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Anabela Mota Ribeiro

A casa de Frida e Diego

18.08.22

Viva Frida!, viva a pintora mexicana, que viveu um período de efervescência cultural e política. Viva Diego, o muralista famoso, o amante que lhe provocava o tumulto e a devolvia inteira (para usar palavras de Frida). Viveram numa famosa casa azul, em Coyoacán. Uma casa museu que permite conhecer a vida de Frida, a de Rivera, a dos dois.

É uma casa mexicaníssima. Talvez não o fosse quando foi habitada pelos pais de Frida e a sua história se resumia a uma casa térrea de paredes brancas. Há uma fotografia que a mostra assim, nessas primeiras décadas do século XX. Uma fotografia a preto e branco onde tudo parece pálido. Sobretudo porque agora submergimos num azul profundo, de um pigmento puro. Lá chamam-lhe azul anil.

Foi Diego que a pintou desta cor magnética. Não é só não conseguir deixar de olhar quando estamos lá. Aquele azul vem à ideia quando pensamos nisso, já noutra latitude. Uma cor não é uma coisa menor – nunca. E aquela era uma casa de artistas.

Uma definição aproximada: dizer que é um azul cobalto. Azul profundo, que já usei, sugere um mergulho. Instala-nos noutra temperatura, numa essencialidade que nada tem que ver com a vida da rua. A rua Londres que cruza com a Ignacio Allende.

Foi nessa casa que Frida Kahlo nasceu. Estava hipotecada quando a pintora se mudou com Diego Rivera para lá. Os pais de Frida haviam sido obrigados a esta operação para fazer face às avultadas despesas médicas da filha.

O tremendo acidente de Frida foi tão tremendo que virou lendário. Ela era uma menina que seguia num autocarro e acabou com uma perfuração pélvica e a coluna partida em três. Em Setembro de 1925. Uma parte dela ficou incapacitada para o resto da vida. A impossibilidade de gerar filhos resultava daqui. A dor lancinante, também. Há um desenho, por exemplo, que parece um esboço de anatomia, cravado de setas. Frida desenhou-o para falar dos pontos do corpo em sofrimento. Um mapa triste, repleto de linhas que se cruzam.

Ademais, tinha poliomielite desde criança. O corpo não era um aliado. Foi notável o modo como o superou, como se inventou. Tem-se uma ideia rigorosa disso quando se vê uma página do diário, escrita e desenhada logo depois de lhe amputarem uma perna. Diz assim: “Piés para qué los quiero, si tengo alas pa´volar”, 1954. Asas para voar... O limite?, o que seria? Asas para voar...

Morreria nesse ano.  

Portanto a casa estava hipotecada. A primeira coisa que Diego fez foi reverter o processo, a dívida, comprar a casa. Os pais de Frida eram vivos e continuaram a viver ali. Mas aquela passou a ser a casa deles. Passou a ser a casa azul.

Hoje há uma parede transformada em pequeno altar, abençoado por deuses aztecas, altar onde se lê: “Frida y Diego vivieron en esta casa – 1929-1954”.

A casa azul fica num bairro do tamanho de uma pequena cidade na imensa Ciudad de México. Coyoacán é uma zona plana, gizada com régua, copas de árvores a tocar nos telhados. A burguesia vive confortavelmente neste perímetro, algo silencioso e discreto se comparado com o carácter sempre excessivo da capital. É o tipo de lugar que tem um coreto na praça principal. As fachadas das casas são muitas vezes intensas, de cores de Frida. Há uma harmonia que é manifesta, a pairar.  

É a casa-mundo de uma pessoa que não cabe no mundo e que, por isso, inventa um à sua medida. O processo de criação de si parece mais involuntário que voluntário. Em qualquer caso, é consciente. Era preciso sobreviver ao que a martirizava e estreitar o canal de comunicação com a vida. Era preciso afirmar a vida. Não esquecer nunca que o último quadro de Frida é uma natureza morta suculenta, de uma frescura que apetece, melancia cortada em pedaços. Tão simples como um dia de Verão. Pintado por uma mulher em agonia que deixa a inscrição “Viva la Vida!”. Como recado último. Apesar dos desenhos de cactos, fetos, corações que sangram, vida que está seca ou a deixar de ser que abundam na sua obra e de que há imensos vestígios nesta casa.

