhecido”. Acaba a dizer: “…em que o Nada retome a cor do Infinito”. O lado religioso nunca lhe dá a segurança de que fique mais do que o Nada. Esse poema é muito bonito, e é uma reflexão sobre a hipótese da mortalidade total. Não é só a mortalidade física. É a própria obra.

 

A respeito da obra, o que é que ele pensava que ia suceder? Achava que era um grande poeta e que por isso ia perdurar anos e anos, que ia ser estudado nas escolas?

O meu pai tinha a obrigação de saber a qualidade que tinha, mas tinha a sua insegurança. A minha mãe, que bateu à máquina muitos poemas, dizia que considerava o meu pai um dos maiores poetas de toda a língua portuguesa. E depois não gostava da prosa. Costumava dizer: “O teu pai às vezes parece que precisa da opinião de uma criada para saber que é bom”. E precisava de uma corte de pessoas inferiores. Isto é típico dos artistas.

 

Porquê?

A Amália tinha uma corte patética, ainda hoje sofremos os efeitos disso no seu legado. A Natália [Correia] tinha uma corte inacreditável. Era muito amiga do meu pai, tinham uma camaradagem de irmãos, e no PREC, em 1975, telefonava a dizer que aparecia aqui em casa. Podia ser uma pessoa, três pessoas, sete pessoas, a corte encolhia e alargava. No Botequim, sabia tudo sobre o PREC, e sentava-se, rainha, no melhor sofá, a perorar.

A corte do meu pai não tinha este peso, porque o meu pai tinha coisas que as outras duas não tinham – filhos e netos. E felizmente tinha muitas mulheres, que o equilibravam bastante. Mesmo assim tinha uma corte. Lembro-me de uma cortesã muito simpática que uma vez me admoestou porque eu estava a discutir política com o meu pai: “Ó Davidzinho, não discuta com o pai porque o pai depois ainda lhe dá uma bofetada e fica triste” [riso].

 

Ele era emocionalmente carente, era por isso que precisava de ser tão amado por tantas mulheres?

As mulheres, é outra coisa. O grande artista ser carente e precisar que o confirmem é muito mais comum do que seria de esperar.

O meu pai, até ao fim, lê muito e vive muito, mas não deixa de ter insegurança.

 

Ele precisava de viver para escrever?

E vice-versa. Tem um texto de 1969, onde, julgo eu, inventa a expressão O Ofício de Escreviver. Assume que é viver para escrever, e escrever para viver.

 

Outro título muito famoso: Órfico Ofício. Ofício remete-nos para o lado laborioso da poesia.

E órfico para o sonho.

 

E para Orfeu.

Outro poema de que gosto muito (na fase mais tardia tinha poemas muito curtos, a meio caminho entre o poema e o aforismo): “Olhar de frente o Sol  Assim se aprendem

as letras iniciais da Solidão”. Nas festas de Natal, era ele que ia comprar o vinho, o bacalhau. A escolha dos presentes, a encenação... Esteve presente no nascimento de todos os netos (assim que sabia, vinha de férias do Algarve). Na última entrevista grande que dá, um programa feito pela Diana Andringa, está sempre a falar desta coisa maravilhosa que é a vida. Quando a imagem pára nele vê-se um homem, fisicamente a morrer, a dizer que a vida é uma coisa extraordinária.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011

 

 

 

 

 

João Gilberto

20.07.22

As coisas que a seguir se podem ler, são coisas que só o coração pode entender. Não é razoável que um japonês tenha vindo do Japão para ver João Gilberto; pagou 1000 reais por um ingresso, vestia uma tshirt do Brasil, e no fim do concerto posava com Caetano Veloso no foyer. Uma pequena irmandade. Um encontro de fãs. Uma coisa boba? Tanto quanto ir a Lourdes em peregrinação. Ou abraçar as colunas do Parténon, (quando se podiam abraçar as colunas do Parténon). Ou visitar a casa onde nasceram os nossos pais. O que se passou domingo à noite no Rio de Janeiro é do domínio do sagrado. João não cantou o Samba da Bênção. Mas foi isso que aconteceu no Teatro Municipal: uma bênção.

É Inverno no Rio de Janeiro. Os dias nascem bruscamente, em tons róseos, logo depois das seis – em minutos, faz-se claro. Um acordar vigoroso. A temperatura ronda os 30 graus. As praias são lindas, cheias de luz – nenhuma tem o encanto que Copacabana possui, canta Dick Farney.

João também não cantou essa ode à princesinha do mar. Mas essa não é uma canção que ele cante. O seu tributo ao Rio faz-se, por exemplo, em “Lígia”: “Eu nunca sonhei com você, nunca fui ao cinema, não gosto de samba, não vou a Ipanema (…) e esqueci no piano as bobagens de amor que queria dizer”. Ou quanto canta “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça (…) moça do corpo dourado, do sol de Ipanema, o seu balançado parece um poema”.

O sol declina cedo, e o crepúsculo acende as luzes da cidade. O azul persiste, como pano de fundo. O cenário altera-se durante os minutos em que somos transportados para o Teatro Municipal. Quando chegamos, é escuro, e à saída do táxi somos bombardeados com uma frase que se transforma numa espécie de senha:

“Tem ingresso sobrando?”. A polícia circunda o edifício, há uma fila longa para levantar convites, há um clown da televisão brasileira a comentar, em directo, quem atravessa a passadeira vermelha. Havia, deveras, uma passadeira vermelha: dentro do teatro. Mas todo o cenário era operático. As madames, noutros tempos, usariam a “sandália bordada” da baiana de Caymmi. As madames, noutros climas, usariam peles de Maria Callas. O Teatro Municipal do Rio de Janeiro não é o Scala, mas João Gilberto é o melhor cantor do mundo. Vivo.

Oito da noite. O concerto está marcado para daí a uma hora. Se tudo correr bem – entenda-se: se João aparecer – é provável que comece com uma hora e meia de atraso. O público está preparado para esperar. O público está preparado para tudo, desde que possa participar na liturgia. O bafafá estava apenas a começar.

Bafafá: agitação social; confusão, com fofoca metida ao barulho – segundo acepção popular. O bafafá já era considerável pelas oito da noite. Mas verdadeiramente o bafafá atingiu o seu clímax quando chegou Caetano e Gil, com a ex- Paula Lavigne e a actual Flora (respectivamente). Flashes, beijos, meu irmão, acenos, Caê, quer uma balinha (nada de ilegal, balinha, de bala, é um rebuçado), será que ele vem?, em tendo ingresso sobrando, eu compro. Uma senhora de camisa de cetim verde, uma Prada fake e o cabelo apanhado, entusiasma-se por segundos: “Tem?”. O dealer é sumário: “Só galeria, 250 reais”. Mármores e colunas, prosecco no terraço, uma loura roliça coberta de brilhantes dourados, você vem com um sapato dessa altura – queixa-se um marido ou pai ou namorado, alguém que se julga com autoridade, em todo o caso. Uma tshirt do Obama for president, outra tshirt onde se lê Fear no Art, cariocas bacanas, cariocas sofisticados, Adriana Calcanhotto. Isabel Diegues, filha de Cacá e Nara leão, que nunca viu João, Moreno Veloso que estava no Japão quando soube da morte de Caymmi, quer amendoim quer?, Gisela Pitanguy e Raul num camarote, uma actriz de telenovela de apelido Ximenes que foi ali para ser vista, e legal se também acaba ouvindo o mito. Parece que ele ainda está no hotel. Sérgio Cabral, o governador. Sérgio Cabral, o pai. Uma plateia transgeracional. Os que ouviram a Bossa Nova quando ela surgiu, há 50 anos. Os que ouviram falar desse tempo como quem ouve a história de um interminável feriado; e que vão ouvir pela primeira vez o astro.

