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Anabela Mota Ribeiro

A casa de Frida e Diego

18.08.22

Viva Frida!, viva a pintora mexicana, que viveu um período de efervescência cultural e política. Viva Diego, o muralista famoso, o amante que lhe provocava o tumulto e a devolvia inteira (para usar palavras de Frida). Viveram numa famosa casa azul, em Coyoacán. Uma casa museu que permite conhecer a vida de Frida, a de Rivera, a dos dois.

É uma casa mexicaníssima. Talvez não o fosse quando foi habitada pelos pais de Frida e a sua história se resumia a uma casa térrea de paredes brancas. Há uma fotografia que a mostra assim, nessas primeiras décadas do século XX. Uma fotografia a preto e branco onde tudo parece pálido. Sobretudo porque agora submergimos num azul profundo, de um pigmento puro. Lá chamam-lhe azul anil.

Foi Diego que a pintou desta cor magnética. Não é só não conseguir deixar de olhar quando estamos lá. Aquele azul vem à ideia quando pensamos nisso, já noutra latitude. Uma cor não é uma coisa menor – nunca. E aquela era uma casa de artistas.

Uma definição aproximada: dizer que é um azul cobalto. Azul profundo, que já usei, sugere um mergulho. Instala-nos noutra temperatura, numa essencialidade que nada tem que ver com a vida da rua. A rua Londres que cruza com a Ignacio Allende.

Foi nessa casa que Frida Kahlo nasceu. Estava hipotecada quando a pintora se mudou com Diego Rivera para lá. Os pais de Frida haviam sido obrigados a esta operação para fazer face às avultadas despesas médicas da filha.

O tremendo acidente de Frida foi tão tremendo que virou lendário. Ela era uma menina que seguia num autocarro e acabou com uma perfuração pélvica e a coluna partida em três. Em Setembro de 1925. Uma parte dela ficou incapacitada para o resto da vida. A impossibilidade de gerar filhos resultava daqui. A dor lancinante, também. Há um desenho, por exemplo, que parece um esboço de anatomia, cravado de setas. Frida desenhou-o para falar dos pontos do corpo em sofrimento. Um mapa triste, repleto de linhas que se cruzam.

Ademais, tinha poliomielite desde criança. O corpo não era um aliado. Foi notável o modo como o superou, como se inventou. Tem-se uma ideia rigorosa disso quando se vê uma página do diário, escrita e desenhada logo depois de lhe amputarem uma perna. Diz assim: “Piés para qué los quiero, si tengo alas pa´volar”, 1954. Asas para voar... O limite?, o que seria? Asas para voar...

Morreria nesse ano.  

Portanto a casa estava hipotecada. A primeira coisa que Diego fez foi reverter o processo, a dívida, comprar a casa. Os pais de Frida eram vivos e continuaram a viver ali. Mas aquela passou a ser a casa deles. Passou a ser a casa azul.

Hoje há uma parede transformada em pequeno altar, abençoado por deuses aztecas, altar onde se lê: “Frida y Diego vivieron en esta casa – 1929-1954”.

A casa azul fica num bairro do tamanho de uma pequena cidade na imensa Ciudad de México. Coyoacán é uma zona plana, gizada com régua, copas de árvores a tocar nos telhados. A burguesia vive confortavelmente neste perímetro, algo silencioso e discreto se comparado com o carácter sempre excessivo da capital. É o tipo de lugar que tem um coreto na praça principal. As fachadas das casas são muitas vezes intensas, de cores de Frida. Há uma harmonia que é manifesta, a pairar.  

É a casa-mundo de uma pessoa que não cabe no mundo e que, por isso, inventa um à sua medida. O processo de criação de si parece mais involuntário que voluntário. Em qualquer caso, é consciente. Era preciso sobreviver ao que a martirizava e estreitar o canal de comunicação com a vida. Era preciso afirmar a vida. Não esquecer nunca que o último quadro de Frida é uma natureza morta suculenta, de uma frescura que apetece, melancia cortada em pedaços. Tão simples como um dia de Verão. Pintado por uma mulher em agonia que deixa a inscrição “Viva la Vida!”. Como recado último. Apesar dos desenhos de cactos, fetos, corações que sangram, vida que está seca ou a deixar de ser que abundam na sua obra e de que há imensos vestígios nesta casa.

Singular é uma palavra que vai bem com Frida. Embora não chegue. Nem o superlativo singularíssima chega. Frida era singularíssima, pessoa inteira, maior do que o sofrimento. Tudo nela é uma epopeia. A começar no amor com Diego. “Es Diego nombre de amor”, disse ela. Epopeia no dicionário: poema de longo fôlego acerca de assunto grandioso e heróico. Diego para ela, dito como quem escreve uma carta de amor: “Colectiva e individual é a arte de Frida. Realismo tão monumental que no seu espaço todo possui inúmeras dimensões; em consequência, pinta ao mesmo tempo o exterior, o interior e o fundo de si mesma e do mundo”.

A relação foi conflituosa, tortuosa, todos os adjectivos desta família. E de outra: iluminante, instigadora. O que se vê na casa é uma fénix que renasce. Lá está Frida, transmutada em heroína que sobrevive ao acidente, politizada até à medula, amante. Ave fabulosa, emplumada de tonalidades raras, híbrido de dia e noite, alegria e morte, homem e mulher, folclore e Surrealismo. Frida e Diego.

E lá está Diego, homem imenso que a mãe de Frida comparava a um elefante (a filha, por oposição, era uma pomba). Vinte anos mais velho. A força vulcânica que teima: porque é que um mexicano não pode ser um grande artista? Um grande tão grande quanto os grandes que confluíam em Paris, onde Diego também esteve, anos a aprender, a discutir, a pintar primeiro imagens inócuas, e depois temas que incendeiam, a política. Regressou ao México depois da revolução zapatista para perguntar, justamente depois da revolução: “O que é ser mexicano?”. A sua obra é uma resposta a esta questão complexa, nunca completamente satisfeita. O ser mexicano é ser povo, é lutar pelo povo, é estar do lado desses. (Num documentário, a primeira mulher de Diego, mãe da sua filha, diz assim: “A única coisa que admirava em Diego era o amor que sentia pelo povo. E mais nada”.)  

É o povo que aparece nos murais, no México, nos Estados Unidos. O povo e quem o guia. Caso do famoso mural que foi destruído por causa da aparição de Lenine. Há limites – pensou Rockefeller – que contratava. Não há, não – pensava Rivera, o artista que reivindica liberdade ilimitada no acto de criação. Acabou destruído, o mural.

Ser mexicano é coleccionar adereços da vida simples de todos os dias. Uma taça pintada com singeleza. Diabolitos (esqueletos que simbolizam Judas e que hão-de ser queimados no Dia dos Mortos) nas paredes. Máscaras, estátuas, artefactos pré-colombianos. (No mesmo documentário, conta-se que num dia de tempestade conjugal, a primeira mulher de Diego partiu em cacos certas peças de arte pré-colombiana e as serviu no prato, no lugar da sopa. Aquele era o jantar. Para doer.)

Frida, que apareceu mais tarde, fez com ele esta revolução, ergueu a bandeira. Pintou a foice e o martelo no corset que usava para segurar a coluna, em inúmeras telas, pintou retratos de Marx, Estaline, todos os inspiradores. A luta era pelo povo.

A casa de Frida e Diego era um lugar de tumultos, constelação de pessoas bizarras, de estrelas, espécie de panteão privado, também de pessoas vivas. Toda a gente desaguava na casa azul. Trotsky que ali viveu meses. André Breton de passagem (disse dela: “Candura e insolência, crueldade e humor”). A pintora Georgia O’Keeffe e a fotógrafa Tina Modotti, com quem Frida teve romances (manda o bom senso botar “alegadamente teve romances”, ainda que a informação circule por tudo quanto é sítio). O cineasta russo Eisenstein, os fotógrafos Edward Weston ou Álvarez Bravo, o revolucionário Pancho Villa.  

Naquela casa de jantar, enorme, de chão amarelo e figuras pré-colombianas nas estantes, estava sempre alguém. Não há memória de terem jantado sozinhos. A mesa fez-se para os amigos e para a discussão. Eram os anos 40, era urgente mudar o mundo.

Pensemos ainda no panteão privado de Frida. Quem faz parte? Na tela «Moisés» (1945), estão Nefertiti, Lenine, deuses aztecas, Freud, Alexandre, Buda, deuses egípcios, Apolo, Cristo, e, em especial, o Sol, centro de todas as religiões e criador da vida.

O milagre em Frida era a maneira como fazia dialogar estes e os anónimos, ligando-os numa genealogia que só ela saberia estabelecer.

Ela mesma tinha uma genealogia incomum, filha da velha Europa e de um México a reinventar-se. A melhor apresentação está num quadro que Frida pintou e que se encontra, em jeito de legenda, numa das primeiras salas da casa: “Pintei o meu papá Wilhelm Kahlo de origem húngara-alemã, artista, fotógrafo de profissão. De carácter generoso e inteligente e fino e valente, porque padeceu durante 60 anos de epilepsia. Mas nunca deixou de trabalhar. E lutou contra Hitler. Com adoração, a sua filha Frida Kahlo”.

A mãe tinha a cor tisnada das mexicanas que crescem ao sol, a pilosidade abundante que Frida, não só herdou, como cultivou e transformou em estilo. Num álbum de família surge vestida de tehuana, ataviada de folclore e anos de história popular. Anos mais tarde, Frida pintar-se-á assim. Mas na mãe a tehuana era uma aparição única para a fotografia. Em Frida, o estilo tehuano era uma exaltação do que era povo e raízes. Era uma forma de agradar a Diego, era uma forma de esconder as mazelas do corpo, era sobretudo um gesto político.

A casa: é onde Frida e Diego viveram, mas o letreiro diz apenas museu Frida Kahlo. É para a ver que milhares de pessoas fazem fila. Diego é um grande pintor, mas Frida não pertence a nenhuma categoria. É tão fora do baralho que continua a falar connosco, a olhar-nos de uma maneira perturbadora passados todos estes anos. A pintura de Rivera é devedora de uma força diferença. O seu carisma, também. A diferença entre eles talvez esteja naquela linha de Rivera que já citei: ela pinta o fundo dela e nisto pinta o fundo do mundo. Rivera pinta o mundo em revolução, a cratera terrestre que mexe. A sua pintura é eminentemente um discurso, uma expressão de uma ideal político. Frida pinta (demasiados) retratos de Estaline, mas pertence a outra estirpe. O mais tocante nos seus quadros reside numa qualquer coisa que ela consegue captar e os outros não. Num mundo subterrâneo. Num olhar de quem está mudo e é capaz de comer o mundo.

Então, a casa é mais dela. O seu espaço de trabalho está lá, os seus dois quartos também, as suas cinzas dentro de um pote pousado no toucador, em forma de rã (uma referência a Diego que se designava assim: a rã), também. Diego trabalhava num atelier próximo, tinha uma outra casa próximo.

A casa azul tem uma estrutura em U e é virada para um jardim. De um lado, os muros azuis que dão para a rua. Do outro, vidraças e luz, um pequeno tanque de chão de mosaico e dois sapos a nadar. O jardim, uma pequena pirâmide que imita a pirâmide do sol, esta desmesurada, as estátuas.

Os compartimentos principais são o atelier de Frida e os seus dois quartos. Os espaços formam um contínuo, dão a ilusão de corpo único. Estão lá a cadeira de rodas em frente ao cavalete, as peças pré-hispânicas, os livros de Filosofia, literatura, o trabalho de artesãos populares. A paleta de cores e o significado de cada uma: azul, um certo azul, representava a electricidade e a pureza, o amor; o azul marinho era a distância, e podia ser também a ternura. O amarelo era a loucura, a doença, o medo, parte do sol e da alegria. O verde era a tristeza e a ciência; “a Alemanha inteira é desta cor”.

Os quartos eram dois porque Frida precisava de descansar durante o dia, próximo do atelier, e de um quarto para dormir, à noite. Os dois são dominados por camas com uma estrutura de madeira e um tecto onde está um espelho (numa) e borboletas (noutra).

A cama com um espelho no tecto era uma solução antiga. Praticada desde o tempo do acidente, para resolver as horas, os meses que Frida passava imobilizada. Há fotografias que a mostram a olhar-se ao espelho, a pintar-se, um olho na tela outro na imagem reflectida. Alguns críticos pensam que o olhar opaco e distante dos auto-retratos têm que ver com esta relação com o espelho. O que pinta é o que é devolvido no reflexo. O olhar é quase inexpressivo. A dor e o assunto do quadro quase nunca são dados pelo olhar mas pelo que Frida pinta em torno de si, pela circunstância em que está. Especula-se também que a dimensão reduzida dos quadros passa por esta limitação física. Era preciso que fossem portáveis, que lhe coubessem facilmente nas mãos.

Na outra cama, o tecto tem borboletas. Belas, já metamorfoseadas, a voar. Nos dois quartos há fotografias de Marx, Lenine, Estaline, desenhos eróticos. O mais importante para Frida?, a política e o sexo como motores de vida?

Lá estão também as muletas. E noutra parte da casa a prótese que usou depois de lhe amputarem a perna. As adoráveis botas cor de rosa, pé talvez de tamanho 35, com bordados. As botas com salto desigual por causa da poliomielite. Os corpetes em que Frida fazia desenhos, a foice e o martelo, inscrições amorosas, e que assim eram menos colete de forças. Uma força precisa para segurar a coluna em desequilíbrio.

Este é um espaço quase secreto e aberto há pouco anos. Diego exigiu que estes adereços da privacidade de Frida fossem mostrados tarde, muito tarde. Vinte anos depois da morte da amiga que ficou cuidadora da casa-museu. Grande gesto, penso eu, de respeito pela mulher amada.