Singular é uma palavra que vai bem com Frida. Embora não chegue. Nem o superlativo singularíssima chega. Frida era singularíssima, pessoa inteira, maior do que o sofrimento. Tudo nela é uma epopeia. A começar no amor com Diego. “Es Diego nombre de amor”, disse ela. Epopeia no dicionário: poema de longo fôlego acerca de assunto grandioso e heróico. Diego para ela, dito como quem escreve uma carta de amor: “Colectiva e individual é a arte de Frida. Realismo tão monumental que no seu espaço todo possui inúmeras dimensões; em consequência, pinta ao mesmo tempo o exterior, o interior e o fundo de si mesma e do mundo”.

A relação foi conflituosa, tortuosa, todos os adjectivos desta família. E de outra: iluminante, instigadora. O que se vê na casa é uma fénix que renasce. Lá está Frida, transmutada em heroína que sobrevive ao acidente, politizada até à medula, amante. Ave fabulosa, emplumada de tonalidades raras, híbrido de dia e noite, alegria e morte, homem e mulher, folclore e Surrealismo. Frida e Diego.

E lá está Diego, homem imenso que a mãe de Frida comparava a um elefante (a filha, por oposição, era uma pomba). Vinte anos mais velho. A força vulcânica que teima: porque é que um mexicano não pode ser um grande artista? Um grande tão grande quanto os grandes que confluíam em Paris, onde Diego também esteve, anos a aprender, a discutir, a pintar primeiro imagens inócuas, e depois temas que incendeiam, a política. Regressou ao México depois da revolução zapatista para perguntar, justamente depois da revolução: “O que é ser mexicano?”. A sua obra é uma resposta a esta questão complexa, nunca completamente satisfeita. O ser mexicano é ser povo, é lutar pelo povo, é estar do lado desses. (Num documentário, a primeira mulher de Diego, mãe da sua filha, diz assim: “A única coisa que admirava em Diego era o amor que sentia pelo povo. E mais nada”.)  

É o povo que aparece nos murais, no México, nos Estados Unidos. O povo e quem o guia. Caso do famoso mural que foi destruído por causa da aparição de Lenine. Há limites – pensou Rockefeller – que contratava. Não há, não – pensava Rivera, o artista que reivindica liberdade ilimitada no acto de criação. Acabou destruído, o mural.

Ser mexicano é coleccionar adereços da vida simples de todos os dias. Uma taça pintada com singeleza. Diabolitos (esqueletos que simbolizam Judas e que hão-de ser queimados no Dia dos Mortos) nas paredes. Máscaras, estátuas, artefactos pré-colombianos. (No mesmo documentário, conta-se que num dia de tempestade conjugal, a primeira mulher de Diego partiu em cacos certas peças de arte pré-colombiana e as serviu no prato, no lugar da sopa. Aquele era o jantar. Para doer.)

Frida, que apareceu mais tarde, fez com ele esta revolução, ergueu a bandeira. Pintou a foice e o martelo no corset que usava para segurar a coluna, em inúmeras telas, pintou retratos de Marx, Estaline, todos os inspiradores. A luta era pelo povo.

A casa de Frida e Diego era um lugar de tumultos, constelação de pessoas bizarras, de estrelas, espécie de panteão privado, também de pessoas vivas. Toda a gente desaguava na casa azul. Trotsky que ali viveu meses. André Breton de passagem (disse dela: “Candura e insolência, crueldade e humor”). A pintora Georgia O’Keeffe e a fotógrafa Tina Modotti, com quem Frida teve romances (manda o bom senso botar “alegadamente teve romances”, ainda que a informação circule por tudo quanto é sítio). O cineasta russo Eisenstein, os fotógrafos Edward Weston ou Álvarez Bravo, o revolucionário Pancho Villa.  

Naquela casa de jantar, enorme, de chão amarelo e figuras pré-colombianas nas estantes, estava sempre alguém. Não há memória de terem jantado sozinhos. A mesa fez-se para os amigos e para a discussão. Eram os anos 40, era urgente mudar o mundo.

Pensemos ainda no panteão privado de Frida. Quem faz parte? Na tela «Moisés» (1945), estão Nefertiti, Lenine, deuses aztecas, Freud, Alexandre, Buda, deuses egípcios, Apolo, Cristo, e, em especial, o Sol, centro de todas as religiões e criador da vida.

O milagre em Frida era a maneira como fazia dialogar estes e os anónimos, ligando-os numa genealogia que só ela saberia estabelecer.