Chega de bafafá.

Chega de Saudade. João não cantava no Rio há 15 anos. Outros dizem que a última vez foi há 17 anos. Cantou em S. Paulo nos dias 14 e 15. Vai cantar em Salvador no dia 5 de Setembro. Apetece cruzar o Atlântico de novo para ouvi-lo na sua Bahia com H – que é o mesmo que dizer em casa. Mas ouvi-lo no Rio é também ouvi-lo chez lui; é, de qualquer modo, ouvi-lo no lugar onde uma onda se ergueu do mar.

Houve um momento em que ele se recolheu sobre o violão enquanto a plateia aplaudia “Chega de Saudade”. Como se pronunciasse, de si para si, um monólogo. Pensaria no momento em que tudo começou? Evocaria Tom Jobim e Vinícius de Moraes? Pensaria em quem? Cantaria para quem? Estaria comovido? Estava distendido. Nesse final apoteótico, João já havia desapertado o botão de punho, dobrado sobre a manga do fato. Seria o mesmo se soltasse a gravata. Mas não foi preciso.

“Num momento em que João estava cantando uma das suas músicas mais clássicas, fechei os olhos e viajei. Era como se o tempo não tivesse passado e eu estivesse na casa dos meus pais, em Copacabana, com João cantando e a turma em volta: Nara, Menescal, Ronaldo, Chico Fim de Noite, Vinícius, a maioria sentada no chão, encostada na parede, e extasiada, no mesmo silêncio de hoje, quando João pega no violão e começa a cantar. A única diferença é que ele não usava gravata, e era bem mais novinho, mas de resto, era o mesmo, de pouco papo. O negócio dele era a música, nada mais”. A casa dos pais a que Danuza Leão faz referência, numa crónica que assinou para a Folha de S. Paulo, é o mítico apartamento da Avenida Atlântica onde Nara e amigos praticavam a Bossa como modo de existir. Mas a linha essencial desse texto talvez seja quando ela diz: “Acho que estava se exibindo para a filha Luiza”.

A menininha. Uma história improvável que não faria parte deste roteiro se não tivesse a sua importância. Talvez importância capital. Não podemos saber se não devemos a essa menininha os concertos que João decidiu dar (é certo que também há os dois milhões de reais pagos pelo Itaú…). Mas João só canta quando quer.

Cláudia Faissol é uma mulher de 36 anos que acompanha João há 12. Faz um documentário que teve a curiosidade como ponto de partida: “Poxa, por que ele faz tanto mistério?”. Pintou um clima. E uma transa. (Estamos em plena telenovela, mas não nos capítulos cruciais). Cláudia era casada, marido rico, boas famílias, esse troço. Numa discussão, insinuou que talvez a criança não fosse do marido… Xi. O marido, não querendo se fazer de babaca, fez um teste de paternidade. E não é que o DNA não batia com o da menininha? Aí, Cláudia pensou: se não é do marido, é do João. E João fez o teste de paternidade. E não é que o DNA batia com o da menininha? Pathos grego. Desmancha casamento, conta a história nos jornais. Aos 76 anos, João Gilberto soube que tinha uma filha de dois anos. A menininha tem agora quatro e assistiu ao show do papai na primeira fila.

João poderia cantar para ela: “Mas só não quero que me faça de bolinha de papel”. Talvez faça. E ainda bem. João não só aparece para cantar, como, pasmo geral, está simpático! Não se levantou e foi embora quando dois telemóveis tocaram (por brevíssimos segundos, mas tocaram), não xingou a plateia porque ela tossiu incontáveis vezes, não disse mal do banco que patrocinou o espectáculo (para acautelar essa possibilidade, foi incluída uma cláusula especial no contrato). João estava tão caloroso que o público atreveu-se a cantar num sussurro “Chega de saudade”, do princípio ao fim. E não é que ele gostou? “Ouvi um sussurrinho e gostei muito. Vamos fazer isso de novo?”. Foi o momento apoteótico da noite. Um dos. O público cantou baixinho, afinadinho, e João cantarolava e tocava violão. No fim, aplaude, e resume: “Vocês já estão entendendo: não quero ir embora”.

Foi aí que desapertou o botão de punho. Fez uma interpretação vigorosa de “Garota de Ipanema”, e pediu novamente a colaboração da plateia, “Cadê vocês?”, para terminar com “O Pato”. Talvez Danuza tenha razão. Talvez ele estivesse se exibindo para a filhinha.

Eram onze e quarenta. Ele entrara em palco às nove e cinquenta e cinco. Cantara “Doralice”, “Samba do Avião” (uma das versões mais inventivas, como quem diz: “E se agora tocasse assim?”), “Caminhos Cruzados”, “Rosa Morena”, “Wave” (o público fez um burburinho, um estremecimento varreu o teatro, a matéria era sagrada), “Estate”. Cantara os versos que milhões de pessoas sabem de cor: “Um cantinho, um violão”, “Só privilegiados têm um ouvido igual ao seu…”, “Isso aí o que é? Também um pouco de uma raça”. Dissera com urgência: “Como é que eu posso contra o encanto desse amor que eu nego tanto, evito tanto e que no entanto…”. Cantou também este verso em forma de epitáfio: “Eu quero morrer num dia de sol”.

Quando voltou para um longo encore, eram onze e cinco. Sorria. Tinha um evidente prazer em cantar. Para a menininha. Para os cariocas. Para o japonês que veio do Japão. Para o público que saiu catatónico. Com uma sensação de embriaguez. Ou feitiço. O que se passou ali, foram coisas que a razão desconhece. Dá para voltar atrás no tempo?

 

Publicado originalmente no Público em 2008

50 anos de Bossa Nova

19.07.22

Dezembro de 1966. Chamam ao telefone o senhor Jobim. Não foi bem assim. No Veloso ele era “Seu Tom” e não se apregoavam frases de cafés lisboetas. O negócio era outro. E Arménio, o dono do boteco de esquina, conhecia-o de outros carnavais, de muitas rodas de chope. Ia dizer “Senhor António Carlos Jobim, estão lhe chamando ao telefone?” É verdade que Frank Sinatra estava do outro lado do fio. O maior cantor do mundo. Mesmo assim. Seu Arménio anunciou apenas: ligação dos Estados Unidos. Tem um gringo aí querendo falar. Foi então que Frank, Frankie, the voice, anunciou a boa nova:

- “Quero fazer um disco com você e saber se você gosta da ideia”.

Sinatra não falava português, mas Tom falava inglês. A resposta terá sido:

- “It’s an honor, I’d love to”.

Imaginemos um dia esplendoroso, como só podem ser os dias de Dezembro no Rio de Janeiro. Seu Tom estava de regresso ao Brasil e tomava chope pela tarde. Não é possível dizer cerveja, porque dizer chope já introduz toda outra coisa. O Verão a estourar, Tom prestes a fazer 40 anos, a Bossa Nova como um acontecimento de um passado longínquo, e Sinatra a acenar it’s now or never.