É uma série de pequenas salas de luz diminuta, onde estão as roupas, as jóias, objectos pessoais, o perfume francês. Em nenhum outro lugar como aí se percebe o sofrimento físico em que viveu esta mulher. E como era valente: não permitiu que isto – que nada – a derrotasse. Ou sequer que isto fosse o centro do seu discurso. Ao contrário, tudo parecia ser uma exortação à vida. Viva la Vida!, viva Frida!

A visita a esta casa possibilita o mergulho no azul – eléctrico, terno, puro – da vida de Frida e Diego. Se exceptuarmos a cozinha e o “comedor” (sala de jantar) dominado por um amarelo girassol, é o azul que nos envolve, em forma de U. Os objectos revelam uma vida voltada para o coleccionismo (sobretudo de peças pré-colombianas e de arte popular), a política, a arte. Há também alguns quadros de Frida, desenhos, fotografias, a almofada bordada onde se lê “despierta corazon dormido”, os dois relógios na sala de jantar. Um cujos ponteiros pararam quando Frida e Diego se separaram (dessa vez, a relação adúltera de Diego foi com a irmã de Frida). O outro relógio tem um tempo que recomeça a contar, quando de novo se casaram.

Esta casa de Coyoacán tem semelhanças com as casas ligadas de San Angel, um bairro vizinho. As casas ligadas são, na verdade, dois estúdios ligados. Uma tem o azul anil e pertence a Frida, a outra é cor de sangue e terra, um rojo por definir, e pertence a Diego.

Frida abandonou este estúdio, zangada com Diego, um dia. Todo o seu material de trabalho foi transferido para a casa de Coyoacán. Diego trabalhou aqui, o seu cavalete e pincéis e brinquedos e peças de arte e tudo o que aparece no seu caleidoscópio, permanecem aqui.  

As duas casas estão ligadas por uma ponte, um canal que lembra a artéria que liga os dois corações do quadro As Duas Fridas. Duas pessoas que se alimentam na sua especificidade, na diversidade, que se preenchem. Se a transfusão parar, uma delas morre?  

Frida morreu em 1954. O féretro foi acompanhado de cânticos da Internacional, cortejos de mulheres vestidas de tehuana, a bandeira comunista a cobrir o caixão, Diego inconsolável. O mito já estava vivo. Qualquer coisa nela não morre nunca.

  

Coyoacán está para a Cidade do México como Estoril está para Lisboa. Ou seja, pequena localidade, hoje engolida pela grande urbe. Ritmo de vida diferente. Para ir a Coyoacán, o mais fácil é apanhar um táxi. Não deve custar mais do que 20 euros. Não deve nunca apanhar um táxi na rua, por questões de segurança. Peça no hotel que chamem ou apanhe num ponto de táxis. A casa de Frida tem sempre uma fila para entrar. Pode ser de meia hora. Há autocarros que param aqui, é um dos pontos mais visitados do México. Enquanto se espera, há vendedores ambulantes que nos abordam. Podem vender vestidos bordados ou marcadores para livros, feitos em madeira. Uma senhora que me abordou, benzeu-se depois de lhe ter comprado marcadores. Outra fez o mesmo quando comprei barras de amaranto, um cereal muito comum e nutritivo.

Dentro da casa de Frida, há uma loja onde vendem adereços semelhantes aos que a pintora usava. Xailes, brincos, blusas. Preços bem razoáveis. Sobre horários de funcionamento e demais informações práticas, ver www.museofridakahlo.org.mx

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015 

A casa de Freud

18.08.22

Freud escreveu numa carta datada de Agosto de 1938: “20 Maresfield Gardens será a nossa última morada neste planeta, mas não poderá ser ocupada antes do fim de Setembro. A nossa casa!... E demasiado bonita para nós…”. A nota continha lapsos e emendas – um “espero” acrescentado na primeira frase, um “reunida” que foi riscado e que exprimia o desejo de viver em paz, em família.

A deambulação começara meses antes, quando a ameaça nazi pendeu sobre Viena e impeliu a família a um exílio forçado. Maria Bonaparte, descendente do imperador, e sobretudo mulher do Príncipe Jorge da Grécia – bem relacionada nos círculos do poder europeu, portanto – interveio de modo a garantir que os Freud levassem consigo “as suas vidas”. Não só as suas vidas no sentido orgânico, anímico, o que já não era pouco – o ímpeto nazi dizimava os primeiros judeus por essa altura, empunhava faixas com a suástica na ombreira das portas.

Foi concedido aos Freud que levassem consigo os pertences de uma vida, os objectos e as memórias que marcam uma identidade. A mesa da sala de jantar, o móvel rústico das férias de Verão, os tapetes para revestir o chão e o divã, o divã, a totalidade da sala de trabalho: a secretária, a cadeira original desenhada propositadamente para Freud, a pensar na posição diagonal em que lia, as estantes que guardavam os livros de Shakespeare, Dostoievski, as obras completas de Goethe, as tragédias gregas, as aventuras e o sabor da descoberta de Mark Twain, o maple verde no qual se sentava enquanto ouvia os pacientes. Sobretudo, veio nessa vida transplantada, de 19 Bergasse para 20 Maresfield Gardens, a colecção de antiguidades de Freud. As peças egípcias, as chinesas, as gregas. Os vasos, as estátuas, os bustos. Desenhos e gravuras. Bric a brac de um mundo em ruína.

Chegaram bem. Praticamente não sofreram dano. Foram dispostas nos seus lugares de sempre. Encapsularam Freud numa atmosfera familiar.

O ambiente da casa fornecia um quadro exacto de um fin de siècle, de uma Viena alvoroçada pelo próprio Freud, por Wittgenstein, pelo movimento Secessionista. As peças acompanharam-no entre retratos da família: a mulher Martha que saía para comprar mantimentos, a filha Anna que o seguia com uma devoção incestuosa, a criada Paula que vinha de tempos imemoriais, os cães, os filhos que apareciam para o almoço de domingo, a memória da mãe de Freud, que gostava de “aparecer bem e de não parecer muito velha”. Apareciam pacientes antigos – uns quatro happy few – , apareciam escritores como Stefan Zweig, Dalì (que fez do seu herói um desenho fúnebre), H. G. Wells que lhe propôs que se tornasse cidadão britânico. A musa inspiradora Lou Andreas Salomé. Virginia Woolf e o marido (que escreveu sobre o psicanalista: “Há nele qualquer coisa de vulcão semi-extinto, sombrio, reservado. Deu-me a impressão de ser um verdadeiro gentleman, um homem de uma imensa força”. E entre tudo isto, os manuscritos nos quais trabalhou até a doença o impossibilitar. Até morrer, em Setembro de 39.

Viveu o seu último ano naquela casa, solar, ampla, demasiado bonita para uma família habituada a um apartamento escuro numa rua como as outras em Viena. Aquela era uma casa de tijolo, como todas as casas em Londres, e permitiu-lhe morrer em liberdade – como era seu desejo.

Entra-se na casa como se entra na casa de uma pessoa que vive nela todos os dias. Estão os óculos sobre a secretária, um charuto meio fumado sobre o cinzeiro, uma taça de cerejas no aparador. Tudo permanece intacto, passados quase setenta anos sobre a sua morte. A casa – sobretudo o espaço de trabalho de Freud – foi fixada no tempo. Como um fotograma de um filme. Há um relógio que se avista da secretária: marca meio dia e quinze, marca Setembro de 1939, quando morreu.

Depois da morte de Anna, a predilecta, que viveu em Maresfield Gardens até ao fim, em 82, o espaço foi transformado em museu. Os pacientes de Freud, em Viena, comentavam que o consultório se parecia com um museu – tal a profusão de peças antigas. Hoje, o museu, em Londres, parece uma casa onde se mantém as rotinas e se desvela a intimidade. Os canteiros estão cheios de amores perfeitos, o jardim das traseiras está viçoso e bem tratado. À entrada, há um charriot onde o visitante pendura o casaco e ao fundo já se vislumbra o jardim. De permeio, há uma sala dominada pela escada que dá acesso ao piso superior.

A “sala de espera” caberia aqui. Mas a “sala de espera” foi removida para Viena, para que a casa que habitaram na Bergasse não ficasse completamente despida – a casa-museu de Viena tem meia dúzia de objectos, fotografias, o bengaleiro, alguns livros, muitos papéis. Por cima e por baixo, vivem famílias, exactamente como no tempo em que Freud ali morava.

O coração da casa da Maresfield Gardens é aquela divisão à direita, no piso térreo, onde cabem a sala de trabalho e a biblioteca. As cortinas estão corridas para preservar o espaço; mas quando Freud aí passava os dias, uma imensa janela atirava para o jardim e inundava o espaço de luz. Na penumbra, o quarto assemelha-se a um invólucro uterino – aconchegante, reconfortante, convidativo. E claustrofóbico, também. As estantes, os armários, as mesas estão repletas com a colecção de livros e peças arqueológicas – Freud estabelecia um paralelo entre o trabalho da escavação, próprio da arqueologia, e aquele que desenvolvia com os seus pacientes. Em ambos os casos, tratava-se de desenterrar pedaços do passado e contemplá-los à luz do dia. A cura passava pela palavra.

Tudo segue uma organização meticulosa. E tudo se relaciona, numa sequência ininterrupta. Os objectos do passado, as fotografias do presente, as evocações mitológicas (Édipo e Gradiva são as mais famosas), o mundano, o doméstico, o discurso dos analisandos. A presença ausente de Freud. Um maple verde vazio, um divã onde facilmente nos projectamos.

Recuamos até à sala intermédia, seguimos para a casa de jantar. Há pequenas notas que iluminam objectos dispersos. Um óleo com água corrente acompanha o que Freud escreveu sobre uma paciente, que sonhava com uma imersão nas águas; o mesmo acontece com uma taça de cerejas, uma vela partida ou um vaso com violetas.

Sobre as violetas: “Arranjei o centro de mesa com flores para o aniversário: lírios do vale e violetas”. O médico elaborou o seguinte, a partir desta descrição breve: as violetas são ostensivamente sexuais. Há uma associação que é possível fazer entre a palavra “violet” e o francês “viol” (que significa violar). A doente fez uma associação com a plavra inglesa “violate” e com a violência que há na desfloração – outra palavra com forte carga sexual. Talvez denote um traço masoquista no seu carácter.

Ainda no rés do chão, a loggia foi transformada em loja. Bela secção de livros sobre psicanálise, cadernos de notas, lápis e canetas, tshirts, pantufas, panos de cozinha, almofadas, ímanes, canecas, tiradas humorísticas – como aquele que sentencia: quando dizes Ah, isso lembra-me a minha Mãe!

O primeiro andar foi ocupado por Anna Freud. Contígua à sala onde se fazem exposições temporárias e outra onde se exibem pequenos filmes, fica a sala de trabalho da mais nova dos seis filhos do médico vienense. (Há zonas que não estão abertas ao público, entre elas aquilo que seria o quarto de dormir de Anna). É difícil encontrar palavras para descrever aquele espaço... Talvez dizer, sumariamente, que é horrível! Áspero, campónio, feroz. Anna trabalhou com crianças e fundou a psicanálise infantil. Mas seguiu também adultos, que a visitavam em Maresfield Gardens. Gostava de tricotar e tinha mesmo um tear, disposto ao lado do divã. O pai, em baixo, contemplava do seu maple a colecção de peças antigas. Anna, em cima, fazia tricot. A manta que forra o divã foi feita pela psicanalista. Mas parece um saco de serapilheira que corta em caso de contacto…

Na parede oposta estão livros, retratos, uma taça de morangos, outros objectos de trabalho. Igualmente intacto. Preso no tempo.

Como se, a qualquer momento, ela fosse a subir as escadas para trabalhar entre as suas quatro paredes. E antes disso tivesse aconchegado o pai na cama improvisada no jardim, onde ele revigorava ao sol.

Cá fora, está um belo dia de Inverno. Um frio de sobretudo e cachecol, mas de dentro da casa chega uma canção de Vinícius: “É melhor ser alegre que ser triste…”. Preso a uma árvore, está um cão que quase cegou. O dono afaga-lhe o pêlo. Chama-se Bobi, e são portugueses, sim. 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

Diana, ópio do povo

17.08.22

«E então, ela viu a minha bicicleta contra a parede, montou-a e pôs-se a andar às voltas, e a tocar à campainha, a tocar, a tocar, e cantava: “Amanhã vou casar com o Príncipe Carlos, amanhã vou casar com o Príncipe Carlos”. Consigo ouvir a campainha daquela bicicleta agora... Ela era uma criança, sabe?, uma menina». O mais antigo pajem da Rainha Mãe, William Tallon, conta este seu encontro com Diana na véspera do casamento no livro de Tina Brown “The Diana Chronicles”. Primeiro invade-nos uma sensação de inverosimilhança. Depois, passamos, como ele, a ouvir a campainha, a visualizar a cena, os movimentos circulares da bicicleta, as calças de peito que ela estaria a usar, a face corada de excitação, o cabelo suado nas têmporas. Visualizamos a cena como se a tivéssemos presenciado. E não acreditamos completamente que essa menina pequena vai ser vista no dia seguinte por 750 milhões de pessoas a dizer “sim” na Catedral de S. Paulo.

Diana não fala deste contentamento juvenil no livro de Andrew Morton “In her own words”. Fala de uma descida ao frigorífico, onde comeu tudo o que lhe apareceu pela frente, para vomitar logo a seguir. A bulimia nervosa, que Carlos e a Rainha consideraram ser desestruturante do casamento, começa aí, quando o conto de fadas estava prestes a ser selado.