Ela mesma tinha uma genealogia incomum, filha da velha Europa e de um México a reinventar-se. A melhor apresentação está num quadro que Frida pintou e que se encontra, em jeito de legenda, numa das primeiras salas da casa: “Pintei o meu papá Wilhelm Kahlo de origem húngara-alemã, artista, fotógrafo de profissão. De carácter generoso e inteligente e fino e valente, porque padeceu durante 60 anos de epilepsia. Mas nunca deixou de trabalhar. E lutou contra Hitler. Com adoração, a sua filha Frida Kahlo”.

A mãe tinha a cor tisnada das mexicanas que crescem ao sol, a pilosidade abundante que Frida, não só herdou, como cultivou e transformou em estilo. Num álbum de família surge vestida de tehuana, ataviada de folclore e anos de história popular. Anos mais tarde, Frida pintar-se-á assim. Mas na mãe a tehuana era uma aparição única para a fotografia. Em Frida, o estilo tehuano era uma exaltação do que era povo e raízes. Era uma forma de agradar a Diego, era uma forma de esconder as mazelas do corpo, era sobretudo um gesto político.

A casa: é onde Frida e Diego viveram, mas o letreiro diz apenas museu Frida Kahlo. É para a ver que milhares de pessoas fazem fila. Diego é um grande pintor, mas Frida não pertence a nenhuma categoria. É tão fora do baralho que continua a falar connosco, a olhar-nos de uma maneira perturbadora passados todos estes anos. A pintura de Rivera é devedora de uma força diferença. O seu carisma, também. A diferença entre eles talvez esteja naquela linha de Rivera que já citei: ela pinta o fundo dela e nisto pinta o fundo do mundo. Rivera pinta o mundo em revolução, a cratera terrestre que mexe. A sua pintura é eminentemente um discurso, uma expressão de uma ideal político. Frida pinta (demasiados) retratos de Estaline, mas pertence a outra estirpe. O mais tocante nos seus quadros reside numa qualquer coisa que ela consegue captar e os outros não. Num mundo subterrâneo. Num olhar de quem está mudo e é capaz de comer o mundo.

Então, a casa é mais dela. O seu espaço de trabalho está lá, os seus dois quartos também, as suas cinzas dentro de um pote pousado no toucador, em forma de rã (uma referência a Diego que se designava assim: a rã), também. Diego trabalhava num atelier próximo, tinha uma outra casa próximo.

A casa azul tem uma estrutura em U e é virada para um jardim. De um lado, os muros azuis que dão para a rua. Do outro, vidraças e luz, um pequeno tanque de chão de mosaico e dois sapos a nadar. O jardim, uma pequena pirâmide que imita a pirâmide do sol, esta desmesurada, as estátuas.

Os compartimentos principais são o atelier de Frida e os seus dois quartos. Os espaços formam um contínuo, dão a ilusão de corpo único. Estão lá a cadeira de rodas em frente ao cavalete, as peças pré-hispânicas, os livros de Filosofia, literatura, o trabalho de artesãos populares. A paleta de cores e o significado de cada uma: azul, um certo azul, representava a electricidade e a pureza, o amor; o azul marinho era a distância, e podia ser também a ternura. O amarelo era a loucura, a doença, o medo, parte do sol e da alegria. O verde era a tristeza e a ciência; “a Alemanha inteira é desta cor”.

Os quartos eram dois porque Frida precisava de descansar durante o dia, próximo do atelier, e de um quarto para dormir, à noite. Os dois são dominados por camas com uma estrutura de madeira e um tecto onde está um espelho (numa) e borboletas (noutra).

A cama com um espelho no tecto era uma solução antiga. Praticada desde o tempo do acidente, para resolver as horas, os meses que Frida passava imobilizada. Há fotografias que a mostram a olhar-se ao espelho, a pintar-se, um olho na tela outro na imagem reflectida. Alguns críticos pensam que o olhar opaco e distante dos auto-retratos têm que ver com esta relação com o espelho. O que pinta é o que é devolvido no reflexo. O olhar é quase inexpressivo. A dor e o assunto do quadro quase nunca são dados pelo olhar mas pelo que Frida pinta em torno de si, pela circunstância em que está. Especula-se também que a dimensão reduzida dos quadros passa por esta limitação física. Era preciso que fossem portáveis, que lhe coubessem facilmente nas mãos.

Na outra cama, o tecto tem borboletas. Belas, já metamorfoseadas, a voar. Nos dois quartos há fotografias de Marx, Lenine, Estaline, desenhos eróticos. O mais importante para Frida?, a política e o sexo como motores de vida?

