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Anabela Mota Ribeiro

Eduardo Lourenço e José Augusto França

27.10.22

A ideia de juntar dois amigos para recordar 60 anos de amizade não era “assaz esdrúxula”. Era um modo de falar de um tempo longínquo, de revistas que se faziam em cafés, da vida que os incendeia, de estarem nonagenariamente bem.

Foi José Augusto França que usou a expressão “assaz esdrúxula”. Tinha visto recentemente Eduardo Lourenço e o amigo parecera-lhe “ deveras fatigado”. Não havia vestígios disso naquele domingo à tarde.

Os dois usam expressões que já não se usam. E têm um brio na palavra que os faz parecer músicos virtuosos. E por cima disso, está a lucidez, a inteligência, o esplendor. E a graça.

Também falaram de espanto físico. É o que fica depois de os ouvir.

Não pareceram rapazes que se reencontravam num quadro compincha. Esse não é o seu registo. E seria talvez ridículo se assim fosse. Eduardo Lourenço e José Augusto França passaram os 90 anos, não jogaram à bola juntos, tratavam-se cerimoniosamente quando se conheceram.

Nesse começo dos anos 50, já tinham estudado Histórico-Filosóficas, agitado o meio cultural, interrogado o mundo. Pouco depois sairiam do país para perceber que “não estávamos tão orgulhosamente sós”, resumo de Eduardo Lourenço. Sentiram o deslumbramento do lá fora. Foram e voltaram. Escreveram cartas, encontros, “o que pensas tu disto?” (nessa altura já tu). Alicerces de uma amizade.   

Agora estão lado a lado no sofá da sala de José Augusto França. Riem-se. Perguntam coisas um ao outro (coisas como: “Quando é que tu leste o Michelet?”). Partilham experiências. Divertem-se. Como rapazes.

Já esta semana, José Augusto França recebeu da SPA o prémio Vida e Obra de Autor Nacional 2014. Eduardo Lourenço cirandou “de palco em palco”, a falar disto e daquilo, com aquela capacidade que tem de extrair gozo das coisas simples. Não há parança. Parar porquê?

 

 

Estava a dizer que aquilo em que estou a pensar é em apanhar-vos vivos?

José Augusto França – Então não é? Daqui a dez anos já cá não estamos. O Manoel de Oliveira ainda estará. Nós, não.

 

Quando os vi no Grémio Literário, numa celebração dos 120 anos de Almada Negreiros, interroguei-me sobre as raízes da vossa amizade.

JAF – Conhece as ondas da vida do arquitecto Raul Lino? É uma coisa graficamente constante na obra dele e que pode ver na Gardénia, a loja do Chiado que é uma obra prima. São duas paralelas que ondulam, e ora se encontram, ora se afastam. É uma coisa que acontece connosco. Ele é da Filosofia, eu sou da História.

 

Um é mais pessoano, o outro mais almadiano – para pensar em autores tutelares da cultura portuguesa do século XX. Como temos de começar por um ponto qualquer, começo por perguntar como era o José Augusto França quando o conheceu?

Eduardo Lourenço – Conhecemo-nos por escrito. Quando publiquei o meu primeiro livrinho, em 1949, o livrinho teve um sucesso mitigado. Sobretudo o acolhimento em Coimbra foi silencioso.

JAF – Era o Heterodoxias num meio ortodoxo.

EL – Para aquela gente, eu era um compagnon de route. O problema é que nunca fui compagnon de route de ninguém. Nem de mim mesmo. Apesar de ser a cidade universitária por excelência, Coimbra era uma capital de província. Não sei se éramos todos palermas...

JAF – [Almada falava] dos “palermas de Coimbra”.

EL – Em todo o caso, éramos todos provincianos. Ficaram defraudados com o livro. Com espanto meu, vim a Lisboa e dei aqui com um grupo que não havia lá. Um grupo literário, de amigos.

 

E com algum cosmopolitismo, que contrastava com o provincianismo de Coimbra?

EL – Sim. Mas para mim, vir para aqui já era ir a Nova Iorque. Não se respirava no país, mas eu respirava quando vinha a Lisboa. A primeira coisa que fazia era sair no Rossio e dirigir-me ao Tejo para respirar o mar. Aquilo era o mar. Nesse grupo, a que pertencia o José Augusto, havia uma personalidade importante da Presença: o Adolfo Casais Monteiro. Conheci-o nessa roda, bem como ao Jorge de Sena e a outras pessoas.

 

Tinham dado pelo livro?

EL – Sim. O José Augusto França, que já era o activista cultural precoce que nós sabemos, estava lançado numa série de coisas. Entre elas, uma revista. Unicórnio, Bicórnio, Tricórnio.

JAF – Foi até ao Pentacórnio. Mudava de nome a cada número por causa da censura.

EL – Convidou-me para elaborar um inquérito e enviá-lo.

 

Qual era o tema?

JAF – “Como vêem os intelectuais portugueses a sua condição de intelectuais em Portugal?”. É um retrato de como éramos.  

EL – Muita gente respondeu, muita gente não respondeu.

 

Estava-se em que ano?

JAF – Em 1951.

EL – Quase nas vésperas de ir lá para fora. Em 53 fui para a Alemanha. Nunca mais nos perdemos de vista. Começámos uma correspondência que vai ser – não sei se ainda estaremos vivos... – publicada.

 

A previsão é que seja publicada no início do próximo ano.

EL – Ele já tinha publicado um livro que considero dos mais importantes...

JAF – Publicámos quase ao mesmo tempo o Heterodoxias e o romance Natureza Morta, que escrevi cá depois do tempo que passei em África.

 

Eram ambos rapazes promissores. Outros, como Casais Monteiro, pertenciam a outra geração, eram reconhecidos.

EL – Sim. O meu conhecimento de Pessoa, do pequeno mito que se começava a constituir, foi-me transmitido por Casais Monteiro, por uma edição [da revista Presença] que consagrou a Pessoa. O essencial já estava lá, incluindo a famosa carta sobre os heterónimos.

 

Voltemos às linhas iniciais: como era Eduardo Lourenço quando o conheceu?

JAF – A leitura do Heterodoxias foi-me aconselhada pelo Casais Monteiro: “Há aí um rapaz em Coimbra que publicou um livro...”. Tinha com o Casais um contacto diário. É muito [café] Brasileira, tudo isto. Reunia-se ali o grupo Surrealista. Convidei o senhor doutor Eduardo Lourenço de Faria a escrever na revista. Tratei-o por vossa excelência, como era uso.

 

Como é que se tratam hoje?

EL – José Augusto.

JAF – Tratamo-nos por tu. Quis dedicar o número da revista ao meta-romance, ao que está para além do romance. O Casais Monteiro devia fazer um artigo sobre Kafka, que nunca fez. O José Blanc de Portugal fez um notável artigo sobre o Lewis Carroll. Ao Eduardo Lourenço, desafiei-o a escrever sobre o Marquês de Sade, o que nunca ninguém tinha feito em Portugal.

 

Sade? Que atrevimento.

EL – [riso] Só a minha total inconsciência e ignorância me levaram a aceitar este convite. Não era não saber quem era Sade. Era o que aquilo era! É um autor – limite – que está fora de todos os registos. O que ele vai contar é o lugar do sexo na cultura – na natureza já se sabe. O passar ao escrito é outro problema. Devo-me ter documentado, lido pessoas que escreviam sobre ele. Ainda tenho uma bibliografia sobre isso, que punha cautelosamente atrás dos livros principais, não fossem os meus irmãos mais novos ir lá, rabiscar sodomas e gomorras. A minha educação de tipo tradicional, católica, não se prestava a compreender o autor.

 

Não sei se o seu olhar lúbrico vem do Sade se da cultura católica.

EL – O ensaio foi dedicado ao meu amigo José Augusto França.

JAF – Lembras-te do título do ensaio? “D.A.F de Sade ou o Anel de Giges”.

EL – Giges era a história de um anel que tinha a propriedade de se tornar invisível. Portanto de atravessar todas as fronteiras, incluindo a de bem e mal.

 

Em que circunstâncias se falava de sexo em Portugal nos anos 50? Com quem?

JAF – Na imprensa, não, com certeza. No romance, muito discretamente. O mais indiscreto no romance ainda foi Os Maias do Eça de Queirós.

EL – Não há mais nada a aprender.

