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Anabela Mota Ribeiro

Maria de Lourdes Modesto (a pretexto de um livro de queijos)

01.07.22

A conversa correu frente ao jardim. Fez-me acreditar que estava a ler um livro antigo. Levou-me até um tempo em que uma mulher separada no Alentejo profundo era estigmatizada. Levou-me até às verdades inconfessadas da natureza feminina – como quando diz que no fundo sempre soube que ia ser oprimida por um homem. Não teve uma relação fácil com a mãe, tem uma personalidade indómita. Tudo contado num português correctíssimo, com uma cadência de um livro de Camilo.

Os livros que lançou foram outros. Uma parte da história do Portugal recente está contida na sua Cozinha Tradicional Portuguesa. Um volume que reconstitui quem somos a partir do que comemos. Maria de Lourdes Modesto já era uma cara conhecida do grande público quando o lançou. Cozinhava na televisão. Mas talvez não se soubesse nessa altura, nem se saiba agora, quem ela verdadeiramente é.

Pelos anos fora, lançou outros livros. O mais recente está a ser lançado e é sobre queijos. De cabra, ovelha, vaca, mistura, frescos, curados, sumptuosos, cosmopolitas, discretos, rurais.

Conversámos e tomámos café. Na véspera ela tinha feito “areias”, um pequeno bolo que deve desfazer-se na boca; como se fosse areia. Eu já conhecia as areias da Maria de Lourdes: a primeira vez que a visitei, ela presenteou-me com areias, justamente! Estendeu-mas como quem estende um presente. Feito com cuidado, com emoção. Era um bom prenúncio…

 

 

Ainda tem um grande prazer em cozinhar?

Espero viver mais uns anos e cozinhar apenas por prazer – o que não aconteceu até agora. Como toda a minha vida profissional anda à volta da comida, mesmo indo com gosto para a cozinha, não consigo separar a profissional da pessoa que quer fazer uma coisa bem feita. Estou sempre atenta à temperatura do forno, a ver como é que a gordura se comporta...

 

Vamos ao princípio: as pessoas têm a ideia que a Maria de Lourdes ensinou o país a cozinhar. Mas este talento não foi uma vocação evidente para si…

Não fui um prodígio de saber estrelar um ovo com quatro ou cinco anos! Relativamente à cozinha, fui conquistada. Toda a minha vida ouvi dizer que tinha de trabalhar, tinha de estudar… A minha mãe encheu-nos a cabeça, tanto a mim como à minha irmã! Nunca nos disse: “Vocês têm de ser boas donas de casa, saber passar uma camisa a ferro, pregar os botões dos punhos dos maridos”. Os meus pais eram divorciados e fomos criadas pela minha mãe. Que devia ter muito má opinião dos homens. Tenho a impressão que nos transmitiu isso…

 

Era uma mulher de uma enorme coragem, para assumir um divórcio no Alentejo profundo de há 60 anos.

Separação, separação, não se falava em divórcio. Ficar com duas filhas e poucos meios… Havia uma certeza que a minha mãe tinha: não depender de um homem. Ter condições para, quando o casamento não resulta, quando há razões muito fortes (e havia), sobreviver e educar os filhos.

 

A sua mãe ainda é viva?

Infelizmente não. Devo dizer que o nosso relacionamento não era o melhor. Às vezes procuro momentos de afectividade por parte da minha mãe e tenho alguma dificuldade em encontrar. Por causa desta pressão. Para ser correcta, para comer bem à mesa. Lembro-me sempre das obrigações, raramente me lembro de momentos de ternura. E receio ter sido uma mãe assim.

 

Podia ter sido o contrário, num obstinado movimento de recusa…

Mas não, fui como a minha mãe. Fui de tal modo obrigada a, para obter as coisas, ter de as adquirir, ter de fazer por elas, que não fui capaz de me abstrair disso e achar normal que a juventude de hoje tenha tudo de mão beijada. Eu, com dez anos, fazia luvas com duas agulhas, o que era uma habilidade, e depois vendia-as. Hoje lamento uma coisa que fiz à minha filha: vendi um Mini que tinha, quando ela já conduzia. Achei que devia ganhar para o seu carro. E hoje tenho muita pena de não ter sido capaz de dizer: “Toma este carro”.

 

A sua mãe sentiu um especial orgulho em si e na sua carreira?

Não tenho a certeza… É capaz. Vou contar-lhe uma história: o outro dia o Dr. António Barreto quis ter uma conversa comigo por causa de um trabalho sobre a televisão e ficou numa enorme estranheza por eu não ter nada guardado do que se disse a meu respeito. Penso que isso também vem de trás: ter a obrigação de fazer, ser normal fazer, ser sobretudo normal fazer bem. Fui criada desta maneira.

 

Mas estava a dizer-me há pouco que não consegue desfazer-se dos objectos. Não consegue viver sem aquilo que também conta a sua história, mas desprende-se facilmente daquilo que celebra o seu sucesso.

Não tenho muita maneira de medir o meu sucesso. Tenho tido uma certa permanência mediática; salvo raras excepções, as pessoas estão interessadas em pôr-me lá, mas a dizer muito pouco de mim, daquilo que na realidade eu sou. Sirvo para encher um quarto de página, duas páginas… À maior parte das coisas, não atribuo especial valor. Como cá em casa não há o culto da mulher vedeta – o meu marido olha para mim como todos os maridos olham para as mulheres –, penso sempre que é passageiro. Apesar de já estar com 77 anos… Dá-me a impressão que passa, passa…

 

Tudo isto era a propósito do eventual orgulho da sua mãe no seu percurso. Mesmo na terra! Naquele tempo, não era toda a gente que aparecia na televisão…

A minha mãe era muito contida quanto aos seus sentimentos. E quando falávamos, eu dizia-lhe sempre que estar na televisão era uma coisa precária. Éramos contratados programa a programa. Só no fim da minha passagem pela televisão é que me lembro de assinar contratos para 12 ou 13 programas. Há outra coisa: tirei um pequeno curso de dois anos de educadora familiar. E era professora. A minha mãe achava isso bonito. Quando passei a trabalhar numa multi-nacional, a minha mãe achou que eu tinha… descido. Uma professora era uma profissão de prestígio. O facto de eu aparecer na televisão era para ela objecto de tensão. Tanto quanto para mim. Nunca apareci na televisão descontraidamente.