Lá estão também as muletas. E noutra parte da casa a prótese que usou depois de lhe amputarem a perna. As adoráveis botas cor de rosa, pé talvez de tamanho 35, com bordados. As botas com salto desigual por causa da poliomielite. Os corpetes em que Frida fazia desenhos, a foice e o martelo, inscrições amorosas, e que assim eram menos colete de forças. Uma força precisa para segurar a coluna em desequilíbrio.

Este é um espaço quase secreto e aberto há pouco anos. Diego exigiu que estes adereços da privacidade de Frida fossem mostrados tarde, muito tarde. Vinte anos depois da morte da amiga que ficou cuidadora da casa-museu. Grande gesto, penso eu, de respeito pela mulher amada.

É uma série de pequenas salas de luz diminuta, onde estão as roupas, as jóias, objectos pessoais, o perfume francês. Em nenhum outro lugar como aí se percebe o sofrimento físico em que viveu esta mulher. E como era valente: não permitiu que isto – que nada – a derrotasse. Ou sequer que isto fosse o centro do seu discurso. Ao contrário, tudo parecia ser uma exortação à vida. Viva la Vida!, viva Frida!

A visita a esta casa possibilita o mergulho no azul – eléctrico, terno, puro – da vida de Frida e Diego. Se exceptuarmos a cozinha e o “comedor” (sala de jantar) dominado por um amarelo girassol, é o azul que nos envolve, em forma de U. Os objectos revelam uma vida voltada para o coleccionismo (sobretudo de peças pré-colombianas e de arte popular), a política, a arte. Há também alguns quadros de Frida, desenhos, fotografias, a almofada bordada onde se lê “despierta corazon dormido”, os dois relógios na sala de jantar. Um cujos ponteiros pararam quando Frida e Diego se separaram (dessa vez, a relação adúltera de Diego foi com a irmã de Frida). O outro relógio tem um tempo que recomeça a contar, quando de novo se casaram.

Esta casa de Coyoacán tem semelhanças com as casas ligadas de San Angel, um bairro vizinho. As casas ligadas são, na verdade, dois estúdios ligados. Uma tem o azul anil e pertence a Frida, a outra é cor de sangue e terra, um rojo por definir, e pertence a Diego.

Frida abandonou este estúdio, zangada com Diego, um dia. Todo o seu material de trabalho foi transferido para a casa de Coyoacán. Diego trabalhou aqui, o seu cavalete e pincéis e brinquedos e peças de arte e tudo o que aparece no seu caleidoscópio, permanecem aqui.  

As duas casas estão ligadas por uma ponte, um canal que lembra a artéria que liga os dois corações do quadro As Duas Fridas. Duas pessoas que se alimentam na sua especificidade, na diversidade, que se preenchem. Se a transfusão parar, uma delas morre?  

Frida morreu em 1954. O féretro foi acompanhado de cânticos da Internacional, cortejos de mulheres vestidas de tehuana, a bandeira comunista a cobrir o caixão, Diego inconsolável. O mito já estava vivo. Qualquer coisa nela não morre nunca.

  

Coyoacán está para a Cidade do México como Estoril está para Lisboa. Ou seja, pequena localidade, hoje engolida pela grande urbe. Ritmo de vida diferente. Para ir a Coyoacán, o mais fácil é apanhar um táxi. Não deve custar mais do que 20 euros. Não deve nunca apanhar um táxi na rua, por questões de segurança. Peça no hotel que chamem ou apanhe num ponto de táxis. A casa de Frida tem sempre uma fila para entrar. Pode ser de meia hora. Há autocarros que param aqui, é um dos pontos mais visitados do México. Enquanto se espera, há vendedores ambulantes que nos abordam. Podem vender vestidos bordados ou marcadores para livros, feitos em madeira. Uma senhora que me abordou, benzeu-se depois de lhe ter comprado marcadores. Outra fez o mesmo quando comprei barras de amaranto, um cereal muito comum e nutritivo.

Dentro da casa de Frida, há uma loja onde vendem adereços semelhantes aos que a pintora usava. Xailes, brincos, blusas. Preços bem razoáveis. Sobre horários de funcionamento e demais informações práticas, ver www.museofridakahlo.org.mx

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015 

A casa de Freud

18.08.22

Freud escreveu numa carta datada de Agosto de 1938: “20 Maresfield Gardens será a nossa última morada neste planeta, mas não poderá ser ocupada antes do fim de Setembro. A nossa casa!... E demasiado bonita para nós…”. A nota continha lapsos e emendas – um “espero” acrescentado na primeira frase, um “reunida” que foi riscado e que exprimia o desejo de viver em paz, em família.