É provável que Tom ficasse para a história, e não apenas para os compêndios musicais, sem este encontro com Sua Eminência. “The Girl from Ipanema” tinha merecido 40 versões só no primeiro ano de vida. Nat King Cole tinha cantado no Copacabana Palace com Sylvinha Telles, a maior cantora do movimento. Miles Davis tinha assistido à apresentação formal da Bossa no Carnegie Hall. A Bossa não era mais Nova. Tinha sido dada como extinta no Brasil. Mas no resto do mundo, estava apenas a despontar. Num esplendoroso dia de Dezembro, Tom Jobim sabia que não era trote quando lhe disseram que Frank Sinatra queria falar. Talvez um génio saiba mesmo que é um génio.

Tudo começara muito antes. No Rio. Ou talvez em Juazeiro, terra recôndita da Baía, onde nasceu o homem que, mais do que Tom Jobim ou Vinícius de Moraes, revolucionaria a história da música brasileira. Os especialistas da Bossa Nova são os primeiros a prestar vassalagem ao génio de Jobim, a equipará-lo a Cole Porter ou aos irmãos Gershwin. É consensual que “Eu sei que vou te amar” é um hino do tamanho de “Everytime we say goodbye”. Mas o que mudou radicalmente o que até então se fazia foi a batida do violão de João Gilberto, em Juazeiro. A batida sincopada da Bossa Nova – como anos mais tarde diria Aloysio de Oliveira, em síntese.

Ruy Castro, biógrafo da Bossa Nova, começa o seu livro pelo altifalante pendurado num poste da Rua Apolo, em Juazeiro. A música era “Naná”, de Orlando Silva. Orlando Silva era quem João Gilberto queria ser. Como é que cantava Orlando Silva? Como cantavam os cantores da rádio desse tempo. Voz de veludo, cabelo lustroso, um punhal junto ao peito. Antes de João cantar do jeito manso que o mundo lhe conhece, por exemplo, quando cantava com o grupo vocal “Os Garotos da Lua”, ele cantava do jeito de Orlando Silva. Algumas fitas manhosas desse período atestam isso mesmo.

O altifalante, segundo Castro, passava de tudo um pouco; mas o tudo que passava era bom pra cacete. Tommy Dorsey (para os que estão muito fora, talvez dizer que Sinatra era o crooner da sua orquestra…), Duke Ellington, Charles Trenet, Carmen Miranda, Dorival Caymmi. Selecção irrepreensível, eclética. Os moços juntavam-se debaixo da árvore para tocar violão.

Ficaria bem no postal dizer que Joãozinho tocava violão e cantava às moças. Seria tão idílico quanto dizer: “Champanhe, mulheres e música, aqui vou eu” – que, segundo Ruy Castro, foi o seu grito de guerra quando rumou a Salvador. Mas não se lhe conheceu uma namorada na sua terra natal. Dir-se-ia que tocava e cantava para si próprio. Pelo prazer de tocar e cantar. O que não faz dele um monge. Antes de casar com Astrud, e depois com Miúcha, e depois com, e depois com, e agora com (de quem tem uma filhinha de três anos), João namorou com Sylvinha Telles, Marisa, e seguramente com outras mocinhas.

Era um sedutor de modos elegantes. Seduzia uma plateia com duas frases e uma canção, conquistava o pessoal dos hotéis e restaurantes ao fim do segundo pedido. (Consta que, durante os anos em que viveu em hotéis, quer dizer, muitos, e até há muito pouco, fazia das faxineiras, arrumadeiras e garçons os seus convidados de primeira fila nos raríssimos shows em que se apresentava).

Enquanto isso. Em 1949 e nos anos seguintes, ouvia-se Dick Farney. Nas boites, não nos puteiros – expressão insubstituível usada por Ruy Castro para definir os lugares em que Jobim se atirava ao piano. Dick Farney era o Sinatra brasileiro. Farney fez uma incursão nos Estados Unidos e dava-se com Stan Kenton, o director de orquestra venerado pelos meninos que cruzavam Copacabana e Ipanema. Mas também com Mel Tormé, Anita O’Day, e Sinatra, him self. “Aí eu disse ao Frank…”. Dick Farney era, além de cantor excepcional – para os que não tiveram ainda o prazer de um encontro, aconselha-se uma corrida imediata a uma loja online e subsequente encomenda – um grande pianista de jazz. Todo o universo, como facilmente se percebe, era o do jazz americano. Mais ou menos puro, mais ou menos duro. Mais para menos puro e duro.

Dick Farney não podia ser deixado fora da história da Bossa Nova porque ele era idolatrado pelos músicos que a fizeram. Pianistas como Johnny Alf (ainda vivo, também cantor, compôs “Eu e a Brisa”) ou João Donato (vivíssimo, com carreira pujante no Japão, autor do eterno “A Rã”/”The Frog”) seguiam-no com a um astro. No caso de Donato, apelidado de Judas Escariotes pelos outros meninos, seguia Dick Farney como seguia Lúcio Alves.

Ou se era de um ou se era do outro. Donato era dos dois. Depois de desfeitos os clubes de fãs que promoviam a rivalidade, também João Gilberto. Mas não foi por outra razão senão estar na Baía enquanto os garotinhos do Rio se entretinham com estas disputas. Acontece que João Gilberto tinha bom gosto musical e não podia prescindir de nenhum dos dois. Quando o seu primeiro disco foi gravado, quase dez anos depois do pico da rivalidade Farney-Alves, ele procurou Lúcio. Insegurança? Não. Este é um daqueles casos em que o génio sabe desde o começo que é um génio. Era, simplesmente, o desejo de receber a aprovação e o afago no pêlo do seu ídolo.

Porque é que ainda não se falou, senão de relance, da “Garota de Ipanema”? Um facto para arrumar desde já a questão: até que Vinícius e Tom celebrassem a beleza de Helô Pinheiro, de corpo dourado do sol de Ipanema, muitas canções foram escritas. Tom e Vinícius formaram a dupla mais celebrada, mas bota no pacote Carlinhos Lyra, Newton Mendonça, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal. Maysa e Nara ficam para mais tarde, quando se tratar da cisão da Bossa Nova e quisermos saber porquê – cherchez la femme, como sempre.

Para os que estão perdidos na genealogia, para quem a Bossa Nova é uma musiquinha gostosa, que combina com o fim de tarde, um drink ou um elevador, aqui ficam alguns factos históricos: A Bossa Nova surgiu há 50 anos. O Brasil celebra a efeméride com o mesmo empenho que usa para assinalar a chegada da Côrte. Compilações distribuídas pelos jornais aos domingos, palestras em cada auditório, concertos irrepetíveis (como o de Caetano Veloso e Roberto Carlos, esta sexta feira, numa evocação de Tom Jobim).

Se estiver na situação do pai de Nara Leão, “Onde é que está a bossa? E o que essas músicas têm de diferente?”, a resposta pode ser arrancada das páginas de O Cruzeiro, a revista que vendia 700 000 exemplares e que estava interessado em saber como tudo tinha começado. O jornalista e compositor (e namorado de Nara, e flatmate de João Gilberto e mais tarde marido de Elis Regina) Ronaldo Bôscoli respondeu assim: “Filosoficamente, Bossa Nova era um estado de espírito”. A cantora Alayde Costa foi mais precisa: “Eu acho que Bossa Nova é toda a música em que entram bemóis e sustenidos”. A melhor é a do poeta Schmidt: “A Bossa Nova é o reencontro do Homem de hoje com o Homem eterno”. Se continua na situação do pai da Nara – o que é compreensível – talvez ir à etimologia da Bossa. Ruy Castro escreve no seu livro “Chega de Saudade”: “A palavra “bossa” estava longe de ser nova: era usada pelos músicos desde tempos perdidos, para definir alguém que cantasse ou tocasse diferente. (…) A origem da expressão nunca ficou esclarecida de todo e gastou-se mais papel e tinta com esse assunto do que ele merecia”.