A noiva já se tinha mudado para o Palácio de Buckingham, para fugir ao assédio dos fotógrafos, e abandonado a casa de Sloane Square que partilhava com três amigas. Nos dias que antecederam a cerimónia, ela encontrou entre os presentes, que se amontoavam na sala do secretário, uma caixa que lhe pareceu invulgar. Lá dentro estava uma pulseira com dedicatória que o noivo tinha escolhido para a amante de longa data, Camila. Muitas lágrimas e suspiros depois, Diana confessa à irmã Sarah, (que no passado namorara com o dito noivo, futuro rei de Inglaterra), que talvez não pudesse casar com ele se ele amava outra pessoa... E a irmã, menos dada a delírios sentimentais, repô-la no caminho do negócio: «A tua cara está estampada nas toalhas e nos serviços de chá... Talvez seja um pouco tarde para te pores a andar» (a acreditar que as aristocratas inglesas usam expressões como esta).

Porque é que instintivamente preferimos a primeira versão à segunda? E porque é que, assim que pegamos nestes personagens, temos a noção de submergir num melodrama de quinta categoria? Pela sensação de vizinhança, talvez. Todos já tivemos, na nossa vida, momentos de melodrama de quinta categoria. Enfim, menos glamorosos e a render menos páginas de jornal. Mas tivemos. Vivemo-los dentro de portas ou na casa de uma tia quando, em pequenos, assistimos a uma discussão conjugal, entre uma madalena e um copo de leite.

Se não se entender esta identificação, não se entende porque razão esta criança loura que canta que vai casar com o Príncipe Carlos se transformou na pessoa mais famosa do mundo. Diana conquistou o planeta por ser uma rapariga normal. Ela foi como as colegas que tivemos no liceu de quem não lembramos o tom de voz. Demasiado apagadas, sem brilho, até sem tiques irritantes. Sem nada que nos faça lembrar a sua existência. É verdade que Diana era demasiado bonita para passar tão despercebida. Mas não era boa em nada, coisa que, aliás, sabia e usava em proveito próprio. Esclarecia que era “estúpida como uma porta”, e com este anúncio reduzia drasticamente as expectativas e inibia comentários sobre a sua prestação. Os resultados escolares eram um zero à esquerda, e ficaram arrumados com três meses titubeantes na Suíça. Um semestre ocupado a escrever cartas e a pensar que era chocante o dinheiro que investiam nela e os resultados que estava disposta a alcançar. 

Como Tina Brown nota, já não se usa as meninas “upper class” terem uma educação tão despreocupada. O exemplo é Kate Midleton, que conheceu  Príncipe Williams quando partilharam casa, na universidade. Diana pertence à última geração de mulheres de certo extracto social cujo propósito é casar e ter uma família. Mas ela nasceu para viver um conto de fadas, que é muito mais do que, simplesmente, casar e ter uma família. Basta olhar para a sua cara de felicidade, dentro de um coche de Cinderela, com um vestido tufado nas mangas e uma cauda infindável, para perceber qual era o sonho da sua vida. A tiara era a prova material dessa conquista: Diana era uma princesa de verdade, e não uma leitora de contos de fada. O que não podia supor é que os seus sonhos de Gata Borralheira acabariam gorados: não foram felizes para sempre.

Alguém diria, revendo as imagens, que a recém casada vomitara tudo o que comera na noite anterior? Que comera por insaciedade, insatisfação, infelicidade. Solidão. Depois vomitara por nojo e fastio. Ninguém viu. Novamente solidão. (Diana sempre descreveu a sensação posterior como sendo de “calma e limpeza”. Por momentos aquietada). Tudo isto é um pouco repugnante, sim, mas Diana era demasiado poderosa para que estas minudências sejam consideradas insignificantes.

Preferimos a versão do pajem àquela que ela mesma contou a Morton porque gostamos de pensar que foi uma criança que acreditou no seu sonho. A candura comove sempre. O sonho foi esculpido sobre a história da sua família e alimentado nos livros de Barbara Cartland – são romances delicodoces que fazem apodrecer o espírito. Consta que foram os únicos livros que leu na vida, e não lhe fizeram bem. Exaltaram o seu lado fantasista, não a deixaram amadurecer emocionalmente. Diana disse a um político inglês na primeira vez que o viu: «Nos romances de Barbara Cartland encontrei todas as pessoas com quem sonhei, e tudo aquilo por que esperei». Um reino de fantasia que colidiu no confronto com a realidade. Como sempre acontece. A mesma Barbara Cartland embaraçava Diana terrivelmente: gaiteira, o cabelo arrumado numa bola de algodão doce, o baton rosa choque por fora dos lábios. Risível. Também se distinguia por dizer enormidades nos jornais. Como a linha com que resumiu o falhanço do casamento: “Ela não estaria disposta a fazer sexo oral!”. Ninguém a levou a sério. Os súbditos não querem acreditar que os seus soberanos têm vida sexual, como não querem pensar na vida sexual dos seus pais.

Sucede a circunstância cómico-irónica de Cartland ser a mãe de Raine, a madrasta de Diana. Odiada, evidentemente, como na Cinderela. Quando Diana casou, escreveu-se nos jornais sobre a possibilidade de banir da cerimónia semelhante criatura. Mas a rainha dos romances rosa foi escondida atrás de uma coluna na catedral.

Como vai sendo óbvio, nada disto é “fait divers”, ainda que, aparentemente, tudo na vida de Diana seja um cliché que não tem interesse nenhum. Se a mãe da madrasta tem mais importância do que a madrasta, (na construção do imaginário), a madrasta foi a mulher horrível que, mais do que substituir a mãe, lhe roubou o pai! Freud explica este rancor em sucessivas páginas...

Desde a separação dos pais, Diana vivia com o pai e o irmão mais novo; as duas irmãs mais velhas estudavam fora. E Diana tentava fazer de filha, de mulher e de amiga: passava a ferro, batia bolos, afagava o irmão quando este chorava a ausência da mãe, confortava o pai nos momentos de solidão. O desaparecimento da mãe tem que ver com um banal caso de infidelidade. Apaixonou-se, foi à sua vida, o marido conseguiu a custódia dos filhos.

Filha de uma aristocracia bem relacionada, Diana cresceu com uma mãe a chorar. A separação dos pais foi, nas suas plavras, «o mais disruptivo dos acontecimentos». No essencial, pela vida fora, reproduziu o comportamento da mãe. Chorou, chorou, chorou. Não é fácil gostar de uma mulher chorona e melodramática, e o princípe Carlos queixava-se de um soluçar inesgotável. Terá sido isso que o levou de volta aos braços de Camila? Diana indignar-se-ia perante esta possibilidade: sentia-se uma vítima e clamava, no programa Panorama da BBC, que nenhum casamento pode funcionar com três pessoas. Mas segundo Tina Brown, há pelo menos mais um elemento na relação: os media. Também há os amantes da “pobre” Diana e a hostilidade da monarquia inglesa – para nomear os mais sonantes. 

Diana podia ser “estúpida como uma porta”, mas numa coisa era genial: na relação com os media. Também, na verdade, com os desvalidos, os doentes, os desfavorecidos. Os que eram ou se sentiam, como ela, humilhados e ofendidos. « Há [entre mim e o povo] um entendimento incrível. “Top of the Pops”, “Coronation Street”, todas as telenovelas. Diga uma!, eu segui-a. A razão pela qual as vejo ainda, não é tanto pelo interesso que tenho nelas, mas é porque, se vou para fora, seja Birmingham, Liverpool ou Dorset, falo de um programa de televisão e estamos no mesmo nível. Decidi isto sozinha. Funciona tão bem! Toda a gente as vê. E se eu digo: “Viu isto e aquilo? Não foi engraçado quando aquilo ou aqueloutro aconteceu?”, fico imediatamente no mesmo nível. Não sou a princesa e eles o povo: é o mesmo nível». Smart, ah? E não há dúvida de que funciona!

A osmose funciona melhor que qualquer livro cujo título é “Como ser popular no emprego”. Melhor que todas as lições de damas de companhia e secretários e especialistas em media. Tony Blair parece ter aprendido isso muito bem e adaptou a táctica ao longo dos dez anos em que foi primeiro ministro do Reino Unido. Blair, que entra em cena pouco antes da morte de Diana, tinha grandes planos para a Princesa do Povo. Segundo Tina Brown, que foi recebida durante a pesquisa que fez para o livro, este contou-lhe que pensava usar Diana como “embaixadora” junto das grandes causas humanitárias. E Tina conta isto, como outras coisas, para dar provas sistemáticas de um trabalho de casa bem feito, e de uma rede de contactos poderosa.

Diana a ver telenovela à hora de jantar. Bom, já não é tão sensacional depois de vermos o filme “A Rainha” e sabermos que também Isabel de Inglaterra pode comer com um tabuleiro no colo e botija de água quente nos pés. Mas Isabel é a uma monarca à moda antiga e a lamechice causa-lhe urticária. A televisão que ela vê, aposto com segurança, resume-se a noticiários e a “séries de qualidade”. Alguém que usou aqueles sapatos a vida toda não pode rever-se, ou sequer entender, os sapatos Jimmy Choo (Brown também falou com ele...) e os gritinhos histéricos que abundam nas televisões. Mas Diana, que deve ter começado por sapatos ingleses de qualidade, conformes e discretos, cedo percebeu o poder apelativo de uns Manolos (Brown também falou com o designer). E ficou a ganhar.

Mudam-se os tempos, mudam-se os valores. A Rainha, que trabalhou como mecânica durante a Segunda Guerra, aprendeu que o Dever vem primeiro, e que não podia ser outra coisa que não um “role model”. Não pode saber-se onde fica a identidade de alguém que foi educado para ser Rei ou Rainha – algures estropiada pelo caminho... – porque o “dever ser” abafa qualquer surto de espontaneidade. A manifestação de sentimentos cai tão mal que há uma expressão idiomática para isso: “You dont wear your feelings in your sleeves” [“Não se usam os sentimentos nas mangas da camisa”, numa tradução livre].

Diana era o oposto da instituição que é a realeza, imersa em naftalina, acompanhada por árias famosas . Ela usava perfumes Versace e ouvia a pop de todos os dias de Elton John. Trabalhou a relação com os súbditos e a imprensa de um modo nunca visto. Eles eram, simultaneamente, seus aliados e confessores. Amavam-na e deixavam que ela os amasse. Queriam tocá-la e ela queria ser tocada. Carlos acenava de longe. Andava entretido com o polo e com a eterna Camila. A Monarquia andava entretida com assuntos de suma importância (?), porque haveria de perder tempo com uma loura frívola? Ela andava entretida com a sua infelicidade e os seus gritos de socorro. Tentativas de suicídio, bulimia desenfreada, solidão atroz. «Atirei-me pelas escadas abaixo quando estava grávida de quatro meses do Williams, para tentar obter a atenção do meu marido, para que ele me ouvisse». Uma tristeza. Sobretudo quando pensamos no desfecho.     

Faces diferentes da mesma moeda, a relação com o povo e o culto da celebridade fizeram dela um fenómeno ímpar. Tina Brown escreve que Lady Diana percebeu cedo que nos dias que correm a aristocracia que vale a pena é a da celebridade. Ela foi uma catástrofe natural que fez tanta mossa na Casa de Windsor como o terramoto fez à antiga cidade de Pompeia. Quase deitou tudo por terra. E por aqui se vê o seu poder. Diana passou a ser nome de princesa, como Camila passou a ser nome de amante do rei. Mas até que isso fosse possível, até que o génio saísse da lâmpada e se espraiasse com plenos poderes, passaram uns anos.

No princípio, ela era uma uma menina adorável. E virgem. O “era uma vez” desta história começa quando, num dia frio de Fevereiro, o Príncipe Carlos escolheu um cordeiro, virgem e sacrificial, para resolver o assunto do casamento. Foi assim mesmo que Diana, o cordeiro, classificou a escolha no celebérrimo livro de Andrew Morton. O mundo inteiro viu o passeio dos nubentes nos jardins do palácio, reparou no tailleur azul que ia bem com o anel de noivado, comentou como ele era bem mais velho e feio.

A primeira imagem dela: apoiada no braço do futuro marido, uma flor discreta. A expressão doce, o sorriso cândido, a cabeça baixa, quase submissa. Nada fazia prever que se transformaria na mulher mais fotografada do planeta. Onde estava o seu carisma? Mas então não existia a segurança evidenciada na sessão com Mário Testino, já aliviada dos vestidos sorumbáticos que acompanharam os primeiros anos. O que as fotografias de Testino deixam ver é uma mulher emancipada, quase enamorada de si mesma. Mas essa sessão, publicada originalmente na Vanity Fair, bem como o livro de Morton, aparecem cerca de onze anos depois. E então já todos sabíamos da infelicidade, do equívoco, do infortúnio. Tínhamos todos visto a entrevista ao Panorama, na qual, interpretando magistralmente a mulher traída, confessou também ela o adultério. Por fim veio o esbarramento do carro, com Dodi Al Fayed, num túnel de Paris. Há muito tinha terminado o conto de fadas.

Nesse dia de Fevereiro, quando foi apresentada, já não lhe chamava “sir”. Tinha aceite o pedido de casamento daquele homem e foi-lhe consentido, a partir desse instante, chamar-lhe Charles. Ele regressava de umas férias na Suiça, confessou-lhe que tinha sentido a sua falta; e depois perguntou com sinceridade pomposa: casa comigo? Ela aceitou imediatamente, fez risinhos nervosos e incrédulos, e só mais tarde se interrogou por que razão o futuro rei de Inglaterra a escolhia para sua mulher.

Na verdade, a mulher da vida de Carlos era outra. E essa, tinha “um passado”. Camila era já casada com Parker Bowles e uma reputação maculada. Carlos aceitou que lhe escolhessem uma noiva que não representasse qualquer ameaça e que fosse fácil de manobrar. Ficaria intacta a sua relação com Camila. Quando, ao cabo destes anos, casou com o seu amor de sempre, Carlos deu razão ao que durante anos se chamou a “paranóia ciumenta” de Diana. A sua intuição feminina estava certa: Camila sempre existiu na vida do marido.

