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Anabela Mota Ribeiro

Eduardo Lourenço

11.09.22

De como Hanna Arendt se apaixonou por Heidegger. De como a Natureza desperta, espasmódica, no coração da selva amazónica. De como a mulher o corrige conjugalmente por viver numa língua que não é a sua.

As brumas da infância. O desejo infinito de liberdade. A ferida de não ser um romancista. Os presuntos vendidos por mulheres ainda mais apetecíveis que os presuntos. O desencanto do mundo. O apetite de conhecimento, como o confirmou o sábio de Estagira. As visitas à irmã, carmelita. A atracção amorosa do mal. O orgulho, como único pecado contra o espírito. O futebol. O cinema. A Catarina Furtado, gentil criatura. O esplendor do caos.

Eduardo Lourenço, ouvido em Dezembro de 2003, no auditório do Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Adaptação da conversa mantida no decorrer do ciclo «Nós, a Cultura e Eu», comissariado por Guilherme Figueiredo. 

 

É verdade que tem um diário?

Se já o sabe, para que é que me faz a pergunta?

 

Porque podia tê-lo deixado a repousar...

Tem uma certa razão de ser...

 

Tanto quanto sei, é a irregularidade que define o seu contacto com o diário.  

No princípio era uma espécie de projecto de um diário, adiado, adiado para outro país, que se pode chamar póstumo. Depois comecei a arrancar algumas páginas, outras começaram a sair...

 

Porque é que pensou nele como um projecto póstumo? Tem que ver com um pudor que envolve a esfera privada?

O meu diário é já em si tão narcísico, ontologicamente falando... Salvo os diários de pura constatação, que faziam os secretários dos papas ou dos reis para que constassem as coisas significativas de uma época, os diários são uma invenção moderna. É um indivíduo que, escrevendo o diário, assume-se como criador de si mesmo.  

 

O que conhecemos de si, e a que temos acesso com o seu consentimento, são os escritos publicados em livro, em revistas e jornais. O que é que resgata para si? Que importância tem de ter uma coisa para que transite para o seu diário? Os grandes pensamentos são o que podemos encontrar na obra publicada; quais são os grandes factos que transporta para o diário?

Conheço o mínimo dessas páginas..., de vez em quando também tenho acesso a elas... O que encontro é um tipo de reflexão que não é tanto dessa esfera dita privadíssima, dos segredos inconfessáveis.

 

Sobre essa esfera, chega a escrever?

Sim, mas são coisas que só interessam ao próprio e que não devem incomodar a humanidade inteira.

 

Mas interessam.

Eu sei que o que interessa às pessoas é o insólito, o estranho, o escandaloso, e que se procura isso para ver se os outros são como nós. Se, afinal de contas, são tão miseráveis como nós. E tudo isso, em poesia, é confessado por Baudelaire, por Rimbaud. Essas descidas aos infernos, é interessante revisitar, porque estão bem escritas.

 

Tenho de confessar que me ocorreu fazer esta aproximação ao seu registo diarístico quando há umas semanas li um texto sobre Jacques Derrida, a quem perguntaram o que perguntaria a Hegel e Heidegger se os encontrasse. Inesperadamente, Derrida respondeu que indagaria sobre aspectos da vida sexual. Se encontrasse Heidegger ou Hegel, que coisas quereria saber?

O Hegel era difícil, porque já nasci mais de cem anos depois dele! Quanto ao Heidegger, não o encontrei, vi-o. Foi um dos momentos memoráveis da minha vida.

 

O que é que foi tão impressionante?

Eu estava naquela altura em Montpellier. Heidegger estava um pouco na sombra, marginalizado no plano intelectual, na penumbra da chamada opinião pública. Estavámos em 52, 53, depois da derrota nazi em 45. Havia um contraste fabuloso entre o ar banalíssimo da pessoa Heidegger – só reconheci um pouco do perfil, que fazia lembrar o de Cícero – e o que ele era como presença, como texto. Falou de Hegel e dos Gregos. Nunca mais esqueço essa lição. Havia mais de mil pessoas na sala, suponho que eram todos professores, grandes professores, e, de repente, estávamos reduzidos, como se estivéssemos a ouvir em pessoa Aristóteles ou Platão.

 

Consegue identificar esse elemento transbordante, esse algo que eu imagino que Heidegger teria para produzir essa impressão?

Uma aura. Uma profundidade, uma singularidade, uma raridade na abordagem de uma questão já tratada por outros pensadores ao longo dos séculos XIX e XX. Hegel e os Gregos são o horizonte de todo o pensar filosófico típico europeu. Heidegger põe as perguntas cruciais de uma outra maneira. Mostra como o pensar era despensar. Era um silêncio enorme. O texto era em francês, depois em alemão, francês, alemão, francês, alemão, de maneira que pudesse terminar em alemão. Foi uma espécie de grito, um momento sacralizante, se se pode levar o termo para qualquer coisa que é do mais dessacralizante possível, que é a palavra filosófica. Não tenho nenhuma memória dessas coisas concretas, senão era romancista. Só guardo desse momento a emoção que tive. O que é o Heidegger tinha? Um físico de alemão banalíssimo, da Baviera.

 

E a voz, como é que era a voz?

Ele devia ter qualquer coisa para que uma senhora como Hannah Arendt se tenha apaixonado por ele. E não se apaixonou senão pelo pensador, pela pessoa que tinha esse verbo e a iniciava na única coisa que ela própria procurava e não era capaz de formular da mesma maneira: a solução intelectual em estado puro. De outro modo, é absolutamente incompreensível. Todos os amores são incompreensíveis. Mas esse da Hannah Arendt, ela própria filósofa, judia, conhecendo uma parte do passado controverso ou mesmo suspeito do Heidegger...

 

O senhor pensou nesse elemento suspeito quando o ouviu? Falamos da aproximação do Heidegger à ideologia nazi.

Se soubesse que o Heidegger era um sujeito que aplaudia uma coisa tão pavorosa como foi o Holocausto, naturalmente que não ia assistir. Toda aquela gente hitleriana, efusiva, laborou naquilo. Os documentários dessa época são tremendos, um povo inteiro esteve fascinado. Mas não estamos aqui para falar do Heidegger...

 

Voltemos ao ponto de partida. Essa experiência marcante, como é que falaria dela perante uma plateia, o que escreveria dela no seu diário?

Acho que já o fiz. Agora, não me lembro. Uma das coisas para que se escreve é para não lembrar mais, para enterrar. Como se diz numa expressão vulgar: ligar à terra. Se por caso, essa terra também tiver raízes para o céu, melhor. De resto, mesmo que quisesse, seria incapaz. Se deixamos fugir certos momentos em que somos menos nós e mais aquilo que é o neutro, a voz impessoal que fala em nós, nunca mais os conseguimos apanhar.

 

O diário poderá funcionar como retenção dessa fugacidade, disso que, de outro modo, se perde?

Não se escreve para isso. Escreve-se para deixar um traço. Escreve-se por pensar que esse traço pode despertar no outro qualquer emoção, qualquer perplexidade, qualquer repulsa.

 

Espanto?

Tudo. Mas as coisas que interessam são aquelas que se escrevem por nada, só porque não podemos fazer outra coisa.

 

Qual é a memória mais antiga que tem de si?

É a do Porto. Embora tenha nascido na Beira, numa terrinha, vim para aqui pequeno. As primeiras imagens que tenho da vida são do nevoeiro, das fábricas, do nevoeiro que atiravam as chaminés. A família repercute esse género de memórias. Lembro-me da frescura de uma fonte onde o meu pai, que era militar, ia buscar água – é uma imagem rústica daquilo que era uma cidade. A imagem que mais me aterroriza, quando estou distraído, é a imagem de um vermelho sangue, que penso que era de um camião que distribuía a carne. Uma outra imagem, que não é do Porto, mas de Matosinhos, creio eu, é a da primeira vez que vi o mar. Da minha aldeia não se via o mar.

 

O que é que mais o impressionou? A imensidão ou a profundidade?

Eu devia ter dois ou três anos no máximo. Naquela altura não falava tanto! O mar deixa-nos literalmente sem fala. A imagem não era tanto um mar, mas um barco às avessas, pousado na areia, com aquelas cores, o azul, o vermelho. Da minha aldeia, a imagem que guardo, que é uma segunda imagem, é a da chegada, em cima de uma coisa enorme, podia ser um búzio...

 

Tendo a sua família uma marca religiosa vincada, porque é que foi estudar para um colégio militar e não para um seminário?

Isso só a minha mãe é que podia responder. E eu também, mas em segunda instância. Provavelmente a minha mãe desejaria que tivesse ido para o seminário, que era o ideal dela ter um filho padre. Como o primeiro não apresentava disposições muito visíveis para ir para o seminário, foi ensaiando todos, uns atrás dos outros. Até ao último, que eu tive de ir buscar uma vez ao seminário à Figueira da Foz, onde disseram que não o podiam lá aguentar, porque passava o tempo a espiar os padres! Por aqui já se pode ver que espécie de poder era o do meu irmão mais novo... Foi o único que ainda andou um ano ou dois no seminário. Finalmente, dessa matriz religiosa, quem pagou a conta divina foi a minha irmã, que é carmelita na Amazónia.

 

O senhor visita-a?

Agora não posso. A Amazónia é mesmo a Amazónia, e, à medida que se envelhece, estas travessias do Atlântico... O convento dela foi talhado na floresta amazónica. Uma senhora rica (as pessoas ricas podem ter estas coisas), achou que a gente fugida de Moçambique aterrava em Belém e merecia aquela esmola, aquela caridade bem feitora. Tinha um grande talhão e cortou-o. Quando se ia lá, acordava-se às três horas da manhã, com toda a fauna da Amazónia, tudo quanto é som, tudo quanto é grito, estridência, uma espécie de loucura que se apodera da natureza, de tudo à volta do convento. E foi para esta solidão que a minha irmã foi.

 

Quando lhe perguntei pelo colégio militar, ocorreu-me um excerto de um livro de Hermann Broch, “Os Sonâmbulos”. No primeiro tomo dessa trilogia, Pasenow, o personagem central, educado num colégio militar, faz uma longa dissertação sobre o uso da farda, de como isso talha o indivíduo. Devolvo-lhe esta questão.

Vivi o colégio militar como lugar de solidão, de afastamento de uma família numerosa. Era um corte que durava o ano inteiro; para vir a férias, mesmo no Natal, era um caso sério. Ficar cortado da família, quando se tem 11 anos, é forte. Foi, ao mesmo tempo, uma aprendizagem da liberdade. Quando somos pequenos, só sabemos o que é a liberdade quando a perdemos ou estamos entre dois mundos. O colégio militar fez nascer em mim um apetite de liberdade infinito. Nunca mais acabará.

 

Saiu de lá aos 17 anos.

Não se passa impunemente por esses anos. Passam por nós amizades, amizades daquele momento e únicas, uma certa camaradagem que existia efectivamente e que é um mito do colégio militar. Deve-me ter ficado alguma coisa do colégio militar, uma certa nostalgia que é simétrica do seminário para onde a minha mãe me queria mandar para que eu fosse bom e correcto nesta vida. Tenho uma adoração por um livro do Dino Buzzati, chamado “O Deserto dos Tártaros”. É a história de um rapaz, jovem oficial, que vai para uma fortaleza onde fica meses à espera que os tártaros apareçam no horizonte. Essa cor de uma vida absolutamente ritual, à espera de nada...

 

À espera de Godot, parafraseando Beckett?

Exacto. Aí não esperam um Godot, esperam os Tártaros, propriamente ditos!, que um dia acabam por aparecer. Os Tártaros aparecem sempre.

 

Porque é que se decidiu por cursar Histórico-Filosóficas? A Filosofia é a primeira grande marca, não só como estudante, mas também como professor.

Perguntavam a Hegel o que é que tal frase queria dizer, ele respondia assim: “Quando a escrevi, eu e Deus sabíamos o que é que ela queria dizer; agora, só Deus”. Sou a pessoa que menos escolheu a vida. Fui escolhido. Deixei-me escolher, como uma folha, como o vento. Fui para o curso de Filosóficas, nem sabia bem o que era. Havia um cónego que o Ministério da Guerra destacou para o Colégio Militar para nos dar lições de moral, e que tratou a questão da verdade e da mentira. Eu estava lá muito irrequieto e ele chamou-me, queria que fizéssemos um discurso sobre os malefícios, os horrores da mentira. Eu, já com alguma predisposição para ser contrário, ou engraçado, resolvi defender que “há certos casos em que a mentira se justifica”. Foi forte naquele tempo, estamos nos anos 30... O cónego estava muito admirado, pensativo, pespega-me com um 19. A fama de Histórico-Filosóficas era a pior que se possa imaginar. Coisa que hoje me deixa perplexo, porque em França é o curso mais cotado. Être un philosophe, e o professor de Filosofia é um filósofo, é o máximo. Os melhores são aqueles que escolhem a Filosofia, que é um curso extremamente exigente. Mas em Coimbra, naquele tempo, a fama era a de que, quem não sabia o que fazer, ia para Filosofia. Então lá fui eu para Filosofia, que não era Filosofia só, era História e Filosofia. Penso que fui mais pela História que pela Filosofia. Às vezes fui bom aluno, outras vezes aluno regular, mas tinha uma paixão pela História.