 

Porquê? As pessoas têm a imagem contrária. E o seu famoso começo, sublinhado pelo Mário Castrim, em que prova da colher e comenta: “Hum, está uma delícia”, revela uma pessoa à vontade.

A imagem não era a de uma mulher insegura, mas é capaz de não corresponder à realidade…

 

Esse é um problema de auto-estima… Vem de trás, de não se sentir suficientemente amada?

Tenho sempre dúvidas. Em relação à minha filha, aos meus netos. O meu marido tem sido extraordinário, mas até a ele lhe digo: “Não sei se gostas de mim ou se gostas da tua mulher”.

 

Explique-me melhor essa dualidade…

Fico muito contente quando as pessoas são capazes de manifestar sentimentos bons em relação a mim e eu sinto que isso é verdade. Tenho sempre a preocupação de ver se isso é verdade ou adulação. Conto-lhe uma história: fui a uma loja comprar uma carteira. Era uma carteira cara, perdi a cabeça. E quando estava a regularizar o pagamento, a empregada disse: “É tão bonita…” Eu achei que ela estava a falar da carteira. “A senhora é muito bonita”. Eu, bonita? Nunca ninguém me chamou bonita. «Não se esforce mais, que já lhe comprei a carteira». E ela respondeu: «É a mesma coisa com a minha avó: nunca acredita!». Foi nessa altura que percebi que já não era mais uma rapariga. Isto foi há dois anos. Até aí, sentia sempre que era uma rapariga; passei a considerar-me a senhora da terceira idade que sou.

 

Foi difícil para si envelhecer?

Nunca lhe direi como outras mulheres que gosto muito das rugas que tenho e dos papos! Não, eu tirava-os de boa vontade se isso não me exigisse uma operação. Mas não é nada mau estar com 77 anos…

 

A relação com a sua imagem nunca foi pacífica. A sua beleza nunca foi canónica, quer enquanto professora do Liceu Francês, quer nos tempos da televisão. Fragilizou-a, porque não acreditava em si?

Nunca gostei da minha cara. Acontece que quando vejo agora fotografias dos meus primeiros tempos de televisão, penso: “Mas que parva que fui, afinal até era gira!”. Em Portugal nunca tive muito sucesso junto dos rapazes, mas quando chegava a França (onde passava pelo menos dois meses por ano, por causa do Liceu Francês), diziam-me sempre: «Você é a rapariga do ano que vem». Era muito magra e diferente da rapariga desenxovalhada, que se usava na altura.

 

Não se sentir poderosa fisicamente fê-la concentrar-se mais no que fazia bem?

Também me concentrava a tentar ser mais bonita… Mesmo hoje, continuo a maquilhar-me, arranjar-me, tenho cuidado com a minha aparência. 

 

Façamos o filme da sua vida: viveu no Alentejo até aos 15 anos, e com essa idade veio sozinha para Lisboa estudar.

Vim para um lar da Mocidade Portuguesa. Era uma coisa de qualidade e baixo preço, e estive aí os dois anos em que tirei o curso de Professora de Educação Familiar.

 

Aprendia exactamente o quê? Lavores? Como educar os filhos?

Não, tinha muito a ver com a educação. Gostei muito de revista e de ir ao Parque Mayer, mas no meu curso íamos ao São Carlos. Isto dá-lhe uma ideia de como as coisas se passavam? Ter maneiras à mesa, ter as gavetas arrumadas. Culinária seria uma das disciplinas. Trabalhos manuais; fazíamos berços para bebés, coisas para o Dia da Mãe, roupas muito bonitas. Havia também aulas de literatura portuguesa. Não fazer má língua.

 

Não fazer má língua?!

Parecia mal. Tudo isso contava para a avaliação global da personalidade. Agora, até gosto muito de fazer um bocadinho de má língua!! [riso]. Era bom: havia pessoas que não tinham acesso a certos formalismos, necessários na vida, e que os adquiriam através dessas aulas. Aquela preparação era para transmitir. Éramos obrigadas, aliás, a exercer três anos.

 

Há pouco repetia uma coisa que diz ao seu marido: “Não sei se gostas de mim, se gostas da tua mulher”. Nesses anos aprendeu a ser uma mulher ideal!

Não quer dizer que aplicasse. Se o meu marido casou comigo pensando que eu era uma fada do lar, estava bem enganado. Eu tinha defeitos suficientemente resistentes à aprendizagem!!

 

Tem uma alma indómita! Onde se revela essa natureza? No seu gosto pela boémia?

Era namoradeira. Gostava muito de dançar. Um bocadinho irreverente. Havia um confronto em relação à minha mãe. A minha irmã aceitava piamente, e eu discutia, queria saber o porquê. Fui sempre um pouco rebelde, e continuo a ser! Durante o curso, não – sabia que ia fora. Quer dizer…, rebelava-me sem perder o controlo. Essa é uma das características da minha maneira de ser: nestes 77 anos de vida lembro-me de ter perdido o controlo umas três vezes. Mas perdi porque quis. Não se pode dizer que tenha perdido completamente. Quis mostrar que era capaz de perder o controlo. Lembro-me de uma vez me ter zangado muito cá em casa, ter pegado numa pilha de pratos e ter partido os pratos! Para se ouvir! Para as pessoas verem que estava mesmo zangada. E deu resultado. A seguir, apanhei os pratos que estavam soltos. Mas depois nunca mais parti os pratos.

 

O que isso quer dizer é que perder-se, abandonar-se à zanga, à fúria, é um pouco perder o pé… E não se permite.

Em todos os aspectos, até no afectivo, nunca perdi o controlo. Não sei o que é essa coisa do “amar perdidamente”. De ser capaz de me atirar da ponte por amor.

 

Lamenta não ter sido arrebatada por isso? Ou não ter consentida que isso acontecesse…

Desde que me conheço que vivo apaixonada. Mas o facto de me apaixonar e acabar, foi determinante para a minha sequência amorosa. A minha irmã só teve um namorado, eu nem sei quantos tive! Mas nunca fui mais longe do que aquilo que achava que era o limite. Sou extraordinariamente orgulhosa. Ir ao descalabro com alguém, teria sido muito mau para mim. Evitei sempre situações de descalabro moral.