 

Os homens, uns com os outros, conversa de café, quando tinham uma relação íntima: podiam falar?

JAF – Em Lisboa havia anedotas que correspondiam à realidade. Dos homens Chiado acima, pelo lado dos cafés, encostados à parede, a ver as mulheres passar. E a olharem para as pernas, evidentemente. Ou para os rabos. E deitando aquilo a que os espanhóis chamam piropos. As senhoras, enfim, “mulher honesta não tem ouvidos”. Não ouviam, mas gostavam muito de ouvir.

EL – Em Coimbra não havia Chiado, mas havia a rua Ferreira Borges. O [João] Gaspar Simões (crítico e romancista da nossa geração) disse, ou escreveu, que uma senhora para poder atravessar impunemente a rua Ferreira Borges tinha de ir acompanhada da parte masculina da sua família. O país era o mesmo.

JAF – Havia as casas de chá. A Marques, a Bénard (que ainda existe), mais abaixo a Bijou. Mais acima, onde está hoje a Hermès, havia a Garrett, que tinha concertos à tarde. Ainda menino fui lá tomar chá e comer torradas com a minha mãe e a minha tia.

 

As pastelarias eram frequentadas por senhoras e família, os cafés por homens. Era assim?

JAF – As senhoras não entravam nos cafés. A Brasileira tinha uma venda de café a peso, à entrada, onde as senhoras ficavam quando os maridos iam lá para dentro para a conversa. Quando digo as senhoras digo a Sarah Afonso, mulher do Almada. Depois atreveram-se a entrar e sentar nas mesas da Brasileira. Anos 40, depois da [Segunda] Guerra.

EL – Quem vinha da província sentia automaticamente... O meu pai era muito sensível à atmosfera (não era um termo dele) erotizante da capital. Falava da maneira como andavam as lisboetas. Distinta da maneira como se andava na província.

 

Como é que as descrevia?

EL – Usava palavras com uma conotação sexual. Falava da liberdade de gestos, de comportamento que destoava do da província. Eu sentia isto na fronteira com Espanha. Quando íamos comprar coisas do outro lado, antes da guerra civil (tinha dez anos), ficávamos pasmados com o comportamento diferente daquelas duas regiões, ao lado uma da outra, que se visitavam. As espanholas: algumas deviam ser estudantes de Salamanca. Tinham uma desenvoltura, uma lata! As nossas eram embiocadas. Podia ser dos novos tempos, do Salazarismo. Mas penso que não, que era uma coisa atávica.

 

Tem memórias deste tipo?

JAF – Sim, isto via-se na Figueira da Foz. Era uma colónia espanhola, no Verão. Uma alegria! Só acabou em 36 com a Guerra Civil. Os espanhóis deixaram de vir e transforma-se aquela vida de andar para trás e para diante nas ruas dos cafés. Caiu uma tristeza sobre a cidade. Veja o romance do Jorge de Sena, Os Sinais de Fogo, que é desse Verão ardente que passei lá. O último ano em que fui, 39, foi o ano em que rebentou a [Segunda] Guerra.

 

Há diferenças entre os percursos dos dois, além da geografia. Era diferente ser filho de uma família burguesa, como era o caso do prof. França, ou de uma família não tão abastada quanto a do prof. Lourenço.

JAF – E a dele era uma família de militar.

EL – Não era não ser abastada, era sobretudo uma família numerosa. Éramos sete [filhos].

JAF – A condição social era a mesma. A de uma burguesia média. Agora, a responsabilidade de ter seis irmãos e ter de tomar conta deles pelo falecimento do pai, o que tornou o Eduardo chefe de família cedo, é uma situação inteiramente diferente da minha. Eu era um menino filho de pai e mãe abastados. O meu pai morreu, mas eu fiquei na mesma situação.

 

Tinha 20 anos quando o seu pai morreu e foi para África.

JAF – Negócios de família. O que me deu o tal romance e me deu ser despedido da companhia por causa do romance. 

EL – Nós vivemos no mesmo tempo. Um tempo em que o salazarismo ainda não era totalmente recusado pela sociedade. Foi nos anos 40 que se manifestou uma crítica assumida. Os regimes diferentes do nosso, na Europa, tinham ganho a Guerra. Mas esse país eram muitos países. A educação que um menino da capital tinha não era a mesma da de um menino da província. A coisa mais importante para mim foi nascer numa região em que as pessoas eram naturalmente católicas como eram portuguesas. A República deixou marcas, mais nas cidades. Nas aldeias, nas suas práticas ancentrais, toda a gente ia à igreja.

 

Foi essa educação católica que teve. Sem se questionar?

EL – Não logo. A gente não nasce nas questões. Descobre-as depois. O que me marcou, e a outros da mesma geração, foi a guerra em Espanha. Representou uma tomada de consciência.  Estava-se a favor ou contra? Quem era pelos nacionalistas e quem era pelos republicanos? O grupo neo-realista tinha uma consciência político-cultural, e aqui em Lisboa os Surrealistas. Toda essa gente ficou contra o regime. Definitivamente. O [José] Saramago dá isso bem n’ O Ano da Morte de Ricardo Reis. É o ano em que o país começa a dividir-se e deixa de ser passivo em relação à situação. Era como se chamava: a situação.

JAF – Era também o nome de um jornal.

 

O que representou ir para o estrangeiro nos anos 50?

EL – Não sabia que ia mudar a minha vida totalmente. Veja o que é sair de um país onde ser suspeito de ser comunista – ou, mesmo sem o ser, estar rotulado como isso – [dava cadeia], chegar a uma cidade, Bordéus, e ver na rua principal uma bandeira a dizer Partido Comunista Francês... Estou noutro mundo!

JAF – Tinha-se um espanto físico.

EL – Era verdade a [frase] de Pascal: Verdade para cá dos Pirenéus, erro para lá dos Pirenéus. Entrava-se num mundo de liberdade institucionalizada há séculos. Em Portugal, se tivéssemos assinado um papel que beliscasse...

JAF – Aconteceu-nos aos dois.

 

Contem.

EL – Foi assassinado aqui um escultor, Dias Coelho.

 

Era dirigente comunista, foi morto pela PIDE em 1961. Zeca Afonso escreveu para ele A Morte Saiu à Rua.

EL – Em Paris, assinei uma coisa contra aquilo. Em 1964 tinha de vir a Portugal porque a minha irmã [carmelita] ia professar em Fátima e pensava que nunca mais a via fora do convento. Claro que fui logo apanhado na fronteira. A interrogação do polícia: porque é que não vinha a Portugal há quatro anos. Quer dizer, desde que tinha assinado a papelota nunca mais tinha vindo. Eu costumava vir todas as férias. Eles sabiam tudo, não é?

 

Assinou o mesmo papel. Como foi consigo?

JAF – Assinei na Sorbonne, onde estava. Fui mais cedo para França. Deram-mo para assinar com o aviso: “Tu vê lá se queres assinar... queres voltar”. Fui apanhado com a minha mulher e a minha filha em Vilar Formoso. Elas continuaram viagem, eu fiquei preso umas horas. Vim depois com um pide noutro comboio. Um pide simpático, de resto. Paguei-lhe o jantar.

 

Como era o pide simpático?

JAF – Agente César, nunca me esqueceu. Contou-me a vida dele. Dava-se mal com o pai, que tinha uma mercearia. Fez concurso para os Correios e para a PIDE. Era o que aparecia. Foi aprovado na PIDE.

EL – Este era o país real.

JAF – Fui-lhe metendo um certo veneno. “Isto vai mudar, qualquer dia. Os grandes safam-se sempre. Vocês, os pequenos, é que vão apanhar.” Ele dizia-me: “Já pensei nisso, senhor doutor”.

 

Situação absurda.

EL – [riso] A única vez em que estive na [Rua] António Maria Cardoso [sede da PIDE], no famoso terceiro andar, um andar de más recordações para muita gente, estava um dia maravilhoso. Eu olhava o Tejo e lembrava-me de um verso do Pessoa (já naquela altura). Vem um rapaz: “Ó Sr. Dr., está em França. Não me pode arranjar lá um emprego?”. Isto não se acredita. “Ó homem, você está aqui tão bem... Vão ao cinema e andam nos carros eléctricos de borla.” Um bocado cínico da minha parte... Mas aquilo não era uma brincadeira. Muita gente pagou caramente, eram militantes a sério.