 

Pelo lado factual?

Não, não, não. A História como romance. O que me interessa é o drama, a peripécia humana, a dramaticidade intrínseca da vida humana.

 

Está a ver porque é que perguntei pelo seu diário?

Claro que não sabia explicar desta maneira... O meu tinha uma história. Lia História como quem lia romances. Aí é que posso dizer que o meu pai teve alguma influência sobre mim. O meu pai tinha feito estudos na Escola Comercial Raul Dória, aqui no Porto, e um dia contou uma história sobre o pai do Júlio Dinis, que o via escrever muito e um dia lhe disse: “Ah, estás para aí a escrever! Ainda se fosses como esse Júlio Dinis que publica folhetins”. Esta história nunca mais me esqueceu. Eu quis ser um pouco o Júlio Dinis de mim mesmo. Infelizmente, saí longe de romancista.

 

Quis ser romancista?

Sim, sim, toda gente quer ser romancista. A nossa vida, toda ela, é um romance pegado. Agora, é preciso ter a coragem de passar esse romance, de entregar esse romance, de querer esse romance. Outra coisa é ser consciente daquilo que se é, das capacidades que se tem. Enfim, é preciso ter, como se diz e muito bem, vocação. Eu tive na minha geração gente que era romancista. Carlos de Oliveira e outros, sem falar nos mais velhos que conheci em Coimbra. Eu sabia que não era capaz, não tinha o sentido concreto que ele tinha. Eu vejo conceptualmente. Ou melhor, eu não vejo, sou cego. Eu não vejo nada. Eu leio. Só me interessa o sentido das coisas, não propriamente a realidade das coisas. A minha vocação não era essa. Mas, como o lamento!, c’est la blessure de ma vie, a ferida da minha vida.

 

Olhamos para si como alguém que dedicou o seu projecto de vida ao conhecimento, à captação desse sentido. A constatação disso foi qualquer coisa que só pôde perceber no decorrer dos anos ou foi uma pré-determinação?

O desejo de conhecimento é o que define o homem, desde Aristóteles. Somos aquele que deseja conhecer, deseja conhecer tudo, deseja conhecer sem fim. Os gregos foram os primeiros a falar dessa libido, desse tonel que nunca seria preenchido, que a sabedoria máxima era ter o conhecimento do que não se sabe. Há o saber positivo, o saber que se aumenta constantemente e do qual o discurso científico é feito. Depois, há um saber que é o do sentido desse mesmo saber ou da nossa experiência em geral. E este é de uma outra ordem, não tem a compensação euforizante de uma verdade que se conquista, que se pode guardar, que se pode requisitar, preencher, tocar. A verdade não é qualquer coisa que podemos ter na mão, é qualquer coisa que nos despe de todas as certezas. Sobretudo das infundadas. Esse é o ofício do filosofar propriamente dito. Quando entrei para o curso de Filosofia isso não me era tão claro. Tive a sorte de ter muito bons professores a que presto sempre homenagem. Como diz o Hegel, somos condenados por Deus a ser filósofos, a esse apetite de conhecimento, mas o conhecimento é saber que nunca poremos a mão na verdade como uma coisa que se possui e nos liberta e nos dá a solução: aquilo que buscamos na vida. Nós buscamos, como dizia o Pessoa, também.

 

Gostava de lhe pedir um comentário para um verso maravilhoso da «Antígona» de Sófocles: «O homem nada sabe até queimar os seus pés no fogo ardente”.

Não tem comentário. A poesia, quando é, ela é o dizer absoluto. Não vale a pena, eles dizem. Quando Shakespeare diz uma coisa, é o que nós diríamos se fôssemos Shakespeare.

 

Tenho sempre a impressão de que há uns quantos autores a partir dos quais se pode saber tudo sobre o mundo _ ainda que só saibamos verdadeiramente se queimarmos os pés no fogo ardente. Vamos ao Shakespeare, vamos ao Borges, vamos aos Gregos, vamos a Goethe, e está lá tudo. Que frases é que gostaria de ter proferido?

Provavelmente aquela de que ando à procura e que ainda não encontrei.

 

À procura, à procura, sempre a procura. O nosso projecto é a demanda, é isso?

Exacto.

 

Para que serve a cultura?

Em última análise, para nada.

 

Tradicionalmente é considera inútil.

A cultura serve para nos despir de toda a arrogância, particularmente essa que consiste em imaginar que, sendo cultivados, encontramos Deus. A cultura é um exercício de desestruturação, não de acumulação de coisas. É uma constante relativização do nosso desejo, legítimo, de estar em contacto com aquilo que é verdadeiro, belo, bom. É esse exercício de desconfiança, masoquista, de desencantamento. Só para que não caiamos no único pecado, que é verdadeiramente o pecado contra o espírito: o orgulho.

 

Porquê o orgulho?

Porque é a pretensão de assumir uma pose divina.

 

No sentido grego de «hybris», de afronta aos deuses.

A Igreja nunca se engana nessas coisas. O orgulho é o pecado de Satan, é o facto de querer estar no lugar de Deus.

 

A dimensão religiosa, como fonte de conceitos e referências, é indissociável da cultura?

E de que maneira! A França neste momento está completamente enlouquecida porque duas raparigas de religião muçulmana querem à viva força ir para as aulas com um véu. A França não sabe que resposta dar a isto. Provavelmente vai dar uma resposta legalista, invocar o ideal de laicidade, dizer que o uso de insígnias ostentatórias de carácter religioso não é admitido por aquilo a que o filósofo espanhol Savater chama “a religião francesa”. A religião francesa consiste fundamentalmente em não ter religião. Esse não ter religião pode ver-se de duas maneiras: uma é o mito da laicidade. A laicidade não é a afirmação de um discurso ateísta sobre o mundo, é só a afirmação da liberdade e consciência do pensamento. No processo típico do pensamento europeu, sobretudo na modernidade, a laicidade é entendida como uma luta contra um tipo de opressão de ordem espiritual, política ou ideológica em que o poder político e o poder religioso parecem estar unidos.

 

No fundo, a questão a tratar é sempre a do Poder, a da disputa do poder.

Na sua origem, a laicidade não era agnosticismo no sentido prático. Mas transformou-se nisso. A educação em França é laica, por definição. Há um problema: de repente, a laicidade esvaziou do seu conteúdo todo o domínio da crença, da emoção, e agora, confrontada com culturas de tipo orgânico onde a função crente, religiosa ou mítica é forte, sente-se desamparada. Das duas uma: ou os europeus se sentem capazes de manter aquilo que é uma verdadeira conquista deste espírito europeu, a que Max Weber chamou “Processo de desencanto do mundo” – em função de uma procura de uma verdade à altura do homem; ou então têm de se confrontar com uma exigência de outra ordem, de tipo racional.

 

A fragilidade europeia terá que ver sobretudo com a crença?

Neste momento é a ausência dela. A cultura francesa pensa que a laicidade é indiscutível. Mas ela é discutível. Tudo é discutível. A regra é a da crença. Não há cultura original que assente na dúvida. Nós fizemos da dúvida uma espécie de imperativo categórico do espírito crítico. A criança nasce na crença quando recebe a voz da sua mãe, ela já está inscrita numa voz, numa coisa positiva, não começa a dizer não. Todas as culturas pensam que têm ainda esse lado obscuro, transcrito na nossa linguagem de modernidade em “obscurantista”. São ao mesmo tempo odiosas, ameaçadoras, na sua exigência de possuir a verdade. E de a impor, sobretudo. Deus não se discute. Ora bem, nós discutimos tudo. Se estamos a discutir Deus é outra coisa. É uma metáfora que empregamos. Não discutimos nada que seja para nós Deus, um Deus, seja a emoção, o amor, a paixão. Quando discutimos, estamos na dúvida, no não-amor, já estamos na decepção, no desencanto.

 

Assistimos à rarefacção de paradigmas? A dúvida permanente, a descrença, são expressão disso?

A tonalidade geral da cultura, sobretudo aquela que tem as marcas históricas e originais da cultura europeia, viveu durante séculos daquilo que ia destruindo, destruindo como crença, como verdade, como valores. Viveu disso.

 

Teve a capacidade de se reeguer e reconstruir a partir disso?  

O problema é que chegámos ao limite de uma desestruturação tal...

 

Ao esplendor do caos?

Caímos numa espécie de caoticidade espiritual, que reina aqui, sobretudo, no Ocidente. A crença nunca se perdeu, ela muda é de objecto. A crença transcendente que se foi esboroando pela razão crítica moderna transferiu-se para a ideologia, para a política, para a filosofia racionalista. E essas transferências tornam-se mais cruéis que esse Deus que se quis apear. Quando os novos tipos de idolatrias de que a modernidade foi feita se esboroaram, a desilusão foi tão profunda que ficou o terreno para uma espécie de riso de deus ou dos deuses, de tipo nietzschiano.

 

Sarcástico?

Passámos do trágico para uma espécie de carnavalização de todas as experiências, de todas as atitudes humanas. Hoje não há dúvida de que o espaço próprio da civilização a que pertencemos se chama televisão. A televisão é um instrumento permanente do divertissement, daquilo que Pascal considerava como afastamento das únicas coisas necessárias e verdadeiramente profundas e importantes. É uma cultura do esquecimento e uma criação do esquecimento sobre o esquecimento.

 

Paradoxalmente, regista, fixa em suporte magnético.

Cada adolescência que vem a este mundo traz com ela heranças. A carga dessa herança pode tornar-se um peso de que se quer libertar. Esse peso é cada vez maior, mas cada vez maior é também a rejeição desse passado, a recusa da herança. Acho que nunca houve uma sociedade em que a recusa da herança fosse tão forte. Li num jornal que a nova juventude recusa aceitar aquilo que foi aceite durante séculos como uma fatalidade inerente à condição do homem: dentro da natureza, e para viver através dela, recusa praticamente todas as formas trabalho. É a ideia de um futuro unicamente lúdico, sem trabalho.

 

Anulando o esforço, completamente.

É uma fuga, como outra qualquer, como a droga, como o pan-erotismo que é o elemento fundamental da televisão. Nada é vendável no mundo senão através de uma sobre-erotização do produto. Para vender um presunto, por exemplo, que é uma coisa tão apetecível, é preciso que uma senhora ainda mais apetecível que o presunto venha vendê-lo à televisão. Santo mundo. Prefiro o mundo da minha mãe, mas pobre, mais parco, mas não tão alienado.

 

Com o que é que podemos contar? O que é que somos? Não somos inexoravelmente seres alienados?

Apesar desta descrição, que é um pouco apocalíptica, mas que tem razão de ser, pensamos que o século que passou foi um século de invenções extraordinárias, de avanços fabulosos, sobretudo em matéria de conhecimento, de luta contra a doença. Foi também um século terrífico. É difícil imaginar que a humanidade ainda venha a passar por qualquer coisa mais tremenda do que foi a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, a bomba atómica.

 

Se é verdade que a cultura enobrece, como é que se pode compreender que a Alemanha, uma nação culta, tenha produziu o Holocausto?

Isso é todo o mistério do mal. Dioniso, um dos pais da mística ocidental, chama-lhe “a atracção amorosa do mal”. O mal suscita sobre ele um discurso já condenatório. O mal é mal, está tudo dito, ponto.

 

Mas fascinante, mesmo assim.

O desejo amoroso do mal, diz o Dioniso, é muito mais explicativo, profundo, fascinante do que as condenações superficiais do mal. Em termos clássicos, da teologia, é chamado de pecado. Ora bem, parece ser o condimento para fugir à única coisa que o homem não pode realmente suportar: o tédio. Se nos tornámos numa civilização e numa cultura-divertimento, é também porque as possibilidades do tédio aumentaram. E à medida que o mundo do trabalho se reduzir, o espaço entediante aumenta. É uma perspectiva apocalípica, essa sim. Marx nunca se põe problemas que não tenham já resolvido ou que não sejam susceptíveis de resolução. Eu vejo muita televisão, não tenho nada que fazer.

 

Vê indiscriminadamente?

Vejo sobretudo o Arte, que tem documentários fabulosos. O que me fascina é toda uma juventude que existe fora desse mundo trágico, de sedução, do desespero que conduz à droga ou ao divertimento absurdo. Toda uma juventude que está empenhada em ascender. Por exemplo, no campo da música, jovens extraordinariamente dotados, que passam a vida inteira a aperfeiçoar qualquer coisa que vai brilhar vinte minutos. O mundo não está perdido. Ouvi há tempos um filósofo que disse: O mundo “attende un dieu pour le sauver” [espera um Deus para o salvar]. Na religião católica, o Messias já veio. Foi como se não tivesse vindo.

 

Continuamos sempre à espera?

Naturalmente. Cristo não disse que vinha salvar a humanidade como um mágico, mas veio convencido de que a humanidade se salvaria através do amor que ele portava em si mesmo. Tenho na referência crística a referência fundamental da minha educação e da minha maneira de ser.