Por ora, chega desta fotonovela. Passemos a outra: a da psicanálise barata que Tina Brown faz de Diana. «Diana cresceu a associar a câmara fotográfica com amor». Fica-se estarrecido. Há no livro da ex-directora da New Yorker e Vanity Fair uma descrição “posh” mesmo dos pormenores mais comezinhos. Como escreveu esta semana Sarah Bradford, “expert” da Princesa Diana, não há no livro de Brown casacos velhos... «Pode tirar-se a rapariga da revista, mas não se consegue tirar a revista da rapariga». É bastante previsível que uma “rival” seja demolidora. Afinal, esta pequena fricção só confirma aquilo que Diana sabia sobre as relações entre mulheres, mesmo que ela, excepcionalmente, penetrasse bem junto do público feminino. Junto deste, não há nada mais eficaz do que uma mulher sofrida. Quem é que nunca teve um coração partido?

A câmara: depois da partida da mãe, o pai de Diana passava tardes a filmar e a fotografar a filha mais nova. E ela rodopiava, fazia passos de ballet, sorria e olhava a câmara com uma segurança inesperada. Tina Brown pensa que a fotogenia de Diana e a sua relação com os media encaixam neste modelo de relação com o pai. “Dás-me mimos e atenção (sob a forma de máquina fotográfica) e eu dou-te sorrisos e sou amorosa...”. É uma tradução demasiado básica do Complexo de Édipo para ser levada a sério. Mas o livro de Brown é mais inteligente do que este pedaço sugere.

Tina Brown não foi amiga íntima de Diana, mas cruzou-se profissionalmente com ela. A sua carreira começa, também, no início dos anos 80 quando, aos 25 anos, dirige uma revista que constava das salas de estar dos círculos “upper class” ingleses: a Tatler. Quando se muda para os Estados Unidos, Brown especializa-se no mundo da celebridade e faz do glamour uma prática obrigatória. Quando Tina Brown era uma mulher muito poderosa (ou seja, quando dirigia a New Yorker), era convidada para almoçar com Diana e com Anna Wintour (directora da Vogue americana; é nela que se inspira o filme “O Diabo veste Prada”) quando a princesa se deslocava a Nova Iorque. A descrição da chegada de Diana ao restaurante do Four Seasons é sumptuosa: «A alta e discreta rosa inglesa que conheci na Embaixada americana em 1981 tornou-se tão fosforecente quanto um “cartoon”. Avançava com os seus saltos altos pelo espaço do restaurante como se fosse a Barbarella». Depois fala do bom corte do fato Chanel, da pele de pêssego e aveludada, do bronzeado suave e perfeito. Tina sabe do que fala quando se trata de imagem. E Diana usava essa linguagem como ninguém.

Basta olhar para os vestidos para contar a história da sua vida. Antes de casar, quando vivia com as amigas, à mesa discutiam-se os saldos da Benetton – alguém consegue imaginar a rainha a discutir os saldos da Benetton? Mas é fácil aceitar essa possibilidade se pensamos em Diana – comprava-se na Laura Ashley, usavam-se camisas de quadradinhos, sapatos praticamente rasos. Uma aparência discreta, “comme il faut”.

Folheando o álbum de fotografias, analisando-as à lupa, o que fica desses primeiros anos é uma menina tímida, “shy Di”. As camisas acompanhavam este desempenho: de uma seda antiga, com folhos a cobrirem o colo. Os vestidos: estampados, largos o suficiente para não se adivinhar o corpo que os usava. Demorou tempo até Diana se transformar num ícone “fashion” – parte indubitável do seu sucesso.

Estavam longe os vestidos de Catherine Walker, que marcavam o corpo de mulher madura, cobriam um braço e revelavam o outro, os “caicai” que deixavam perceber os braços, finos e compridos. Ou os fatos de dia, compostos de saia e casaco, uma saia com pequenos pesos nas bainhas para não esvoaçarem com o vento – mas disso, ela não percebia nada, confessa. Confessa para lamentar que ninguém lho tivesse ensinado. Ninguém entre os membros da família real, claro. Nem lhe ensinaram que a bolsa se usa no braço esquerdo e não no direito. Aprendeu sozinha, cedo percebeu que estava sozinha.

Esta é a versão que corre na biografia de Morton. Mas no livro de Brown, a mais antiga aia da Rainha, destacada para acompanhar a recém chegada Diana, desmente que ela tenha sido deixada à sua sorte. Lady Susan Hussey passou muitas horas com Diana nas quais lhe ensinou os passos do protocolo ou como terminar uma conversa com um admirador expansivo. Mas a “noviça” parecia não ouvir nada. Estaria a vaguear nos seus sonhos, com certeza... Aprender regras de protocolo deve ser muito aborrecido. E sobretudo, ela não pensava segui-las. 

Os vestidos: assuntos de senhoras? Experimentem tirar a cabeça à maior parte das fotografias e descobrirão que o mais empedernido dos homens reconhece que pertenceram a Diana. E nem é preciso que façam parte do lote de peças leiloadas na Christies a favor de uma instituição de caridade. Conhecer os vestidos de Diana, (leia-se, a força da imagem de Diana), faz parte da mais elementar cultura popular!

Se se fizesse um jogo (como o Trivial Pursuit) sobre os anos 80 e 90, os vestidos de Diana seriam uma pergunta obrigatória. E de resposta fácil, uma vez que toda a gente os conhece. O vestido preto com que dançou com John Travolta, o vermelho e lilás que usou frente ao Taj Mahal, o verde de lantejoulas, o vermelho com fios de ouro, o cor de areia com que posou nas pirâmedes do Egipto. A imagem de uma princesa não é nunca um assunto despiciendo, e na princesa em questão tornou-se um assunto capital.

A imagem de Diana passou a ser um património colectivo. Ninguém, nem mesmo o Papa, esteve alguma vez sujeito ao escrutínio a que esta mulher esteve. Mesmo para além da morte, aos 36 anos. O sentido da privacidade era-lhe estranho. A desconfiança tornou-se um recurso militante. Sentia-se permanentemente observada. Pelas objectivas dos fotógrafos, seguranças, membros do staff. Uma obsessão tal que a impedia, por exemplo, de tomar duche na piscina onde nadava todas as manhãs. Mudava-se em casa, certa de não ter curiosos a observá-la ou lentes escondidas. Como se transformou ela numa mulher cativa? E antes disso: como compreender o seu carisma?

O que fez de Diana a Princesa do Povo foi dar-se com o povo e dar-se ao povo de um modo a que ele não estava habituado. Apertar a mão a leprosos, aconchegar doentes terminais, interessar-se genuinamente pelos seus problemas. Já no fim da “carreira”, veio a campanha anti-minas em Angola – uma das imagens mais conhecidas de todo o século XX.

Vários extras no cocktail: a mulher trocada pelo marido (Diana diz a Camila, quando o baile ia a meio: «Sei o que se passa entre si e o meu marido, não nasci ontem...»), a mulher de bom coração invejada por uma corte de malvados, a vítima da injustiça e incompreensão. Uma como nós, portanto. Com a força, contudo, de mobilizar centenas de fotógrafos, milhões de pessoas. Uma princesa bonita, loura, de olhos azuis, como nas histórias lidas em criança. Mas ciumenta, dada a ataques de choro, que faz fila com os filhos no McDonalds e brinca com eles na EuroDisney. Com sentimentos bem visíveis, nas pregas do vestido (na primeira fase), no bom corte do casaco (na segunda).

Quem era ela, afinal? Uma mártire, ave ferida, humilhada e deixada à sua sorte? Ou uma manipuladora, sem o mínimo sentido de dever e honra, que quer viver livre como um passarinho? Era a educadora de infância, fascinada com palácios e contos de fadas, que decide casar mesmo sabendo que são três na relação? Ou era a loira impreparada que sucumbe à atenção de que é alvo e acaba refém de uma vida que escolheu.

Sentia-se aprisionada – a metáfora da jaula é recorrente – e isolada num mundo que lhe era inóspito: o da realeza. Como foi possível que o mundo não tenha percebido os seus gritos de dor? Como é possível que uma mulher se atire das escadas abaixo grávida de quatro meses, que tente cortar as veias quatro ou cinco vezes, e nas fotografias apareça como a Madre Teresa do Ocidente, de vestidos glamorosos e sorriso irrepreensível? «O lado público era muito diferente do privado. No público, queriam a princesa encantada, que vinha, tocava-os, transformarava tudo em ouro e fazia desaparecer as suas preocupações. Poucos compreendiam que o lado individual estava crucificado, por dentro, porque não acreditava que fosse suficientemente boa» (“In her own words”, livro de Morton). Algo ia mal no reino de Inglaterra.

Quando se soube, já era, claro, tarde de mais. A jaula dourada de Diana mantê-la-ia aprisionada até ao fim dos seus dias. Mas o que é se pode ser depois de quase se ter sido Rainha de Inglaterra? Que homem se vai escolher e sujeitar à invasão feroz da imprensa? Tornou-se um lugar comum dizer que foram “os paparazzi que a mataram” – chacais implacáveis. Mas a verdade é que Diana gostava de ser ver nas fotografias.

Por esses dias, tinha um pretexto adicional: queria estragar a festa de aniversário que Carlos preparava para Camila – voltamos à telenovela, se é que alguma vez saímos dela. E decidiu ofereceu bónus aos fotógrafos: um romance com um playboy da estirpe de Dodi Al Fayed.

Ele tinha os brinquedos todos: um iate onde se ouvia Júlio Iglesias (segundo Tina Brown), a casa em Paris que pertencera aos Duques de Windsor, o Ritz de que o pai era dono, os presentes que escorriam em catadupa: uma bracelete, um relógio, um anel, com as devidas incrustações. «Dodi era o antídoto perfeito: charmoso, sexualmente atencioso, intelectualmente nada ameaçador – e temporário», escreve a ex-directora da New Yorker. Foi com ele que morreu no dia 31 de Agosto de 97, há dez anos. Divorciada, mas nem por isso liberta do voyeurismo colectivo.

Levou uma vida bastante infeliz – infância infeliz, casamento infelicíssimo. Não é fácil percebê-lo nas fotografias. Mas Diana era uma excelente profissional e queria, “quando desligasse a luz antes de dormir, saber que fez o seu melhor”.

Os seus filhos, os príncipes Williams e Harry, promovem um concerto de solidariedade este domingo. Se fosse viva, Diana faria nessa tarde 46 anos. Alguém consegue adivinhar que vida seria a sua?

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007

 

O que é ser culto hoje?

06.08.22

“Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (e, sem dúvida, sobretudo o verso) é o que mais pode lançar mundos no mundo”. Caetano Veloso ergueu colunas, apontou para o infinito na canção “Livro”. Fez da palavra e da procura um acto de criação do mundo. Nós partimos da interrogação: O que é ser culto hoje? Perguntámos a seis pessoas, de diferentes gerações e áreas do saber, num momento em que as noções de conhecimento e memória foram subvertidas, instaladas em novas prateleiras, disponibilizadas em novos (e sempre novos) suportes. Não procurámos pessoas especialmente cultas, ainda que algumas o sejam. Procurámos o entendimento que têm de cultura, e o modo como ela se intromete e contamina a vida de todos os dias. Pedimos também que elaborassem uma lista de obras seminais (era quase obrigatório excluir a Bíblia e O Capital...), de peças e encontros em que se fizeram.

 

Ana Luísa Amaral, poeta, professora universitária, 1956

 

- O cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner

- Toda a poesia de Emily Dickinson

- O jogador, de Dostoievski

- As peças (quase todas) e os sonetos de William Shakespeare

- A canção “Veinte años”, de Patxi Andión

- A poesia toda de William Blake

- A canção “A noite passada”, de Sérgio Godinho

- O acto “O coro dos escravos hebreus”, da ópera Nabucco, de Verdi

- A tapeçaria A Dama e o Unicórnio

- O filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin

 

O que é que pode lançar mundos no mundo? A arte, o pensamento, a palavra – e talvez, no exercício dela e na paixão por ela, a palavra da poesia, porque é a menos sujeita às leis do mercado, a mais livre. A palavra faz sentir e faz pensar. Por esta razão, por exemplo, para o estado de ditadura social em que nos movemos, a incultura e a falta de pensamento são úteis: porque uma pessoa que pensa é uma pessoa que questiona, que exige, que resiste.

Se pensarmos que a palavra “cultura” vem de “cultivar”, e que se refere inicialmente ao amanho da terra, então ela tem a ver com preparação, com cuidado, com aprimoramento de capacidades que estão latentes em todos e todas nós e que vão sendo desenvolvidas através da comunicação. Ter cultura geral incluiria conhecer a Bíblia, claro, tanto quanto a Pietá, incluiria saber do folclore de um povo, tanto quanto apreciar Bach, incluiria entender as razões para a Revolução Francesa, tanto quanto perceber a guerra económica e social movida pelo que foi a chamada bolha de Wall Street...

As pessoas que passaram pela minha vida e que foram fundamentais para a minha formação foram várias. Penso na minha tia, Manuela Amaral, que eu amava e admirava; em duas professoras que tive no colégio onde andei, Dora de Vilhena, que lia poemas em voz alta na aula, e Isabel Lago. Com a Isabel Lago li O Cavaleiro da Dinamarca, e essa leitura foi fundamental: senti a beleza da palavra, quase no seu estado puro. Muito mais tarde, já na Faculdade, uma professora de Cultura Norte-Americana, Cristina Ribeiro, abriu-me o mundo para “os outros” Estados Unidos, na sua dimensão de discriminação, de violência, de racismo. Deu-me autores como Langston Hughes, Aimé Cesaire (ainda me lembro de cor de partes de Cahiers d’un retour au pays natal). Mais tarde, Maria Irene Ramalho, que me orientou o doutoramento e me ensinou a verticalidade que a literatura traz. Depois, os meus alunos todos, ao longo de tantos anos de ensino; com eles me formei também. De alguns destaco Marinela Freitas, minha colega agora. E ainda o meu pai, que me ensinou uma ética de vida. E a minha filha, que me ensinou e continua a ensinar a crescer e a ser melhor pessoa. Com todos eles e todas elas, aprendi a ler o mundo – e a ler mundos.