A Bossa Nova era, então, uma música nova. Uma reacção à música interpretada por Anísio Silva ou Sílvio Caldas. Os cantores de que as empregadas lá de casa gostavam. Os que exumavam a dor de corno numa canção. Os que lastimavam “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amorrrrrrr”. Tudo dito num tom gongórico, pré-apopléctico, vertido com lágrimas. Noir, roufenho, como numa rádio onda média. Acompanhava com copos de uísque e cigarros fumados em boquilha – piteira, como se diz no Brasil. A mulher, essa malvada, espalhava os seus encantos e os seus venenos à noite, alta noite.

Jobim podia tocar em bares e puteiros – tinha uma guerra com o “aluguel” e uma família para cuidar. Jobim podia até perguntar com genuíno interesse a Vinícius quando este lhe falou de uma colaboração: “Tem um dinheirinho nisso aí?”. Mas a noite era uma contingência.

No dicionário de figuras de Ipanema, Ruy Castro descreve-o do seguinte modo: “Ele foi o paradigma do bairro, moleque de praia, adepto de esportes, homem de enorme beleza física, aberto à natureza e à vida, sedento de livros e de conhecimento, bom de copo, inestancavelmente criativo e com um senso de humor ideal para a grande especialidade de Ipanema: conversa fiada”. António Carlos Jobim foi criado com a Lagoa Rodrigo de Freitas aos pés, nadava do Arpoador a Copacabana e voltava. O cheiro a maresia corria numa veia paralela, atravessava-lhe o corpo todo. A sua música não podia deixar de reflectir isso. Deslizava de Copacabana, sombria, nocturna, para o bairro de Ipanema, solar, salgado.

O encontro desse moleque com um homem do mundo, um diplomata que abominava a burocracia, um poeta formado em Oxford, mudou o curso deste rio. No mesmo dicionário, Castro resume o one man show Vinícius de Moraes: “Encarnou a coexistência entre o [Palácio do] Itamaraty e o [bar] Veloso, o uísque e o chope, o asfalto e o morro, a poesia e a letra de samba. A influência dessa dualidade sobre os jovens que conviveram com ele em Ipanema nos anos 50 e 60 foi tremenda”. Do folclore em torno de Vinícius são obrigatórias frases como: “O uísque é o melhor amigo do homem: é o cachorro engarrafado”. Ou os seus nove casamentos. Ou o facto de receber todo o mundo, conhecidos ou não, na banheira.

Esta bandalheira ainda não era permitida quando a Bossa Nova se anunciou. Vinícius era o poeta diplomata que outorgava ao movimento o prestígio do Itamaraty e de Oxford. Versos pueris como: “Pois há menos peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que eu darei na sua boca” não eram menos que a sua alta poesia, já escrita. Eram, pelo menos, um indicador: No more blues.

Na família Bossa Nova, Bôscoli, Menescal, Nara, Lyra, podem ser lidos como os primos muito chegados e muito novos. Falemos de grana para falar de Nara. Parece injusto que a associação comece por ser esta. Mas a verdade é que este ramo da família não teria sobrevivido se não fosse o apartamento gigante que Nara tinha na Avenida Atlântica. Uma sala de 90 m2, um pai advogado e beneplácito, uma irmã (Danuza) que aos 15 anos tinha Di Cavalcanti por melhor amigo. Millôr Fernandes ia lá jogar póquer uma vez por semana; e nessa altura os meninos pegavam no violão e iam fazer Bossa Nova para outro lado. Fora isso, a casa era um entra e sai permanente.

Tom e João não estavam sempre lá – tinham mais que fazer, nomeadamente ganhar a vida. João vivia encostado na casa deste e daquele, meses e meses, até que simpaticamente, ou nem tanto, lhe apontavam a porta da rua. Não tinha um vintém. A ponto de bater à porta do abastado Menescal e perguntar: “Você tem um violão aí? Podíamos tocar alguma coisa?”. A ponto de usar uma camisola de Bôscoli na fotografia de capa de “Chega de Saudade”. Vivia na absoluta penúria.

Não ganhava a ninharia que os outros ganhavam porque não se dispunha a fazer figuras tristes – ainda fez algumas, apesar de tudo, como cantar fantasiado num programa de televisão. Diz-se que chegou a passar fome. As excentricidades de João são antigas, e não fazia nada que não faça hoje: levantava-se e ia embora quando faziam barulho na assistência, fumava maconha e esquecia-se das horas, exasperava orquestras e maestros por séries ininterruptas de gravação, e atrevia-se a dizer a Tom: “Puxa Tom, como você é burro”, porque Jobim não detectava o erro colossal (?) que aquele acorde continha.

Arrastava a fama de génio de ouvido absoluto. Tinha uma fala mansa. “A voz de João Gilberto era um instrumento (…). O homem cantava num andamento e tocava em outro. Na realidade não parecia cantar – dizia as palavras baixinho. (…) Para Menescal e Bôscoli, naquela noite, João Gilberto era a realidade encarnada do que até então, eles vinham procurando às cegas”. (“Chega de Saudade”). Tom pensou que João “deixara de ser o discípulo de Orlando Silva, com toques de Lúcio Alves. Cantava agora mais baixo, dando a nota exacta, sem vibrato, estilo Chet Baker, que era a coqueluche da época. Mas o que o impressionou foi o violão. Aquela batida era uma coisa nova”. O mundo inteirinho enchia-se de graça e ficava mais lindo por causa de João Gilberto. Muitos anos mais tarde, Caetano resumiria isto no verso: “Melhor do que o silêncio só João”.

Assistia-se a uma epifania. Mas pouco antes, o pai de João sentenciava a morte do género: “Isto não é música. Isto é nhém-nhém-nhém”. Talvez o abastado senhor Oliveira ainda tivesse esperança de ver o filho doutor, como vira todos os outros. Mas o altifalante de Juazeiro tocou mais alto.

“Canção de Amor Demais”, da “enluarada” Elizete Cardoso, materializou em vinil a novidade. A Bossa. Integralmente assinado por Tom e Vinícius, a álbum tinha como plus João Gilberto a tocar violão em duas faixas. Elizete era uma cantora da velha guarda, e o disco anunciava formalmente a mudança. Por causa do repertório. Elizete cantava à moda antiga, e um exercício eficaz para se perceber o que é a Bossa Nova e o que é o génio de João Gilberto é ouvir a versão que um e outro fizeram de “Chega de Saudade”. Três meses depois da diva, João gravou o seu 78rpm com “Chega de Saudade” de um lado e “Bim Bom” do outro. Pediu um microfone para o violão e outro para a voz – o que nunca tinha sido pedido. E fez uma novela em sucessivos capítulos da simples gravação das duas canções. Os jovens da Zona Sul, endinheirados e ensolarados, já conheciam “aquilo”, mas agora tinham um disco a partir do qual podiam tocar, tocar, tocar, até aprender.

Demorou até pegar. Mas transformou-se num fenómeno que não cabia na praia de Ipanema nem na de Copacabana. Dois meses depois, em Janeiro de 59, saiu o primeiro LP (long play, como se dizia, e é o que significa). O habilíssimo Tom Jobim, que além de bares e puteiros tinha um emprego fixo na editora Odeon, escreveu para a contra-capa de “Chega de Saudade” que João “em pouquíssimo tempo influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores. (…) João acredita que há sempre lugar para uma coisa nova, diferente e pura. (…) P.S.: Caymmi também acha”. Ary Barroso, também. Cyro Monteiro, também.