 

Há pouco ia interrompê-lo para dizer que me surpreendeu, ao jantar, que falasse da Catarina Furtado e da Operação Triunfo.

Gentil criatura, sem dúvida nenhuma.

 

Quando vê um programa desses consegue estabelecer uma identificação?

Não é dos espectáculos mais desagradáveis. Quais são as saídas hoje para a juventude? Há a saída clássica de fazer os seus estudos, com a ideia de encontrar depois uma aplicação desse conhecimento nas diversas actividades que a sociedade pode propor. O que acontece é que a juventude está tão formatada com exemplos de ascensões rapidíssimas... Eu próprio sou um fã de futebol – não é só de cinema [durante o jantar falámos sobretudo de cinema]. O tumulto de idolatria que lhes é reservado não é novo. A Grécia foi idólatra. Mas o desporto tinha um papel preciso, era a ante-câmara do combatente, que Píndaro vai celebrar. Depois veio a coisa moderna-moderna do desporto, que começou por ser puramente lúdica, a mais desprendida de todas, a mais fair-play, e que se transformou numa roleta, que serve empresas que são todo um subsistema capitalista.

 

O que é instigado é a competição.

Eu era do Benfica, nasci no Porto, devia ser do Porto, mas era do Benfica, que era campeão do ciclismo. O ciclismo é que passava na província, não passava futebol. Era pelo Nicolau em vez de ser pelo Trindade. O Benfica era representativo de uma comunidade, um bairro de Lisboa, onde o bairro se revia. Eram valores vividos e muito enraízados no contexto da cidade. Veja o Porto: o clube reinventou para o Porto uma outra identidade, que se confunde com a identidade do Porto. Agora tudo isto vive em função do lucro, são máquinas de render. Mesmo as coisas mais subliminares, que na origem são preciosas, degradaram-se a esse ponto. Tudo se degradou em mercadoria.

 

Não há nada que escape?

Sim, justamente esses rapazes e essas raparigas que se dedicam a serem os sucessores dos grandes intérpretes, dos autores. Tudo o que é criativo. Tudo o que é feito em função da recusa do preço. Tudo o que não tem preço.

 

Ou seja, o que é singular, o que é raro.

A Madre Teresa, não sei se ela escapou, claro está, mas não sei como é que não foi paga para ir mais depressa para o céu! Como é que não houve uma companhia, um abelhudo, uns subsídios...

 

Tudo tem um preço?

Tudo tem um preço.

 

Podemos falar de uma cultura europeia?

A cultura europeia sempre existiu. E nunca existiu porque nunca houve uma figura chamada Europa. Houve sempre uma pluralidade de Europas. Houve uma fase da cultura europeia em que a chamada elite, o escolho cultivado, se podia colocar desde a Polónia até Lisboa na mesma língua, que era o latim. Mas a cultura europeia medieval era uma cultura de línguas particulares. É a cultura da Provença, a cultura da Irlanda, a cultura das diversas Alemanhas, a cultura da Hungria. Esses núcleos fundamentais permanecem.

 

O que é que afirma essa individualidade, é a língua, acima de tudo?

Fundamentalmente é a língua. Nem mesmo outra coisa. A nossa identidade é-nos dada pela língua.

 

Então, «Minha pátria é minha língua».

O resto é identidade humana, normal, genérica. A identidade no sentido em que a tomamos, como qualquer coisa de particular, uma voz que é só nossa, que escutamos, é dada pela língua. Em segunda instância pela escrita, pela memória escrita. Uma cultura é uma memória, qualquer coisa que se está sempre a reciclar dentro do mesmo.

 

Viveu a maior parte da sua vida no estrangeiro. Pensa sempre em português? Há coisas que pensa em francês? O que é que o define enquanto português, ou enquanto cidadão europeu, e o que é que isso tem que ver com as línguas?

Há pessoas muito dotadas que podem ter várias pátrias porque têm várias línguas. Não é o meu caso. Não por fazer de propósito, mas por incapacidade, por falta de ouvido provavelmente. Embora esteja em França e escreva às vezes em francês, não falo bem francês, não é a minha língua _ e quem está mais bem colocado para o saber é a minha mulher. Em português seria difícil que me deixasse corrigir tão conjugalmente; em francês ela pode fazê-lo, é a língua dela. Uso a língua portuguesa porque é a minha, através dela li e ouvi as primeiras coisas, a partir dela foi feito todo o meu imaginário.

 

Tem uma definição para o que é a língua?

Mesmo sendo uma coisa tão forte, tão forte, não é uma coisa em si, não é uma entidade que não se possa perder. Lembro-me que quando era pequeno tínhamos uma pequena criadita lá na terra _ chamava-se criada, naquela altura; a dada altura, saiu lá de casa e foi servir em Espanha. Passados seis meses, voltou. Não faz ideia da sarabanda patriótica que lhe infligimos porque ela já não falava português, mas um castelhano do mais cerrado! Tinha passado para uma outra língua. Porquê? Porque não tinha ido à escola, podia perder a memória de uma língua e entrar noutra língua como se tivesse nascido nessa língua. Uma pessoa pode mesmo ser um grande escritor numa língua que não é a dele. O caso do Conrad.

 

Ou do Beckett, do Nabokov.

Mas para ser um grande escritor numa língua que não é a dele, tem de ser um grande escritor antes.

 

Divagámos imenso! O nosso tema base era Cultura e Europa contemporânea....

Como é que é possível palrar durante tanto tempo!

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2003

 

Manuel Hermínio Monteiro

10.09.22

A conversa que a seguir vão ouvir, aconteceu numa destas tardes de sol. Do sol radioso que encharca de esperança os primeiros dias de Primavera. Manuel Hermínio Monteiro, o mítico editor da Assírio e Alvim, refastelou-se no sofá para desfiar o novelo da sua vida cheia. Como ele diz, logo no começo, a ponta pode ser a que nos aprouver, que há-de sempre dar ao mesmo.

Decidi começar por um lugar que cruzava as palavras e as memórias, umas e outras em catadupa. Um lugar que é talvez o mais belo recanto do Douro. E por isso de Portugal. E por isso do Mundo. Conheço esse sítio há muito porque me fiz, também, em terras transmontanas. O que, como perceberão, tem a sua importância. A marca da terra, espessa, fez-me assim, fê-lo assim.

Esta é a vida de um transmontano, um transmontano de boa cepa. Calha de haver uma flor maligna que lhe traga a carne. Até ver. Como ele dizia, quando pela primeira vez o vi depois de saber, «Estou bem», embrutecendo o tronco, referindo-se à força, à robusteza.

A seguir, que é para isso que servem as introduções, têm a vida deste homem. E dentro dela a vida toda.

  

Começamos por onde?

Sei lá. Como a vida anda às voltas, pode ser por qualquer lado.

 

A vida anda às voltas?

Muitas. A minha é uma vida muito cheia.

 

Podemos começar por S. Leonardo de Galafura, o recanto do Douro escolhido por Torga, que, presumo, conheça.

Conheço. Dizem-me agora que na encosta contrária ainda há outro miradouro mais bonito, S. Salvador.

 

O seu lado do Douro é o do Pinhão.

A minha terra é mais para interior, perto de Murça, Alijó. Do meu lado vejo Favaios, Sanfins, Vilar de Maçada.

 

Nasceu na aldeia, em Parada do Pinhão. Viveu lá até que idade?

Fiz lá a Primária. Vivi no século passado, posso dizê-lo. Vi chegar a electricidade, a rádio, a televisão.

 

Era um outro tempo para o país, e sobretudo para o interior.

A escola era uma mesa muito grande numa sala; em bancos corridos estavam numa pontinha os meninos da primeira classe e na outra ponta estavam os da quarta, alguns já com 17/18 anos.

 

Passavam directamente do campo para a escola?

Andavam ali a arrastar. Uma vez um contou que a professora lhe tinha dito: «Se fizeres os deveres vais amanhã dormir comigo». Ele chegou ao pé da mãe e disse: «Ó mãe, dê-me umas cuecas novas que amanhã vou dormir com a professora!» Ainda levou nas orelhas.

 

A professora era quem? Era uma moça da aldeia?

Comecei com uma professora que levei até ao fim. Marcou-me muito e ainda hoje a recordo com muita saudade. Vive agora em Cascais, chama-se Lúcia. A minha professora deve ter sido das primeiras do Magistério; as outras tinham a quarta classe. Logo a seguir inaugurámos uma escola nova. Excelente, a escola, com entrada em arco, azulejos à volta, e tal.

 

A Professora Lúcia acompanhou a sua escolaridade primária. Onde eu queria chegar era à sua primeira relação com as palavras.

Deve-se muito a ela. Uma relação de encantamento. O que é extraordinário é que andamos sempre à procura. Do Graal, às tantas. Antes de irmos para a escola estamos num estado absolutamente delirante. Eu já sabia os reflexivos, os pronomes, as preposições...

 

Como é que já sabia?

Era uma música. Ouvia os mais velhos e decorava.

 

Ouvia-os do recreio?

A escola era mesmo no meio da aldeia; ouvia cá de fora e depois perguntava aos mais velhos. Quando vamos para a escola, imaginamos que vamos aprender coisas. Uma ansiedade. Como depois temos quando vamos para o Liceu; julgamos que ali é que vai ser a sério. Depois a Universidade é que vai ser a sério. Para chegar à conclusão que andamos permanentemente à procura de qualquer coisa que não existe. Tal e qual como a felicidade.

 

A felicidade não existe?

Com a idade vamos percebendo que a felicidade é uma aquisição muito delicada, muito trabalhosa. Esgaravatar numa mina, mexer muita terra, muita pedra, e depois, de vez em quando, lá aparece um bocadinho de minério. A felicidade também é assim. São momentos fulgurantes, extraordinários, mas não existe em estado puro. Nada existe nesta vida em estado puro.

 

O que é que se pode retirar dessa lida diária?

Mas é isso, é o trabalho diário, é a busca. E talvez sim, talvez se consiga. A consciência disso leva-nos a valorizar cada vez mais esses momentos, esses pedaços de cintilância. Isto vem a propósito?

 

Da aldeia, dos parcos recursos.

Como é que com pouquíssimos livros..., raramente víamos um livro, uma imagem.

 

Não tinham livros em casa?

Não. E não tínhamos ainda televisão, éramos muito virgens em termos de imagens. A cultura era muito interessante; desde cantares, guitarras, uma forte tradição do teatro, festas feitas conjuntamente – havia laivos de comunitarismo permanentes. Ao mesmo tempo a aldeia fechava-se, como se um medo a rodeasse, «Fulano de tal ainda não chegou à terra?». Imaginavam-se coisas completamente loucas, derivadas também das casas onde o vento soprava pelas frestas, o soalho muito antigo rangia, a luz da lareira era móvel; parecia que estávamos em empurrões de barcos. Isto a juntar àquela imaginação alucinada, como ainda é lá em cima, do maravilhoso celta; ou, para não sermos tão caros, a imaginação do próprio meio que fermenta coisas - uma vez que não havia esta dispersão que há hoje.

 

Qual era o seu ponto de observação e participação nesta vivência comunitária?

Tinha uma experiência muito colectivizada porque a minha avó tinha um forno onde as pessoas iam fazer o pão e o meu avô tinha um grande alambique onde se juntava o pessoal todo, com a concertina, e mais não sei quê.

 

O que representava a sua família na aldeia?

Eram camponeses. O meu pai e a minha mãe casaram cedíssimo: a minha mãe com 16, o meu pai com 18, dois miúdos filhos de volframistas.

 

Naquele tempo era comum casarem tão cedo e terem filhos logo depois.

Nasci um ano depois. Tive sempre os meus pais muito novos e uma família muito numerosa: muitas tias, muitas primas, em idade casadoira. Lembro-me bem dos vestidos delas, muito vaporosos, de se pentearem. A minha tia tinha raparigas que iam para lá aprender costura. Um gineceu fortíssimo, sempre a ser esmagado por abraços apertados.

 

E gostava ou não?

Às vezes apertavam-me demais, já fugia! Mas na verdade sentia-me um reizinho. São coisas que nunca mais se esquecem: a pressa para irem à missa, os dias de sol, a luz da Primavera.

 

Num dia claro de Primavera, como é este, é isso que rememora?

Lembro-me muito da minha infância. É uma espécie de película impressionável: o que fica ali registado, marca muito, muito mesmo. Tive a felicidade de ter uma infância completamente rural. O meu avô ia podar, levava-me com ele, deitava-me no casaco dele. Nesta altura, que é das primeiras ervinhas e flores, enquanto ele cantava aquelas canções, o Pinhão vinha com fragor por ali abaixo, e sentia os lampejos do sol nos açudes. Para um miúdo de sete anos isto era uma coisa fabulosa. Acordar num casaco a cheirar a tabaco _ o meu avó fumava onça - e ficar a olhar. Ficar com as florzinhas em primeiro plano, ver o mundo mais rasteirinho. Nunca mais esqueci. De tal maneira que ainda hoje a maior parte dos meus sonhos são: águas límpidas, rosas, pereiras floridas, o meu pai a mostrar-se sítios por onde passávamos quando íamos à feira.