Eu acho que devia ser ensinado o que faz parte das artes, da ciência, da ética, do conhecimento, do pensamento humanos. Acharia muito bem estudar os Beatles, desde que se falasse dos anos 60 e do que eles significaram em termos de movimentos sociais, e do feminismo, e das minorias; tal como, no caso do jazz, de como ele nasce, e a propósito disso, da questão da chamada “Renascença de Harlem” nos Estados Unidos, e, ligada a ela, da exploração da identidade, e, com ela relacionada, do racismo, e por aí fora...

“Grandes descobertas/acontecimentos”: é de ordem enciclopédica. Mas falar na relatividade implicaria mostrar o seu impacto a diversos níveis. O que quero dizer é que uma disciplina de Cultura Geral, a existir, deveria ser trans-disciplinar e comparatista, relacionando tudo com tudo. Como tudo está, de facto, relacionado com tudo. Até mesmo mostrar que, em 1940, um escritor como Hemingway oferece a um romance seu um título como Por quem os sinos dobram porque existiu três séculos antes dele um poeta chamado John Donne, que escreveu um poema que dizia “Não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.

Platão expressou-se de uma forma que é comum às Ciências e às Humanidades. Ou seja, expressou-se em palavras. Mais facilmente uma pessoa das ciências consegue ler o que Platão escreveu do que uma pessoa de Letras consegue perceber Física Quântica. Porque Platão usa uma linguagem que, embora servindo-se de conceitos filosóficos, é mais comum a todos nós. E essa linguagem organiza o pensamento, ordena-o, cria questionamentos sobre o nosso lugar como humanos no mundo, interroga-nos e interroga o mundo, na própria constituição de conceitos.

 

Carlos Mendes de Sousa, professor universitário, ensaísta, 1960

 

- A Paixão segundo São Mateus, Bach

- Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa

- Obra poética, Sophia de Mello Breyner Andresen

- A Paixão segundo G. H., Clarice Lispector

- Crime e Castigo, Dostoievski

- “Ode Marítima” de Álvaro de Campos

- Ver Caravaggio numa igreja (Vocação de São Mateus na Igreja de S. Luís dos Franceses em Roma)

- Retrospectiva de Bacon na Tate Gallery (nos anos 1980)

- Em busca da Verdade, Ingmar Bergman

- Visita a Delfos

 

No romance de Clarice Lispector, A Hora da Estrela, Macabéa, uma nordestina perdida na grande cidade do Rio de Janeiro, tem uma predilecção: colecciona frases de informação cultural apanhadas na “Rádio Relógio”, uma estação de rádio carioca que oferece “pingos de cultura” a acompanhar a passagem exacta do tempo. Este quadro é muito expressivo. Alguém que tem uma existência tão amarfanhada sente o desejo de coleccionar esses enunciados mais ou menos enigmáticos, e de entender o que está dentro deles. Macabéa vai repetindo insistentemente essas frases ao seu namorado. A dada altura, pergunta-lhe se ele sabe o que é cultura. Olímpico, sente-se encostado à parede, e responde: “Cultura é cultura”. Macabéa é uma delicada flor do sertão. Olímpico é um bruto da pior espécie que nunca quer dar o braço a torcer.

Ocorre-me muitas vezes esta passagem do livro e apetece-me responder como Olímpico. Tenho dificuldade em definir o conceito, mas quero acreditar que a definição mais nobre de cultura será aquela que está contida na frase de Caetano, quando fala do poder que o livro tem de lançar mundos no mundo. Que mundos não estão contidos em Homero e Shakespeare, em Dostoievski e Proust, em Pessoa e Guimarães Rosa, ou num verso de Camilo Pessanha!

Uma das expressões mais reveladoras do que será a ausência de cultura é quando se diz de alguém que não tem mundo. Recordo-me da alegria que tive quando encontrei o título para um livro de homenagem ao Prof. Aguiar e Silva. Fui buscá-lo a Camões, n’ Os Lusíadas: “Largo mundo alumiado”. A cultura pode ser o que está contido nessa formulação. Ou aquilo que está num outro título para um livro de ensaios que organizei sobre Torga: “Dar mundo ao coração”. (A palavra coração está estafadíssima e inunda os títulos e as capas mais pirosas que por aí circulam, mas acho que este título também pode servir como definição.)

Na adolescência, lembro-me de comprar o jornal para recortar a programação semanal da Antena 2. Ainda encontro de vez em quando esses recortes no meio de livros, com muitas peças sublinhadas (as coisas que tinha ouvido)! Lembro-me da obsessão por Dicionários enciclopédicos (cheguei a comprar dicionários de teologia e de matemática). É uma felicidade hoje podemos ter tudo no Youtube, no Google... A enciclopédia do mundo no smartwatch!

O que falta mesmo são salas de silêncio para mastigar e digerir.

Encontros decisivos. Nos tempos da Faculdade, o Osvaldo Silvestre. Íamos às livrarias juntos, em busca de novidades. Com a mesma voracidade, descobrimos a Europa, quando fizemos o inter-rail, no início dos anos 80. O Frederico Lourenço, com quem tenho um diálogo diário, muitas afinidades e divergências. Depois os encontros com os poetas. Especialmente o Luís Miguel Nava e o Gastão Cruz.

Como aluno tive naturalmente encontros decisivos. Uma professora de português da adolescência, Beatriz Mendes Paula. Na Universidade, Andrée Crabée Rocha e Vítor Aguiar e Silva, que foi a minha grande referência. As suas aulas de Teoria da Literatura eram extraordinárias. Foi meu orientador de mestrado e doutoramento.

Sou o ser mais dispersivo do mundo. E ao mesmo tempo doentiamente obcecado. Creio que algures, nesse cruzamento, se pode encontrar uma virtude qualquer.

Para a escrita de um ensaio invisto como se estivesse a fazer uma tese. Fico sempre com muito material e com a ilusão de que mais tarde escreverei isto ou aquilo. Quantos projectos inacabados! A falta de tempo ou a preguiça não me deixam… No meio disso vem a dispersão. Acho que ela surge como fuga. Quando estava a escrever a tese de doutoramento (antes da internet!), perdia um tempo infinito com leituras sobre tudo e mais alguma coisa, consumia doses impressionantes de cinema (cassetes de vídeo). Mais tarde vim dei-me conta de que incorporei algumas dessas referências no meu texto. Se estivesse a trabalhar sobre uma molécula específica não sei se o poderia fazer.

Não sei quais os termos mais adequados para a hipotética concretização de uma disciplina de Cultura Geral. Se os burocratas da Educação me dessem um segundo para dar a minha opinião enfatizaria o lugar das humanidades, das artes, da literatura nessa disciplina. Seria importante não fazer da dita disciplina uma caldeirada. A velocidade com que acedemos à informação, ou com que a informação nos chega, toma conta de nós. A grande e difícil questão é a da selecção e sobretudo a da assimilação.

 

Inês Monteiro Rocha, estudante de Geografia, 1994

 

- A Tabacaria, de Fernando Pessoa, com ilustrações do Pedro Sousa Pereira (ganhei no Natal do ano passado)

- O Principezinho, de Saint-Exupéry

- Cão como nós, de Manuel Alegre

- Nina Simone (a mãe ensinou que Wild is the Wind é a música mais linda do mundo)

- Pink Floyd (o pai ouve a toda a hora)

- Beatles (aquela mistura de irreverência com elegância...)

- O Rei Leão (ainda hoje vou tentando a filosofia do Hakuna Matata…

- Cinema Paraíso (a doçura, a ternura...)

- Treze a Rir uns dos Outros (2001), escultura de Juan Muñoz (pela alegria)

- Guernica, de Picasso (pela humanidade)

 

Porquê O Principezinho? Porque tem amizade, coragem, sonho, campos de trigo, florestas, estrelas, ovelhas e flores. Tudo o que precisamos em qualquer idade e em qualquer local. O Principezinho ajuda-me a perceber o meu lugar no mundo. Acho que ser culto é isso. É ter consciência de como chegámos até aqui e, sobretudo, de como podemos sair daqui. A minha mãe, que detesta citações, atirou-me com uma: “Ser culto es el único modo de ser libre” (Jose Marti).

Cultura é saber que a Lua controla as marés, que o som do violoncelo é o mais próximo da voz humana, que no Butão há um índice de felicidade. É não ter preconceitos sobre a importância das coisas e estar disponível para pôr em causa amanhã tudo o que hoje damos como certo.

Ser culto há 40 anos devia dar uma trabalheira logística e muita despesa. Papel, livros, jornais e revistas, sessões de cinema, palestras (só o nome…). Agora, temos o mundo na mão, e só precisamos de o querer conhecer. De saber fazer escolhas e ter espírito crítico. Pode visitar-se o Louvre sem sair do sofá. Há bibliotecas completas online. Podemos escutar toda a obra de Mozart sem entrar numa sala de concertos. O acesso à cultura é mais democrático.

Aos 20 anos, os encontros ainda não foram muitos. Foram, sobretudo, com professores, que podem salvar-nos de existências penosas. Alguns, poucos, marcantes. Sempre pela generosidade e disponibilidade. Recordo a minha professora de Inglês do 7º ao 9º, Isabel Maia (apesar de eu não ter sido grande aluna) e o professor Rio Fernandes, primeiro na licenciatura e agora no mestrado.

Fora da vida académica, tenho tido sorte. Quando era criança, vivi, por arrasto, o Porto 2001, Capital Europeia da Cultura (onde a minha mãe trabalhava). Tive mais música, teatro, conferências e debates do que parques infantis. Tomei consciência de que havia pessoas que eram “mesmo” cientistas, escritores, poetas, filósofos, músicos, maestros. Tanta gente diferente, de tantos países diferentes, que vinham cá contar as coisas que faziam. Aprendi a importância da diversidade. Aprendi que se pode fazer diferente e, às vezes, mudar o mundo.

Também por essa altura, passei a integrar o coro infantil do Círculo Portuense de Ópera. Pouco depois, fui para o Conservatório, para violoncelo.

Apenas gostava de ter viajado mais, mas não é nada que não possa recuperar.

Tenho a noção de que nada pode funcionar como uma ilha. Não acho que a escolha da Geografia tenha afunilado o espectro. É muito mais do que decorar umas capitais ou perceber de meteorologia (as referências mais ouvidas quando digo qual é o meu curso...). Frequento, agora, o mestrado em Riscos, Cidades e Ordenamento do Território. Quero trabalhar nas cidades, mas também no campo. Dentro de pouco tempo, vou ser agricultora. Uma geógrafa-agricultora até liga muito bem! Conto cultivar cerejas e frutos silvestres numas quintas de família. Gostava de conseguir aplicar os conhecimentos adquiridos na minha formação académica: a constituição dos solos, os efeitos do clima, a dureza da terra que levou tantos a deslocarem-se para as cidades.

Devia haver uma disciplina de Cultura Geral! Com os Beatles, sempre! E todos os assuntos que nos ajudassem a perceber o mundo. Recentemente, li no Público um artigo sobre os primeiros licenciados em “Estudos Gerais”. Disse: “Era isto!”.

Nunca me senti confortável com a escolha da área, do curso, porque em qualquer das opções ficavam de fora coisas que achava importantes, que tinham a ver comigo. Apesar de tudo, o meu curso permite uma grande diversidade de áreas de estudo e de saídas profissionais. Se trabalho houvesse…

Volto ao Principezinho: “É claro que a geografia me serviu muito. Sabia distinguir, num relance, a China do Arizona. É muito útil, sobretudo quando andamos perdidos na noite”.

 

Maria Emília Brederode Santos, pedagoga, 1942

 

- Vitória de Samotrácia

- Pietà de Miguel Ângelo

- Guerra e Paz, de Tolstoi

- Álvaro de Campos da Tabacaria, das Ode Triunfal e Marítima

- Lírica de Camões

- Buñuel (Las Hurdes, Veridiana, Los Olvidados, e sobretudo Un Chien Andalou”, em colaboração com Dali)

- O poema Liberté de Eluard, dito maravilhosamente por Gérard Philipe

- Le Deuxième Sexe, de Simone de Beauvoir

- A doçura brasileira de Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Chico Buarque

- O humor irónico e grave dos autores católicos ingleses (Graham Greene, Evelyn Waugh, Kingsley Amis) ou o dos judeus americanos (Saul Bellow, Philip Roth); o absurdo claustrofóbico da Metamorfose ou do Processo de Kafka

 

Há 40 anos havia um Instituto de Alta Cultura. Havia portanto a “alta” e a “baixa” cultura (como hoje há o “banco bom” e “banco mau”?). Essa era a visão dominante. Mas já nos anos 60, artistas e intelectuais descobriam a cultura popular (que opunham ao folclore oficial). Pintores e arquitectos do Porto incensavam Rosa Ramalho. Michel Giacometti percorria o país a recolher com urgência o que restava da música popular pré-televisão. Líamos Edgar Morin e Roland Barthes. Eu conseguia apresentar na Faculdade de Letras uma tese sobre “o mito do cowboy na cultura americana”! Morto o prof. Monteiro Grilo, que aceitara ser meu orientador, vi-me confrontada com um examinador particularmente interessado em saber se eu distinguia uma Winchester de outras espingardas ou um Colt 45 de outras pistolas…

Para mim cultura é pensar. Pensar pela própria cabeça, sabendo o que outros, noutros tempos e noutros lugares, pensaram sobre um assunto. É um saber digerido, assimilado, relacionado, apropriado, recriado. Cultura é a arma para combater o lugar-comum, a banalidade, o preconceito e a indiferença. Distingue-se de erudição pelas dimensões da criatividade e do fazer.