O melhor da velha guarda “entendia” o que estava a acontecer. Lúcio Alves gravou um disco inteiro com composições desses garotos, Bôscoli/Menescal. A Elenco, editora dissidente da Odeon, do veterano Aloysio de Oliveira, lançava no mercado pérola sobre pérola. O grafismo era depurado, monocolor. Mas o que parece ser uma aposta arrojada resulta da escassez de dinheiro. Tudo em ebulição, portanto.

As canções eram tocadas por todos, compostas por Tom/Vinícius, Tom/Mendonça, Bôscoli/Menescal, e por Bonfá e Carlinhos Lyra. As canções eram cantadas por todos. Sylvia Telles (ao ouvi-la, é fácil perceber porque é que Marisa Monte a venera) gravou dois LP em quatro meses, com 24 canções. A safra era de cortar a respiração. “Samba de uma nota só”, “Dindi”, “Samba do Avião”, “A Felicidade”, “Desafinado”, “Insensatez” – por exemplo.

O disco da consolidação chamou-se “O Amor, o sorriso e a flor”. João Gilberto sugeriu a Jobim: “Tomzinho, essa coisa de “um cigarro e um violão”. Não devia ser assim. Cigarro é coisa ruim. Que tal se você mudasse para “um cantinho, um violão”?”. Ruy Castro explica as razões deste desconforto: “João tomara-se de tal horror pela maconha que passara a responsabilizá-la por todos os seus fracassos iniciais”. Ficou um cantinho e um violão (esse amor e uma canção, pra fazer feliz a quem se ama).

O que lhes aconteceu a seguir? Antes do grande cisma, uma nota sobre Helô, que inspirou “Garota de Ipanema”. Ao contrário do que se diz, não foi no bar Veloso, mais tarde denominado de Garota de Ipanema, que a música foi escrita. O que é facto é que Tom e Vinícius viam ali passar aquela garota, que coisa mais linda mais cheia de graça. Mas foi nas suas casas, e em separado, que criaram a celebérrima canção. Estava-se em 1962, e só anos mais tarde Helô soube que o seu balançado parecia um poema. Era filha de um general e tinha um noivo ciumento. Ia ao Veloso comprar cigarros para a mãe. Teve um destino de dona de casa, uma vida sem ponto de exclamação. Só quando os dias se amarguraram como um bolero dos anos 50, conheceu a libertação; e então pousou nua para a Playboy, cumprindo com décadas de atraso o sonho de muitos amantes da Bossa Nova. Hoje aparece na Caras a festejar o aniversário, estereotipada e loura, com sorriso postiço e corpo enxuto.

Quando Stan Getz, Astrud e João gravaram um disco para a Verve, e com ele bateram a beatlemania, ninguém poderia acreditar que poucos anos antes João Gilberto batia à porta de um desconhecido a perguntar se havia ali um violão. Ninguém apostaria que Astrud ficaria nos Estados Unidos até hoje a fazer carreira no circuito jazzístico. Em 1962 a Bossa estava moribunda, exaurida. Era um troço auto-fágico. Basicamente, já não se podiam aturar uns aos outros. As brigas tinham um aspecto raivoso e diluviano (como diria Nelson Rodrigues). Os namorados e as namoradas eram trocados de uns braços para outros. O dinheiro era incerto. O alcoolismo grassava em todas as frentes. Existia um excesso consanguinidade. E como é sabido, há um momento em que todas as famílias começam a apodrecer.

O concerto no Carneggie Hall deu o toque de debandada, e depois dele o núcleo duro da Bossa Nova “exilou-se” entre Manhattan e a Califórnia. Mas no seio da “turminha” a cisão aconteceu antes e, como seria de esperar, por um assunto de saias.

Primeiro, uma cantora extraordinária de nome Maysa anunciou no aeroporto, perante jornalistas, que ia casar com Bôscoli. Depois Nara rompeu com Bôscoli e decidiu não cantar os temas que ele tinha composto para ela. Por fim, ou se estava com Nara ou se estava com Bôscoli. Sequência: Nara reaproximou-se de Carlinhos Lyra, que já tinha rompido com Bôscoli, e fez uma abordagem à música do morro e à canção de protesto. Renegou tão enfaticamente o seu passado e a turminha que acabou zurzida de cima a baixo. O disco que punha o último tijolo no movimento e na relação foi “Opinião de Nara”. Continha sambas, marchas de Carnaval, canções de protesto. “Chega de Bossa Nova, chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero o samba puro que tem muito mais a dizer. (…) Se estou me desligando da Bossa Nova? A Bossa Nova me dá sono” (Nara em entrevista, citada no livro do Ruy Castro). Foi acusada de ingratidão. Mas a pobre menina rica, sentia no ar o fim de um tempo. Esboroava-se a rêverie dos anos Kubitschek, o progresso estancava.

Longo sono. Um sono de Bela Adormecida.

Foram precisas décadas até que a Bossa Nova fosse reabilitada no Brasil. No circuito internacional, de modo irregular, sempre se ouviu e praticou. Em especial pelos parentes próximos do jazz. Moacyr Santos, o maestro que compôs obras primas como “Coisas”, fez toda a sua carreira nos Estados Unidos. Sérgio Mendes também. Para já não falar de Tom e João que viveram pelo menos 20 anos fora. Vinícius acabou expulso do Itamaraty – “expulsem esse vagabundo”, dizia o telegrama, corre a lenda. Por mau comportamento. Má imagem. Alcoolismo entre outros pecados – para dizer depressa.

Morreu antes de Tom.

Tom morreu antes de João.

João celebra esta noite os 50 anos da Bossa Nova no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Pensará nos outros dois antes de entrar em palco? Sentirá falta daquele longo e interminável dia das suas vidas? Um dia que durou alguns anos.

 

Publicado originalmente no Público em 2008

Bienal do Livro de São Paulo: os números - 6

11.07.22

A Bienal do Livro de São Paulo, organizada pela Câmara Brasileira do Livro, decorreu entre 2 a 10 julho, numa nova casa, a Expo Norte Center. Alguns números da 26ª edição que marca o regresso ao modelo presencial:

- 660 mil visitantes

- Três milhões de livros vendidos

- Em média, cada visitante gastou quase 230 reais

- 300 autores nacionais e 30 internacionais

- 1500 horas de programação

- 65 mil metros quadrados

Esforços para a democratização do livro: vale-livro (voucher de 60 reais distribuído a alunos e educadores do ensino público); e bilhete dedutível em livros.

Vítor Tavares, presidente da CBL, fala de uma edição histórica, com todos os indicadores a registarem subidas significativas. Dito de outra maneira, pegando no slogan: todo o mundo sai melhor do que entrou.

Portugal foi o país de honra da Bienal, com curadoria de Isabel Lucas e dezenas de autores de língua portuguesa envolvidos. A iniciativa insere-se nas comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil.

 

Acompanhei a Bienal do Livro de São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro.

 

 

Bienal do Livro de São Paulo: as exposições - 5

10.07.22

1.

Aquilo que continuo a ouvir na minha cabeça, desde o nosso encontro em Lisboa, não há muitos dias: o que eu crio vem do estômago.