 

A sua mãe amou perdidamente o seu pai?

Penso que sim. A minha mãe separou-se do meu pai com 26 anos, não voltou a casar e nunca voltou a gostar de mais ninguém. E quando o meu pai morreu (eu tinha 18 anos), ela disse-me: “Tive sempre esperança”… Embora parecesse muito fria. 

 

Parece que não quis, como a sua mãe, amar perdidamente e depois ficar no perigo, na tragédia de ser abandonada…

O meu pai era pessoa de quem não se falava. Conheci-o até aos meus quatro anos.

 

Teve vontade de falar com ele?

Tive, e uma vez tentei. Como achava que tinha razões de queixa da minha mãe, fiz um telefonema ao meu pai. Com muito maus resultados. E não voltei a tentar.

 

Quando é que se resolveu dentro de si essa zanga em relação aos homens, alimentada pela sua mãe e pela imagem do seu pai?

Não só. Nós somos de Beja e mudámo-nos para Évora. A minha mãe era uma mulher separada com duas filhas – um estigma enorme. Eu dizia que os meus pais eram casados e por igreja! Em Évora, nos arcos e nas esplanadas, sentavam-se latifundiários a ver passar as mulheres, a fazer comentários, a terem uma atitude opressiva. Digamos que os homens me metiam medo.

 

Medo? Como assim?

Quando tive uma depressão muito grande, quando saí da televisão, o psiquiatra dizia-me que eu tinha medo dos homens. E agora quando vejo na televisão estes casos dos homens que degolam as mulheres, digo que quem tinha razão era eu: há poucos bons! Mas sempre pensei ter como companheiro um homem. Embora o meu universo fosse feminino, nunca tive tendências lésbicas nem nada disso.

 

Não seria um homem qualquer…

Não. Mas eu sabia que ia ser subjugada. E penso que, por melhores que eles sejam, são sempre opressores. Até na voz deles sinto a opressão!

 

Mas depois a mulher não é dominadora por uma outra via?

Sim…, tento fazer o meu jogo…, tenho os meus truques.

 

O que é que procurava num homem? O que é gostou no seu marido?

Conheci o meu marido na televisão numa altura em que andavam bastantes à minha volta. O meu marido não é nem bonito nem rico e não acabou o curso de medicina – não se previa um grande futuro. Mas eu dizia que queria casar com um homem bem educado. Havia um restaurante onde almoçávamos e havia um sujeito que, houvesse o que houvesse, comia muito bem à mesa. E isso impressionou-me. Outra coisa que me levou a aproximar-me: verifiquei que ele tinha um enormíssimo sentido de humor. Não falava quase nada, mas quando dizia, dizia a frase derradeira. Achava muita graça, e continuo a achar.

 

Foi, então, a senhora que se aproximou dele.

Ah, sim, que ele não estava nada interessado na rapariga dos cozinhados.

 

Era apenas a “rapariga dos cozinhados”?

Na televisão talvez fosse. Quando ia a França, e se o meu parceiro de dança me perguntava o que é que eu fazia, respondia, muito ridiculamente: “je suis experte culinaire”! [risos] Ohh lala. Eu não sabia bem o que dizer como profissão. Tanto digo que escrevo livros de cozinha… Talvez tenha um certo complexo. O trabalho da cozinha, não sendo só manual, é muito desvalorizado. Mas ninguém morreu por saber cozinhar, as pessoas morrem é por não terem que comer.

 

Mas agora a cozinha, os restaurantes, as mercearias finas passaram a estar na moda.

Isso é porque pessoas cultas se dedicaram à cozinha. No passado, ia-se para cozinheiro, quando se vinha da província, para se ter um sítio para dormir e comer. Começavam por carregar carvão.

 

Na sua casa, o universo feminino e o masculino estão bem delimitados? Aquilo que é o seu espaço e atribuições, e aquelas que são do seu marido.

Sim, sim. Vi na televisão a Isabel Stilwell dizer que quando o botão da camisa do marido não estava lá, ela sentia uma certa culpa. Isto foi o que me ficou do programa. E responde à sua pergunta… Quando o meu marido pergunta: «O que é que um homem vai comer?», e eu não sei, porque é a minha empregada que trata disso, sinto uma certa culpa. Nunca fui capaz de responder: «Sei lá, vai lá tu ver».

 

Apesar de todas as mudanças comportamentais, que são gigantescas, persistir uma espécie de culpa primordial nas mulheres que não tratam dos seus homens…

Penso que isso acontece às mulheres que são verdadeiramente femininas.

 

Já cozinhou para a sua filha como quem oferece um presente a alguém?

Sim. A minha filha tem a sua família, e vêm sempre jantar comigo ao sábado; pergunto na sexta o que é que gostariam de comer. Às vezes faço uma surpresa. Fazer um prato por amor? De uma maneira geral, há sempre emoção, até num simples hamburger. Tenho o cuidado de fazer bem feito. É para ele. Vou fazer ao gosto dele.

 

E já aconteceu estar zangada, numa disputa doméstica, e o cozinhado não sair bem? O cozinhado a exprimir essa raiva…

Não tenho lembrança de uma situação dessas. Seria engraçado… Tenho memória, sim, de deixar queimar. De me passar e deixar queimar. Ainda não houve nenhum que se tenha revoltado!

 

Fez algum cozinhado especial para a sua mãe de que ela tivesse gostado?

Não. Talvez por estarmos longe. Lembro-me mais daquilo que ela fez para mim. Quando eu estava no Lar, aqui em São João do Estoril, nos meus anos, mandou-me um bolo de que eu gostava muito: bolo de mel e azeite do Alentejo. E mandou bolinhos pequenos. Quando cheguei das aulas as minhas colegas tinham-me comido tudo. Sei que ela fez aquilo com muito amor e não fui capaz de lhe dizer que isto tinha acontecido… Mas lembro-me, como se estivesse a ver neste momento, da maneira como ela punha as mãos a cozinhar. E da maneira como ela pesava com as mãos – praticamente não precisava de balança. Eu não tenho essa capacidade. Havia quem dissesse que eu tinha uns gestos bonitos na televisão. A minha mãe tinha uns gestos seguramente diferentes dos meus. Eram sempre uma espécie de beliscão – era como ela mexia nos alimentos.