Exige leituras, convívio com obras de arte em vários suportes e com pessoas interessantes – mas anos também. Confesso que acho difícil ser-se culto quando se é muito novo. Porque cultura requer um olhar próprio e um olhar próprio constrói-se a partir da experiência e da reflexão.

Por muito que tenha relativizado a cultura, identifico-a com o que é mais universal, mais intemporal, mais belo e mais humano.

Todos temos um “inconsciente cultural” muito ligado aos contextos de vida, construído aos poucos, cumulativamente, quase sem nos darmos conta. Depois, de vez em quando, é possível identificar um encontro especialmente iluminador, sem que isso retire força, peso, importância a essa aprendizagem inconsciente.

O primeiro contexto é o da casa.

Dele destaco as histórias maravilhosas narradas por uma costureira quase analfabeta mas excelente contadora. Ou os livros enormes, A maravilhosa Viagem de Nils Holgerson de Selma Lagerlof e O Feiticeiro de Oz de Frank Baum, que a minha mãe nos lia.

Claro que em casa havia encontros reais… António Sérgio ofereceu-me uma tradução feita por ele de um poema grego sobre o envelhecimento. Espanto dos meus pais: que pouco apropriado a uma criança! De facto, na altura pouco lhe liguei, mas reli-o mais tarde e nunca mais o esqueci. Ainda hoje o sei de cor.  

No Lycée Français Charles Lepierre, o professor Rui Grácio desafiou-me a ir com ele e com a mulher (a Dra. Maria Ângela) a uma matinée clássica do Tivoli ver o filme de Bresson Fugiu um Condenado à Morte. Um encontro fundamental para querer ir mais além do que o que a escola podia dar.

Na Universidade, o contexto cultural mais decisivo era nos bas-fonds da cave, nos “subterrâneos da liberdade” da Associação Académica. No bar era onde o David Mourão Ferreira confraternizava. O Centro de Estudos Brasileiros era animado pelo Ruben A., o Eduardo Prado Coelho refugiava-se no de Literatura Francesa, e na pró-Associação encontravam-se colegas como a Fiama, a Luizaa Neto Jorge, o Sottomayor Cardia, e, é claro, o José Medeiros Ferreira.

Encontrei um dia um livro muito interessante chamado College of one, de uma jornalista que viveu com Scott Fitzgerald nos últimos anos da vida dele. Tratava-se de um curso de cultura geral que Scott Fitzgerald construíra para a autora, muito mais nova do que ele. Era sobretudo uma tentativa de cânone, não tanto de obras literárias mas de obras de pensamento, que contribuíram para o mundo tal como o conhecemos.

Nesse contexto, eu incluiria certamente a Bíblia, Platão, Aristóteles, a Utopia de Thomas Morus, obras fundamentais do Marxismo, de Darwin, Kant, William James, Piaget ou Vygotsky, Freud, ou do processo que conduziu à Declaração Universal dos Direitos Humanos. E obras literárias, sim, porque são as que melhor contribuirão para conhecer, compreender e sentir o ser humano.

 

Teresa Guimarães, médica oncologista, 1970

 

- Se isto é um homem, de Primo Levi

- A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi

- Hedda Gabler, de Henrik Ibsen

- A Leiteira, de Vermeer

- O Rapto de Proserpina, de Bernini

- Mark Rothko (como expressão última da pureza da alma)

- A poesia de Manuel António Pina

- O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig

- Breviário do Mediterrâneo, de Predrag Matvejevitch (pelo tom enciclopédico e questionamento do que é a Europa)

- O Sangue dos Outros, de Simone de Beauvoir (e muitos outros livros e filmes sobre a Segunda Guerra Mundial)

 

No primeiro dia de faculdade, no curso de Medicina, li uma singular inscrição no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar: “Um médico que só sabe Medicina, nem Medicina sabe”. Ficou a ecoar em mim até hoje, passados 20 anos.

Ao Manuel António Pina, ouvi repetidamente a frase de Jorge Luís Borges: “Somos as pessoas que conhecemos, os lugares que visitamos, os livros que lemos”.

Sou isto. O encontro com o Pina, a inscrição de Abel Salazar, a aprendizagem com mestres da ciência foi um privilégio, essencial na minha formação. Vou nomear alguns: Nuno Grande, Alexandre Quintanilha, Sobrinho Simões.

Com o meu marido, João Luís Barreto Guimarães, poeta e cirurgião, tenho a oportunidade de contactar com autores, filósofos, artistas, que me ajudam a ler e a interpretar o mundo de uma forma mais completa, numa pluralidade de opiniões e conceitos.

A noção de saber mudou. Hoje, e talvez devido à evolução do conhecimento científico e tecnológico, cada indivíduo sabe mais de menos assuntos. Shakespeare dizia: “Enfrentamos a época tal como ela se nos apresenta”. Estes são tempos de conhecimento rápido, voraz. Cada pessoa já não transporta em si o conhecimento construído das gerações anteriores.

O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig (1881–1942, judeu nascido em Viena, amante das letras e do teatro), dá-nos um retrato nostálgico da Europa antes e durante as guerras. Estas memórias evidenciam o desencanto, a destruição ocorrida com a ascensão do nazismo. Zweig descreve o anti-humanismo inimaginável somente com a ajuda da memória, uma vez que foi despojado de tudo e isolado dos seus livros, dos seus amigos, das pequenas anotações. A memória surge como matéria-prima e cofre do conhecimento, baú de tesouros há muito passados.

Este exemplo ilustra de forma simples como mudou o suporte. Para mim, esta é a mais relevante diferença entre o que era ser culto há 60 ou 40 anos, quando o acesso à informação era precário, escasso ou inexistente. A nossa memória pessoal e colectiva foi transferida para a máquina, para essa poderosa biblioteca tecnológica onde parece estar agora todo o conhecimento. Ou seja, passou-se de uma “memória interna” para uma “memória externa”, oferecida de uma forma simplista pela máquina.

O interesse pela arte e pela literatura transforma o meu trabalho como médica oncologista. É uma disciplina exigente, tanto cientificamente como na relação diária com os doentes; estes encontram-se muitíssimo fragilizados por uma doença com uma conotação fortíssima, que os aproxima a cada dia da morte. Humanizar os actos, as consultas, através da beleza e da arte, da compreensão dos assuntos da alma, da condição humana, é muito importante. A resposta a estes enigmas aproxima-me, nem que seja tenuemente, daqueles que sofrem.

Só assim, nesta plenitude de humanismo, entendo a minha especialidade. E só assim entendo ser possível eu própria sobreviver, diariamente, às historias trágicas que me são dadas a conhecer e a resolver. Os doentes colocam em mim uma expectativa abrangente, convocam áreas do saber que ultrapassam o conhecimento médico purista (ao qual tenho obrigação ética, moral e científica de corresponder).

Mas, nestes diálogos constantes, durante anos de relação fiel (que é habitual nesta especialidade), sou eu quem tantas vezes é salva pelos doentes, pelo seu saber, pelas suas descobertas pessoais ao longo do percurso. São eles que me abrem portas a novas aprendizagens.

Duas peças que me impressionam especialmente, um livro e uma escultura. Se Isto é um Homem, de Primo Levi é uma prova viva da barbárie de que o homem é capaz. Devia ser lido nas escolas por forma a que uma tal barbárie não se repetisse. “Retirai-lhes tudo, a dignidade, a alma, a família, a casa, despi-os da roupa, dos bens, da sua geografia e assim sereis capazes de compreender como tal monstruosidade foi possível.” Em O Rapto de Proserpina, Bernini transforma o corpo da mulher – em pedra – num corpo real, palpável. É uma escultura carnal, arrebatadora no detalhe, na tensão da mão masculina na coxa da mulher. Exprime a intensidade da paixão. Bernini é exímio na arte de amar!

Se fosse ministrada lado a lado com a Matemática, a Biologia, o Português, uma disciplina de Cultura Geral e o contacto com os livros e obras de arte seriam encarados como um exercício natural. Desapareceria um certo receio e intimidação que as gerações mais jovens exibem inúmeras vezes. Tudo seria mais fluído e próximo. Nada deveria ser obrigatório, mas sim colocado à escolha, num enorme leque de possibilidades. O professor mostraria o caminho.

 

Tomás Cunha Ferreira, pintor e músico, 1974

 

- Qualquer coisa do Morton Feldman

- Amyr Klink atravessando o atlântico num barco a remos

- O livro das Pinturas e Platibandas de Anna Mariani

- As pedras pintadas do Fernando Lanhas

- A pintura The Wild do Barnett Newman

- Caetano Veloso e a Banda Cê

- O Apanhador de Pirilampos do Fernando Assis Pacheco

- As pinturas corporais dos índios sul-americanos

- O Zabriskie Point do Antonioni

- My Favorite Things do John Coltrane

 

Gosto muito da expressão “prestar atenção”. Supõe que a atenção é algo que se dá, que se presta ao outro e ao mundo. A utopia da cultura é ser dádiva, é um dar-se ao mundo. Por isso a “cultura geral” não pode ser a acumulação intelectual disto e daquilo, e sim uma entrega. Pode ser uma entrega total a uma pequena parte do mundo. Isso basta.

O Caetano usa o verbo lançar. Lançar é o grande lance. Seja em verso, prosa ou tela.

O compositor americano Morton Feldman diz que Cézanne nos faz ver a Renascença como primitiva. Temos o defeito de ver uma evolução contínua no tempo. Podemos ser contemporâneos de Giotto ou Brancusi. Podemos desenhar como Galileu Galilei ou como os homens nas grutas de Chauvet, não estamos assim tão longe. Noutro dia inventei uma palavra: “ontemporâneo”. Isso somos todos.

Cultura? Não sei. Deve ser o tecido que faz o ser humano. A trama, a rede, os fios? Ou os nós e os laços, como no título do Alçada Baptista? Para mim cultura é tudo que seja comum. Cultura é o que há entre nós. Lembro-me às vezes do que disse o Gilberto Gil quando tomou posse como Ministro da Cultura do Brasil (googlei, não sei de cor):

“Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos.” Eu acrescentaria ainda os grandes e pequenos nadas de que a vida é feita.

Fui influenciado por toda a gente, penso bastante em pessoas que não conheço. Devorei os discos e os livros do meu pai e da minha mãe. Agora desaprendo muito com as minhas filhas e o meu filho.

Como aluno, e nos últimos 12 ou 13 anos como professor de artes visuais, gosto da ideia do ensino como uma colaboração entre aluno e professor. Mais do que a passagem de ideias, conhecimentos, prefiro a colaboração entre duas ou mais pessoas que se encontram a partir dos seus pontos de vista. O trabalho do professor é antes de tudo estimular, criar força de vontade, atiçar, ajudar a abrir clareiras.

Gosto ainda, muito, de aprender coisas no Youtube: técnicas de pintura dos Expressionistas Abstractos americanos, os acordes que o João Gilberto faz no violão, como fazer um chapéu de palha.

Sou ambidestro, e talvez por isso não confio muito em especialistas. Prefiro Fernando Pessoa e os seus heterónimos. Temos que nos inventar plurais. A primeira coisa que Goethe fazia quando chegava a uma cidade, era subir a uma torre, de preferência a mais alta, para ver a cidade inteira, lá de cima. Tenho vertigens, e penso nisto quase todos os dias. O pintor Giorgio Morandi (um dos maiores!) viveu sempre na mesma casa e na única vez que saiu de Bolonha, não foi muito longe. Era uma outra espécie de vertigem; qual destas vertigens pode chamar-se de cultura?

É um mau princípio que exista uma disciplina chamada Cultura Geral. Será uma especialização em generalidades? A necessidade de uma disciplina assim vai contra a própria ideia de escola. Cultura, particular e geral, é o que as escolas proporcionam, em princípio, por definição.

As escolas deviam ser mais efémeras: temos a mania de congelar a história e fixar fórmulas. John Cage dizia que em vez de lermos todos os mesmos livros, cada um podia ler um livro diferente, e depois contar ao outro.

Seria útil também que aprender a escrever e fazer contas não fosse mais importante que aprender a desenhar ou tocar um tambor. A escola não devia ser um sistema de hierarquias falsas. A escrita e o desenho, a matemática e a música, são quase a mesma coisa, com nomes diferentes.

Há pouco tempo vi um pequeno filme sobre o ensino nas tribos indígenas, no Brasil. A certa altura, o Pajé (chefe da tribo) vai buscar um curumim (uma criança) que está debruçado sobre uma folha de papel, numa espécie de sala de aula totalmente aberta, sem portas ou janelas, e diz-lhe: “Você já aprendeu a ler, agora vem aprender a dançar”.

Há dias fiquei chocado porque uma grande artista brasileira não sabe quem é Dudi Maia Rosa, um dos meus pintores favoritos, brasileiro. Talvez seja mais chocante que eu o conheça. Estarei a tornar-me num especialista?

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nelson Rodrigues

05.08.22

Vamos bater um papinho. Aí você me responde: Fala. Nelson Rodrigues, você conhece esse sujeito? Como não conhece? “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei-de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”. Aquele tarado, pois então.

Uma amostrinha, não exactamente comedida.

“O senhor sabe que eu tinha adoração – adoração! – por minha mulher. E quando ela morreu, eu estava disposto a me matar. Dois dias depois do enterro, descobri o revólver que tinham escondido. Tranquei-me no quarto. E, lá, cheguei a introduzir na boca o cano do revolver. Mas isso me deu uma tal ideia de penetração obscena. (…) Na minha cabeça, as duas coisas se misturam. Não me matei, porque tive nojo, asco do sexo”.

Esclarecido? Primeira coisa que talvez deva saber sobre Nelson Rodrigues: na sua cabeça, na sua cabeça enorme como a de um anão de Velásquez – auto-retrato –, as duas coisas se misturam. Sexo, morte – há muito para além disto?