Humberto Campana é um dos irmãos Campana, designers brasileiros expostos no MoMA, no Pompidou, no Vitra Museum, nos maiores espaços expositivos.

Eu sabia deles há anos, desde a cadeira vermelha. São 450 metros de corda, trançada apenas por uma pessoa, produzida em Itália, vendida no mundo todo. A estrutura é em aço e um artesão, sem emendas, faz a trama, laboriosamente.

Vem do estômago, vem das mãos, vem dos sentimentos. Tudo isso é expresso, não em palavras, mas em pele de pirarucu, em corda, em pele enrugada, em golfinhos de peluche. As mãos sabem muita coisa, e o estômago é parente do inconsciente. Há artistas que pensam a partir da razão, obedecem a um princípio racional. Humberto e o irmão Fernando gostam de provocar sensações inesperadas, subvertem o material e a função, da aglutinação de objectos comuns fazem uma coisa extraordinária.

O mais importante é o embate do material, a verdade do material. O material define a função. Ou seja, uma inversão da premissa da Bauhaus, em que o material servia a função. Fractura, arrojo, insubmissão. Os materiais são personagens à procura de uma peça, um autor, um enredo. Um dia, encontram-se. Um dia, o material inventa outra vida, outra narrativa, é capaz de se metamorfosear.

O estúdio dos Campana fica em Pompéia, a parede que dá para a rua é de um verde calmo. O espaço já foi uma garagem de carros.

Há paredes revestidas a papel dourado, de bombom. Há a poltrona Favela, feita com o que sobra, em madeira. Ou o espelho grande, que desafia a superstição e sobrepõe espelhos partidos. O refugo, com os Campana, é sempre o começo de uma outra coisa. Há a cadeira de estrutura barroca que se inspira na Bo, da Lina Bo Bardi. Aquele sofá suspenso, um ovo, feito para a Louis Vuitton. Aquela flor amarela, espécie de ninho envolvente, também para a Louis Vuitton. A sereia em pirarucu e cauda em cobre. A cadeira de peixinhos do Fernando que precisa ser restaurada. A cadeira de golfinhos pronta a seguir para Londres, ums dos best-sellers. A cadela Dora feita para a Bordalo Pinheiro.

Há um bolinho de fubá e marmelada.

Há a exposição na Galeria Luciano Brito, em Novembro.  

2.

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões. Construído sobre a estação de caminho de ferro, o Museu da Língua Portuguesa coincide com o lugar e celebra a língua como viagem, lugar de encontro, colisão, sedimentação, transformação contínua, mais partida que chegada, desde a Carta de Pero Vaz de Caminha (ou antes disso, porque se vai aos primórdios, à etimologia, à construção das línguas europeias) até à actualidade, em que se abrevia: Msg pra vc.

Mensagem para você: no museu, encontram-se os falares das línguas portuguesas.

Inaugurado em São Paulo, em 2006, ardeu poucos anos depois, reabriu há um ano.

Ouve-se Maria Bethânia a dizer um verso de Pessoa, um rapper interpreta um poema de Gregório de Matos (século XVI), Ailton Krenak, activista indígena, fala de ocupação e abuso, e não de descoberta cordial. Fala-se da fala. Da fala quotidiana, com as suas estruturas e assimilações, dos antepassados e parentes da língua. Define-se “saudade”: denota abandono, solidão causada pela ausência de algum ente querido. Desenha-se uma linha do tempo, ao longo de um corredor de 106 metros, na qual se vê a alma da língua portuguesa.

Lemos na parede:

“Não se pode dizer de língua alguma que ela é uma invenção do povo que a fala. O contrário seria mais exato; é ela que nos inventa.”

Eduardo Lourenço

“Não há uma língua portuguesa, há línguas em português. A língua portuguesa é um corpo espalhado pelo mundo.”

José Saramago

“Palavras navegam entre línguas. Viajam de boca em boca. Instalam-se nos idiomas subvertendo as línguas onde se acomodam.”

Mia Couto e José Eduardo Agualusa

3.

É urgente conhecer Bispo do Rosário, artista imenso, uma cosmogonia impressionante. Conheci-lhe o nome quando li Nise da Silveira, mas ontem vi uma exposição com o seu trabalho: inventários, amostra de tudo o que existe no mundo, elaboração sobre a memória e o significado das coisas. Bispo acreditava que era Jesus. Viveu numa colónia psiquiátrica a maior parte da vida. "Eu vim". Aparição, impregnação e impacto é o título da exposição no Itaú Cultural de SP. 

Num dos vídeos, diz assim: "Quando eu cheguei lá no Engenho de Dentro, os doentes que é bom espiritualmente me acompanha. Porque é que você me acompanha? Porque o senhor é Jesus. Mas por quê? Você escuta voz? Escuta voz dizendo que o senhor é Jesus. Pronto, é o bastante. Está mais que visto, mas só para quem enxerga.

4.

Era uma fábrica de tambores. Ao invés de derrubarem e erguerem uma torre de vidro e betão, construíram um centro de lazer e cultura, onde é possível nadar, dançar no bailinho da terceira idade, comer a preços módicos, frequentar oficinas de arte, ver exposições (por exemplo, de Sebastião Salgado), espectáculos (por exemplo, de Caetano e Cesária Évora) num palco que funciona em espelho, com plateia de um lado e de outro, ler jornais, e até não fazer nada. O Sesc Pompéia é um lugar que tem as portas abertas. Só isso já faz a diferença numa urbe babélica como São Paulo. É possível estar, estar sem fazer nada, estar sem pagar nada. Uma experiência socialista. Isto é, um lugar verdadeiramente democrático.

Convidaram uma arquitecta dedicada ao ostracismo (por causa da ditadura) que fez do lugar uma jóia radical. Lina Bo Bardi viu a estrutura de ferro, tão rara, no tecto, e optou por manter o edifício da velha fábrica de tambores. O edifício estava sofrido, explica Isa Grinspum Ferraz, mulher do arquitecto Marcelo Ferraz, braço esquerdo e direito da brava Dona Lina. Descascaram a pele danificada do prédio e descobriram coisas incríveis. Trabalharam nove anos. Lina também desenhou o mobiliário de madeira, montou um São Jorge a matar o dragão numa fachada, e ao lado plantas esguias, elegantes: as espadas de São Jorge. Não quis esconder nada. Escolheu não polir a baba do cimento entre tijolos, assumiu os cabos, as condutas, dialogou com o Pompidou, revelando o avesso do avesso. E fez dialogar a velha fábrica com um novo edifício, onde agora estão os balneários e a piscina.

O Sesc é apelidado de verdadeiro ministério da cultura brasileiro. Existe no país todo, mas o do estado de São Paulo é famoso. O seu director há mais de quarenta anos é o Prof. Danilo Miranda, sociólogo, jesuíta de formação, esse deus, sintetiza Isa. São quarenta e tantos centros, enraizados na vida da comunidade, âncoras da actividade social, cívica, cultural. O do bairro Pompéia é o mais célebre.

5.

No dia 5 de Julho de 1950, começaram a erigir a Casa de Vidro. A construção demorou um ano.

Visito a casa de Pietro e Lina Bo Bardi no dia 7 de Julho de 2022. A intervenção no edifício, por coincidência começada nesse dia, vai demorar um a dois anos.