 

Foi para Paris doutorar-se. Quanto tempo esteve fora?

JAF – Quatro anos e tal. Vinha no Verão a Portugal. Foi no primeiro Verão pós-doutoramento que fui apanhado na fronteira.

 

Depois disso não viveu mais fora, ao contrário do Prof. Lourenço. Quando voltaram, eram outros.

EL – É verdade. Mas já éramos outros antes de ir.

 

Como assim?

EL – Quando fui para fora já tinha seis anos de assistente na Faculdade de Letras em Coimbra. E tinha escrito aquele livrinho, que não era importante para os outros (uma minoria leu aquilo, fiz uma edição de 500 exemplares), mas era para mim.

JAF – Tu não queres dizer, mas foi um livro fundamental em Portugal.

 

Queria perguntar isso: tinha noção de que era uma obra fundamental, que rasgava?

EL – Não tinha noção de nada.

JAF – Nem podia ter. Não havia ambiente cultural para ele entender que estava a fazer uma coisa importante. Era um livro de dupla reacção, ao neo-realismo e à situação política salazarista. Para ele foi importante, para nós que o lemos, foi uma revelação.

 

Queria ouvi-los mais sobre a marca que ficou por terem estado fora.

JAF – O meu fora é diferente do fora do Eduardo. Ele foi em 53...

EL – Como funcionário da nação. Como leitor. Primeiro em Hamburgo, depois Heidelberg.

JAF – Eu comecei a sair de Portugal em 46. Fui a Madrid, Toledo, aquele bloco espanhol. Fui ao [Museu do] Prado. Apaixonei-me evidentemente pelo El Greco. Dois meses depois fui a Paris e vi o primeiro Picasso.

 

Como é que foi o seu primeiro Picasso?

JAF – O Louvre estava fechado, ainda, depois da Guerra. Havia uma exposição de arte contemporânea, três ou quatro Picassos. Eu vi que o Picasso existia de carne e osso! Para mim, até então, eram reproduções. Passei a ir duas vezes por ano a Paris. Estava tanto tempo quanto podia. Era uma questão de haver mais ou menos dinheiro. Foram anos de circulação e abertura de espírito. Via muita arte, cinema, tudo isso me enchia o papo. Em 59 fui trabalhar com o [historiador de arte Pierre] Francastel. Quatro anos de doutoramento. Eu não era, mas os meus amigos lá eram todos exilados políticos. O António José Saraiva, o Joaquim Barradas de Carvalho, gente suspeitíssima.

 

A questão política, mesmo para as pessoas da arte e da Filosofia, estava muito presente.

JAD – Em 1946 assinei as listas do MUD [Movimento de Unidade Democrática], não me aconteceu nada. Em 1949 estive na campanha do Norton de Matos; era para falar em sete comícios e só me deixaram falar num. Perdemos as eleições mas ficámos com esse vírus político, que se espelha no grupo Surrealista de Lisboa. A capa do catálogo do grupo era um cartaz a perguntar: depois de 20 e tal anos de medo, ainda seremos capazes de votar contra o fascismo? Fui eu que compus a palavra “medo” na tipografia.

EL – A palavra “fascismo” não era muito utilizada. Ainda não.

JAF – Foi evidentemente proibida, a coisa. Fui com o cartaz ao Governo Civil onde me disseram: “Os artistas não têm nada que fazer cartazes políticos”. Respondi: “Os artistas também são cidadãos”.

 

Falavam de política um com o outro? Discutiam Marx? O Prof. França disse numa entrevista ao Expresso que é um marxista dissidente.

JAF – Sim. Na nossa correspondência, há muita política.

El – Eu comecei a viver fora cedo. Primeiro na Alemanha, onde mais tarde lamentei não ter ficado. Tinha ido para estudar Filosofia e aquilo era a pátria da dita. Seria mais fácil fazer carreira numa universidade alemã do que numa francesa. Desde que uma pessoa saiba alemão. Eu não o aprendi. Ao fim de uns anos, sabia alguma coisa. Quando sabia alguma coisa, fui embora para França. Sempre escolhi a facilidade [riso], como diz a minha mulher [Annie Salomon morreu em Dezembro de 2013].

 

Não é verdade.

EL – É. Ela é que sabe. Entretanto com o casamento ia conhecer uma alteração na minha vida. Não sei até que ponto não estava a querer uma outra identidade, quase. Em todo o caso, era uma perspectiva de vida que não era a que tinha confinado a este país.

 

Aconteceu a ambos, casar com francesas. O prof. Lourenço pensou voltar no 25 de Abril de 74?

EL – Tinha pensado que sim. Mas a minha vida já estava tão francesa... E o meu destino cultural e académico estava tão ligado à minha mulher... Uma altura, o [Fernando] Namora acenou-me para ir para o Instituto de Alta Cultura. A minha mulher teve uma crise de asma! Nunca se ajustou à sociedade portuguesa.

JAF – O Eduardo esteve para vir para a Universidade Nova. Eu era persona non grata no dia 24 de Abril e passei a persona grata no dia 26. Estava recrutando gente. As primeiras pessoas em quem pensei: o Eduardo e o Jorge de Sena. O Jorge de Sena tinha nove filhos, um bom ordenado na América, não podia vir. O Eduardo tinha uma esposa francesa que gostava de vir a Portugal mas não gostava de vir para cá. Abortou esse nosso projecto. Ah, e era o António José Saraiva, que voltou.

EL – Nenhum dos dois esteve exilado no sentido verdadeiro da palavra.     

 

Ao casarem com francesas e com uma vida tão ligada à cultura francesa, de certo modo, tornaram-se franceses. Qual foi a experiência do prof. França?

JAF – Casei com a Maité em 72, que tinha um enraizamento diferente em Portugal [daquele que a Annie tinha]. Era casado [antes] com uma senhora portuguesa. O sonho francês desapareceu com o 25 de Abril e as responsabilidades que assumi cá. Continuava a ir a Paris muito frequentemente. Depois de me reformar, passo seis meses em França, seis meses cá.

El – A nossa geração era quase só francófila.

JAF – Menino de dez anos, antes do liceu, o meu pai obrigou-me a ler Les Misérables em francês. Coitadinho de mim, não tinha mademoiselle, não havia posses para isso. O meu pai era socialista, maçon, tudo quanto não se devia ser, mas arredado da política. Fez uma vida comercial, proveitosa, publicou uns versos. Tinha uma boa biblioteca francesa e portuguesa.

 

Como é que leu o Victor Hugo?

JAF – Com um dicionário. Quando as coisas eram complicadas, pedia ajuda à noite ao meu pai.

 

O seu pai foi um primeiro mestre?

JAF – Em certa medida, foi. Sobretudo, foi o mestre moral. Lembro-me da alegria do meu pai quando a república foi proclamada em Espanha em 1932.

 

Que outras causas o apaixonaram a ele e a si?

JAF – Torci pelos chineses contra os japoneses [1937], e pelo Haile Selassie da Etiópia contra a invasão dos fascistas italianos [1936]. Tinha um grande mapa da Abissínia e uma bandeira etíope em casa

EL – É muito interessante esta observação. Quer durante a Segunda Guerra quer durante a Guerra Civil de Espanha, uma parte do povo era a favor de nações onde se passavam coisas que não estavam na lógica deste regime.

JAF – Era-se anglófilo durante a Guerra. Eu ouvia a BBC com o meu pai. O Agostinho Lourenço, chefe da PIDE, a pessoa mais tenebrosa de Portugal, era anglófilo! E o Santos Costa, ministro da Guerra, era germanófilo. Havia despique permanente. Salazar jogava entre os dois com a pasmosa capacidade que ele tinha de sobreviver.

 

Continuemos a falar de mestres. Há pessoas fundamentais no vosso percurso, que vos ensinaram a pensar, interrogar. Encontros fundamentais?

EL – No meu caso, a coisa é simples: eu vinha do colégio militar onde a formação de ordem cultural era o que era. Portanto foi importante o curso que tirei em Coimbra. Curiosamente o que me interessou sempre mais foi a História. A Filosofia, não sabia bem para que é que servia. Ninguém sabia. Ainda hoje não sei.

JAF – Já declarei que aprendi a escrever com um professor no liceu (Sebastião Lisboa), aprendi a pensar com o prof. de Filosofia na Faculdade de Letras (Francisco Vieira de Almeida), e a trabalhar aprendi em França, com o Francastel e o Léon Bourdon.