Outra penetração obscena. «E então, fez o seguinte: introduziu na boca o cano do revólver (teve a sensação de que praticava algo de obsceno) e puxou o gatilho. Sua chapa dentária descolou».

Sacou?

Nelson Rodrigues era uma flor de obsessão – catalogação do próprio. Como anjo pornográfico. O cardápio de algumas das suas obsessões.

A infidelidade: “Essa tia Moema era demais. Todas as manhãs, mal saía o esposo, o marido legítimo, entrava o amante. Este ficava, num café de esquina, esperando que o corno passasse. E o escândalo era maior pelo horário: nove, dez da manhã. Aquela pouca vergonha matinal assombrava a vizinhança”.

Quem são as adúlteras? “Você, meu caro, desconfie da esposa amável, da esposa cordial, gentil. A virtude é triste, azeda e neurastênica. Sabe qual foi a esposa mais amável que eu já vi na minha vida? Sabe? Foi uma que traía o marido com metade do Rio de Janeiro, inclusive comigo”.

O corno. “Fulano, me dá um nome para corno!/ Alguém lhe soprava: Gusmão. Nelson achava graça e aceitava./ Você tem razão, Gusmão é batata”.

Um tipo de corno: “Gosto demais de minha mulher. E gosto tanto que não te mato para que ela não sofra.” “Não aceito devolução! Ou tu ficas com minha mulher, ou eu te dou um tiro na boca. Escolhe!”

Ódios bíblicos, Abel e Caim na porta do lado. “Serginho, se você odeia seu pai, eu odeio meu irmão. Odiamos o mesmo homem. (Mais baixo ainda, com um riso curto e pesado) Precisamos não esquecer as tias, hem, Serginho?”

A grande obsessão: a família.

“Sabino lembra-se de uma noite, há bastante tempo. Glorinha teria uns quinze anos. Ele estava no quarto, de suspensórios. Usava o suspensório, porque o cinto podia magoar a úlcera. Entra Eudóxia (só a mulher o via sem paletó). Vinha feliz:

- Imagina que eu estava olhando o cesto da roupa suja e vi lá uma calcinha de Glorinha, que ela mudou agora. Glorinha está incomodada. Sabe que nem o incómodo de Glorinha cheira mal? Não tem cheiro e o sangue é cor de rosa.

- Parece maluca! Eudóxia, é preciso um mínimo de pudor. Sabe o que é pudor?”

Nesse ponto do campeonato, você está achando que não conhece pessoas assim? Olha só a definição de Nelson para a sagrada instituição, escrita nas suas memórias: «Toda a família tem um momento em que começa a apodrecer. Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. Lá um dia aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo».

Escreveu de tudo. Folhetim (alguns com o pseudónimo feminino Suzana Flag, como Meu Destino é Pecar), romance, novela, “esporte” (“Pelé podia virar-se para Michelangelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los com íntima efusão:

- Como vai, colega?”),

short stories (A Vida como Ela É… durou dez anos, todos os dias, no jornal Última Hora), crónicas, consultório sentimental (assinava como Myrna). E teatro.

Idolatrava Eugene O’Neill, tinha lido Ibsen, Pirandello, Shakespeare. Alardeava ignorância. O magnata da comunicação social Roberto Marinho, protector de Nelson, disse-lhe depois de ler a sua primeira peça: “Você precisa parar com essa mania de ser um génio incompreendido”. Quando escreveu a sua primeira peça, Vestido de Noiva, datada de 1943, Nelson sabia que era um génio. Que nada do que se fizera antes se parecia com aquilo.

Poucos dias depois da sua morte, há 30 anos, o jornalista e escritor Paulo Francis sintetizava para a Folha de S. Paulo a substância do autor: “Bem, tudo o que escreveu tem um tema constante: o ser humano é prisioneiro de paixões avassaladoras, consideradas vergonhosas pela sociedade e, pior, pelo próprio ser humano. São quase sempre punidos. Daí o famoso e autoproclamado moralismo de Nelson. São paixões primitivas, o que irrita os intelectuais, em particular os de esquerda. (…) Em Álbum de Família, todas as personagens são desavergonhadamente incestuosas. A peça termina com a mãe matando o marido e indo unir-se ao filho nu. O próprio marido e pai pede à mulher que o mate porque não pode viver sem a filha já morta”.  

Falemos dos personagens desavergonhados (alguns desavergonhadamente incestuosos). Há homens castos que, depois de fazer amor doze vezes com uma prostituta, a enchem de “nojentinha, vagabunda, mictório público”. Há incontáveis que dão em cima da cunhada. Há meninas lindas e amorais. Mulheres que não resistem aos canalhas. Sogros que usam ceroulas de amarrar nas canelas. (Vê se pode?) Há personagens que mastigam a dentadura e dizem coisas brutais:

- Como é possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro?

 Há senhoras honestíssimas que nunca pensaram, jamais, nem por sombra, em prevaricar. Que dão tapa, cravam as unhas, fingem que gritam, assumem uma “voluptuosa resistência”. Cedem. A seguir dizem: “Foi a última vez”. Outras não disfarçam: “Gosto tanto que vim aqui me humilhar”. Há Engraçadinha (cujos amores e pecados foram adaptados numa série da Globo): “Apanha do gavetão a calcinha de náilon, que arrancara da menina. Rapidamente – e com uma sensação de crime – troca as duas pecinhas. Põe a da filha. Lentamente aproxima-se do espelho. Levanta a saia e pela primeira vez vê o efeito do náilon na sua carne. Diz, trincando os dentes, para a sua própria imagem:

- A mulher que usa isso é uma prostituta!”

Isto não mete palavrão, não. Precisa?

Mas mete descrições de genital feminino assim, ó: “O sexo de um rosa vivo de romã fendida”. E um monsenhor que sentencia coisas como:

- O ato sexual é uma mijada!

Perguntaram a Nelson Rodrigues (o poeta Manuel Bandeira, que o considerava um génio, também lhe perguntou): “Por que você não escreve sobre pessoas normais?

Onde estavam os personagens que tinham “flertes deliciosíssimos de ônibus” ou que gritavam irados: “Quero morrer leproso se estou mentindo!”?

Vamos até Aldeia Campista, bairro suburbano na zona norte do Rio de Janeiro. Segundo o biógrafo de Rodrigues, Ruy Castro, as vizinhas eram “gordas e patuscas”. Os homens eram “magros, asmáticos, espectrais”. Constituíam uma audiência vigilante, à janela, na soleira da porta. Era também uma vizinhança de “solteironas ressentidas, de adúlteras voluptuosas, e, não se sabe por quê, muitas viúvas – machadianas, só que com gazes enroladas nas canelas, por causa das varizes”.

(Um personagem, anos mais tarde: “A Ingrid Bergman. Não me interessa. E por quê? Não é viúva. Só gosto de viúva”).

Havia uma escarradeira em cada sala. “Os banhos eram de bacia, os partos eram feitos em casa e os velórios eram a grande atração da rua – ia-se a casa do defunto não para vê-lo uma última vez, mas para se assistir ao desespero da mãe ou checar a sinceridade da viúva.” Esses personagens, estas pessoas normais, existiam mesmo. Nelson Rodrigues “espremeria até à última gota” as suas idiossincrasias nas suas peças e contos futuros.

Vou te apresentar o cara. A vida do cara podia ser uma vida de um desses folhetins. Na verdade, esses folhetins eram bem a vida do cara. “Nasci a 23 de Agosto de 1912, no Recife, Pernambuco”. Primeira frase do livro de memórias A Menina Sem Estrela, escrito aos 54 anos. Bem cedo. Uma eternidade estava para trás. Segundo capítulo: “Toda a minha primeira infância tem gosto de caju e de pitanga. Ainda hoje, quando provo uma pitanga, sou raptado por um desses movimentos proustianos, por um desses processos regressivos e fatais”. Vamos ao que interessa. Terceiro capítulo: “Claro que o sujeito, seja ele um homem de bem ou um pulha, é um assassino falhado. Não há ninguém, vivo ou morto, que não tenha concebido a sua fantasia homicida”.

Um cheiro de morte. Se houvesse urubus, talvez rondassem.

Os mortos sucederam-se na vida folhetinesca da família. Primeiro o irmão Roberto. “Seu rosto era de um moreno de cinema e lembrava Rudolfo Valentino, o modelo vigente de beleza masculina. Era também vaidoso, atento a roupas, parecia estar sempre fumando de perfil”, retrata Ruy Castro. Desenhava, traço mórbido, erótico. Foi morto por uma granfa, sofisticada, aprumada, descontente com o modo como o jornal dos Rodrigues tratava o seu “desquite”. Decidiu vingar-se, apontou a arma, atirou. “Queria matar o doutor Mário Rodrigues ou o seu filho. Estou satisfeita».

Nelson tinha pouco mais que 17 anos, presenciou tudo. O pai soçobrou de tristeza passados meses. E com ele ruiu um império de comunicação. Pareceu então absurdo o tempo em que os Rodrigues apanhavam um táxi para atravessar a rua, na orla de Copacabana. Passou-se à extrema penúria, à fome negra, à tuberculose, chamada de “a morte branca”, um nome que Nelson achava “nupcial, voluptuoso e apavorante”. “Era uma doença tão fatal que, ao saber que estavam tuberculosos, muitos já se matavam de uma vez com formicida. Os três anos de pobreza e má alimentação haviam tornado Nelson vulnerável ao bacilo”, lê-se em O Anjo Pornográfico. Fez tratamentos prolongados no Sanatorinho, nos Campos do Jordão (há uma água com esse nome). Salvou-se.  

A miséria durou anos. Tinha um único fato, puído, que cheirava mal, com o vinco impecável, que uma das suas irmãs fazia diariamente. (O fato puído e mal cheiroso é um elemento constante nos personagens tristes das suas novelas futuras).

Casou. Roberto Marinho disse a Elza: “Está sabendo que vai se casar com um rapaz muito inteligente e de grande talento, mas pobre, absolutamente preguiçoso e doente? Sua mãe está coberta de razão!” Comemoraram a ida ao juiz na leitaria Palmira, “tomando uma média com torrada”, após o que voltaram para o jornal e se sentaram à máquina de escrever.

Tratavam-se assim:

- Meu filho, me faz um favor.

- Dois, meu doce de côco.

Também assim, quando Elza irrompeu pela garçonnière com Joffre e Nelsinho pela mão e quase flagrou o marido com Nonoca:

- Você vai sair daí, já, já, e voltar para casa! Senão eu atiro os nossos filhos pela janela!”

Foram casados vinte e tantos anos. Ele aparecia em casa com manteiga fresca e o jornal no bolso do paletó. Era para ser para sempre. Porque, como escreve Myrna no seu consultório sentimental, “o amor que acaba, não era amor. O amor é eterno. Só acaba quando não era amor”. Não era suposto que Nelson escrevesse, sequer, uma frase assim: “Acho que não chegaremos às bodas de prata”.

Teve um segundo casamento com uma menina de sociedade, quando já era o fauno Nelson Rodrigues, dramaturgo nacional, iconoclasta, autor de frases que gelam um jantar: “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém.” Ela era uma grã-fina linda, vinte e tantos anos mais nova, uma ninfa. Nasceu-lhes uma filha cega, Daniela – a menina sem estrela, que deu o nome ao livro de memórias.

Mas foi ainda com Elza que se passou uma das histórias mais populares de Nelson. Olha só, te boto uma frasezinha: “Elas gostam de apanhar”. As feministas e as mulheres com um pingo de auto e hetero-estima fecham o livro nessa passagem. Quem não fecha, fica sabendo que o começo da narrativa é A Esbofeteada, da série A Vida Como Ela É.

Isménia contava às amigas como “viu estrelas” quando o namorado “lhe sentou a mão, direitinho”. Silene, a mais pudica das meninas, ouvia e experimentava “uma crispação de asco e deslumbramento”. Claro que acaba caindo nos braços do namorado da amiga. Contudo, Sinval não exprimia o ciúme que o levara, no passado, a esbofetear Isménia. E Silene puxa a corda. “Nas festas dançava de rosto colado”. “Você não é homem. Se fosse homem, eu não faria de você gato e sapato”. (...) Com um meio sorriso maligno, anuncia: “Ele me beijou”. Sinval não disse uma palavra: derruba a noiva com uma tremenda bofetada. Ela cai longe, com os lábios sangrando. “Esperei tanto por essa bofetada! Agora eu sei que tu me amas e agora eu sei que posso te amar!”. Nos momentos de carinho, ela pedia transfigurada: “Me bate, anda! Me bate!”. Foram felicíssimos”.

Que é que as vizinhas, além de assoar a coriza, haveriam de pensar? Evidente. Mas Elza não apanhava nem com flor, nem com vaso. Verdade. «Ou você explica a frase ou dá um jeito nisso», exigia a mulher. Ruy Castro conta que na escola os meninos perguntavam a Joffre: «Como é, tua mãe já apanhou hoje?».

Não satisfeito, Nelson rematou a questão: “Nem todas mulheres gostam de apanhar, só as normais”.

Roberto Marinho tinha razão em tudo, quando falou a Elza de Nelson. Excepto quando o chamou de preguiçoso.

Ó seu Roberto, escute só. Me explica, vai. Como é que o cara sustenta a família, auxilia as irmãs, mamãe, escreve tudo quanto pode escrever e ainda por cima é preguiçoso? Me diz o que é que leva um autor como Nelson a escrever prosinhas com o nome de Myrna? Se bem que o biógrafo garanta que ele se comovia com a correspondência da mulher atarantada que recebia no jornal. Respondia assim: “Você termina dizendo que o seu bem amado é “bonzinho”. Eu, se fosse homem, consideraria este elogio ofensivo. Às vezes, um simples qualificativo chega para invalidar um romance. O nosso bem amado não pode ser “bonzinho”. É formidável, único, fabuloso, deslumbrante. Agora algumas palavras proféticas: você não se casará com o atual namorado. E por um motivo simples: você mesma se convencerá de que não o ama. Não se esqueça: com o senso comum não se fazem os grandes amores”. Não acha um conselho legal?