É uma casa sustentada por colunas elegantes, princípios simples: a leveza, a permeabilidade, o diálogo entre o interior e o exterior, a obra construída e a presença da Natureza. Foi uma forma de pensar sem limites, provocando continuidades, a convivência de uma espreguiçadeira Corbusier com um armário do século do século XVI, bugigangas e óleos antigos, uma estátua de Diana e uma mesa feita de pedras brasileiras, linhas depuradas.

A paisagem que envolve a casa faz de parede, de paredes. Parece uma mata que sempre existiu, mas tudo foi plantado. As fotografias antigas mostram os dois terrenos comprados sem qualquer vegetação. Lina jogou sementes ao vento, brincou com a ideia de desordem. Porém, há troncos de árvores finos e alinhados com os pilares sobre os quais assenta a casa de vidro. A gárgula que vemos numa das extremidades deita água exactamente sobre o lago, fazendo ali uma pequena cachoeira. Dito de outro modo: tudo foi pensado. 

O que mais impressiona, subindo as escadas, é a sala imensa, de onde se avista o verde em frente. O chão é de pastilha azul, desperta a sensação de pisar um mar de cor tépida. No movel da televisão e aparelhagem, há vinis de Caymmi e García Lorca. Era também um espaço de trabalho com estantes, livros, mesas. Quase todo o mobiliário foi desenhado pela arquitecta italiana.

Nas casas de banho, predomina também a pastilha, de diferentes tons: azul marinho, azul esverdeado, tom de areia. Num dos armários, há uma repetição de frascos de perfume com cheiro a violeta.

Este foi o primeiro projecto arquictónico de Lina, aos 37 anos.

Pietro e Lina viveram aqui até à sua morte, nos anos 90. O casal não teve filhos. 

No espaço exterior, no que seria o terceiro terreno, fica o jardim, a horta, o canil, a casa das ferramentas. Ervas daninhas brotam do cimento. Há pedras coloridas incrustadas; lembra Gaudí.

A Casa de Vidro vive exclusivamente de receitas próprias, entradas e aluguer do espaço. O Daniel, que conduz visitas limitadas a grupos de 15 pessoas e sob reserva, diz que precisam de visitas. 

6.

O João Fernandes leva quase três anos de Brasil, no Instituto Moreira Salles. Rimos muito numa tarde de Outono, tirámos fotografias junto à escultura do Richard Serra, depois de um almoço em que aprendi tanto, e antes de ser levada pelas exposições de Walter Firmo e Daido Moriyama. Conhecemo-nos no Porto, cruzámo-nos em Madrid, reencontramo-nos em São Paulo. 

Carolina Maria de Jesus escreveu em Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada: “Ao entrar no elevador percebi que ele é... É maior do que o meu ex-barracão”. A frase foi reproduzida no elevador do Instituto Moreira Salles, que dedicou uma exposição a Carolina há uns meses. Bateu recordes de visitas. 

7.

A exposição de Gabriela Albergaria no MAC é a beleza esperada. A artista portuguesa intromete-se mais fundo na raiz das árvores, das plantas, do rio. É constituída essencialmente por desenho e escultura, resulta de uma viagem feita à Amazónia. Aquela árvore inteira cortada em cubos e disposta em forma decrescente: metáfora do tempo ínfimo que um dia foi o nosso, nascentes, até ao momento do crescimento adulto e maduro.

Gabriela e João Fernandes falaram no primeiro fim de semana da Bienal.

Entre a Bienal do Livro de São Paulo, encontros com antigos presidentes e a comunidade portuguesa, o presidente Marcelo visitou a mostra.

Fica no terceiro piso do museu projectado por Oscar Niemeyer. No último piso alcança-se uma das vistas mais impressionantes de São Paulo. Era sexta feira, anoitecia, as luzes dos carros bruxuleavam.

A conversa entre as várias disciplinas artísticas (arte, literatura, arquitectura...) é cada vez mais intrincada. 

Á saída do edifício, um segurança pergunta a outro segurança: tem como ver um TX para visitante?

TX: táxi.

 

Estou a acompanhar a Bienal do Livro de São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro.

Bienal do Livro de São Paulo - 4

07.07.22

1.

Rebecca tem 36 anos, vai à Bienal do Livro de São Paulo no próximo domingo. Porque é o dia de folga e porque recebe na sexta, e quer comprar um montão de livros. Vai com a filha, que também gosta de ler. O seu pai morreu quando tinha sete anos, e lembra comovida que a levava a esta feira imensa. Rebecca gosta de ler crime. Está até a ler O Crime do Padre Amaro. É vendedora num centro comercial. Ganha, depois dos impostos, 1200 reais por mês, mais comissões. Pode ganhar três e quatro mil num mês muito bom, pode ganhar 2000 mil num mês mau.

2.

Lídia Jorge entrou para o Brasil pela porta da literatura. Percebeu que havia outra sintaxe possível para o português com Jorge Amado e Graciliano Ramos. Não pensa em Portugal como países irmãos, nem países mãe e filho. Não quer que Freud se meta nesta relação porque isso nos separa. Prefere pensar em nós como países profundamente amigos. Compreende que nas discussões se acentuam os ressentimentos do passado. “Os povos têm de falar da sua dor. Até se saciarem. Vai demorar muito. Creio que é importante lavar a cara e manter a memória.

Um dia respondi num questionário Proust que queria ser um porto de mar. O que é isso? É ser barco que chega e que parte, é fazer a viagem para longe e voltar, é ser a aventura, ser toda a vida do cais, ou seja, da humanidade.”

Lídia dialogava com a escritora brasileira Socorro Acioli. Nessa manhã falara de Agustina, cujo centenário se assinala também este ano. Na carrinha, de regresso ao hotel, punha-se o sol. “A Terra é linda”, comentava embevecida.

3.

Insistem para que não use o celular na rua. Muitos furtos a pé e de bicicleta. Menos violento que o Rio. Ainda que tenha piorado um pouco com a pandemia. Pessoas dormem em tendas num jardim. Numa tenda improvisa-se um alpendre e pendura-se uma rede de pano xadrez. Muitas pessoas dormem na rua, sem cobertor ou tenda. Carolina Maria de Jesus escreveu em Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada: “Ao entrar no elevador percebi que ele é... É maior do que o meu ex-barracão”. A frase foi reproduzida no elevador do Instituto Moreira Salles, que dedicou uma exposição a Carolina há uns meses. Bateu recordes de visitas. O livro de Carolina ficou em primeiro lugar numa lista de livros que devemos ler para compreender o Brasil. 200 anos, 200 livros.  

4.

Caminho na Avenida Paulista. Na banca de jornais, vende-se Para além do bem e do mal de Nietzsche e o Cândido de Voltaire, Sófocles e Agatha Christie. Também se vendem jornais velhos para os animais fazerem as necessidades, carrinhos de brincar, óculos de baixa graduação, tralha. Numa das pontas da banca, uma bandeira mostra Lula: O Brasil feliz de novo. Na outra ponta, a cara sorridente do actual presidente e o (mesmo) slogan: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos; fechou com Bolsonaro.

Na banca seguinte vende-se artesanato em capim dourado. Pulseiras, pequenos cestos. Capim dourado vem do Tocantins. “Esse os chineses ainda não conseguiram imitar”, diz o vendedor, rindo muito.

5.

Finalmente avisto os urubus. Quando chego ao aeroporto António Carlos Jobim, começo, madrugada, por saber que estou no Rio quando vejo o sobrevoo dos urubus. Gosto deles por causa do álbum homónimo de Jobim. Em São Paulo, esta ave necrófila voava quase tão alto quanto o aviãozinho que passou logo depois. 

6.