 

Fale-me da sua relação com o pão, que considera um alimento sacralizado. Disse-me que dá um beijinho no pão antes de o deitar fora… Um gesto muito antigo, que já quase não se faz.

Mantenho essa relação com o pão. Não sei se foi por causa das dietas, passei a comer menos pão. Mas como-o todos, todos os dias. Faz-me pena o estado a que o pão chegou… Há uma grande variedade, mas não qualidade.

 

Continua a dizer que se tivesse que escolher a última refeição, seria pão alentejano?

Pão Alentejano com queijo. Adoro queijo. É um alimento tão versátil…

 

 

 Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em 2007

 

 

José Avillez

01.07.22

Quando o entrevistei, José Avillez era chefe do Tavares e acabara de receber a sua primeira estrela Michelin. Faz uma cozinha que não é portuguesa, nem internacional, nem de fusão. É uma cozinha não-rotulada que se parece com sons, cores, paisagens, emoções. Com a vida como ele a vive.

Fala-se de muita gente nas próximas páginas. O primo que achava que não se ganha nada sendo carpinteiro. A Mi que foi ama-seca dos meninos. A Laura que achou um horror que ele optasse pela cozinha (podendo optar por outra coisa). A Maria de Lourdes e o Bento dos Santos. Um tio do Brasil. Um jantar a sós com a mãe. O filho da Laura a quem saiu o Euro Milhões. A irmã que sempre se ocupou das facturas e que trabalha com ele (vai deixar de o fazer). A mulher. O psicanalista. O filho que vai nascer (no dia em que nos lêem, o mais certo é que já tenha nascido). Do mago Adrià que acha ele é um dos cem melhores do mundo, na sua geração.

Fala-se de paisagens. De Cubismo, pontos de intersecção, pratos monocromáticos. Do que se desperta no cliente. Do que é a cozinha técnico-emocional. De como o sexo e a cozinha se parecem. Do percurso de um rapaz a quem tudo aconteceu muito cedo. O sucesso, a certeza do que queria fazer, os cursos com os melhores, os estágios em que se é humilhado. Também se fala de por que é que isso é bom.

Fala-se com José Avillez e fala-se com um contador de histórias. Que pega num fio e vai atrás. Que diz que se perde, e aparentemente sim. Depois olha-se com alguma distância, e percebe-se que os fios estão ligados. Isto anda tudo ligado, já dizia o outro. Há muitas coisas que são ditas entre parêntesis, e que sabem a romance; como se fizessem a descrição mais detalhada de um personagem ou um ambiente. Tudo importa, tudo entra no retrato, na composição, no prato.

É um chefe de sucesso. Como é que ele chegou lá? Antes de saber o que ele fez, é preciso saber quem ele é. Porque a cozinha que ele faz depende de quem ele é.

Conversa às três e meia da tarde, depois de umas quantas pessoas terem comido num restaurante que agora tem uma estrela Michelin. Duas horas em que não se comeu, nem bebeu. José Avillez tinha um contentamento plácido. É muito magro, franzino. A cara continua a ser de um miúdo que vai à cozinha roubar bolachas. No caso dele, ia fazer biscoitos e tortas.

 

 

Cubismo da carne de porco”?

Já tivemos o “Cubismo do leitão”. Era uma interpretação de um dos mandamentos do Cubismo: a apresentação das várias partes da pessoa num mesmo plano. Tínhamos a cabeça, os pezinhos e o lombo colocados no mesmo plano, no prato. Neste caso, [“Cubismo da carne de porco”] tentamos que os cubos da carne de porco sejam perfeitos. Acaba por ser uma receita de carne de porco com amêijoas, mas diferente do que é habitual.

 

Há uma paisagem que é oferecida ao cliente. Começa pela denominação, e essa abre para qualquer coisa. Fale-me dessa construção.

Sinto uma intersecção da paisagem real (que tenho de memória, que avisto nesse minuto) com a paisagem interior (que é o meu estado de espírito quando avisto essa paisagem ou me lembro dela). A intersecção destas duas paisagens forma uma paisagem própria, minha, que tento transmitir num prato. Se quando estou triste a paisagem/prato sai de determinada maneira? É importante esclarecer que há dois momentos neste tipo de cozinha.

 

Criação e execução?

Sim. Na composição, o cozinheiro está a pensar ou a experimentar sabores (como o músico está com o violino ou o piano a tentar chegar a uma melodia). Na interpretação dessa composição, que é feita todos os dias, se estamos mais alegres ou mais tristes, isso não pode influenciar a cozinha. Na composição, acho que pode e deve. Chama-se a isto cozinha técnico-emocional. Quando estamos num nível técnico muito bom, quando usamos produtos de excelência, só a emoção, só a ilusão, a criação de momentos mágicos, faz com que a pessoa distinga o muito bom do excelente.

 

Há mais um ponto de intersecção…

Com o cliente.

 

Para já, vamos concentrar-nos na autoria, na composição. Aí entra quem aquela pessoa é, o mundo a que ela teve acesso? As suas experiências estéticas. As suas experiências existenciais.

Sim, sim. Desde que me lembro de ser quem sou, vou acumulando memórias, experiências, que vão moldando a minha personalidade, que se reflectem no que faço e na maneira como o faço. Na composição, todas as viagens que fiz, todos os cheiros que senti, todos os sabores que provei, todas as paisagens que vi, todos os desgostos que tive, estão presentes.

 

Como é que um desgosto, uma alegria, se reflectem na composição de um prato? Um exemplo.

Para poder explicar… Comecei a fazer há cerca de um ano psicanálise. Desde pequeno tento encontrar respostas onde se calhar não há respostas. Desde que faço, a minha criatividade na cozinha aumentou. Por causa das evocações. Porque desperta. Obriga a pensar por que é que aquilo acontece. O Picasso dizia que aos 14 anos sabia desenhar como Miguel Ângelo, mas só mais tarde aprendeu a desenhar como uma criança. O que quero dizer é que, na ausência de preconceito, as crianças são mais criativas e livres. No outro dia, lembrei-me de uma conversa que tive com um primo meu, quando tinha seis anos. Em frente a uma gaiola, grande, cheia de pássaros, no jardim. Ele perguntou-me: “O que é que você quer ser quando for grande?”. “Carpinteiro”.

 

Carpinteiro?