Frase a reter: com o senso comum não se fazem os grandes amores. Outra do mesmo calibre: “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”.

Outras prosinhas que ele fazia: “Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saía de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito. (…) Mecânico ou desconhecido, duas esquinas depois já cutucara o rapaz: “Eu desço contigo”. (…) No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la”. (A Dama do Lotação, um dos mais famosos contos de A Vida Como Ela É, adaptado ao cinema por Neville de Almeida, com Sónia Braga em 1982)

Mas muito antes da consagração, houve um tempo em que era proscrito. As peças censuradas, interditadas. A brigada da moral e dos bons costumes a chamá-lo de bisonho. O seu teatro, segundo os críticos, “concentrava em três atos todos os delitos previstos no Código Penal”. Mas que é que tem de mais o ódio de uma mãe por uma filha ou a adoração de papai pela filhinha caçula? Freud não havia falado disso, uns bons anos atrás? Não era por acaso que os psicanalistas do Rio adoravam o seu universo. O psicanalista de uma geração ilustre, amigo de Vinicius de Moraes, et cetera, Hélio Pellegrino, escrevia recensões psicanalíticas das peças de Rodrigues.

Quando Beijo no Asfalto estava em cena, Nelson ia todas as noites ao teatro. A cena é descrita em Anjo Pornográfico. “Ficava no saguão, de guarda-chuva no braço, com seu filho Joffre, tomando satisfações de quem saía indignado no meio do espetáculo. Corria atrás do sujeito e o interpelava: “Mas vem cá. Me diz uma coisa. O que o ofendeu nessa peça?”.

Não esqueçamos que Rodrigues era um anjo. (Que era pornográfico, já se provou à saciedade.) Onde está o anjo? Ruy Castro interroga: “Pipocas, ninguém enxergava que a força que o movia era uma profunda “nostalgia da pureza” – pureza que só seria atingida depois que o homem chapinhasse descalço sobre as mais hediondas impurezas?” Não.

Essa nostalgia está em todas as cenas, em cada linha, na contradição permanente? Talvez esteja no desejo de morrer ao lado do ser amado. Para falar novamente de morte. Depois de tanto ter falado de sexo. (Além dos devassos, também há personagens de Rodrigues que fazem “de mês a mês o papai-e-mamãe, de luz apagada” – última risada) As duas coisas não estão ligadas na cabeça do anão de Velásquez?

“Quem nunca desejou morrer com o ser amado, não amou, nem sabe o que é amar”. Nelson voltou para Elza, catorze anos depois de se terem separado. Houve ainda energia para umas paixões crepusculares. “Nós, os velhos, precisamos de um mínimo de puerilidade encantada, sem a qual seríamos múmias inteiramente gagás” (Memórias).

Morreu num domingo de manhã, dia 21 de Dezembro de 1980. Trombose e insuficiência cardíaca, respiratória e circulatória. Estava um calor de quarenta graus. Nelson pedira a Elza em vida que escrevesse na lápide o nome dos dois, sob a inscrição: “Unidos para além da vida e da morte. É só”.

 

 

PS: “Lembranças à tia machona”. Gargalhada final. Desce o pano.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010

 

 

 

 

Vinicius de Moraes

04.08.22

Vinicius foi o mais viniciano dos homens. Tinha dito sobre Oxford: “Toda uma religião, mas nada de vivo: de lawrenciano, de rimbaudiano, de dostoievskiano, de shakespeariano ou quem você queira de fundamentalmente humano em si”. Vinicius imprimiu um adjectivo. O que só se faz sendo um substantivo e peras. O é que ser viniciano? É saber “comungar com um crioulo do morro e bater um samba com a faca na garrafa”. É ser “um poliedro cujo número de faces tende para o infinito – Jobim dixit.

Tom chamava-lhe o seu Poetinha. Vinícius chamava-lhe Tomzinho, Maestrinho Querido. Toda a gente era inha ou inho alguma coisa. Para Carmen Miranda, ele era “Vesúvio” – “coisa que me derrete”. Para os amigos, Vinô. Outros, depois de uma noite de estroinice, acenavam-lhe na rua, “Hello De Moraes”.

Foi Vinicius porque o pai admirava o herói romano de Quo Vadis, Marcus Vinitius. A epopeia, o desígnio, a heroicidade estavam-lhe predestinados. A sua biografia começa invariavelmente pela seguinte linha: “A música chegara a Vinicius antes mesmo que a palavra, pois ainda bebé, cantarolava uma canção de ninar com a primeira letra que compôs: “Ê batetê, ê cabidu”.

Nasceu na Gávea, bairro de classe média do Rio em Janeiro, no dia 19 de Outubro de 1913. A rua era assim: “A minha rua é longa e silenciosa como um caminho que foge”. O pai tinha o nome improvável de Clodoaldo: “Se trocámos dez palavras durante a sua vida foi muito. “Bom dia”, “Como vai?”, “Até à volta”. Há pessoas com quem as palavras são desnecessárias. A vontade mesmo era a de abraçar com ele, sentir-lhe a barba na minha, e prantearmos juntos a inépcia para construir um mundo palpável”. O pai era latinista, arranhava o violãozinho. A mãe adorava cantar. Lydia Cruz de Moraes. “Caminito, os primeiros tangos argentinos, fox-trotes, as primeiras valsas, tudo ouvi através do canto de minha mãe”. Levavam uma vida tranquila. Empobreceram. Mudaram-se para a Ilha do Governador. Anos antes da poesia luminosa, em contacto com o sol de Ipanema, a aproximação ao mar, aos pescadores, à existência dos simples fez-se ali. “Uma grande liberdade que a Ilha proporcionava, né?”

O carácter viniciano talvez tenha começado nesses primeiros anos: na abolição de fronteiras “entre o erudito e o popular”, na junção da “poesia com o samba e o asfalto com o morro”. Talvez tenha começado, nessa experiência de liberdade, a ser “o branco mais preto do Brasil”. Ainda não era (não podia ser) o que viria a ser mais tarde: poeta, músico, diplomata, jornalista, crítico de cinema. De whisky na mão, "O uísque é o melhor amigo do homem, ele é o cachorro engarrafado”. E “tombeur de femmes” – como se escreve na biografia editada pela JobimMusic (de onde provêm as citações deste texto). Casou nove vezes. Sobre o amor: “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!". Teve cinco filhos. “Filhos… Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos, como sabê-los? Porém, que coisa linda, que coisa louca que filhos são”.

Podia ter sido tudo. Não sabia o que queria ser. Estudou Direito. Na faculdade conheceu Otávio de Faria e Augusto Frederico Schmidt. Mais importante: leu Baudelaire, Rilke, Proust. Ancorou-se nos simbolistas e românticos, escreveu poemas místicos. Um nervo que demoraria a extirpar. O ascetismo ia bem com a forma poética, mas violentava-lhe a forma quotidiana. Praticava a volúpia como quem nada na Lagoa Rodrigo de Freitas. Acariciou as pernas de uma amiga da mãe, “moça de pernas atraentes”, escondido debaixo da sala de jantar. Tinha 15 anos quando compôs uma canção-declaração a “Louras e Morenas”. Foi a sua estreia na composição, ofício a que voltaria, apenas, daí a 25 anos. Já era então diplomata e o poeta fundador da Bossa Nova. Era outro homem.

“Poderia este livro ser dividido em duas partes, correspondente a dois períodos distintos na poesia do autor. A primeira, transcendental, resultante de uma fase cristã. Na segunda parte (…) estão nitidamente marcados os movimentos de aproximação do mundo material, com a difícil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos”. A advertência de Vinicius, que consta da “Nova Antologia Poética”, originalmente editada em 1954 e reeditada recentemente no Brasil, alude ainda à “luta mantida pelo autor contra si mesmo no sentido de uma libertação dos preconceitos e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação”. A advertência data de 49. A deriva, ou o desejo, ou a necessidade dela, eram antigos. O viniciano estava prestes a ser.

Mostrou o Rio a Orson Welles, my friend Welles, foi íntimo de Manuel Bandeira, o Mané. Ouviu Sarah Vaughn, “a última grande cantora negra, uma maravilha que vou ver sempre que posso”, queixar-se dos atrasos constantes de Tommy Dorsey. Louis Armstrong era “o camarada”. Também havia Carmen Miranda, Pablo Neruda, havia everybody. Era o homem a quem o presidente Kubitschek, Juscelino para Vinicius, encomenda uma sinfonia para celebrar Brasília [“Sinfonia da Alvorada”, com Tom Jobim]. Mas quem ele gostaria de ter sido era “meu grande irmão negro Pixinguinha. Foi o ser mais lindo que encontrei dentro da escala humana. Eu tiro o chapéu para ele”.

Era uma “usina de ideias” imparável. Era um purista que defendia o cinema mudo. Foi crítico, fundou um cineclube, assistiu a projecções privadas em Los Angeles. Concebeu e desenhou a arquitectura poética de “Orfeu Negro”, uma revisitação do mito de Orfeu e Eurídice passado numa favela e transposto para cinema.  

Estava sempre apertado de grana. Escreve numa carta, em 1955, “estou precisadíssimo de dinheiro”. Noutra, de 48, confidencia: “A Carmen ofereceu a Tati um pequeno job, como uma espécie de secretária dela. Isso é segredo absoluto (a questão monetária), porque o Itamaraty pode não gostar. Mas ela vai ganhando uma gaitinha bem boa. E são só dois meses, um em Miami e um na Europa”. Ganhou uma gaitinha menos boa com o consultório sentimental Abra o Seu Coração, que assinava sob o pseudónimo Helenice, no tablóide Última Hora. Escrevia para aqui e para acolá, escrevia canções, escrevia livros de poemas. Nunca chegava – “Estou gastando como um verdadeiro Onassis”.

Supostamente ganhava a vida como diplomata. Primeiro em Los Angeles, depois em Paris, depois Montevidéu, novamente Paris, na sede da Unesco. Foi exonerado do Ministério das Relações Exteriores com um telegrama famoso: “Despeça-se esse vagabundo”. O surpreendente é que, apesar do deboche, do percurso errático, da afronta aos códigos do poder, o despedimento tenha tardado tanto: surgiu em 1969. O viniciano havia tomado conta de Vinicius.

As mulheres: Beatriz, como a amada de Dante – Tati para todo o mundo, com quem casou por procuração; Lila, Lucinha, Nelita (que foi raptada, para casarem na Europa), Cristina, Gesse, Marta, Gilda. “Eu sou um ser muito fiel, embora não pareça e digam que não sou. Esse negócio de parceria é um pouco como o casamento. De repente, sem que a gente saiba prevenir ou explicar, o negócio começa a mixar”.

Os parceiros: Tom Jobim, Baden Powell, Carlinhos Lyra, Chico Buarque, Toquinho. Ficou como um dos fundadores da Bossa Nova, mas esteve pouco tempo na Bossa. Zé Miguel Wisnik, um intelectual paulista, resumiu: “Vinicius sempre decepcionou a todo o mundo!”. Suzana Moraes, a filha mais velha, prossegue: “A primeira metade da obra é metafísica, e tem um rompimento disso para uma poesia do quotidiano, directamente influenciada por Manuel Bandeira e pelos poetas modernistas. Quando começou a fazer música, o pessoal da poesia, inclusive João Cabral de Melo Neto, ficaram horrorizados. Depois, largou a Bossa Nova e foi fazer afro-sambas com Baden [Powel]. Depois foi ser “pop star“ com Toquinho, fazer shows para estádios. Aí, passou para uma fase completamente hedonista. Que também foi muito criticada”.

Faz parte dos atributos do viniciano o hedonismo. Vinícius recebia na banheira, onde passava parte do dia – com uma temperatura e uma aquosidade uterina. Com metros de fio de telefone, uma garrafa de whisky e um copo. “De manhã escureço, de dia tardo, de tarde amanheço, de noite ardo”. Era um fauno. Depois do anjo que pretendeu ser nos primeiros anos. Apolínio e dionisíaco ao mesmo tempo. Internava-se numa clínica perto de casa para recuperar dos excessos, “para fazer plástica no fígado”.

Escrevia cartas; a maior parte, não chegava a mandar. “Tomzinho Querido, estou aqui num quarto de hotel, que dá para uma praça que dá para toda a solidão do mundo” (1964). É 7 de Setembro, dia da independência do Brasil. Lamenta estar longe. Pede os seguintes menus no seu regresso a casa: “Um tutuzinho com torresmo, um lombinho de porco bem tostadinho, uma couvinha mineira, e doce de coco”. Era diabético.

Participou num movimento musical a que poeticamente se pode chamar “A Onda que se Ergueu no Mar”. “Chega de Saudade” foi a canção inaugural do movimento. Em 1958, o poeta com a reputação intacta, Oxford e a diplomacia no currículo, atrevia-se a escrever: “Pois há menos peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que eu darei na sua boca”. Neruda invejava-lhe a liberdade: “Não tive a coragem dele. Era o que mais gostava de ter feito: letras de música. Mas tive medo que me desprezassem”.

Escreveu abundantemente. Começou a compor quando Lila, a segunda mulher lhe perguntou “Porque é que você não compõe?” – 25 anos depois de uma canção para louras e morenas. Partilhou palcos com Tom e João Gilberto – timidamente. Transformou-se num pop star que enche estádios no mundo todo – com Toquinho e Miúcha, por exemplo. Deu azo a que o folclore ofuscasse a poesia. “A minha vocação fundamental, definitiva, digamos assim, é lírica”.

Morreu num dos seus “langorosos banhos”, no dia 9 de Julho de 1980. O seu epitáfio poderia ser: “Nasço amanhã, ando onde há espaço, meu tempo é quando”.

 

 

Publicado originalmente no Público