Disseram-me que a Casa Santa Luzia era o melhor supermercado de São Paulo. Tudo caríssimo, tudo maravilhoso. Vi um Barca Velha de 2011 que custava cerca de 1500 euros. Mas o que gostei mesmo de ver foi a cocada, a bananada, a pessegada, a marmelada, a goiabada, a figada, a mangada. Há quem goste de passear em supermercado.  

7.

O empregado do pequeno almoço canta Índia de Gal Costa. Canta muitas canções. É a minha segunda vez em São Paulo e fascino-me com a dura poesia concreta das suas esquinas. Caetano canta o tempo todo na minha cabeça. Muito importante: perseguir o avesso do avesso do avesso do avesso do avesso. Continuar na sensação nada entendi. O cruzamento da Ipiranga e da Avenida São João: até agora só estive lá na imaginação, que é um bom lugar para estar. 

 

Estou a acompanhar a Bienal do Livro de São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro.

Bienal do Livro de São Paulo - 3

04.07.22

1.

Adriana Calcanhotto leu Alberto Pimenta, Ana Hatherly, Gastão Cruz, Fiama Hasse Paes Brandão, abriu com Cesariny, confessou amar o poema das rosas como bolores da Adília Lopes.

Maravilhosa leitura. Voz colocada no tom certo, voz que compreende o poema, e por vezes o sente, voz bela.

Isto foi quase o fim de festa no domingo, segundo dia da Bienal do Livro de São Paulo.  

2.

Adriana Lisboa e José Luís Peixoto, ambos Prémio José Saramago, refazem os passos do Nobel Português. O projecto Viagem a Portugal Revisited é feito pela Fundação Saramago em parceria com o Turismo de Portugal e reconstrói os roteiros percorridos pelo escritor, em 1979 e 1980. Adriana ousou visitar a Biblioteca Joanina em Coimbra. Uma subversão que Saramago, que não foi à joia da Universidade e uma das mais belas e famosas do mundo, apreciaria.

- Para quem não sabe, há uma colónia de morcegos que mora na biblioteca e cuida dos livros comendo as traças. É uma simbiose muito interessante. De noite eles saem e ganham o espaço. Gosto muito de pensar a biblioteca fechada à noite e os morcegos devorando as traças.

3.

Imaginicídio. A palavra vai sendo construída no momento em que é dita por Noemi Jaffe. O neologismo serve para dizer: “o que esse Governo está tentando fazer com a cultura”.

Esse Governo: Bolsonaro.

Noemi, escritora brasileira, doutora em literatura, dialoga com Dulce Maria Cardoso, escritora portuguesa, licenciada em Direito. A formação importa um pouco, já se vê como. A mediação é do jornalista da Folha de São Paulo Maurício Meirelles, que saiu da Cultura para a Política porque queria ler apenas pelo prazer de ler, sem ter de trabalhar sobre os livros.  

Depois do furação Marcelo que varreu a manhã e começo da tarde, as conversas voltam a operar um pequeno milagre: circunscrever um espaço, separado do real ruidoso que ecoa nas paredes do pavilhão, onde se responde à pergunta:

- Como se escapa da armadilha do real?

Este real pandémico, de guerra, fascizante, distópico, desigual, o real de um presidente negacionista que simula empunhar uma arma quando posa para as fotografias.

- Pela imaginação.

Dizem as duas. A faculdade da imaginação foi a célula a partir da qual se desenvolveu o diálogo.

No começo, Noemi disse:

- Tenho paixão pelas coisas pequenas. Até coceira no pé. Os escritores sabem que uma dor de cotovelo é real, que um elefante voando é real, e que a vida de cada pessoa é tão real quanto o que se lê nos jornais. É a isto que se dedicam os escritores.

Dulce disse:

- A ficção está na imaginação, mais do que no conhecimento. A imaginação aponta para o futuro. A realidade é o primado do eu, da verdade, aponta para o passado. Com o objecto livro podem experimentar quase todas as vidas, digo aos jovens nas escolas. O que é ser eu? Eu é ser memória. Quando ela falha, os outros deixam de nos reconhecer como aquele que somos. Identidade e Memória vêm juntos.

Conheci Noemi Jaffe na FLIP de 2017, quando li o maravilhoso livro O que os cegos estão sonhando, a partir do diário escrito pela sua mãe, sobrevivente de Auschwitz. Agora a mãe morreu, e a experiência da perda está no seu livro mais recente, Lili – Novela de um luto.

Dulce está a lançar Eliete no Brasil.

Sintonia entre as duas escritoras. No centro d’ O Retorno está a sensação de não pertencer, ser desterrada. No centro da prosa de Noemi, está o exílio; por ser filha de refugiados e sobreviventes dos campos, mulher, judia, escritora.

Muito público a assistir.

Dulce:

- Nada me disse tanto sobre memória como a Recherche de Proust. Nada me disse tanto sobre culpa como Crime e Castigo (e eu estudei Direito Penal). Nada me disse tanto sobre adultério como a Bovary de Flaubert.

Vivemos tempos de indignação e a política esteve sempre a pairar.

Noemi:

- A literatura não serve para nada e não serve a nada. Como disse a Dulce, ninguém morre por não ler um livro. Porém, ser um fim em si mesma é uma liberdade e é a sua riqueza. Errando, permitindo o acaso, as inconclusões, ela é mais livre do que outras linguagens artísticas. Se o autor não fala de política, nestes dias, isso está errado, ele está em dívida para com a sociedade. Mas a sua escrita não tem de dizer.

4.

António Prata gracejou dizendo que era e queria ser Ricardo Araújo Pereira.

António Prata citou Paulo Leminski que diz que o poema é inutensílio. Um inutensílio indispensável.

António Prata disse que o humor é o melhor lubrificante da nossa relação com a morte.

Ricardo Araújo Pereira citou a Lisístrata de Aristófanes. Também Sófocles.

Ricardo Araújo Pereira começou a sua relação com o humor quando percebeu (cedo) que não era o filho preferido dos seus pais. Pausa. E é filho único.

5.

Adriana Calcanhotto e Pedro Eiras. O professor de literatura da Universidade do Porto e poeta (a lançar o seu livro no Brasil). A embaixadora da Universidade de Coimbra e cantora e compositora. A poesia e a música, o espaço de aprendizagem e partilha na sala de aula. E a política, sempre.

Pedro Eiras:

- A aula é alguém descobrir pontos de fuga. É duvidar, é alquimia, é escrever em voz alta, é entrar como quem entra num território misterioso. Qualquer aula minha seria proibida sob o fascismo. Sou baby boomer, nasci em 1975. Mas a democracia é frágil. A extrema direita cresce. Vou continuar a dar o meu melhor e a ter alguma esperança.

Adriana Calcanhotto:

- Cecília Meireles eu ouvi no fado e, na adolescência, no Fagner. Temos encontros da alta poesia com a música popular em vários autores. Vinicius de Moraes. Gilberto Gil entrou para a Academia Brasileira de Letras. Eu revejo-me no recorte da academia de notáveis defendida por Joaquim Nabuco, mais do que na academia de escritores defendida por Machado de Assis. As melhores coisas não são a maioria das coisas. É uma distinção importante. Temos de ser vigilantes. O mais triste é que as coisas são comunicadas. O processo de deseducação foi anunciado. Vamos responder! Ou a gente deixa ou a gente reage.

 

Estou a acompanhar a Bienal do Livro de São Paulo a convite da Câmara Brasileira do Livro.

 

 

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