Adorava um canivete suíço que me tinham dado; fazia construções em madeiras, barcos a partir de cascas de árvores, coisas assim. “Carpinteiro? Não se ganha nada! Você tem de ser arquitecto ou advogado”. Decidi que iria ser arquitecto a partir dessa conversa. Arranco para a Universidade de Arquitectura para me inscrever e no meio do caminho vou para outro sítio.

 

Marketing.

Comunicação empresarial, mais propriamente. (A minha mãe achou que eu tinha endoidecido. Mais tarde, achou que eu tinha endoidecido mais ainda quando lhe disse que ia ser cozinheiro.) O prazer que eu tirava dessas construções de madeira, tiro agora da composição e interpretação dos pratos.

 

Nessa altura, apesar de ser muito guloso, nada indicava que pudesse ser cozinheiro.

Nada. Tudo indicava que ia fazer alguma coisa no mundo das artes. (Há quem considere, hoje, a cozinha uma arte. Não me pronuncio. Costumo dizer que sou cozinheiro, não sou artista). Era muito criativo. Não fui criança até tarde. O meu pai morreu quando eu tinha sete anos. Fiquei a viver com a minha mãe e a minha irmã. Vesti completamente a camisola de homem da casa. Vivíamos numa casa antiga em Cascais; uma noite, senti a porta a abrir, um barulho, pensei que era um ladrão; peguei numa caçadeira, um cartuxo, dei um tiro. Quase caí de costas! [riso]

 

Quem é que o consciencializou de que tinha de ser o homem da casa?

Ninguém. Aos 12, 13 anos jogava râguebi, andava nos escuteiros, e achava os outros mais putos do que eu, infantis. Mesmo nos relacionamentos amorosos, senti-me sempre atraído por mulheres mais velhas. Cresci muito depressa. Esse lado infantil, criativo: nas classificações da escola, percebemos que o perdi por altura da morte do meu pai.

 

O desejo de fazer psicanálise tem a ver com uma procura da criança que ficou lá atrás, e dessa criatividade à solta que as crianças têm?

É possível. Sou descontente por natureza. Não é um descontentamento negativista. É um descontentamento de insatisfação. Por exemplo: acabámos de ganhar a estrela Michelin, e não penso que a ganhámos; penso que quero ganhar a segunda. Tenho uma ansiedade gigante de fazer sempre mais.

 

De qualquer modo, tudo lhe acontece cedo.

Este foi um ano em que tudo aconteceu. Fiz 30 anos, fui distinguido pela academia portuguesa como chefe do ano, ganhámos o [prémio de] restaurante do ano, comprei casa, fiquei noivo, vou ter um filho daqui a cinco dias, ganhámos uma estrela Michelin, morreu o meu avô e a minha avó com quem tinha uma relação muito próxima. (Adoravam-se, eram o grande exemplo do que é o amor que tive na vida; morreram com oito meses de diferença).

 

É por acaso que acontece tudo na mesma altura? Ou está a chegar a uma fase em que, o que preparou, começa a florescer?

Começam a florescer coisas nas quais tenho investido. Tenho um amigo que diz que só no dicionário a sorte vem antes do trabalho. Para manter um casamento é preciso trabalho, para ser alguém na vida (profissionalmente) é preciso trabalho. Passos errados que dei transformaram-se em passos certos.

 

Como é que aconteceu o passo de vir para o Tavares?

Não estou aqui nem há dois anos. Quinze dias antes de ter sido convidado, passei à porta e espreitei cá para dentro; nessa noite sonhei que tinha sido convidado. Comentei com a minha namorada: “Se calhar, um dia”.

 

Porque é que era um sonho ser chefe do Tavares?

Foi literalmente um sonho a dormir. Tinha vindo aqui uma vez, apenas, no período do Joaquim Figueiredo. De resto, era uma referência, um nome. O meu tio-avô ganhou o segundo prémio da lotaria, há 80 anos, e o prémio que o cauteleiro quis foi um jantar no Tavares Rico. Ouvia o meu avô contar esta história, mas não tinha uma proximidade com o restaurante. Não tive o percurso de vir cá pelo Natal e pela Páscoa, com os pais, durante 20 anos. O Tavares impressionava-me pelo que estes espelhos guardam, pelas histórias do passado, a talha dourada, pelo que já se viveu aqui dentro.

 

Quis imediatamente? Hesitou?

A Sofia, minha mulher, minha noiva, deu-me muita força para aceitar este desafio. Outras pessoas disseram-me: “Não vás. Aquilo é um triturador de chefes”. O José Bento dos Santos e a Maria de Lourdes [Modesto] deram-me muito apoio, também. Eu arrisquei. Consciente. Com algum medo. Felizmente as coisas estão a correr bem. Recebi agora mais de 500 mensagens no Facebook por causa da estrela [Michelin]. “É o culminar…”. Culminar? Isto para mim está no princípio.

 

Esta entrevista está a acontecer um dia depois de ter sido tornado público que conquistaram uma estrela Michelin. Como é que foi o ambiente na cozinha depois do anúncio?

Soubemos anteontem às onze da noite. Ligaram-me de Madrid a dizer. Confesso que estava com o telemóvel no bolso, à espera. Sabia que ia acontecer o telefonema, mas podia ser para dizer que não tinha ganho. Deixei tocar cinco vezes antes de atender… “Ganhámos ou não?”. E o Duarte Galvão do outro lado: “O quê? Ganharam, sim!”. “Boa”. “Só diz isso?”. “Estou muito satisfeito”. Não gritei, não fiz nada. Tinha ido ao escritório atender o telefonema, voltei à cozinha, dei os parabéns e agradeci às pessoas que estão a trabalhar comigo. Fomos todos beber uma garrafa de vinho aqui ao lado. No restaurante, abrimos uma garrafa para os clientes e comunicámos que tínhamos acabado de receber a estrela Michelin. No dia seguinte, a minha ideia era: “Vamos trabalhar para a segunda [estrela]”. É o que me vem de dentro, não é só falar. “Isto está feito, agora vamos para outra”.

 

É isso ou é o medo de se agarrar a coisas boas, e que elas não persistam?

Hum… Ligaram-me colegas, alguns que têm estrela Michelin. Disseram-me: “Agora é a parte difícil: segurar a estrela”. Eu penso: “Mal de mim se não a agarrar. Eu quero é outra”. 