EL – A aprendizagem, cada um de nós a faz por escolhas, por encontros, por leituras, por um autodidactismo que leva para caminhos diferentes.

 

Falaram sobretudo de livros. E cinema?, que filmes viam?

EL – O cinema inventou uma nova maneira de ver o mundo. Não são coisas dedutivas, são experiências feitas através da penetração, da compreensão, do gozo de um outro mundo.

 

Fala como se fosse um outro canal de acesso à realidade... O primeiro nome que lhe ocorre se lhe peço um realizador que o tenha ajudado a interrogar o mundo, qual é?

EL – Todos os grandes. O famoso neo-realismo italiano. Um dos filmes da minha vida é o Oito e Meio [Fellini], uma autobiografia de um sujeito que a gente queria ser, o Marcello Mastroianni. Depois veio a descoberta do [Ingmar] Bergman, fascinante; gostávamos do que era diferente, do que nos interroga ainda mais profundamente.

JAF – Orson Welles, com certeza. Tinha 20 anos quando saiu o Citizen Kane [1941]. O Hitchcock, que estudei. O Rossellini entre os italianos; revi recentemente o Viagem em Itália [1954].

 

O que é que sentiu, revendo-o agora?

JAF – Mantive a mesma impressão. É uma obra-prima de uma delicadeza...

EL – Este meu caro amigo é célebre no mundo inteiro por ser autor de um dos livros mais extraordinários que se escreveram sobre Charlot. Quando Chaplin morreu...

JAF – ... o artigo necrológico do Le Monde abre com uma longa citação do meu livro.

 

O que é que Charlot representa? Infância, encantamento?

EL – Génio.

JAF – O maior filme que se podia fazer: Mr. Verdoux [1947].  

 

Há uma cena maravilhosa em Tempos Modernos. Charlot e a namorada vão a um armazém patinar. Ele patina de olhos vendados, desliza elegantemente, ronda o abismo sem saber que ronda o abismo. Ela aparece, vai buscá-lo, cheia de medo. Tira-lhe a venda, ele fica incapaz de patinar. Aquilo que antes fazia sem pensar, não consegue fazer se se sente em perigo.  

JAF – É uma imagem da vida. O livro que escrevi saiu em 1957, em Francês, chama-se Charles Chaplin: o Self-Made-Myth. Teve um certo sucesso, citações por André Bazin (o papa da crítica de cinema).

EL – O Monde era a bíblia da inteligência francesa.

 

Na vossa correspondência falavam também dos assuntos dos filmes de Charlot, ou seja, do espanto, da infância, do medo? Ou falavam dos filmes, dos livros, do pensamento?

JAF – A nossa correspondência é muito política. Tenho estado a ler. Cada opinião!, meu caro. O que dizíamos de uns e de outros. Era de enforcar.

EL – Nunca quis que se publicassem a correspondência com os meus amigos. A gente sabe o que diz nessas coisas privadas.

JAF – Já estou vacinado. Publiquei a do Jorge de Sena, que é fresca. 

EL – E a do Vergílio Ferreira? Sou um tipo moderadíssimo ao lado do Vergílio Ferreira.

 

Então inesperadamente política...

JAF – Sobretudo depois do 25 de Abril estávamos muito empenhados com o que se estava a passar em Portugal.

EL – A realidade naqueles anos era a de dois mundos que se afrontavam, a guerra fria. Uma pessoa estava num campo ou noutro. Data importante: a morte de Estaline em 1953. Foi festejada com uma certa comoção.

JAF – Mal acomparado, a morte do Salazar [1970] foi a mesma coisa. Um fervor religioso... Um alívio e um medo muito grande, entre o místico e o absurdo.

EL – Para uma parte da população, parecia que tinha morrido o pai do país. Este fervor, só houve outro deste género com a morte de Sá Carneiro [1980]. Eu estava a dizer o seguinte: depois de 53 começou o degelo. O que a seguir mobilizou as pessoas: a Hungria [1956]. Depois, a Checoslováquia [1968]. Eu estava em França e repercutia as leituras que lá se faziam daqueles vários acontecimentos. Armado em São Paulo, mandei uma coisa aqui para os compinchas [a sugerir] que fizessem um protesto. Há duas respostas, a do Torga e a tua, a explicar que estou num outro reino.

 

Isto é, em Portugal, com a ditadura, manifestações desse tipo não tinham lugar.  

JAF – Reli recentemente essa carta. Eu dizia-te: “Não é possível fazer nada”. Fui falar com uma data de gente, entre eles o António Sérgio. Todos disseram que não podiam assinar. Ia sair logo no Diário da Manhã como coisa anti-comunista.

EL – Estávamos prisioneiros.

 

Esperava que as vossas cartas fossem mais literárias. Publicamente, o prof. Lourenço já falou da ferida que tem de não ter sido romancista. No seu caso, escreve um romance depois de África e retoma décadas mais tarde. Cresceu a querer ser romancista?

JAF – Respondo a brincar: aconteceu-me a desgraça de ter visto o Picasso. Fiquei fascinado pelo mundo das artes plásticas, sobretudo pintura. Quando cheguei aos 80 anos, disse: “Vou acabar com a História de Arte. Façam-na os outros!” Há anos que tinha dois romances na cabeça. Sou um romancista do século XXI! Comecei em 2001 e durante dez anos publiquei sete ou oito romances. Tu apresentaste o último.

 

Sente-se um romancista?

JAF – Gosto da definição do Gaspar Simões: “Romancista é o que pensa como romancista”. Há um sítio em Paris, no Boulevard Saint-Michel, na paragem do 38, que eu tomava para ir para casa. Havia um prédio do século XIX, burguês, com luzes acesas, sete ou oito andares. Começava a imaginar o que se passava. Que estariam a fazer aquelas pessoas? É uma imaginação de romancista.

 

Olha como um filósofo ou como o romancista ferido que não chegou a ser romancista?

EL – Não tenho nenhuma espécie de imaginação. Só tenho a imaginação do concreto.

JAF – Concreto o tanas!, como dizia uma personagem minha.

EL – Sempre tive grande inveja (no sentido mais banal da palavra) dos meus amigos que têm esse dom. Devo a um deles a minha iniciação literária, ao Carlos de Oliveira. Fazia parte do meu curso. Outro, perguntou-me que livro estava a ler: “Nossa Senhora de Paris, de Victor Hugo”, “Mas Victor Hugo não é romancista. Romancista é o Eça de Queirós”. Recebi aquilo como um garoto apanhado em falta.

 

Nunca tinha lido Eça?

EL – Não. Enfiei-me na biblioteca e pedi um livro do Eça. Por acaso foi O Primo Basílio. Caí bem! [riso] Percebi que havia hierarquias, que os romances não eram todos iguais. Eu tinha lido coisas para jovens, sem transcendência, que não me tinham despertado nada.

 

Voltemos ao ponto da partida. Fiquei a pensar no que disse: que vos estou a apanhar ainda vivos, senhores de 90 anos.

JAF – Tu fazes 91 no próximo mês, eu já os tenho. Sou mais velho seis meses. 

EL – É uma frase que tem um sentido preciso: ter 91 anos. Mas o sentido que tem para nós não é o mesmo que tem para si. Para si é uma constatação cronológica. Para nós comporta uma leitura que não é a que faríamos se estivéssemos a falar do Ramsés II. Estamos a falar de uns sujeitos que vão morrer. E que sabem que vão morrer, como os gladiadores do circo romano. O melhor é encarar isso da maneira mais filosófica possível. Quer dizer, sabendo que o que quer que pensemos sobre aquilo que nos espera, nada podemos. Está fora do nosso alcance. Não somos os sujeitos de nós próprios. Nascemos embarcados, como dizia Pascal. Depois, somos desembarcados.

JAF – Encontrei na nossa correspondência uma carta em que digo: “És um ideólogo e eu um factólogo”.

 

O ideólogo e o factólogo: parece-me uma boa maneira de os apresentar.

JAF – Ele lida com ideias, eu lido com factos. A palavra factólogo não existe, mas podia existir.