A deambulação começara meses antes, quando a ameaça nazi pendeu sobre Viena e impeliu a família a um exílio forçado. Maria Bonaparte, descendente do imperador, e sobretudo mulher do Príncipe Jorge da Grécia – bem relacionada nos círculos do poder europeu, portanto – interveio de modo a garantir que os Freud levassem consigo “as suas vidas”. Não só as suas vidas no sentido orgânico, anímico, o que já não era pouco – o ímpeto nazi dizimava os primeiros judeus por essa altura, empunhava faixas com a suástica na ombreira das portas.

Foi concedido aos Freud que levassem consigo os pertences de uma vida, os objectos e as memórias que marcam uma identidade. A mesa da sala de jantar, o móvel rústico das férias de Verão, os tapetes para revestir o chão e o divã, o divã, a totalidade da sala de trabalho: a secretária, a cadeira original desenhada propositadamente para Freud, a pensar na posição diagonal em que lia, as estantes que guardavam os livros de Shakespeare, Dostoievski, as obras completas de Goethe, as tragédias gregas, as aventuras e o sabor da descoberta de Mark Twain, o maple verde no qual se sentava enquanto ouvia os pacientes. Sobretudo, veio nessa vida transplantada, de 19 Bergasse para 20 Maresfield Gardens, a colecção de antiguidades de Freud. As peças egípcias, as chinesas, as gregas. Os vasos, as estátuas, os bustos. Desenhos e gravuras. Bric a brac de um mundo em ruína.

Chegaram bem. Praticamente não sofreram dano. Foram dispostas nos seus lugares de sempre. Encapsularam Freud numa atmosfera familiar.

O ambiente da casa fornecia um quadro exacto de um fin de siècle, de uma Viena alvoroçada pelo próprio Freud, por Wittgenstein, pelo movimento Secessionista. As peças acompanharam-no entre retratos da família: a mulher Martha que saía para comprar mantimentos, a filha Anna que o seguia com uma devoção incestuosa, a criada Paula que vinha de tempos imemoriais, os cães, os filhos que apareciam para o almoço de domingo, a memória da mãe de Freud, que gostava de “aparecer bem e de não parecer muito velha”. Apareciam pacientes antigos – uns quatro happy few – , apareciam escritores como Stefan Zweig, Dalì (que fez do seu herói um desenho fúnebre), H. G. Wells que lhe propôs que se tornasse cidadão britânico. A musa inspiradora Lou Andreas Salomé. Virginia Woolf e o marido (que escreveu sobre o psicanalista: “Há nele qualquer coisa de vulcão semi-extinto, sombrio, reservado. Deu-me a impressão de ser um verdadeiro gentleman, um homem de uma imensa força”. E entre tudo isto, os manuscritos nos quais trabalhou até a doença o impossibilitar. Até morrer, em Setembro de 39.

Viveu o seu último ano naquela casa, solar, ampla, demasiado bonita para uma família habituada a um apartamento escuro numa rua como as outras em Viena. Aquela era uma casa de tijolo, como todas as casas em Londres, e permitiu-lhe morrer em liberdade – como era seu desejo.

Entra-se na casa como se entra na casa de uma pessoa que vive nela todos os dias. Estão os óculos sobre a secretária, um charuto meio fumado sobre o cinzeiro, uma taça de cerejas no aparador. Tudo permanece intacto, passados quase setenta anos sobre a sua morte. A casa – sobretudo o espaço de trabalho de Freud – foi fixada no tempo. Como um fotograma de um filme. Há um relógio que se avista da secretária: marca meio dia e quinze, marca Setembro de 1939, quando morreu.

Depois da morte de Anna, a predilecta, que viveu em Maresfield Gardens até ao fim, em 82, o espaço foi transformado em museu. Os pacientes de Freud, em Viena, comentavam que o consultório se parecia com um museu – tal a profusão de peças antigas. Hoje, o museu, em Londres, parece uma casa onde se mantém as rotinas e se desvela a intimidade. Os canteiros estão cheios de amores perfeitos, o jardim das traseiras está viçoso e bem tratado. À entrada, há um charriot onde o visitante pendura o casaco e ao fundo já se vislumbra o jardim. De permeio, há uma sala dominada pela escada que dá acesso ao piso superior.