 

Isso é atitude ou convicção íntima?

É uma convicção íntima. Atitude para não me deixar desmoralizar, era aquela que eu tinha dois ou três dias antes: “Se não for este ano, é para o ano”. Mas intimamente ia ficar chateado se não a recebesse. Acabo por viver muito pouco o presente. Para mim é o correr, é o ir para a frente. Foi também isso que me fez ir para a psicanálise. Na minha curta carreira recebi cinco ou seis distinções (não gosto de falar de prémios). No dia a seguir ficam só no currículo. São quase esquecidas.

 

A quem é que telefonou? Com quem é que partilhou a notícia?

Liguei à minha namorada. Ao Paulo Salvador que trabalha comigo há cinco anos, é o meu braço direito. Telefonei à minha irmã que estava com a minha mãe. A minha mãe não sabia sequer que eu estava à espera de ganhar. Mantive isso para mim, para não criar expectativas. Liguei a um primo, à minha madrinha, e a dois ou três amigos. Liguei ainda a um tio que vive no Brasil e que substituiu um pouco, e nalgumas coisas, o meu pai. Irmão da mãe.

 

Avillez é do pai ou da mãe?

Da mãe. Eu sou Ereira. Tenho 20 primos direitos Avillezes. No râguebi, nos escuteiros, nem me tratavam por Zé. Era o Avillez. Fiquei o Avillez. Agora, o meu filho vai nascer e vou ressuscitar um José Ereira. Do lado do meu pai morreu toda a gente. Os tios, os avós; só tenho dois primos direitos. Então, o meu filho vai ser Zézinho Ereira.

 

Peguemos na conversa com a sua mãe. A partir de que momento ela se resignou à sua escolha, e a apreciou? Era preciso vencer, perante a família e socialmente, o estereótipo do menino-família que quer ser cozinheiro.

Foi rápido. Não a resignação – que é depreciativo – mas o convencimento. A minha mãe convenceu-se de que, se era aquilo que eu queria… Antes mesmo de eu ter sucesso. O meu sucesso: tive sucesso demais antes de o merecer.

 

Teve medo de ser um epifenómeno? Não só que olhassem para si dessa maneira, mas também de o ser. Aos 24 anos já era apontado como chefe do ano…

Não sei se tive medo de ser um epifenómeno. Tive medo que os passos que dava fossem maiores do que a perna, e que a perna de trás não acompanhasse. Já cheguei onde cheguei. Por causa desse medo, também, que me fez correr. Mudei muito, muito. Com o trabalho. Há alturas da minha vida que apaguei. Não por terem sido más, mas porque o nível de trabalho era tão intenso, a absorção era tão grande, que não me lembro do que se passava à volta. Eu andava na lua a tentar chegar onde as pessoas achavam que eu já estava.

 

Estava a contar da satisfação da sua mãe anterior ao seu sucesso.

Percebo que existam preconceitos, medos. A minha mãe ficou contente por eu ter acabado o curso, apesar de ter decidido no último ano que ia tentar ser cozinheiro. Acabei-o por causa das palavras de um professor de matemática: “Tudo o que se começa, acaba-se”. Fiz uma tese sobre gastronomia portuguesa. A Maria de Lourdes Modesto foi minha patrona.

 

Como é que conheceu a Maria de Lourdes? Ela e o José Bento dos Santos são os seus padrinhos. Foram também eles que, desde muito cedo, disseram que é talentoso.

Conheci a Maria de Lourdes através de um tio-avô. Outro tio, o tal que vive no Brasil, organizou um livro com ela, o “Comer e Beber com Eça de Queirós”. Na sequência de um curso de vinhos que fiz (para aprender sobre a maridagem dos vinhos com a comida…

 

“Maridagem” de marido? Encontrar um marido?

Sim, um marido ou uma mulher para a comida). Na sequência desse curso, pedi ao meu tio que pedisse à Maria de Lourdes para me receber. Apareci com um enorme ramo de flores. “Só o recebo porque é sobrinho do Francisco, de quem gosto muito”. Pôs-me logo no lugar. Muito obrigado. Ela escreveu no prefácio de um livro meu que estava à espera de encontrar um mau aluno, que tinha chumbado a matemática, sem sítio para ir, que tinha encontrado na cozinha um porto de abrigo; e que se tinha enganado. Eu disse-lhe a medo: “Já pensei em ser chefe de cozinha”. Os olhos dela brilharam tanto…

 

O que é que isso provocou em si?

Se calhar, não era um pensamento assim tão parvo! Se eu dissesse aquilo em minha casa… A Laura, que foi trabalhar para o meu avô com 20 anos e esteve lá até aos 75, quando soube que eu ia ser cozinheiro, disse: “Que vida miserável! Estudou, podia escolher outra coisa”. A Laura não estudou. Uma pessoa fascinante. Foi um dia à escola, apenas. Aprendeu a ler sozinha porque queria ler a História de Portugal!

 

Alguma vez cozinhou para a Laura?

É uma grande pergunta… Infelizmente, não. Coisa espectacular: o filho dela, que era varredor da câmara, ganhou o Euro Milhões! Era afilhado do meu pai. Desde que me lembro dele, gastava todo o dinheiro a jogar na lotaria, totoloto, totobola. “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. Sempre muito amigo da mãe. Há seis meses, ganhou 500 mil euros ou coisa assim. Estou a perder-me muito…

 

O que importa é saber se essa divagação é um traço que aparece naquilo que faz. É um contador de histórias. Também na comida?

Está tudo, tudo relacionado.

 

Contar essas histórias revela também a sua atenção para o que se passa ao lado. Podia não reparar.

Tenho uma grande sensibilidade. Tudo me marca. Guardo marcas de tudo o que me aconteceu.

 

Trata-se, essencialmente, de memória? Evocação da memória, recriação da memória?

Não sei se é só memória. É uma memória muito sentimental. Há um lado muito emocional que está ligado a tudo isto.

 

Era a Laura que fazia o arroz branco com ovos mexidos que comia com uma espátula?