EL – Nunca fui historiador, mas a minha paixão, desde garoto, eram histórias. O meu pai tinha uma mala. Toda a gente tem uma mala. O meu pai tinha uma História Universal do Fortunato de Almeida. A minha paixão era pelas coisas que diziam respeito à história romana. Eu não sabia que estava a lidar com as histórias que serviram a Shakespeare para ser quem é.

 

Que acaso o seu pai ter aqueles livros...

EL – Estava a iniciar-me sem saber numa leitura da nossa cultura, a lidar com os paradigmas que ainda hoje são reciclados. Neste capítulo da História não-factual, foi decisivo o Alexandre Dumas.

 

Porquê?

EL – Porque com o Alexandre Dumas não estamos a conhecer a história de outros. Estamos a viver. Dumas e outros não são os filhos bastardos da História. A verdade é que entramos naquilo e nunca mais queremos sair – queremos que a vida se pareça com aquilo. Mas, no pensamento sobre a História, a pessoa que mais me influenciou foi o Charles Péguy. Um nome que hoje não diz muito.

 

Não conheço. Porque é que o influenciou?

EL – Teve um papel muito importante na altura do affair Dreyfus, admirador do [Henri] Bergson, um filósofo da época. Era um grande poeta. Iniciou uma batalha por conta dele contra a visão positivista da História. Então instalou-se num estaminé perto da Sorbonne chamado La Quinzaine. Uma trincheira de onde bombardeava os mestres que do outro lado escreviam aqueles monumentos da História (aqueles de onde uma pessoa sai e não está em parte nenhuma). Trava uma batalha quixotesca contra a visão dominante para [defender] a ideia de que uma acumulação de factos não cria um sentido. Nunca criará um sentido. O sentido tem  de vir sempre de uma outra fonte, que não é a da sequência.

 

Vem de onde, o sentido?

EL – O problema do Péguy: como é que o que nós somos, como realidade temporal, adquire sentido? A colecção de instantes é sempre uma maneira de se ser eterno. A eternidade não é uma coisa, um sítio final para onde tudo conflui. Ela está implicada na sucessão de instantes. E isso, [com ele], aprendi para sempre.

 

Tudo isto começou porque falámos da vossa idade, do tempo, da morte.

JAF – As pessoas perguntam-me: “Como tem passado?”. Naturalmente admirados de me verem a andar sobre as duas pernas. “Estou nonagenariamente bem, muito obrigado.” [gargalhada dos dois] Já esgotámos a máquina toda?

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2014. 

 

 

  

Cancro da Mama - testemunhos

26.10.22

São mulheres como outras quaisquer. Mulheres como nós. A quem “aquilo” aconteceu. Porquê a elas? Porquê a mim? – perguntam-se, sem excepção. Aquilo: cancro da mama.

Falam de um mundo que desaba e de uma força estranha que as impele a continuar. Falam do cabelo que cai, do peito que é tirado, do mal que é extirpado. Falam de momentos em que quiseram atirar-se à linha do comboio. E de momentos em que tudo o que quiseram foi viver.

 

 

Maria Fernanda, 46 anos, operadora de sistemas informáticos

Meteu-se-lhe na cabeça que ia ter um cancro da mama. Uma frase de arrepiar. “Em 1996 tive uma depressão muito grande, porque perdi a minha mãe. Já tinha perdido dois filhos e, nessa altura, fiz novamente esse luto”.

Seria uma culpa inconsciente? “Provavelmente”. Por ter sobrevivido à morte daqueles que mais amava. “Tenho a impressão de que andei 20 anos a fazer o luto pelos meus filhos, que nunca acabei. Eles nasceram com uma doença genética, e foi assim. Os médicos aconselharam-me a não ter mais. Por qualquer desgosto, sofria retroactivamente”.

Com a perda da mãe, o mundo afundou-se. Para mais, havia um gangliozinho que na altura da ovulação enchia e ficava dorido. “Falei à minha ginecologista, particular, que disse que eram glânglios mamários. Pedi para fazer uma mamografia”. Foi dissuadida. Que era muito nova, que não tinha antecedentes familiares. “Achou que eu não estava bem da cabeça e mandou-me para um psiquiatra”. Foi.

Prescreveram a Maria Fernanda anti-depressivos, mas nunca lhe prescreveram uma mamografia. Até 2003. Nova consulta, a mesma ginecologista, outra reacção. “Ela teve na hora a percepção de que algo não estava bem. Fiz todos os exames e conclui-se que tinha um tumor maligno”.

Foi um instante terrível, que confirmou um pressentimento de anos. “Senti uma revolta muito grande”. Pausa. Repete. Desta vez com fúria. “Uma revolta muito grande”. Depois sucumbe à comoção e às lágrimas. “Custou-me a aceitar que uma profissional que me seguia há 13 anos não me tivesse ouvido, não me tivesse mandado fazer o exame que eu queria fazer”.

Depois foi à luta. Fez quimioterapia, a cirurgia, percorreu o calvário. “Partilhei imediatamente com o meu marido, o meu companheiro de há 25 anos. Já tínhamos passado por tanta coisa juntos… Depois, os amigos. A família foi a última a saber. Não quis que sofressem.”

Achou que aquilo a ia matar. “Andei ali uns meses a pensar: quanto tempo é que vou estar cá? Será que vale a pena? Quando a pessoa está naquela fase só ouve a parte pior. Foi uma fase de pensar meter-me na linha do comboio. Mas entretanto dei a volta, graças a Deus”

O momento terrível, dolorosíssimo, de se ver sem o peito: “Fui para a cirurgia convencida de que ia ficar com ele – afinal, tinha feito cinco sessões de quimioterapia. Quando me vi sem a minha mama, aí é que foi o desmoronar. Mas a vida é muito mais importante do que tudo. É esse testemunho que passo. Para dar a volta, é muito importante querermos. Mas é com o coração. É acreditarmos. Se o cancro voltar, é outro que vem. Aquele, está morto”.

 

Sandra, 29 anos, assistente-administrativa do Hospital de Santa Maria

A doença foi-lhe diagnosticada em Agosto de 2006. Tinha feito 25 anos. “Adormeci bem um domingo e acordei mal uma segunda – como costumo dizer. Com um grande ovo no lado direito do peito”. Ia a caminho do trabalho, a guiar. Sentiu dores, palpou, identificou com clareza um nódulo. “Entrei em pânico. Cheguei ao hospital e pedi para me verem. Puseram a hipótese de ser da menstruação. Mas nessa tarde, no banho, descobri uma espécie de cordão que me atravessava a mama – uma tromboflabite”. Não esperou até ao dia seguinte, voltou ao hospital.

Ela sabia que “aquilo”, a que mais tarde chamaria “a doença”, era um cancro. Um cancro na mama – contrariando as previsões de todos os que a viram no hospital. Apesar de ser tão nova, apesar de não ter historial de família. Sabia.

Sandra podia parecer uma miúda assustada. Uma da casa que se deixa impressionar pelas histórias daqueles corredores. Foi preciso avançarem para a citologia para que o espanto, o horror assomasse aos olhos, às bocas, às pregas da testa. E ela, habituada a ver isso, no hospital, a propósito de outros, viu logo que aquelas caras, as suas expressões, não podiam querer dizer coisa boa.

“A doutora disse-me: “Tens um carcinoma na mama”. Assim, sem mais nem menos. Caiu-me tudo ao chão. Estava a comprar casa, estava a pensar engravidar. E agora? Eu estava a começar a construir uma vida”.

Teve a sensação de que lhe roubavam a vida. A revolta não cabia nela. Diz “revolta” como quem pega fogo. “Porquê eu? Ninguém merece, mas aos 25 anos ninguém merece mesmo. O que me custou mais não foi ter perdido o cabelo, nem ter ficado sem o peito, nem ter engordado 20 kg. O que me custou mais foi sentir-me diferente de todas as raparigas de 25 anos”.

Mas depois, fez-se estóica. Lutou. Quis vencer a doença. “Eu só deixei de trabalhar um mês, quando fiz mastectomia e quando fiz a reconstrução. Precisava de fazer a vida normal. Vim às consultas sempre sozinha, excepto às duas primeiras.”

Sandra, a Guerreira, exige de si uma força hercúlea. “Mas eu sou forte”, responde ela com uma gargalhada. “Houve momentos em que me fui em baixo, claro. Em casa, no meu cantinho”.