A “sala de espera” caberia aqui. Mas a “sala de espera” foi removida para Viena, para que a casa que habitaram na Bergasse não ficasse completamente despida – a casa-museu de Viena tem meia dúzia de objectos, fotografias, o bengaleiro, alguns livros, muitos papéis. Por cima e por baixo, vivem famílias, exactamente como no tempo em que Freud ali morava.

O coração da casa da Maresfield Gardens é aquela divisão à direita, no piso térreo, onde cabem a sala de trabalho e a biblioteca. As cortinas estão corridas para preservar o espaço; mas quando Freud aí passava os dias, uma imensa janela atirava para o jardim e inundava o espaço de luz. Na penumbra, o quarto assemelha-se a um invólucro uterino – aconchegante, reconfortante, convidativo. E claustrofóbico, também. As estantes, os armários, as mesas estão repletas com a colecção de livros e peças arqueológicas – Freud estabelecia um paralelo entre o trabalho da escavação, próprio da arqueologia, e aquele que desenvolvia com os seus pacientes. Em ambos os casos, tratava-se de desenterrar pedaços do passado e contemplá-los à luz do dia. A cura passava pela palavra.

Tudo segue uma organização meticulosa. E tudo se relaciona, numa sequência ininterrupta. Os objectos do passado, as fotografias do presente, as evocações mitológicas (Édipo e Gradiva são as mais famosas), o mundano, o doméstico, o discurso dos analisandos. A presença ausente de Freud. Um maple verde vazio, um divã onde facilmente nos projectamos.

Recuamos até à sala intermédia, seguimos para a casa de jantar. Há pequenas notas que iluminam objectos dispersos. Um óleo com água corrente acompanha o que Freud escreveu sobre uma paciente, que sonhava com uma imersão nas águas; o mesmo acontece com uma taça de cerejas, uma vela partida ou um vaso com violetas.

Sobre as violetas: “Arranjei o centro de mesa com flores para o aniversário: lírios do vale e violetas”. O médico elaborou o seguinte, a partir desta descrição breve: as violetas são ostensivamente sexuais. Há uma associação que é possível fazer entre a palavra “violet” e o francês “viol” (que significa violar). A doente fez uma associação com a plavra inglesa “violate” e com a violência que há na desfloração – outra palavra com forte carga sexual. Talvez denote um traço masoquista no seu carácter.

Ainda no rés do chão, a loggia foi transformada em loja. Bela secção de livros sobre psicanálise, cadernos de notas, lápis e canetas, tshirts, pantufas, panos de cozinha, almofadas, ímanes, canecas, tiradas humorísticas – como aquele que sentencia: quando dizes Ah, isso lembra-me a minha Mãe!

O primeiro andar foi ocupado por Anna Freud. Contígua à sala onde se fazem exposições temporárias e outra onde se exibem pequenos filmes, fica a sala de trabalho da mais nova dos seis filhos do médico vienense. (Há zonas que não estão abertas ao público, entre elas aquilo que seria o quarto de dormir de Anna). É difícil encontrar palavras para descrever aquele espaço... Talvez dizer, sumariamente, que é horrível! Áspero, campónio, feroz. Anna trabalhou com crianças e fundou a psicanálise infantil. Mas seguiu também adultos, que a visitavam em Maresfield Gardens. Gostava de tricotar e tinha mesmo um tear, disposto ao lado do divã. O pai, em baixo, contemplava do seu maple a colecção de peças antigas. Anna, em cima, fazia tricot. A manta que forra o divã foi feita pela psicanalista. Mas parece um saco de serapilheira que corta em caso de contacto…

Na parede oposta estão livros, retratos, uma taça de morangos, outros objectos de trabalho. Igualmente intacto. Preso no tempo.

Como se, a qualquer momento, ela fosse a subir as escadas para trabalhar entre as suas quatro paredes. E antes disso tivesse aconchegado o pai na cama improvisada no jardim, onde ele revigorava ao sol.

Cá fora, está um belo dia de Inverno. Um frio de sobretudo e cachecol, mas de dentro da casa chega uma canção de Vinícius: “É melhor ser alegre que ser triste…”. Preso a uma árvore, está um cão que quase cegou. O dono afaga-lhe o pêlo. Chama-se Bobi, e são portugueses, sim. 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007