Não. Essa era a Mi. A Emília foi cedo lá para casa; foi uma espécie de ama-seca do meu pai e da minha tia e depois foi nossa ama, também. Se tivesse que escolher as quatro pessoas que eu mais amava na vida, uma delas era a Mi. Morreu quando eu tinha 13, 14 anos. Comer os ovos mexidos com uma colher de madeira era o nosso auge gastronómico – meu e da minha irmã. E fazia um arroz de frango… embrulhava o tacho em papel de jornal.

 

E para a sua mãe, cozinhou? Como quem dá um presente.

Cozinhei nos restaurantes onde estive e muitas vezes era eu que fazia o jantar lá em casa. Cozinhar como quem dá um presente, cozinhei poucas vezes. Lembro-me de uma vez em que fiz uma coisa muito simples: uma carne de porco com batatas salteadas. Mas em termos sentimentais, tanto para mim, como para a minha mãe, foi importante. Comemos só os dois, em casa. Por nenhum motivo especial.

 

Porque é que foi memorável? Pela conversa? Porque estava especialmente bom? Pela intimidade do momento?

Por eu ter dado à minha mãe o que ela merecia há muito tempo, e que eu nunca tinha feito. Um gesto meu. Perder tempo, ganhando tempo, cozinhando de propósito para a minha mãe e para mim. É uma mulher de armas. Foi mãe e pai durante anos. 

 

Tudo se passa muito em família. Soube que, em pequeno, se metia com a sua irmã na cozinha e faziam biscoitos para vender aos tios.

E tortas. Mais tortas. Era para ganhar dinheiro. Fazíamos também ramos de flores que vendíamos aos vizinhos. Fui investigar ao supermercado: a torta Dan Cake custava 400 escudos. Nós vendíamos as nossas por 420 – como eram caseiras, eu achava que tinham mais valor e vendia um bocadinho mais caro. Era tudo a olho. Nem sei como é que as conseguia fazer! Punha tudo na batedeira, recheava com compotas Casa de Mateus, enrolava com um pano, aparava as pontas; comíamos as pontas, e vendíamos à família. Era um negócio perfeito! A minha mãe pagava os ingredientes, o consumo de gás e electricidade, e nós recebíamos o dinheiro limpo. Até passávamos umas facturas (que não eram facturas)…

 

Conte a história.

A quinta da Bicuda em Cascais era nossa. O meu trisavô José Nunes veio de uma terra chamada Ereira. José Nunes da Ereira, José Nunes Ereira, ficámos todos Ereira. Comprou uma quinta em Cascais, que foi durante anos a única quinta auto-suficiente de Portugal inteiro. Fazia-se vinho, manteiga, pão. Ao domingo, abriam a casa a trabalhadores, a quem morasse perto, para comer Cozido à Portuguesa. A quinta vendia gado, queijo, tudo. Havia umas facturas antigas da quinta, que usávamos, a minha irmã e eu, na venda das tortas. Eu cozinhava e a minha irmã tratava da parte das facturas.

 

Ou seja, passaram a fazer mais tarde o que faziam em crianças, quando brincavam.

Exactamente. Entretínhamo-nos muito. Éramos muito, muito unidos. Tenho menos um ano e meio do que a minha irmã. Quando nasci, ela, muito despachada, contou que eu tinha sangue no braço – é o meu sinal que tenho por todo o braço. A primeira vez que nos separámos, ao cabo de seis horas, ficámos os dois cheios de febre.

 

Já falou várias vezes na sua namorada, noiva, mulher. Esse era outro estereótipo que tinha de quebrar?, o de que os cozinheiros, como os cabeleireiros, como os costureiros, são homossexuais.

Nunca foi uma questão. Nunca tive de provar nada a ninguém. Nunca foi a minha tendência. Gosto muito de mulheres! Penso que ter vivido tantos anos da minha vida com duas mulheres me terá apurado a sensibilidade.

 

A sua cozinha é mais feminina? Para agradar homens?

Pelo contrário. É talvez uma cozinha para agradar mais às mulheres. É uma cozinha subtil, com muita harmonia. Num casal, normalmente a mulher fica mais fascinada com a minha cozinha do que o homem. Se são artistas, um arquitecto, um pintor, gostam muito, comparam com trabalhos seus, falam nos processos criativos.

 

“Os homens prendem-se pelo bico”. Conhece o ditado? Concorda? Prendeu também as suas mulheres (ou seja, seduziu-as) pelo bico?

Algumas. Conheço o ditado. Quando comecei a namorar com a minha mulher, há dois anos e meio, as amigas diziam: “Que sorte, agora vais comer lindamente!”. Tinha esperança que fosse cozinhar muito para ela. Não cozinho. Porque trabalho seis dias por semana. Quando estou em casa, não me apetece nada cozinhar. Apetece-me comer uma sopa ou uma sandwich. Casa de ferreiro, espeto de pau. Mas sim, há um fascínio. As mulheres gostam da sensualidade da cozinha.

 

Outro estereótipo: o da sensualidade da cozinha, o lado quente das mulheres que estão na cozinha.

A cozinha está muito próxima do sexo. O prazer que se tira do cozinhar e do comer está muito próximo do sexo. Porque é uma coisa que apela a todos os sentidos. Daí vem a sensualidade da cozinha. Depois há pessoas que querem lá saber disto tudo! [risos]

 

Do seu menu no Tavares, faz parte uma ostra crocante...

É a contradição da frescura da ostra, com o sabor a mar, com a secura do deserto. Comparo muito os sabores a cores e a sons. Um sabor suave é um amarelo ou azul claro. O sabor da ostra é comparável a um som agudo. É um mergulho no mar e a cor é azul. O que é que nos falta? Gordura. Obviamente se for em excesso, destrói o sabor. Mas a gordura qb promove o sabor e faz com que a pessoa fique mais tempo com esse sabor.     

 

De onde é que lhe aparecem estas coisas?

Neste caso, começa com uma viagem que fiz à Patagónia. Tinham descoberto umas ostras petrificadas, no deserto. Comecei a imaginar o que seria uma ostra petrificada, e a miragem que isso seria num deserto. A ostra, e a sua frescura, simbolizam o oásis.

 

Ducasse e Adrià são dois dos grandes chefes com quem estagiou. (Adrià apontou agora o seu nome como um dos cem mais interessantes da sua geração). Presta-se provas?, como é que se vai?