Há na voz um fio de aço. “Fiquei mais pacificada. Parece um cliché, mas é verdade. Há coisas muito pequenas a que só damos valor depois de passar por coisas destas. Os meus pais, o meu irmão, a gente acaba, no dia a dia, por não lhes dar a devida atenção… Não pode ser”.

 

Maria do Céu, 60 anos, cabeleireira

Maria do Céu tem um cabelo armado, irrepreensivelmente penteado.

“Tinha 49 anos. Deitei-me, a doutora fez-me apalpação e aconselhou-me a fazer exames. Sem alarido, por prevenção. Mas quando começo a ver no ecrã uma mancha preta, disse: vou durar três meses”.

Em meia dúzia de horas, a vida de Maria do Céu dava uma volta.

“Cheguei cá fora, sentei-me no muro, permaneci ali até às dez da noite. Não conseguia andar, não conseguia ver. Os meus filhos muito preocupados, que eu não aparecia”.

Mas não contou nada. “Isolei-me. So-zi-nha. A sério. Disse ao meu filho: a mãe vai tirar um carocinho da mama, mas isto não é nada. Fui operada. Não queria que ninguém soubesse. Fiquei deprimida, fiquei esquisita. Dizia a mim mesma: isto passa, isto não é nada. Pintei-me, arranjei-me. Não, eu não estava doente…”.

Uma denegação da doença. Um salto no abismo, com a ajuda da maquilhagem. Aparentemente, estava tudo bem. Mas quando começou a radioterapia, os subterfúgios ruíram, as máscaras caíram. “Fui-me abaixo. A pele toda, toda queimada”. Fala das queimaduras muito baixo, como se contasse um segredo, como se revelasse uma parte impudica. “Sabe o que é a pele de um courato na brasa, as bolhinhas que faz? Isto era tudo bolhinhas. Despedi-me de toda a gente, quando vi isto em ferida.”

O cabelo. “Tinha montes de cabeleiras. O dia em que não me arranjar, vou morrer. Então os cabelos… Assim ninguém vê que estou doente, ou triste. Pois. As pessoas sabem que tive este problema, na minha rua já me viram a andar agarrada às paredes, mas pensa que alguém me vê com a lágrima no olho? Não choro, não. Fico triste, mas não choro. Não devo ter lágrimas. Mesmo quando o meu marido e o meu filho faleceram, não tive lágrimas. Fico muito agitada”. Cada um reage como sabe, de acordo com a sua natureza.

Ao fim de cinco anos apareceu outro “bicharoco” no outro peito. “Outro azar. Este segundo já não me preocupou muito. De um mês para o outro, apareceram sete caroços. Tirámos muito rápido. Já está.”

 

Elsa, 48 anos, empresária

“Fui apanhada já muito à frente… Que eu fui descuidada. Tinha uns quistos e não liguei. O meu marido é que me disse: tens de ir ver.”

Elsa é uma senhora jovem, tem olhos de azul céu. Da sua vida, fez sempre parte este fantasma. “A minha avó materna teve cancro da mama. E toda a vida me lembro de ouvir a minha mãe dizer que tinha medo de ter cancro da mama. Mas como ela nunca teve, eu achei que…”. Achou que saía incólume.

O momento. “Quando fiz a mamografia, a médica ficou logo de pé atrás”. Riso nervoso. “Estava a falar comigo normalmente e de repente calou-se. Disseram-me que não podia perder tempo. Tinha dois nódulos grandes”.

Não menciona as horas que chorou, as dúvidas que a assaltaram, a desesperança que por vezes a consumiu. Diz antes assim: “Sou um bocado bruta. Não sou muito de pensar ou chorar sobre as coisas. Encarei isto como mais uma etapa da minha vida”.

A partir desse momento, tratava-se de um combate. Ela de um lado, a doença do outro. “Não me fui abaixo. Não tive medo de morrer. Os meus filhos já eram crescidinhos – fui mãe com 20 anos. Tinha medo de morrer quando eles eram pequeninos”.

Era uma mulher de 40 anos, a quem tinham tirado o peito, a quem tinha caído o cabelo. “O que mais me custou foi ver-me sem cabelo. Sabe porquê? Eu nunca me tinha visto sem cabelo. Mesmo nas fotografias de bebé, sempre tive cabelo. Quando fiz quimio andava ou de peruca ou de lenço. Mesmo no hospital. Só estive mesmo sem nada ao deitar-me. Era como estar nua. Afectou-me mais do que ficar sem mama. A minha mama também não é muito grande, por isso…”

Mesmo assim, confessa que se sentiu outra depois de fazer a reconstrução. “É das coisas mais importantes. Para me ver a mim por inteiro.” E acrescenta com uma ponta de orgulho: “Agora não tenho prótese, é tudo meu. Falta só pôr um bocadinho mais de gordura e tatuar a auréola. Mas já está óptimo! Fiquei com uma mama espectacular. Quer ver?”

 

Alexandrina, 79 anos, babá

Aquilo foi de repente. “Apareceu-me um alto no peito”. O médico desvalorizou. Que era uma mastite, que tomasse anti-inflamatório. “Mas eu sempre gostei de saber o que tinha. Decidi fazer uma mamografia e uma ecografia. Depois uma biopsia. Três meses antes, tinha feito uma mamografia e estava tudo bem. Porque é que me aconteceu a mim, que estou sempre a ser vigiada?”.

É uma senhora que fala com desenvoltura daquilo por que passou. Chama-lhe “o mal”.

“Isto” foi numa quarta-feira, e no domingo entrou no hospital. “Já estava na mesa de operações quando a doutora me disse: “Vamos ter que tirar o peito todo”. Pronto. Paciência. Estava deitada e vi uma junta médica a olhar para os exames. Encarei a coisa de frente”.

Fez radioterapia. Não fez quimioterapia. “Era a coisa que mais me custava: ter de ficar sem cabelo. Tenho a cabeça pequena, e careca devia parecer nem sei o quê. Fui sempre muito vaidosa….”.

Alexandrina está arranjada, o colar no sítio certo, o cabelo preso, o saia-casaco assenta-lhe bem. Como é que tudo aconteceu? “Eu estava a lavar na banheira uma colcha que não cabia na máquina. E pesava muito. Um sábado ou um domingo. “Aquilo” devia estar escondido. Sei que no dia seguinte, ao tomar banho, senti uma espécie de nervo, uma coisa rija no peito. Dá a impressão que foi com a força que eu fiz que “aquilo” saltou”.

A dada altura, quis refazer o peito. “Mas para que é que ia submeter-me a duas ou três operações? Com esta idade. Continuo com a minha prótese, ninguém diz que não tenho peito. Não gosto quando vão para a televisão dizer, coitadinhas, que sofreram isto e aquilo. Eu sofri as mesmas coisas, só que não liguei importância”.

Mas ela sabe, e vê. “Eu era muito bem feitinha, tinha tudo no sítio, e de repente… Sabe, mesmo estando sozinha, ponho sempre um soutien com esponja, para olhar para o espelho com a camisa de noite e não notar aquela falta. Mesmo que não esteja ninguém em casa, não gosto. Gosto sempre de apresentar-me bem. O que menos gosto na vida é de ouvir “coitadinha”. Lastimo. Ao princípio era pior. Já lá vão 13 anos”.

 

Maria de Lurdes, preparadora técnica de laboratório, 59 anos

“Estava deitada e toquei o peito. Senti um grande alto. Por acaso o meu filho estava em casa, mostrei-lhe. Toca aqui. Deixei passar o fim de semana, fui ao hospital na segunda, na quarta mandaram-me fazer uma biopsia, oito dias depois tinha os resultados”.

No espaço de uma semana, invadiu-a o temor. A impotência e o sentimento de injustiça a instalarem-se devagar, no prenúncio do pior. “O meu filho antecipou-se e foi ao hospital saber dos resultados. Era um cancro maligno. Pouco depois fui operada, fiz seis sessões de quimioterapia e 40 de rádio”. Uma contabilidade medonha: seis disto, quarenta daquilo, uma operação em que fica sem o peito. Uma semana em que tudo mudou de lugar.

“Uma ansiedade. Mas nunca pensei que tivesse um cancro, porque não tenho família com incidência cancerígena. Bom ou mau, era para tirar, disse a doutora. A gente anda naquela expectativa, pensando que talvez não seja mau… Mas aconteceu. Graças a Deus superei. No dia 13 de Maio fui a Fátima. Tinha prometido um peitinho de cera, e fui lá pôr. Convidámos umas pessoas amigas, levámos farnelzinho, assistimos à procissão de adeus à Virgem. Pus um peitinho de cera ao pé das velinhas e agradeci a Nossa Senhora o apoio que ela me deu. A fé é que nos salva, não é?”