 

Respira, assim, um tempo que já não existe. Como é que sai da aldeia?

Apareceu a hipótese de ir para um colégio de Salesianos, com as duas vertentes, para padre ou não. Ficava em Arouca, num antigo convento, sinistro. Fui logo a seguir à quarta classe, com dez anos. Nunca tinha saído lá de cima, nunca tinha visto o mar.

 

O seu mundo era a aldeia, e os campos à volta.

E as romarias, e as feiras: a Sra. da Pena, a Sra. da Saúde, a Sra. da Piedade. Adorava, adorava aquilo. Conhecia outras aldeias. Mas, naquele tempo, íamos a outra aldeia sempre com o risco de levar uma pedrada. Para irmos a Justes – as terras ali mais perto eram Justes e Vilar de Maçada, que é a terra do [José] Sócrates – fazíamos uma aventura extraordinária, com um cuidado extremo. 

 

Onde lhe parece que radica essa incrível rivalidade?

Talvez sejam reminiscências de castreja, não percebo de outra maneira. Agora está melhor, há mais circulação, carros vão e vêm.

 

Há a televisão.

E as comunidades dissolveram-se, com a emigração, por exemplo. Hoje na minha aldeia, há uma geração jovem muito civilizada, educada, que estuda e circula. Organizam-se para o teatro, para o futebol, têm um grupo coral, até já gravaram um cd. Na altura, eram ódios terríveis. Isto é uma conversa de Antropologia que dava para irmos por aí fora!

 

A aldeia era visitada por almocreves, ou havia uma venda onde coincidia o café, a mercearia, a farmácia, etc?

Existia uma economia natural, de trocas directas. Nas feiras trocavam-se sacholas por feijão.

 

Os seus pais trocavam o quê?

O que tinham: milho. O meu pai tinha algum dinheiro, mas muito pouco, porque tinha explorações de resina. Está bem que o meu avô vendia aguardente e teve muito dinheiro no tempo do volfrâmio, tinha certa produção de vinhos, e o vinho sempre se vendia. Mas imperavam as trocas directas.

 

A relação era muito mais desprendida com os objectos. Que trocas eram as suas?

Nós só jogávamos ao botão.

 

A sua primeira namorada era da aldeia?

Sim.

 

Eu recordo os quilómetros que os namorados faziam para encontrar ao domingo a namorada, que vivia noutra aldeia, para, por fim, ficarem uma hora a falar na berma da estrada.

Uma vez inventaram-me um namoro, que nem era verdade!, em Sanfins, os sacanas, já andava no colégio Almeida Garrett. Levaram-me à fonte e tive de pagar um garrafão de vinho ao pessoal! Mergulharam-me a cabeça para ser adoptado.

 

Uma praxe. E nisto estamos já no Porto.

Depois da Primária estive dois anos nos Salesianos em Arouca, e depois três perto de Coimbra, onde completei o quinto ano.

 

Quando foi para os Salesianos, era para ser padre?

Digamos que tinha uma certa tendência. Por uma razão simples: numa aldeia, neste contexto de que lhe falo, o que produzia um fascínio, fascínio, fascínio, era a religiosidade.

 

O que era tão fascinante?

Para já, havia um delírio religioso, mesmo que não fosse ortodoxo. A presença da bruxaria, do sobrenatural, do Além. Antigamente vivia-se nesse mundo. E pessoas que não mentiam, (homens de uma verticalidade, de uma palavra dada...) viam coisas.

 

Também via coisas?

Uma vez estendi a mão para tocar numa senhora que julgava que estava ao meu lado. Imagine o que eram aquelas eiras quando no Verão ficávamos a olhar para o céu, a imaginar o que era o mundo, a chegar lá apenas por intuição. Então, o mundo da igreja, os bastidores dos altares...

 

Chegou a ser acólito?

Ajudar à missa? Montes de vezes.

 

Não estou a vê-lo feito papinho de anjo...

Nos Salesianos, onde cheguei todo sujo do carvão do comboio, nunca consegui ser dos bem comportados.

 

Demorou quantas horas a chegar?

A primeira vez que fui, ainda não tinha chegado à Régua, perguntei: «Ainda falta muito para o Porto?». Era preciso meter água, era preciso meter lenha, depois manobras à espera do outro. Mas também eram uma animação, aqueles comboios. Concertinas, gaitas-de-beiços, comezainas, garrafões, tipos a contarem anedotas, tipos a venderem romances de cordel.

 

Viu o «Rio do Ouro» do Paulo Rocha? É disso que está a falar?

O ambiente era ainda mais denso. Entrava uma mulher com cerejas, ia de Godim à Régua: dava logo cerejas ao pessoal. Dava! Vender, vendiam bilhas de água, regueifas, todo um conjunto de coisas ao longo da linha. E um calor infernal!

 

Como por lá se diz, «Nove meses de Inverno e três meses de Inferno». Para não perdermos o fio à meada, aterra no colégio sozinho. O normal era que os miúdos fizessem a quarta classe e ficassem por ali. Como é que se decidiu que continuaria os seus estudos?

Conheciam um padre salesiano ali perto, o padre Álvaro, que perguntou ao meu pai, «Porque é que ele não vai?, tal, tal, tal...». Já estava decidido que ia estudar: tinha um jeitinho, e portava-me bem nas aulas. Eu queria ir, e gostava, embora sofresse como um cão. Com saudades, chorava que era uma coisa doida.

 

Cortou com o universo encantatório da infância.

Diziam-me «Mas vai-te embora»; mas por outro lado cria-se a relação com os amigos e há o orgulho, não se quer ir para trás. É um desafio. O meu avô dizia «Como é que o rapaz está lá naquela coisa dos padres?, sem lareira e sem vinho!» [sorriso]

 

Davam-lhe sopas de vinho?

Não, mas às escondidas o meu avô dava-me às vezes um bocadinho de aguardente, tinha a mania que já era um homenzinho.

 

O que é que mais gostava no contacto com as palavras, de ler, de escrever?

Ah, o que mais gostava era de contemplar. E ouvir os velhos.

 

Pela sua professora, tinha uma paixão?

Tem-se sempre. Ainda me lembro das saias delas!

 

A sua memória é prodigiosa.

Dessas coisas da infância, lembro-me bem, mais do que das coisas de agora. As saias, os gestos, o ir buscar as cartas do namorado ao correio.

 

Os seus pais ajudavam-no nos trabalhos de casa?

Sabiam ler e escrever, mas não me ajudavam. O meu pai adorava ensinar-me como cantavam os pássaros, a imitá-los a todos. Chegava a casa, saltava para cima dele com ramos de cerejas. A minha mãe é muito mais enérgica, ágil, nervosa como as mulheres de lá de cima.

 

Há um momento, já em Lisboa, em que pensa voltar para casa, para os seus pais, depois de passar pela prisão de Caxias.

Olhe que há muitas mais coisas para trás. Ainda nem passámos pelo Porto.

 

Então vamos ao Porto.

O Porto foi uma descoberta, o primeiro contacto com a cidade. Tinha muita malta cujos pais estavam em Hong Kong e que tinham motorista fardado, grandes carrões à porta.

 

Impressionava-o de que maneira?

Pela bizarria. Fascínio?, nenhum. Ao mesmo tempo era injusto: metia-me no Cabanelas e via aquela gente toda, pobre, a subir a Serra do Marão. Pobres mas muito alegres, diga-se de passagem. Não sei que aconteceu ao povo português. Acho que foram os primeiros rádios, sabe? Até para trabalharem nas vinhas levavam rádio, em vez de cantarem. Agora já nem usam rádio. No princípio a música era fundamental. Sempre fui sensível às injustiças. O Porto, o Porto ajudou-me a abrir. Era o período da Guerra Colonial, quase não havia homens nem rapazes. Os bailes eram só com raparigas.

 

Como é que entra nesta roda dos bailes?

Bailes que havia em qualquer associação, e também bailes privados. Arranjavam-se namoradas muito facilmente _ estava tudo lá fora. Na minha aldeia, havia o sol de Inverno, os cães, um e outro sentados, não se via mais ninguém. A partir dos 18 anos iam para a Guerra. Mas devo ao Porto ter-me desmamado em relação a uma série de coisas. Fiz também um esforço para sair de um certo maniqueísmo religioso em que tinha sido formado. Comecei a frequentar igrejas protestantes para ver como é que os outros pensavam.

 

 

 

 

 

 

Era profundamente crente?

Sim, sim. Já não muito de missas. Isso ajudou a libertar-me do que era o Bem e o Mal. É um percurso que tem de se fazer sozinho. Os amigos estavam noutra. Provavelmente não tinham as inquietações que eu tinha. Reflectia muito sobre mim próprio, escrevia já bastante, e tentava perceber o que se estava a passar. E havia outra coisa: para aquela malta do Porto, não ir às putas era o mesmo que ser maricas. Fazia-lhes uma confusão do caraças. E era uma coisa que também não percebia: como é que com tanta rapariga lindíssima... Tinha essa estranha relação homem-mulher facilitada, apesar de ter passado por um colégio interno, pelo facto de ter tido uma infância de gineceu. A malta nova ia toda para a Rua do Bonjardim, para as Candeias.

 

Frequentavam bordéis ou putas de rua?

Casas, o Porto estava cheio disso. Bastava descer a Rua dos Caldeireiros a passear... O meu avô, no tempo do volfrâmio, às vezes até trazia os trabalhadores para os Caldeireiros.

 

Escrevia para as raparigas?

Ah sim, escrevia. Aconteciam-me coisas extraordinárias: entrava num comboio e apaixonava-me, entrava numa camioneta e apaixonava-me.

 

Pela beleza, por aquilo que a pessoa emanava?

Não sei. Uma vez estava a contar ao José Agostinho Baptista e ele dizia-me «Tens uma imaginação maluca». As coisas estavam num estado de pureza... Eu tinha uma felicidade interior, uma tal transparência, que isso contagiava a outra pessoa.

 

Essa “imaginação” deixou de o acompanhar no amadurecimento dos anos?

Com o passar do tempo as pessoas deixam de ter disponibilidade para viver em estado de paixão. A minha mola foi sempre o afecto. Nunca pensei ser rico, ter poder...; outra coisa era o amor, isso sim, movia-me para o cu do mundo. O resto? Brrr...

 

Fala de uma relação de afecto que me parece tremendamente panteísta.

Tinha sempre a casa com flores, mesmo quando estava a estudar e tinha pouquíssimo dinheiro: 18 escudos iam para sécias, comprava meia-duzita todas as semanas. Já trabalhava na Assírio, metia-me sozinho, com o saco a tiracolo e um caderninho para escrever, primeiro no barco, depois na camioneta: Costa da Caparica, quilómetros por ali fora, ficava a olhar o mar. Fazia isto com uma regularidade extrema. A partir de determinada altura o tempo não chegava para nada, nada!

 

Responsabiliza sobretudo o tempo? Estava a pensar que naturalmente há uma inocência de que se perde. As pessoas deixam de ser puras.

Chega uma altura em que nem damos conta de como tudo se passa. Ficamos absorvidos, e depois queremos mais, cada vez mais, e já não conseguimos parar, a não ser que aconteça qualquer coisa de muito...

 

Esteve ainda um ano em Direito.

Quando vim para Lisboa foi para fazer Direito, mas praticamente não fiz nada. Direito estava ocupado, era o tempo do Martinez.

 

Porque é que vai para Direito? Ainda por cima já escrevia, já sabia que lhe interessavam as palavras.

O que queria ser era poeta. Os poetas que lia mais, o Pascoaes, o António Patrício, alguns Simbolistas, eram todos licenciados em Direito. Julgava que o Direito... Uma ingenuidade!, como aliás tinha muitas. O mundo era assim, não precisava que fosse mais complexo. Fica-me mal dizer o eu, mas há uma água límpida que ainda mantenho.

 

É o seu lado aldeão.

Não tenho ninguém a quem desejo mal, acredita? Posso não simpatizar, mas não conseguia atirar uma pedra a ninguém. Nem aos de Justes! [riso]

 

Os seus pais acompanhavam o seu projecto?

Cresci sozinho, praticamente sobrevivi sozinho. No Porto, tinha muito pouco dinheiro, os meus pais também tinham muito pouco dinheiro. Tive a minha fase freak, como todos. Quer ver como é que eu era?

 

Quero.

[Mostra uma fotografia com a mulher, Manuela, em Marrocos]

Isto é nos anos imediatamente anteriores à Revolução. Tínhamos a sensação de que o mundo ia mudar e que estava ali, ao alcance da nossa mão. Estamos a dispersar-nos muito, não?

 

Vamos recentrar em Lisboa, no primeiro ano de Direito.

Não, Direito é de ignorar, é só matrícula e mais nada.

 

Lisboa, depois do Porto, é um novo mundo. Ainda se identificava como um rapaz da aldeia? Pelo facto de ter estudado, a sua vida passou a ser completamente diferente da vida dos rapazes da terra.