No caso do Ducasse, é pagar e ir. Foi um curso. Mil e 500 euros em dois dias, coisa assim. Os [cursos] que fiz com o Ducasse foram oferecidos pelo Bento dos Santos, na altura em que trabalhava com ele. Com o Adrià não se paga. Concorre-se, manda-se currículo. A primeira vez não consegui entrar, tentei novamente no ano seguinte. Ajudou ter um amigo em comum, que fez a ponte. Só tinha estado lá um português, que ao cabo de uma semana veio embora. Ele tinha interesse em ter um português.

 

Porquê?

Quer ter pessoas dos quatro cantos do mundo. Israelitas, mexicanos, argentinos, italianos, franceses… Há sempre influências que vai buscar. “Como é que vocês servem isto?” A mim perguntou-me sobre um fruto brasileiro e sobre o que é que ligava bem com as castanhas.

 

O que é que se aprende, verdadeiramente, num estágio com um chefe como Adrià?

Os três meses que passei no El Buli mudaram radicalmente a minha vida. Foi em 2007. Aprendi a ver mais além. Se me põem uma pêra à frente, vejo a pêra, a pereira, a terra onde essa pereira está plantada, vejo os caroços da pêra, a pele da pêra, a pêra em formação, a flor da pereira… É um mundo.

 

Como é que se aprende a olhar mais além? O que é que tem o Adrià para despertar isso?

É a paixão com que faz tudo. Antes de ir, tinham-me dito: “Vais estar fechado numa sala a arranjar espinafres, a descascar ervilhas”. Pois no meu primeiro dia estava a empratar, no meio de 50 estagiários, como se estivesse lá há seis meses! A paixão com que o Adrià falava das coisas… Ele não fala muito connosco. Estas perguntas que me fez representam duas das seis vezes que falou comigo em três meses. O que tive de fazer no El Buli foi estar atento. Nem sempre é fácil aceitar que nos mandem lavar as casas de banho e a loiça, o que também fazíamos, e achar que estamos a aprender. Mas aprende-se, e muito.

 

Aprende-se a ser humilde?

Sim. Eu estava habituado a chefiar há algum tempo, a não ter ninguém a dar-me ordens; e de repente, passamos cá para baixo e somos muito pequeninos. Mas estamos a aprender com o melhor do mundo, e subimos lá acima quando nos faz uma pergunta. Ainda hoje, e se calhar toda a vida, estou, estarei, a digerir coisas que lá passei.

 

Que outros momentos da sua aprendizagem destacaria?

A Fortaleza do Guincho, onde estive seis meses, foi muito importante. Por ser o primeiro estágio e porque entrei logo numa cozinha de excelência. O meu coração disparou! Tive a certeza de que era aquilo que eu queria fazer. Estive três meses a pelar tomate e a depenar patos. Passei lá momentos difíceis, de humilhação, mas pensava: “Estou aqui para aprender, não vou ceder”. Chamam-nos nomes, dizem que está uma grande porcaria, que é preciso fazer outra vez, e nós achamos que fizemos aquilo lindamente… Marcou-me também um estágio que fiz no Le Bristol em Paris, que tem três estrelas Michelin (na altura tinha duas). E a experiência com o José Bento dos Santos foi decisiva.

 

A parte esses cursos, com quem é que aprendeu a cozinhar?

Ainda sou muito auto-didacta. Mas tive uma coisa muito importante, com o Bento dos Santos e em minha casa: saber o que é uma boa comida. Enquanto não comer um bom bacalhau à Brás, não vou conseguir fazer um bom bacalhau à Brás. Hoje consigo dizer, à primeira, que aquilo que comi há uns meses é um grande ensopado de enguias. Porque confio no meu paladar. Mas durante a formação é essencial esse acesso. Provei os melhores vinhos do mundo com o José Bento dos Santos.

 

Porque é que ele é tão generoso consigo? Porque é que lhe proporciona tudo isto?

Ganhámos uma grande amizade. Ele viu em mim uma pessoa com grande vontade de aprender. Antes da amizade, havia um respeito enorme por ele. Como meu professor e meu patrão. Vou dever-lhe para sempre isto.

 

Como apresentaria em duas linhas quem é e a identidade da sua cozinha? Confundem-se?

Tenho uma grande dificuldade em rotular. O rótulo limita. Isto é cozinha portuguesa, esta é de fusão, esta é internacional… Há dois tipos de cozinha: a boa e a má. O que é que eu sou? [risos] Sou obstinado, perfeccionista. Um tio meu dizia à minha mãe, quando comecei a ter sucesso: “Sempre soube que ele ia ser alguém”. Lembrava-se de mim na piscina, aos três anos; eu não sabia nadar, ia ao fundo, mas a seguir atirava-me outra vez. A cozinha que faço é generosa, ambiciosa, procura sempre a constante evolução. E é o que sou, também. Sou muito trabalhador. Faço muitos sacrifícios. Há pessoas que vêm ter comigo, cozinheiros jovens. Vêem-me nas revistas, na televisão, vêem o glamour. Aviso-os que se trabalha 16 horas por dia, seis, sete dias por semana… Oitenta por cento vão-se embora e não vêm à segunda entrevista.

 

E paladar, é preciso ser especialmente dotado?

Não se pode ser cozinheiro sem ter memória do paladar. Eu tenho. Fecho os olhos e imagino três pratos diferentes com uma margem de erro de 10%. Sei ao que sabe a casca da tangerina ralada, o funcho com um bocadinho de caril (não pode levar sal, senão o anisado perde força…), sei ao que sabem as diferentes ostras.

 

É uma composição. Sabe ao que sabem como Beethoven sabia compor surdo?

Sim. Há um grande chefe a quem detectaram um cancro na língua. Ao menos tem a memória do paladar. Mas nunca é a mesma coisa. Perde-se o momento orgásmico de provar a obra feita.

 

Vai fazer um prato especial, para si e para a sua mulher, de celebração pelo nascimento do vosso filho?

Não pensei nisso. Se calhar farei pratos que ele me vai inspirar. Se calhar vou ter contacto com produtos, com o Jardim Zoológico e a Feira Popular, que vão inspirar coisas na cozinha. Algodão doce, maças caramelizadas… Mas nenhum prato é suficientemente bom para celebrar o nascimento de um filho, nenhum prato chegará à altura dessa felicidade.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Dezembro de 2009