Virou-se para Deus e para a família. “O meu filho, onde quer que eu vá, ele vai comigo. Também tive muito apoio do meu marido. Ele pescava e vinha trazer-me o almoço ao hospital”.

Uns dias para cima, outros dias para baixo. Uns dias a dizer: “Se Deus me levar…” Outros dias determinada a não se entregar à doença: “Se calhar, não leva...”

Chorava. Sozinha em casa. Chorava para desabafar. “A mente tem muito que ver com o corpo, tem. Temos que ter uma grande força psicológica para aguentar. Sinto que vale a pena lutarmos pela vida”.

Felizmente foi a tempo, viu a tempo e as coisas recompuseram-se. Na operação não foi preciso tirar o peito. “O que custa muito é meter o pente à cabeça e o cabelo vir todo atrás. Tanto que dei uma carecada. Preferi. O médico disse-me logo que me ia fazer uma maldade… e que me ia cortar o cabelo. Cortei logo para não o ver a cair. Faz impressão”.

O pior já passou. Fez comprimidos a vida toda. E agora, a química salvou também a sua vida. A química ao serviço de todos os médicos que a acompanharam e a fizeram crer que ia superar esta “trapaça do destino”.

 

Maria Antónia, 37 anos, costureira

“Estava a dar de mamar ao meu filho e ele começou a rejeitar o peito esquerdo. Esteve dois ou três dias em que não mamou desse peito. Comecei a notar um carocinho e fui ao hospital fazer uma mamografia”.

Maria Antónia dirigiu-se ao hospital para sossegar a consciência. Seria leite encaroçado? Que outra hipótese pode pôr uma mulher jovem que tem um bebé nos braços e um filho a entrar na adolescência?

Mas não. “Não imaginei que fosse o que era”. Diz assim, numa forma eufemística. Para não dizer “cancro”. Ou “tumor maligno”.

“Foi tudo muito rápido. Mamografia, biopsia, cancro. Fiz quimioterapia, fui operada, fiz novamente quimioterapia”.

É uma mulher de olhar doce, boca carnuda, pele fresca. Uma mulher que tem leite suficiente para dar de mamar um ano depois do nascimento da criança. Imagem odiosa: uma criança que rejeita um peito, uma vida que ali pulsa, e que está envenenada. Esta mulher não teve tempo para se preparar.

“Olhe, não há palavras para a sensação que nos invade. O que é que nos disseram? A gente nem quer acreditar naquilo que ouviu. É uma coisa que não tem explicação. Porquê eu?”.

A pergunta que todas fazem: porquê eu?

“Porquê a mim?, que nunca tive problemas com ninguém, que nunca fiz mal a ninguém”. Suprema injustiça: “Ainda por cima com um bebé pequenino”. O bebé que lhe revelou que alguma coisa não estava bem no seu peito. “O meu filho mais velho precisa de mim, mas o mais novo ainda precisa mais”.

Achou que ia morrer. O marido, o filho mais velho, foram os primeiros a ser inteirados dos factos. “Quando o pai falou com o Sérgio, ele não estava a ver bem o significado dessa palavra... É uma criança de 14 anos”. Depois interrompe-se, a cara fica solar e diz com uma voz brilhante: “É uma criança de 14 anos que me deu muita força. “Ó mãezinha, tu vais ficar bem, já aguentaste até agora… O mais novo, cada palavra que ele diz, dá-me forças para continuar. Agarro-me às coisas por que mais quero viver”.

O discurso de Maria Antónia é fluído. Não chora nunca. “Não era capaz de me ver ao espelho. O que eu sentia era por mim própria. O meu marido dizia-me assim: “Teres o peito ou não teres o peito, o que sinto por ti, é igual”.

Quando começou a quimioterapia, tinha consciência de que a partir da segunda sessão já começava a cair o cabelo. “Chorei, chorei, chorei. Fui à cabeleireira por três vezes. Na última é que rapei, que aquilo já era cabelo por todo o lado. A gente não pode mexer – conforme a gente mexe, vem o cabelo agarrado”. Antes de tudo começar, o cabelo pousava-lhe na cintura.

 

Publicado originalmente na revista Máxima em 2010

 

 

José Tolentino Mendonça

23.10.22

Fala como quem faz poesia, fala como quem ora. Esta é uma entrevista com um homem que é um padre e um poeta. Uma dimensão não é dissociável da outra. José Tolentino Mendonça foi ordenado padre em 1990. No mesmo ano editou o primeiro livro de poemas. No princípio, estava o desejo de uma relação. No princípio, era a ilha. A Madeira e Herberto Helder. A infância. O outro que nos escuta. Fernando Pessoa tem um verso que o explica: “E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre”.

Talvez não seja preciso escrever mais do que Tolentino. O padre, o poeta que respondeu ao chamamento – é um chamamento, são duas formas de expressão. Nenhuma está primeiro do que a outra. Nasceu em 1965 na Madeira. É, como as ilhas, um homem com uma tumultuosa vida dentro de si. Por vezes fecha os olhos quando fala. Quase sempre diz coisas assombrosas. Dirige-se aos não crentes. 

José Tolentino Mendonça acabou de lançar um livro que pretende “recolocar a amizade como um problema teológico e político”, Nenhum Caminho Será Longo. E um livro de poesia que fala de Pasolini, da estação central de Nova Iorque, de um centro para as rosas, do Chelsea Hotel, de Adília Lopes. Estação Central tem na capa uma naufrágio de um barco italiano. A ideia de naufrágio acompanha toda a entrevista. E, mais forte do que isso, do que é possível edificar depois da borrasca, do mal que a todos atravessa. De foragidos que têm vidas de santos. De a blasfémia não estar tão longe assim da santidade.

Conversámos no seu gabinete na Universidade Católica de Lisboa, de que é vice-reitor, uma tarde inteira. É também o responsável nacional pela Pastoral da Cultura. Há cerca de um ano foi nomeado consultor do Pontifício Conselho para a Cultura, no Vaticano. Quando acabámos, cá fora já era noite escura.

 

Apresentou a Bento XVI um poema que tem por título “O mistério está todo na infância” (por ocasião dos 60 anos da ordenação sacerdotal do papa). Porquê?

Acredito muito na infância espiritual. Que é, no fundo, a construção de uma inocência. A inocência não é o estádio antes. Antes da vida, antes da cultura, antes das decisões fundamentais. A inocência é uma descoberta, é um caminho, é uma decisão.  

 

Tem a ver com a perplexidade, com a capacidade de espanto?

Tem a ver com a possibilidade de permanecer com o espanto a vida inteira, e com uma simplicidade que nos desarma. Evidentemente essa infância espiritual liga-se à infância biográfica. A infância interessa-me não como um território que deixei, e a que só em memória posso regressar, mas como projecto. Aquilo que Jesus diz no Evangelho: “Se não fordes como crianças, não entrareis no reino dos céus”. Penso muitas vezes no que é ser uma criança.

 

Parece uma pergunta retórica, mas não é.

Não é, não é. Um mestre do judaísmo vem falar com Jesus à noite, para não ser detectado e apontado pelos outros; uma das perguntas que faz é esta: “Como é que eu, sendo velho, posso nascer de novo?”. Em S. Paulo é muito claro quando usa a imagem do parto, do nascimento perpétuo, dizendo que: “Hoje estamos a experimentar as dores de parto”. Penso o meu presente como o lugar onde experimento as dores do parto, um nascimento que vai acontecendo.

 

A infância pode ser uma espécie de casa? Quer a infância-território biográfico, quer a infância enquanto projecto. Uma casa onde se está, onde se volta para rememorar, para edificar. Nos seus primeiros livros a noção de casa era fundamental.

A casa é o lugar do estar, do ser. Embora, quando penso numa casa, penso muitas vezes na casa de que falava o Alberto Caeiro. A casa no cimo da colina onde vê o mundo e os poemas que partem. A casa é também uma espécie de observatório. Um lugar onde comunicamos – não é um lugar onde nos isolamos. Talvez porque tenha nascido numa família numerosa, e porque ao longo da minha vida tenha vivido quase sempre em comunidades, em casas com dezenas ou centenas de pessoas, a casa é sempre uma encruzilhada de encontros e de relações.