Na aldeia só estive dez anos, nesta altura já tinha outro tanto fora. Mas mantive uma relação muito forte com aquilo. Em Lisboa, numa primeira fase, toda a malta de Trás-os-Montes se encontrava. Desde cirurgiões, a tipos do PC, a tipos da Pide. Desde malta de Montalegre a malta de Vila Real. Juntava-se o pessoal todo ao pé do [café] Gelo.

 

Discutindo a situação do país?

Não. Era talvez puro instinto, pura defesa. Dos que não conheciam isto, dos que conheciam bem. E depois rapidamente se passou a uma fase, por que passei também, de repulsa por tudo o que era rural. Aquilo parecia-me uma piroseira do caraças, as músicas e tudo. Estive muito tempo sem lá ir.

 

Porque se fascinou com uma Lisboa sofisticada?

Julgo que foi um processo mais cultural, que começa nos livros e no que se aprende. Há coisas que irritam!, que, aliás, ainda hoje me irritam: um atavismo, um não querer saber, uma preguiça natural.

 

Foi tudo hiperbolizado.

Parecia-me atávico, justamente. E ridículo: os rapazes chegavam de bicicleta aos bailes, com óculos espelhados comprados na feira! Vinham juntos, mas depois, à frente das raparigas, atravessavam o baile para se cumprimentar. Hoje tudo isso me encanta, mas na altura achava hipócrita.

 

Tinha algum amigo da escola primária?

Sim. Que estudassem só uma rapariga e um rapaz; ela é hoje professora, e foi o único caso de chegar ao fim do curso como eu. 

 

Estava a tentar perceber se ter tido acesso a outros universos o demarcou das pessoas que conhecia.

Não muito. Nunca julguei as pessoas pelo que sabiam. Nunca fiz qualquer discriminação pela pessoa ter o curso ou não ter, ser assim ou assado, ser pobre ou rico. Quer dizer, é uma coisa tão natural que o simples facto de falar nisto mete-me impressão. E nunca tive mitos, nem Marilyn Monroe, nem Jim Morrison; a única coisinha que talvez tenha tido foi pelo Che Guevara. As pessoas fascinaram-me sempre muito mais. Na hora da sesta, enquanto os outros iam dormir, passava o tempo a ouvir os velhotes. Horas e horas e horas. E depois continuou, com o Agostinho da Silva, que ia ouvir de vez em quando.

 

Quando é que encontra o Agostinho da Silva?

Anos 70, pouco depois de vir para cá. Um amigo disse-me «Tens de conhecer o Agostinho». Só não ia mais vezes visitá-lo por causa do cheiro dos gatos; (com o cio, o cheiro é insuportável).

 

A sua gata, Gueixa, cheira?

Não, os machos é que é uma coisa terrível. Ele vivia no terceiro andar e sentia-se no fundo das escadas.

 

Então, é um rapaz universitário que vai parar a Caxias. Conte lá a história, antes de aprofundarmos a sua relação com as letras e com a Assírio.

No Porto já participava numas coisas pró-social. Com o Bispo do Porto e uma certa igreja mais prá-frentex, com um grupo de jovens. Havia uma espécie de reflexão, um centro na Rua do Rosário, com a Irmã Humberta; cantava umas baladas do Fanhais e do Zeca Afonso.

 

Estavam ligadas para si essas duas componente, a religiosa e a política?

Por acaso nunca tive grande sentido político. Na faculdade deixei-me motivar pela luta anti-Guerra Colonial, mandei umas bocas e pronto. Mais nada. Fui parar a Caxias basicamente porque estava a ouvir o Zeca Afonso no Centro Nacional de Cultura. Deram-me um enxerto de porrada inacreditável. Com a minha ingenuidade perguntava «Porque é que me está a bater?». 

 

A sensação mais forte é o medo?

É a de que se está nas mãos da mais completa arbitrariedade; podem-nos dar um tiro, podem fazer o que quiserem. Mas agora, estar a contar isto tudo...

 

Custa-lhe?

Não. Mas foi a primeira machadada na minha vida. Até essa altura tinha sido como um pássaro, à solta. Cortaram-me o cabelo todo, que era enorme, implicaram com as coisinhas que trazia no saco: um caderninho, umas almofadinhas bordadas que as minhas amigas me davam. Meteram-me numa cela sem um papel, sem um livro, nada, nada. Um dia parecia uma eternidade. Sabe o que me fez cair na situação? Perceber que já não mandava em mim, «Tens a mania que andas aí como um pássaro?».

 

Quanto tempo esteve?

Para aí uma semana. Lá dentro apercebi-me que havia luta; nos pratos, no alumínio, escreviam coisas como «Coragem, estamos contigo», «Resiste»; na enfermaria havia coisas escritas a sangue; e havia gajos que cantavam, cantigas alentejanas.

 

Quando sai quer voltar à terra. Formulou seriamente o desejo de voltar para a aldeia? Ainda se reconhecia nessa vida?

Estava farto. Essa coisa da Aura Mediócritas, como dizia o Sá de Miranda, é uma coisa que existe muito dentro de nós. Às vezes vejo colegas meus lá em cima, a tranquilidade com que estão com os seus filhos. A felicidade é aquela coisa projectada nos outros, felizmente estamos já avisados, sabemos que não existe. Mas nos poetas acontece muito, o Pessoa então, «Ai se eu pudesse casar com a filha da minha mulher a dias». Sempre o outro como representação, encenação da felicidade. Essa busca de uma vida calma, contemplativa, às vezes assalta-me. Na altura era insólito, por ser muito novo e ter o mundo à minha disposição.

 

Aos 22/23 anos vai para a Assírio como vendedor.

É preciso dizer que a Assírio estava de pantanas. A Assírio foi fundada em 72, depois esteve uns anos sem publicar; mais tarde o Homero, produtor do Página Um, tinha lá o escritório e deu uma mão, mais as duas pessoas que lá trabalhavam. Aquilo estava num regime de sobrevivência. Quando fui para lá, os livros editados não chegavam a dez. A Assírio vivia mais da distribuição que da edição. É nesse contexto que entro, um pouco desinteressadamente.

 

Já tinha acabado o curso?

Já me tinha matriculado em Sociologia em Évora!, para ver as voltas da minha vida. Fui para a Assírio para a parte das vendas, mas ali todos faziam tudo. Sabe como é que se sobrevivia? Quantas vezes fazendo bancas, para sacar algum dinheiro. Estava mesmo na penúria, penúria. Fui-me mantendo por lá, acabei o curso de História.

 

Vivia desse pequeno trabalho?

Já tinha tido outro numa agência que contratava artistas: os Genesis, os Procul Harum.

 

Conheceu essa malta?

Alguma, e outra que vinha para o Casino do Estoril, de românticos a stripers. Foi o meu primeiro trabalho, quem mo arranjou foi a Maria Leonor, da rádio.

 

Na Assírio assume em 78 a coordenação editorial. Imagino que tenha correspondido a um desejo de estabilidade que grassou por todo o país, passada a agitação política.

E a tropa. Fui para a tropa depois de completar o curso. Tinha sido já refractário, devia ter ido para os Fuzileiros antes do 25 de Abril. Não fui e andei a monte.

 

Em 78 assentou arraiais na Assírio. Deixou de ser o rapaz à descoberta do mundo?

Continuei à descoberta. Ainda fui fazer vindimas a França. Andei sempre muito à solta, parecia que o mundo todo me sorria. Nestas viagens, sozinho, amadurecia muito, fermentava.

 

Na base da mochila às costas?

Era assim mesmo, sem saber onde ia ficar. Nunca fiquei na rua.

 

O que é que queria da vida? Ou tratava-se de a ir descobrindo?

Descobrindo. Mas sempre à espera, com a sensação de que a seguir é que era. A seguir, a seguir.

 

Tinha desistido do sonho de ser poeta?

Fartei-me de escrever. Tenho ali cadernos que nunca mais acabam. Depois começa-se a publicar tanta poesia tão boa... Não sei se é muito importante.

 

Realmente?

Ah, a vaidadezinha, não tenho muito essa vaidadezinha. A vaidadezinha que tenho é colectiva, por amigos. Às vezes apetece-me escrever, é uma necessidade interior, um imperativo. Na verdade, posso não escrever poesia, mas vivência poética acho que a tenho. Escrevo coisas incríveis. Só que não as escrevo. É como se as escrevesse, andam assim por dentro. Poemas feitos. Metê-los no papel? Brrr...

 

O seu olhar é eminentemente poético, marcado pela vivência rural.

É a visão desde a infância. Ver tudo, com muita atenção. Podia escrever um livro de memórias, relatando a vivência com uma gente de que pouco se sabe, das histórias que lhes ouvi.

 

Portugal não tem tradição de livros de memórias. As biografias, noutros países vendem-se como pão quente.

Em Portugal as biografias não pegam, não sei dizer porquê. Eu gostava de fazer sobretudo pela vivência forte que aí tive, humanamente. É quase uma dívida que queria saldar. Podia juntar a minha experiência no Alentejo. E a minha experiência enquanto editor; podia fazer um livro extraordinário sobre os poetas que conheci, não só os poetas que publiquei, mas todos os outros: o Manuel da Fonseca que ia tanta vez à Assírio, o Ruy Cinnati que ia diariamente à Assírio...

 

As relações que a editora mantém com alguns poetas é mítica. É verdade que vão levar o almoço diariamente a casa do Cesariny?

É. Mas não é preciso contar isso.

 

O que me interessa é perceber a relação familiar que se estabelece entre si e alguns destes autores.

Sim, são a minha família, não há nenhuma dúvida. Mas há outros, que nem sequer são da Assírio com os quais tenho uma relação igualmente profunda. Caso do Eugénio de Andrade; falamos dia sim, dia não.

 

Pensou muito neste projecto no último ano, desde que sabe da sua doença? Mesmo que trabalhe a partir de casa e vá à Assírio ocasionalmente, imagino que esteja mais recolhido em si e nas suas memórias.

É verdade. Mas tanto penso em fazer isso, como logo a seguir penso em não fazer. Sou muito assim. Na minha vida as coisas quando têm de acontecer, acontecem. Não falo de um deixar-se reger, de um determinismo exterior à minha vontade; mas fui ganhando alguma sabedoria, percebendo que as coisas impõem-se.

 

Prefere que as coisas lhe aconteçam?

Sim. A minha vida é feita de acasos, de circunstâncias. Nunca forcei muito as coisas; nem as relações amorosas. Suponhamos que as coisas andam num caos e que tendem para uma harmonia. Se não as precipitarmos, elas tendem para uma pacificação. Tudo, tudo o que está no universo é assim. Se calhar é a lógica da vida toda.

 

Poucas foram, então, as opções da vida tomadas de forma categórica.

Sim. No trabalho, claro, é diferente.

 

A propósito dessa vida que lhe acontece, como ficou, a páginas tantas a relação com o divino?

É uma relação harmoniosa, sempre foi. Tenho fé, tenho. Há a perplexidade que algumas coisas inevitavelmente nos suscitam; por outro lado, há ainda tanta coisa para conhecer que é uma arrogância julgar que já estamos no fim do processo. Só posso falar da experiência própria. Não posso falar a alguém do encantamento que me dá ver um melro ali à frente no ramo, ou de uma pequena flor que me enche completamente de vida. Então neste momento actual, enche a sério. Como não podia, quando era mais novo, ler um poema às pessoas que me respondiam «Lá vem este com o poema, agora com esta merda».

 

Harmoniosamente foi fazendo a síntese entre a sabedoria das pessoas da terra...

É a mais importante.

 

E o saber livresco e o que deriva do contacto com outras pessoas. Foi este o seu labor.

Aprendi muito vendo, vendo a natureza. Isto é uma escola permanente, é uma escola permanente. O grande problema é que está a morrer a nossa sensibilidade, a nossa disponibilidade. A relação com os outros está terrível. Esta coisa do novo riquismo, esta ansiedade desenfreada que não leva a absolutamente nada. Um punhetaço, como dizem os espanhóis. Há uma coisa infernal que retira às pessoas a sua tranquilidade, a sua liberdade. E estamos a matar aquilo que, em putos, no tempo da festividade, do amor e tal, tínhamos como capital incrível, e que era o afecto.

 

Na altura já sabia disso?

«O nosso grande capital é o amor». Era a nossa grande riqueza, o que queríamos. Depois logo nos safávamos, íamos para França, enfim. Agora precisam de não sei quantos contos para ir para a estância na neve, mais não sei quê que só vai com determinadas condições. Estamos a perder a liberdade. Mais: a perdê-la sem ter consciência disso.

 

Esse conforto material em que vive agora, esta sua casa tão simpática, a casa da aldeia...

Mas eu posso viver em qualquer sítio. Se não fosse a Manuela a arranjar a casa algum dia tinha isto? Não, não me mexe muito. Seria uma estupidez dizer que não gosto de ter um bom carro em vez de ter um carro a abanar por todos os lados. Agora, que não signifique hipotecar a liberdade da pessoa. Se não puder ter não há problema, até não há problema absolutamente nenhum.

 

Estas coisas ficaram mais flagrantes para si porque as pessoas ficam sacudidas quando estão doentes?

Não, absolutamente nada. Tinha consciência delas, mas andava tão alienado que me apetecia chegar aí, ligar a televisão e ver a bonecada porque me dava o sono. Neste momento sinto-me melhor fisicamente, por incrível que pareça. A minha cabeça parece que estourava, com milhões de preocupações, permanentemente tau-tau-tau. Não tinha paz. E sinto-me tranquilo.

 

Sente? Não o invade uma angústia quanto ao futuro?

Se morrer quero ir para a minha terra.

 

Foi nisso que imediatamente pensou?

Foi. Logo. E disse-o à Manuela. Às vezes, depois das quimios, vou-me um bocadinho mais abaixo, fico mais mole e psicologicamente fico mais afectado. Agora, como hoje me sinto... Fico aqui sentado a ver os melros, de que gosto muito, os pequenos rebentos das folhas.

 

Porquê os melros?

É um pássaro muito bonito, canta extraordinariamente bem. Quando tinha seis anos havia uma japoneira ao pé da casa dos meus avós e cantava lá um melro ao amanhecer; contam que dizia: «Ó Vó, olha o que o melro está a dizer!, o que é que está a dizer?, queres comer, queres comida?». Era eu que estava com fome.

 

Teve um encontro, com um livro ou poema, que tivesse sido determinante na sua relação com a literatura?

Quando comecei a sentir poesia a sério, assim poesia de estremeção, foi nos Simbolistas, Gomes Leal e Camilo Pessanha. Sobretudo Pessanha, a gente dizia: «O que é isto?»

 

Que verso ou poema traduziria a essência de si e que escolheria para seu epitáfio?

Ah, não sei. Tenho muitas dúvidas sobre mim, não pense que não. Muitas convulsões, muitas dúvidas. Sou um toiro. Agora estou partido. Quem é que me domava? Nem eu. Energia. Alegria. Era capaz de levar uma multidão. Era uma coisa genésica e telúrica. Ao mesmo tempo, tenho uma dose de feminilidade forte, que não enjeito. A mulher herdou uma sabedoria de muitos séculos, de velha aranha que sabe esperar, perceber o silêncio. Os homens são tipos de uma ingenuidade total, de uma generosidade inexcedível, só qualidades; e depois há qualquer coisa de bruto, de guerreiro, de incapacidade de crescimento.

 

Que conversas tem com o seu pai e com a sua mãe?

Ao meu pai gosto muito de abraçar, estamos sempre agarrados um ao outro, «Então, a poda já está feita?», «Está quase», e tal. Com a minha mãe falo das coisas da casa, das minhas irmãs, deito água na fervura. E é assim.

 

As partes mais íntimas de si ficam para quem?

São coisas que a gente digere em nós, não é? Nunca matei ninguém, não tenho nada que me atormente. (pausa) Precisávamos de ter várias vidas, não é?, para acertar com uma. Esta é muito pequena. Mesmo que a tenha vivido intensamente. Morrendo brevemente, já ganhei muita coisa. Claro que gostava de mais, de fazer isto e aquilo; mas por outro lado, mesmo 100 anos não é nada, 200 também não. Estou habituado a ver a biografia de escritores... Isto passa tudo. É uma lucidez que convém ter afinada. Sempre a tive, não é de agora. Agora, pelo contrário, tenho mais ganas de viver. Mas sempre percebi o quão relativo isto era: 90 anos, 100 anos, 200 anos. Não se dá conta; julga-se que quando se for mais velho se vai saber mais e também não se sabe mais.

 

Que idade tem?

48. 

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2001

Manuel Hermínio Monteiro morreu em 2001 

António Lobo Antunes

10.09.22

Ninguém, senão Lobo Antunes, poderia escrever a seguinte frase: um camafeu com crisântemos pintados. Ou: girinos novos e abelhas incompletas a aprenderem a ser. Tem uma voz própria. Aprendeu a ser. Ou, como ele diz: “Ninguém escreve como eu”.

Lobo Antunes c’est lui. Uma única voz. Falou de querer pôr a vida toda dentro das capas de um livro. Do pai. Do Antonioni de que já gosta. Do que aprendeu com Cartier Bresson, que lhe pediu que escrevesse para fotografias suas. Do pai. Sempre do pai. Talvez o pai tivesse razão. E mais que tudo da doença. E se eu morrer? Falou do sapateiro que dizia que as mulheres seduzem pela palheta; porque elaboram melhor as emoções, os afectos. Os homens são primários: um par de pernas que passa e ficam a olhar – ele fica a olhar. Da doença. Da alegria em que o haver sol o deixa. Do livro que está a sair, “O Arquipélago da Insónia”. De que é que trata o livro: do que vai escrito nele. No dia seguinte à conversa, seria revelado o nome do Nobel da Literatura de 2008.

 

Diz na sua fotobiografia que, ao seu avô querido, o único lamento que ouviu foi quando ele lhe pousou a mão no pescoço, antes da morte. Perguntei-me qual teria sido o seu lamento, quando esteve doente.

Não tive tempo de ter medo. A minha reacção foi de espanto. Pensava que tinha hemorróidas quando fui fazer o exame. Quando acordei da colonoscopia, “O que é que eu tenho?”, “Tens um cancro”. É uma sensação muito estranha. “Então, nesse caso, quero ser operado amanhã”. Pedi para chamarem um cirurgião que já operou dois mil e tal cancros destes; é meu colega de curso, um homem extraordinário. Nunca mais me esquece que estava na sala da anestesia, de repente senti que me estavam a dar a mão, e era ele. Deve ter sido muito difícil, operar um amigo. O meu irmão João operou agora o Pedro [irmão]. Fiquei com uma enorme admiração por ele.

 

Contou isso numa crónica, há umas semanas.

De uma coragem. E discrição, dignidade. Depois tive de passar por aquele calvário da quimioterapia, radioterapia. Acabou há um ano. Tive muita sorte. De ter um grande cirurgião, de não ter metástases, faço controles. O que até é bom, que nunca tinha feito um check up na vida.

 

Porquê? Um médico, filho de médico, com irmãos médicos…

Tinha medo de fazer um exame e ter qualquer coisa – não me apetecia. E agora periodicamente faço exames a tudo, fígado, rim… Fiquei surpreendido: estava tudo tão bem. Como é que diz o S. Francisco de Assis? “Confesso que pequei muito contra o meu pobre irmão corpo”. A grande lição: são as pessoas. Pessoas que sabiam que iam morrer. Às vezes tinha vergonha: “Eu vou viver, eles vão morrer”.

 

Vergonha?

Era uma sala de espera imensa, para a radioterapia, mais de cem pessoas, uma televisão acesa que ninguém olhava, revistas nas mesas que ninguém lia. Toda a gente em silêncio. Parecia estar rodeado de reis, de príncipes, de princesas. Havia de tudo, miúdos de 17, 18 anos, até pessoas de 80 e tal. Algumas já muito magras, com a cor horrível das metástases hepáticas. Já com a cara da morte delas. E depois, coisas muito comoventes: esta semana, fiz a revisão, e uma senhora, já deitada numa maca, a pedir-me um autógrafo.

 

Ali, continuava a ser o António Lobo Antunes?

É isso: continuava a ser o António Lobo Antunes. Eu não imaginava que fosse tão…

 

Popular? Querido?

Sim, sim. Durante a doença foram centenas de cartas e emails. O pós-operatório foi muito doloroso. Não me podia mexer. E o Henrique [médico] apareceu-me com um email de um miúdo que dizia: “Não admito que o meu ídolo se vá abaixo das canetas”. Isto deu-me imensa força. Ajudou-me muito o Júlio Pomar; enquanto outras pessoas me diziam: “A minha tia teve isso, a minha irmão”, o Júlio Pomar tinha tido o mesmo cancro há 15 anos e o que me disse foi só: “Aguenta-te”. Isto deu-me mais força que palavras de consolo. “E se eu morrer”? “Aguenta-te”. Depois passei dois meses sentado numa cadeira. Este livro que está a sair, tinha-o começado antes. Será que vou ser capaz de escrever? Estive três meses sem escrever nada, nada. Depois recomecei, mas cansava-me.

 

A escrever, a articular o livro na sua cabeça?

Nunca escrevi na minha cabeça. Trabalho sem plano. Acabei este que leu em Outubro ou Novembro [do ano passado], e depois de um mês sem fazer nada começo a sentir-me culpado. Decidi então: dia 25 de Fevereiro começo. E no dia 25 de Fevereiro comecei a escrever. Começo sem nada. Agora começo sem nada.

 

Tinha ideia que nos primeiros livros as coisas eram arquitectadas na sua cabeça.

Nos primeiros livros, sim. Fazia planos, muito detalhados.

 

Há até aquela coisas das “Obras Completas de António Lobo Antunes” que estruturou na sua juventude…

Era. Tinha 10, 11 anos. Nem imagina: era até 2050, ou coisa assim, e era tudo: ensaio, poesia, romance, conto, teatro. Nunca escrevi nada daquilo, claro. Punha no alto da página: Obras Completas de António Lobo Antunes. Nos primeiros livros fazia [planos]. Quando comecei a fazer os livros de que gosto, mais ou menos a partir d’ “O Esplendor de Portugal” – até lá, se voltasse atrás, ia tudo fora – deixei de ter planos. Sei que me faltam três capítulos [do que estou a escrever agora] para acabar a primeira versão. Mas depois aquilo é tão trabalhado, emendado, reescrito.

 

Disse uma vez que não lia os seus livros.

Depois de sair não leio mais. Não leio porque tenho medo. Os primeiros livros: não gosto nada. Parecem-me escritos por outra pessoa. Não têm nada que ver comigo. Nos últimos fiquei espantado. Eu não escrevo assim tão bem.

 

Como se fosse uma mão autónoma?

Estava a ler aquilo como se tivesse sido escrito por outra pessoa. Há livros de que gosto, mas que não gostaria de ter escrito. Simenon, por exemplo. Ou Graham Greene. Certos policiais: o Rex Stout. Tinha uma atitude idiota e arrogante em relação aos policiais. O Cardoso Pires dizia-me que os policiais eram importantes para aprender uma série de coisas: a retenção de informação, que a informação é dada de forma lateral. Estive três meses sem escrever e perde-se um bocado a mão. Os cirurgiões nunca fazem férias longas.

 

Falou especialmente com o seu irmão João durante a sua doença?

Não. Não falei com ninguém, nem queria falar com ninguém. Tenho um grande pudor na relação com as pessoas de quem gosto. O que sentia era um imenso vazio dentro de mim. Vou morrer. E tinha imensa pena de não ter acabado a obra. Não ter arredondado.

 

O que é esse “vou morrer”? Tenho pena de morrer? Tenho medo de morrer? As coisas que vou deixar de fazer. Os que vou deixar.

Era o espanto. O Paulo Klee, o pintor, escreveu: “Como posso eu, cristal, morrer?”. Não era medo. Era pena. Sabia lá se ia morrer? Pensava que sim, pensava que não. Era duro. Mas era pior para os outros. Acho que escrevi isto numa crónica: raparigas com cabeleiras postiças – eram coroas. Em Santa Maria, são pessoas humildes; a dignidade com que se comportam é extraordinária. Não vê ninguém a lamentar-se, a agarrar-se a si, “ajude-me”.

 

Comecei por perguntar pelo seu lamento.

Quando o meu avô disse: “Tenho muita pena de vos deixar a todos”? Eu tinha acabado de fazer 18 anos.

 

Já não traz o anel do seu avô, com que sempre andava.

Não o tenho posto. Já vem de há não sei quantas gerações. Não tenho nobreza de espécie alguma. O avô do meu avô era um pobre camponês de Póvoa do Lanhoso que o pai meteu num barco à vela para o Brasil, para se fazer à vida. Não tenho nenhum sangue azul, tudo o que corre nas minhas veias vem de gente pobre. O meu pai falava com um imenso orgulho de um bisavô marceneiro. A minha ascendência é esta.

 

As pessoas têm a ideia de que é uma família de viscondes há dez gerações. Os rapazes Lobo Antunes têm boa pinta, olho azul.

Olho azul, as minhas avós tinham as duas. É evidente que isto foi-se apurando, mas as origens são estas.

 

Porque é que tem orgulho nessas origens modestas?

Porque o meu nome fui eu que o fiz. Não o herdei de ninguém. O primeiro Lobo Antunes foi o meu avô, que era feito de um senhor Antunes e uma senhora Lobo. Os Lobo Antunes são os seis filhos que o meu pai teve. Deu-nos uma educação muito normativa. Mas todos os filhos têm bom carácter. Todos trabalham que se fartam. Todos são pessoas sérias. Podem ser mais ou menos inteligentes, ter mais ou menos talento, mas essa qualidade todos têm. O meu pai tinha um horror visceral à mentira – nunca o vi mentir – à cobardia e à desonestidade. Não era criativo. Nem tinha imaginação. Como pai foi excepcional. Era tudo muito austero, e com muito pouco dinheiro. Eram muitos filhos, ele trabalhava no hospital.

 

Não se preocupava em ganhar muito dinheiro. O dinheiro não parecia ser uma coisa essencial.

Sempre teve um grande desprezo pelo dinheiro. Lembro-me de ele dizer à minha mãe: “Margarida, dá-me cem escudos para encher o depósito do Lância”. Lância que só teve aos 50 anos. Era o pai que o levava ao Hospital, e ele ia de lancheira, para almoçar. Não havia semanadas, não havia nada disso. Ah: obrigava-nos a ler, e a ouvir música. Em férias, lembro-me de me mandar fazer resumos de capítulos de livros de que ele gostava, tirar significados. Que era uma chatice, eu estava em férias, era uma criança. Lembro-me de ter ido fazer a primeira comunhão a Pádua, por causa de uma promessa do meu avô – tive uma meningite e estive em coma. E eram palestras de meia hora diante de cada quadro. Para uma criança de sete anos, era um frete.

 

Aponta essa viagem a Pádua como um dos grandes acontecimentos da sua vida.

Claro que foi.

 

E durante toda a viagem, ia no carro a fazer que guiava.

Tinha um volante de plástico. Está a ver o que é atravessar Espanha, França, Suíça, Itália, há 60 anos, para fazer a comunhão em Itália? Passar um mês assim. Lembro-me dele [avô] junto ao túmulo de Santo António – que ele era muito devoto, como eu sou – me pôr a mão no túmulo e com os olhos cheios de lágrimas: “Promete-me que quando tiveres um filho lhe chamas António e o trazes a Pádua para fazer a primeira comunhão”. Gostava de estar com pessoas – eu não sou assim. Sou uma pessoa fechada e isolada. Vejo muito pouca gente. Também há tão poucas pessoas de quem eu gosto, muito… E ao fim de uma hora já me apetece estar sozinho.

 

Observei-o num acontecimento social, um jantar em sua honra. E apesar da simpatia, parecia que estaria melhor se estivesse consigo, a ler ou a escrever. Quase não falou, de resto.

Por acaso foi um jantar agradável. Desde que não tenha que falar… Gostei desse jantar porque gosto de ouvir as pessoas e estavam pessoas de quem gosto.

 

Isto era a propósito do anel que não tem posto.

Não gosto de anéis. Tenho mãos quadradas, com dedos curtos. Não gosto de me ver com anéis, punha-o por ele. Qualquer dia ponho. Ah, sabe porque é que deixei de pôr? Achei que não o merecia porque ia morrer. Quis dar o anel à Zezinha [filha mais velha], “Toma lá o anel”, que seria para ela, e depois para o filho dela. Não aceitou. Nunca mais voltei a pô-lo.

 

Foi uma maneira de a sua filha lhe dizer: viva, viva.

Não sei o que estava na cabeça dela. Faço muito poucas perguntas. Também não gosto que me perguntem sobre a minha vida. O meu pai morreu há quatro anos, e muito mudou em mim – até estar em paz com ele. Está a ver como fiquei muito mais terno com a doença? Estar aqui sentado já é uma festa. Haver sol. Eu não tinha isto. Agora sinto-me em paz comigo.

 

O que é que mudou com a doença, ou seja, com a sombra da morte?

Aldrabices, mentiras, jogos, em nada na minha vida – nem nos livros. A doença foi fulcral.

 

Foi um processo duro, súbito, curto.

Foi muito violento, de Março até fim de Setembro. Muito longo.

 

O terramoto anterior foi a morte do seu pai?

Não foi um terramoto para mim.

 

Foi um alívio?

Não sei o que sentia por ele. Amor é uma palavra difícil. Era o meu pai, pronto. Como a minha mãe é a minha mãe. Foi evidentemente importante para mim sob esse ponto de vista – normativo – mas sempre tive a sensação que não tinha nascido deles – porque era tão diferente deles.

 

Essa frase aparece no livro: “De quem nasci eu?”.

Agora vejo que sim. Tenho coisas do meu pai, da minha mãe. Não havia nenhuma tradição ligada a livros. O meu pai gostava muito de ler, a minha mãe também, mas o meu avô nunca o vi pegar num livro. De onde é que isto vem? E sentia-me diferente. Será que eu pertenço a esta família? Vejo os meus irmãos tornarem-se cada vez mais parecidos com o meu pai; provavelmente eu também. Não sei se já lhe aconteceu: da nossa boca saem frases que não são nossas. São da pessoa com quem vivemos, muitas vezes. Certos tiques de vocabulário que não nos pertencem e que o convívio traz. Gestos. E saem-me frases que são do meu pai; certas maneiras de articular, pausas.

 

Ele lia-o?

Dava-lhe os meus livros, ao princípio. Depois, não. Para quê?

 

O que é que esperava dele? Um comentário?

Nada. Perguntei-lhe sobre a “Memória de Elefante” o que é que ele achava; respondeu: “É o livro de um principiante”. Fiquei furioso. Ele tinha toda a razão. Nunca ouvi o meu pai elogiar um filho, fosse para o que fosse, e tinha filhos para todos os gostos e feitios. Só no hóquei, quando eu marcava um golo bom. Uma vez tive um muito bom num ponto, e havia miúdos que iam pedir dinheiro aos pais, cinco paus; e a resposta foi: “Só quando tiveres um bestial”. Como nunca tive um bestial, nunca recebi nada. Nem um elogio, nem uma recriminação. A mim, nunca me recriminou nada.

 

Ainda que não recriminasse, o facto de dizer que a Psiquiatria era uma disciplina menor, era uma forma de o apoucar. De diminuir a sua escolha.

Em relação à psiquiatria, tinha uma certa razão. Quando morreu, o Miguel disse: “O pai deixou uns envelopes”. Pensei que fosse um envelope para cada filho. E todos os envelopes diziam António por fora. É uma carta de 600 páginas. Fiquei a saber o que é que pensava de mim – que eu não sabia.

 

O que é que pode contar dessas páginas?

Não sabia que ele tinha tanto orgulho em mim. Havia naquele homem uma imensa impiedade.

 

Estou a ouvir o personagem do seu livro que diz “Idiota, idiota”, referindo-se ao filho.

Ele não é personagem, o livro não tem personagens, não conta histórias. Cada vez mais os livros sou eu. Nem sei se sou eu. O que eu queria era pôr a vida inteira lá dentro. Os livros não são seus. É como os filhos: também não são nossos. Também não são de mais ninguém. São deles mesmos, se forem.

 

Perguntei-me se este livro não era um ajuste de contas com o seu pai.

Não tem nada que ver com o meu pai. A voz daquele avô…, é um jogo de enganos, nada daquilo existe, passa-se numa cabeça. Os livros, cada vez mais, são também sobre como escrever livros. Portanto, aquele avô é um pobre diabo, sem força nenhuma. Houve dois capítulos que me deram muito prazer: o da morte, que é a Dona Hortelinda, que vai levando as pessoas, e o da Maria Adelaide. Julgo que são as únicas pessoas que têm nome no livro.

 

Há um Jaime.

Quem? Ah, um que nunca aparece.

 

A Maria Adelaide parece a encarnação de qualquer coisa boa, um desejo da infância.

A infância é boa retrospectivamente. Na realidade é um período dramático, de grande sofrimento, como a adolescência é. A maior parte das crianças são infelizes. Estão sempre a frustrá-las. Por que carga de água tenho de estar sempre a lavar os dentes?, porque é que tenho de comer sopa?

 

Davam-lhe tareias quando se portava mal.

Apanhava, apanhava pancada.

 

Normalmente não fala disso. Fala é de não lhe darem beijos ou um prato com bolachas e leite quando estava doente.

O meu pai detestava que apanhássemos pancada. Fomos ensinados a bater para não sermos batidos. Ele organizava combates de boxe, até ao dia em que o João lhe deu um soco, ele caiu e acabou-se o boxe. Tirou a luva, deu-lhe um estalo e foi-se embora – nunca mais me esquece isso. Uma vez pôs-me a jogar contra o Pedro, o Pedro estava a deitar sangue do nariz e eu não queria bater-lhe. Isto com a porta fechada à chave, para a minha mãe não entrar. E ele dizia: “Bate-lhe, senão bato-te eu a ti”. No fundo, acho que aquele homem vivia no pavor da homossexualidade. Achava que uma das coisas da homossexualidade era a falta de coragem física. Tinha um profundo desprezo pela cobardia física. Até muito tarde andou à pancada.

 

É de andar à pancada?

Era uma das coisas de que as minhas filhas tinham medo: que eu saísse do carro para andar à trolha. Passei por cenas caricatas… Às vezes tenho vontade de sair do carro. Não me fazem nada, só me passam pela direita. E torno-me infantil. De resto, não. Já não ando à tareia há mais de seis meses.

 

Quando é que, realmente, andou à pancada a última vez?

Há uns meses dei um estalo a um gajo de mão aberta, de propósito. Não foi com muita força, mas foi um estalo – e isso humilha. Um murro não humilha. Porque é que foi? Não me lembro. Aquilo é feito com sentido lúdico. Como se fosse um miúdo.

 

Com um sentido lúdico, mas para humilhar.

A esse, quis humilhá-lo. Isto não tem interesse nenhum, está a ser muito confessional.

 

A pergunta é: porque fala menos da violência física que da violência emocional. De não ter sido mimado.

Estou a ser injusto. Eu era o filho mais velho de dois filhos mais velhos. Toda a gente estava viva, os meus avós tinham 40 anos quando nasci, não havia mortes. Entrei para a universidade, tinha acabado de fazer 17 anos, e em Outubro estava no teatro anatómico; nunca tinha visto cadáveres. Havia uma espécie de pias, mesas, para o sangue – que não havia – escorrer. O empregado disse: “Meus senhores, está a sopa na mesa”. Passados dois meses já mexia naquilo sem luvas – cadáveres com um ano de frigorífico, cheios de formol.

 

O cadáver passa a ser carne do talho? É a maneira de lidar com isso sem medo, sem repugnância? Tratar aquilo como uma matéria. Como é que se ultrapassa o nojo?

Não era nojo. Era terror. Todos nus, no dedo grande do pé tinham uma etiqueta, com um cordel. Um espectáculo horroroso.

 

Como é que se passa do terror à indiferença?

Não me lembro. Deve ter sido gradual. Não os via como pessoas. Eram apresentados assim: agora é a articulação tal, ou são os músculos tais. Tenho notado nesta coisa que os cirurgiões têm: não é uma úlcera ou um cancro, é uma pessoa que está ali. Para outros, é uma máquina, um objecto.

 

A úlcera está aqui, o cancro acolá, este órgão ali; e os sentimentos, onde ficam?

O meu pai, já que falou nele, e para acabar com o pai – que foi importante, mas não foi decisivo – tinha um imenso respeito pelos doentes. Era terno, fazia-lhes festas. Foram as únicas pessoas a quem o vi fazer festas. Isso incutiu em nós um enorme respeito pelo sofrimento. E outra coisa: um infinito respeito pelo sigilo profissional. Nunca disse o nome de um doente. Era um bom médico – privado dessas coisas que eu disse: imaginação, criatividade.

 

Era capaz de acariciar um doente, mas quando um de vós estava doente, não vos acariciava.

Olhava da porta, e mandava tomar aspirinas. E quando havia injecções para dar, era a minha mãe que dava. Ah: sentava-se na borda da cama a ler poesia – a gente tinha que gramar aquilo. A minha mãe dizia que quando ele, na casa de banho, dizia poesia, enquanto se arranjava e barbeava, ela ia a correr para o ouvir. Sempre teve um enorme respeito pelos artistas, talvez por não ser um criador. Pouco antes de morrer o Miguel perguntou-lhe: “O que é que o pai gostava de nos ter deixado?”, e respondeu logo: “O amor das coisas belas”. As coisas que para ele eram belas não eram necessariamente as minhas.

 

No “Arquipélago da Insónia” escreve: “Se me abraçassem recusava indignado, e no entanto abracem-me”. E a outra, referindo-se à personagem Mãe: “Uma ocasião pegou-me na cara, tive medo que me desse um beijo”.

É tão comum, essa mistura de desejo e de…

 

Medo?

A nossa sede de ternura é infinita. Porque fomos sempre mal amados na infância. Não há nada mais terrível do que a relação de um filho com um pai ou uma mãe. É muito ambivalente. São os pais que impõem as normas, “tens que fazer xixi no coiso, o guardanapo”. Temos tanta dificuldade em aceitar aquilo que mais desejamos. É muito curioso, e paradoxal. As pessoas deste livro pedem muita ternura, é?

 

Estas pessoas, que são uma pessoa, pedem ternura.

Há um núcleo impartilhável em todos nós. Um livro é escrito com muito sofrimento. Estava a tentar olhar para o livro: não o vejo assim. Vejo-o como um todo.  

 

Pareceu-me que tresanda a morte.

Mas eles não morrem, pois não?

 

Querem matar-se todos, e matam-se todos, de maneiras diferentes. Com uma sachola, com a corda do estendal. Porque se detestam. Porque se humilham.

Achou o livro assim tão negro? Mas isso, muitas vezes, tem que ver connosco, leitores, com o estado de espírito com que se lê os livros, e com aquilo que nos livros vai tocar a nossa experiência de vida. Os leitores da agência rejubilaram com o livro.

 

Não estou a dizer que não é uma obra-prima. Estou a dizer, se me pergunta, que me convocou uma sensação claustrofobia.

Quando a mão é feliz… “A Morte de Ivan Ilich”: não pode haver coisa mais angustiante, que rasga. E é um livro que me dá uma felicidade enorme ler. O que me importa, enquanto leitor, é a felicidade da mão. O que me interessa num livro, é quando é bom. O tema? Não há temas. As pessoas não contam histórias. Como eu estava a dizer aos americanos – a “Odisseia”: tenho a minha mulher à espera. “Anna Karenina”: uma mulher que está casada, aborrece-se, o marido é um maçador, apaixona-se por um vigarista, aquilo corre mal, ela morre.

 

Atira-se à linha do comboio. Podia ter escolhido outra morte qualquer.

O que interessa é a maneira como [Tolstoi] faz isto. As intrigas não valem nada.

 

A esgrima, é o que lhe interessa. Como é que a mão esgrime?

É um problema da mão, sempre. Os livros do Tolstoi são bons porque ele tinha uma grande mão. Em arte, é tudo uma questão de mão: seja a escrever, seja a pintar, seja a fotografar. E quando as páginas se tornam espelhos? O “Monte dos Vendavais” não é um romance: aquilo é tudo. Só acontecem coisas horríveis, e saímos daquele livro maravilhados.

 

Cheios de vida, exaltados.

Exactamente. É pôr a vida inteira dentro das capas de um livro.

 

Quando digo que tresanda a morte, não digo que me apeteça morrer, ou matar-me, ou matar.

Não queria falar sobre isso, mas eu estive na guerra. Matar é muito fácil. Quando o Melo Antunes estava doente, nunca tínhamos falado sobre a guerra, e ele começou a falar; a mulher aproximava-se e ele dizia: “Não podemos falar mais”. Perguntava-lhe: “Ernesto, porque é que não sentimos culpabilidade?” Assisti e participei em coisas horríveis. E ainda hoje não sinto culpabilidade. Porquê? Ele também não soube responder. É estranho. Porque sinto culpabilidade por ter ferido uma pessoa verbalmente, por ter sido injusto para alguém.

 

Sente culpabilidade por que pensa que vai sobreviver àqueles que estão na mesma sala, à espera da radioterapia.

Sentia-me culpado porque eu ia viver e eles não. Eles eram melhores do que eu. Tinham coragem. Eu estava todo borrado. Li um bocadinho das cartas da guerra, cartas que me oferecia para ganhar o meu respeito; cheguei a ir sentado no guarda-lamas dos rebenta minas. Porque me achava um cobarde e me enojava a cobardia física. Assisti uma única vez ao espectáculo da cobardia física, e é repelente. Os nossos soldados eram miúdos, de 19, 20, 21 anos. Admiráveis. Agora vão para a discoteca, naquela altura iam dar tiros. Iam matar e morrer. Voltando ao livro: o que eu queria era meter lá a vida toda, e não acho que seja triste. Acho que sou agora mais alegre do que era.

 

Como é que ficou mais alegre?

Estive do outro lado e garanto-lhe que não é agradável. Tenho de dar muitas graças à vida, às pessoas que trataram de mim. Recomeçar o livro depois da doença, não sabia se era capaz. Queria ir mais longe. Não sou modesto, mas sou humilde. Sabemos muito pouco do que queremos escrever, e hei-de levar a vida a tentar aprender. Estou a lembrar-me de uma entrada no diário de Tolstoi, em que ele escreve: “Lutei toda a vida para ser melhor do que o Shakespeare, e sou. E depois?”. Eu agora não minto e sou honesto: ninguém escreve como eu – parece que isso é unânime. E depois?

 

E depois?

E depois estou a ver o dia em que vou começar a repetir-me a mim mesmo. A escrever uma “Ressurreição”, como Tolstoi escreveu, que não tem a grandeza dos outros livros. É o meu receio. Será que estou a rapar o fundo ao tacho? Será que ainda tenho mais um ou dois livros para escrever? O que é que vou fazer depois? Não sei fazer mais nada. Vivo disto e construí-me para isto. Pareço uma galinha a proteger os ovos. Não tenho nada a acrescentar, o livro tem de se defender sozinho. Esta unanimidade por todo o lado: às vezes penso que é uma fraude, que vou acordar e perceber que é tudo mentira. Tive um pesadelo há um mês ou dois: estava morto há 20 anos, e as pessoas estavam a discutir os livros e eu, angustiado, queria voltar a viver para dizer “não é nada disso”.

 

Houve uma altura em que disse que já não se importava em ganhar o Nobel. Mas se o ganhasse, era mais para os seus pais.

Era. Mas repare, só este ano, pareço um cavalo: ganhei o [prémio] Ibero-Americano, o Terence Moix [Espanha], o Camões pelo meio, agora foi este Juan Rulfo, a coisa francesa [Comendador da Ordem das Artes e das Letras].

 

Se amanhã lhe telefonassem a dizer: “O Nobel é seu”, em quem é que pensaria?

Mas isso não tem que ver com a literatura, não torna os livros melhores ou piores. Se me disser o nome de um jurado, digo-lhe quem ganha. Em Portugal, se conhecer os membros do júri, sei quem vai ganhar o prémio. Gostamos daquilo que prolonga os nossos gostos, do que é da nossa família. O difícil é dizer: “Não gosto, mas o livro é bom”. Confundimos as ideias com as paixões: gosto, logo é bom, não gosto, logo é mau. O Musil: ele é bom, mas não gosto. Uma chatice e peras. O [Hermann] Broch: aquele primeiro capítulo da “Morte de Virgílio” parece feito em cinemascope. Uma maravilha.

 

Há maus livros de que gosta?

Há. O único livro que me fez chorar até hoje foi o “Love Story”, que li em África. O livro é uma merda, cheio de cordelinhos, e adorei. “Isto é uma merda, para que é que estou para aqui a chorar?”. Não sei se não tinha que ver com o isolamento em que estava. Os livros também são a nossa circunstância. Então, devia ser o nome dos leitores a aparecer na capa dos livros. Estamos a projectar os nossos fantasmas, sofrimentos, medos.

 

Para o leitor, essa projecção é inescapável. E também projectarmos o que sabemos da vida do autor naquilo que lemos. Ou seja, leio o seu livro e penso: está a ajustar contas com o pai, foi escrito depois do cancro e parece-me ver morte em todo o lado, há uma pulsão libidinosa que talvez o prenda à vida. As mulheres parece que só servem para fornicar – há um desacerto na relação com elas. Tudo isto é consanguíneo. E uterino.

Não acha que as mulheres são tratadas com respeito? É que cada vez mais as mulheres me parecem uma salvação do homem e do mundo.

 

Não é tanto o desrespeito. É tudo passar-se numa base de sedução/submissão.

Ah, mas quem manda são as mulheres, tem alguma dúvida? Os homens é que são escolhidos. Quando elas são inteligentes dão ao homem a sensação que ele está a fazer uma conquista, mas já foram escolhidos. Como na ordem animal. Tendem a escolher machos dominantes – mais não seja pela preservação da espécie. Somos os descendentes dos mais fortes, dos que sobreviveram aos maremotos, às pestes. Não é por acaso que quero um homem com poder – é a mesma lógica que leva à escolha do macho dominante.

 

Depois, quem manda é ela?

Depende das relações. Porque é que há-de haver uma competição, um patrão e uma empregada? Tem que ver com a nossa maturidade. Durante muitos anos, nas minhas relações, havia um que mandava e outro que obedecia. Agora já não penso assim.

 

Quando é que cresceu?

Às vezes o Cortesão, um homem a quem devo muito, psiquiatra, dizia: “Não sei se é a análise que muda as pessoas, se é o tempo que lá estão”. Em nove anos uma pessoa vai mudando.

 

Fez análise nove anos?

Não sei. Bastantes. Sei que saí de lá e aquilo não me serviu para nada. “Para que é que venho aqui?, sou mais inteligente do que você”. Tudo aquilo me parecia um conto de fadas científico.

 

Estava a concordar com o seu pai.

Até certo ponto, sim. O que é a depressão? É quando a gente deixa de pensar.

 

Deixa de querer viver.

Não sei. O suicídio é uma coisa complexa. O suicídio é a morte de um outro. Estou a matar uma parte para viver com a outra eternamente. Fazia-me impressão o sentimento de imortalidade que havia nas pessoas que faziam tentativas de suicídio e que sobreviviam. Elas não se estavam a matar a elas. O meu bisavô, quando se matou, estava a matar o cancro. Uma coisa aprendi: ninguém, tenha a idade que tiver, está preparado para morrer. E a nossa capacidade de sobrevivência é através dos artistas. Aquele concerto de Ano Novo, em Viena, que eu vejo sempre, comovido até às lágrimas: aquela música do Strauss é uma tal vitória sobre a morte… Sinto-me vingado. A grande arte é essa.

 

A que nos vinga, a que nos enche de vida?

O quadro que eu prefiro é “As Meninas”, do Velasquez. Aquilo é um grande livro, um grande tudo. Mas onde é que está o livro? Não há livro, há vida. Aquele quadro, ou o Vermeer: enquanto houver pessoas destas, a nossa vida não foi em vão. Não acabou com o absurdo final e a injustiça final da morte.

 

Esse é o último combate? Com a morte, o tempo.

O Ovídio escrevia: “Os meus livros hão-de resistir ao tempo, ao fogo e ao ferro”. E resistiram. Dois mil anos depois, aquilo pertence a todos nós. Julgo que era isto que o meu pai intuía que não era capaz. Uma vez mostrou-me uns contos que tinha escrito; “Quer que fale como seu filho ou como escritor? Se quer que fale como escritor, isso é uma merda”. Meteu aquilo numa gaveta. De facto, eram uma grande merda. Uma coisa é ter a sensibilidade, outra coisa é ter os meios de expressão. Para escrever é preciso, orgulho, paciência e solidão. Um livro é uma coisa na qual consome dos dias e noites, e vive ali, num corpo a corpo constante. O único mérito é trabalhar muito. Se tivermos sorte, é ficar como “As Meninas”, ou Ovídio.

 

Interessa-lhe o que as suas filhas lêem nos seus livros?

Nunca falámos sobre isso. Nunca lhes falo sobre o que faço, nunca lhes peço opinião. Nem peço a ninguém.

 

Não está interessado em saber?

Acho que é uma pergunta íntima. Deve ser difícil ser minha filha. O nome torna-se pesado. Elas fazem uma separação clara. Para elas eu sou o pai. A Isabel [a filha mais nova], que está em Londres, estava toda orgulhosa porque na faculdade de uma delas [flatmates] iam fazer “um curso sobre o pai”. “Já leste algum livro?”, “Nunca li nenhum”. A conversa ficou assim. E é uma chatice terem um pai público.

 

Porque as rouba?

Provavelmente. Carregam um nome pesado, que para mim já é pesado. No outro estava ao espelho a fazer a barba, “Eh pá, sou o António Lobo Antunes”. Tudo isto que me aconteceu… Eu tinha sonhos de glória aos 15 anos, queria descer a Avenida da Liberdade a acenar à multidão entusiasmada. Até perceber que a glória não é o mais importante.

 

A glória não tem importância?

É hipócrita dizer que não é agradável. A unanimidade é assustadora, mas é agradável. A quantidade de gente que me diz na rua: estou à espera que ganhe o Nobel. E vão ter uma desilusão amanhã. Até pode ser que ganhe, mas aquilo é uma lotaria, não me parece haver um critério.

 

O que é que o reconciliou com a vida? Dantes era recluso, zangado.

Sempre gostei de viver. Percebo a ideia da sua pergunta.

 

Agora comove-se muito mais e fala de ternura.

É natural, porque passei por uma experiência radical. Foi um preço muito alto, mas talvez pelas coisas boas a gente tenha que pagar um preço alto.

 

Viver é um ofício. Ofício de viver.

Pavese. Ele também escreveu: “Virá a morte e terá os teus olhos”. Mata-se num quarto de hotel, em Turim.

 

Ocorreu-lhe o suicídio?

Claro que sim, como a toda a gente. Mas mais como devaneio. Em mim é muito clara a consciência da missão.

 

Por acaso estava a pensar no período da doença.

Aí não. Estava a fazer a radioterapia e falava com o cancro: “Morre, morre, morre”. Insultava-o. Enquanto na guerra, o inimigo está fora e pode matá-lo, aquilo está dentro de si. É uma parte sua que se revolta e a quer destruir. Tive a sorte de ter um bom sistema imunitário, e acho mesmo que Santo António me protegeu. É engraçada a relação com Deus. Dantes zangava-me quando via a morte de crianças. Agora já assisto a isso melhor. Como aceito a minha. Que é que vai ficar de mim? Livros. Já não é mau. Já não é mesmo nada mau se eles forem aquilo que eu acho que eles são.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2008