 

Voltemos à questão inicial para desenvolver o tópico do mistério.

O Prof. João dos Santos [psicanalista] dizia que o grande segredo do homem é a sua infância.

 

Essa frase está na estátua de João dos Santos no Jardim das Amoreiras. Parece que nos interpela.

O segredo, o mistério está na infância. Que é como quem diz: está nessa dimensão silenciosa, submersa, escondida que nós trazemos.

 

É o território do que não sabemos de nós?

É a nuvem do não-saber, para usar um título de um clássico da espiritualidade cristã. É esse não-saber que se torna no saber verdadeiro. Que se torna a porta para todos os saberes. É um vazio que nos interpela. Há dimensões da nossa vida que só são silenciosas porque não nos deixamos interrogar por elas.

 

Não nos deixamos interrogar por acanhamento, com medo do que lá está?

Já diziam os padres do deserto: “Só há um único pecado: é a distracção”. Não deixamos porque nos distraímos. O problema não é o medo. A haste, quando sobe, também treme ao vento. É impossível não ter medo de viver. É impossível não ter medo desta coisa espantosa e repentina que é a vida. Viver é perigoso, dizia o João Guimarães Rosa.

Mas o desencontro nasce da distracção. Não ouvimos porque nos dispersamos. Porque perdemos o sentido do essencial, do prioritário, e construímos tanta coisa e não nos construímos a nós mesmos. Ficamos adiados. Não percebemos que somos a nossa casa. Somos a nossa estrada.

 

Andamos constantemente fora de nós próprios?

A grande tentação é viver uma vida exilada. Os exílios acabam por, à primeira vista, ser lugares de apaziguamento ou de distracção. A nossa casa também nos coloca exigências, às quais nem sempre estamos disponíveis para responder.

 

Enquanto padre tem a noção que aquilo que mais persegue as pessoas é o medo? Falam-lhe mais do medo ou da distracção?

Não sei se é do medo. Há uma coisa muito inofensiva nas confissões. Quando não se tem muito para dizer, diz-se: “Eu distraio-me na oração”. Parece uma coisa banal, para começar uma conversa. Mas se formos olhar bem é a questão fundamental. “A atenção é a oração. A oração é a atenção”, dizia a Simone Weil. A atenção é que nos faz estar naquilo que fazemos, em cada gesto, é que nos faz habitar o presente.

 

Essa atenção implica um comprometimento. Com um projecto, uma ideia, uma pessoa, nós mesmos.

Implica também uma justiça, a exactidão. Se não estou atento, não vejo. Vivo do meu preconceito. Vivo das ideias adquiridas, tantas vezes falsas. E não acolho. Não pratico uma hospitalidade real. Penso que é isso que falha. Às vezes passam dias e dias e parece que nada acontece, ou que não somos visitados por nada, e isso tem a ver com o facto de não abrirmos o coração à música da alegria que nos visita.

 

É preciso saber reconhecer essa música, e abrir-lhe a porta. No ensaio sobre a amizade Nenhum Caminho Será Longo fala do desapontamento de um homem a quem Deus prometeu visitar. Ao crepúsculo o homem chora a desilusão da promessa não cumprida. Deus responde-lhe: “Por três vezes, hoje, tentei visitar-te e todas as vezes me disseste que não”.  

Esperamos sempre Deus no máximo e esquecemo-nos que ele nos visita no mínimo. Quando os monges budistas dizem que Deus está no grão de arroz, há nisso uma grande verdade. É no pequeno, até no insignificante, no mais quotidiano, que Deus nos visita.

 

Fale-me da sua infância biográfica no que isso importa para a pessoa em quem se tornou. E aqui estou a ir ao encontro da frase do Prof. João dos Santos.

A minha infância foi uma experiência que poderia descrever como uma experiência de espaços. Nasci na Madeira. Com um ano de idade fiz uma viagem com a minha mãe, no navio Príncipe Perfeito. Fomos para Angola onde o meu pai já estava. Fui com os meus irmãos, era o mais pequeno. Do Lobito, as recordações são da amplidão do espaço. As casas eram grandes. Os espaços onde brincávamos livremente eram enormes. O meu pai, os meus tios: uma família de pescadores.

Lembro-me de uma viagem que fiz com o meu pai. Na minha cabeça ia também pescar. Dei comigo, para lá dos enjoos típicos de um iniciante pelo mar fora, na borda do barco, a olhar as paisagens. Praias que ainda não tinham sido exploradas, rochedos, o azul do mar, o fundo do mar. Eu teria sete, oito anos. Essa contemplação despertava em mim uma emoção enorme, enorme. Ficava boquiaberto. Como se aquela vida intacta, da paisagem do mundo, tivesse em mim um impacto que não sabia expressar. Mas guardava aquelas imagens, coleccionava-as dentro de mim.

 

O que o impressionou foi o mundo, a beleza, a natureza poderosa?

Não sei se era a beleza. Era o mundo em si. O mundo como lugar encantatório, uma pureza original. Lembro-me daquele pequenino mundo, tão vasto, onde, sem saber, nos estamos a construir. De uma forma quase eventual.

Depois foi a mudança para a Madeira, que teve um dramatismo mais literário do que literal.

 

É uma atribuição do adulto que recupera aquele momento?

Senti que me estava a despedir daqueles lugares. Fui com o meu cão, sozinho. Digo que foi literário porque quis chorar, abraçado ao cão, sentindo que era a última vez que estava ali. Mas não tinha lágrimas verdadeiras. Tinha uma dor. Uma dor que um miúdo de nove anos pode ter, mas não eram lágrimas. Chorei lágrimas que não tinha [sorriso]. Essa despedida, talvez encenada, marcou-me.

 

Como foi o regresso à Madeira?

Para os meus pais, para pessoas como eles, que perderam determinado enquadramento do mundo e uma estabilidade económica, foi traumático. Mas os pais conseguem sempre colocar-nos, como no filme A Vida é Bela, [noutra realidade]. Passamos pelo campo de concentração como se fosse por um jardim. As coisas, que hoje relembro e que percebo que provocaram uma ansiedade enorme nos meus pais, foram vividas como uma aventura. Uma aventura no porão de um barco, numa cidade desconhecida.

 

A partida de Angola foi, num sentido simbólico, o seu primeiro naufrágio? Na capa do livro de poesia Estação Central está a fotografia do naufrágio do barco Torquato, junto ao Funchal, no fim do século XIX.

A Madeira, como os lugares da infância, não são lugares de desencantamento. Uma pequena ilha, a terra dos meus pais, dos meus avós, em condições muito difíceis. Mas a infância não sofreu uma fractura, nem sobressaltos. Essa capacidade de transformar as dificuldades em possibilidades – no fundo, uma enorme capacidade de sobrevivência que a vida da infância tem – protegeu-me. Quando penso na infância nem por uma vez me lembro de medo, de ansiedade. Recordo o embate do espaço da ilha. Tudo era diferente. Os cheiros. A forma como as coisas estavam organizadas. As ruas. As pessoas. Um admirável mundo novo para descobrir.

 

Falou da ausência de medo. Parece mágico na infância esse impulso de liberdade, a ausência de limites.

Recebi isso dos meus pais. Mantinham uma atitude de confiança que nos ajudou muito. Mesmo na escassez, na pobreza. Olhávamos para o dia de amanhã, para o futuro, com uma enorme confiança. Hoje pergunto-me: confiança em quê?, porquê? Confiança. Confiança na vida. Eram também pessoas religiosas. Confiantes na protecção de Deus, que o tempo ia ser melhor, e ao mesmo tempo muito gratos; apesar de tudo, estávamos todos juntos, ninguém se tinha perdido pelo caminho, não tinham acontecido coisas irrecuperáveis. E isso deixava um lastro de confiança que nos fazia olhar para a vida com serenidade.

 

O seu primeiro poema foi acerca de alguma destas coisas de que estamos a falar?

O meu primeiro poema foi “A infância de Herberto Helder”.

 

Não me refiro aos poemas publicados.

Esse foi o primeiro poema. Foi no tempo em que li Photomaton & Vox, o livro que me tocou mais fundo.

 

Herberto, outro madeirense. Uma filiação importante?

Claramente importante. Na infância dos outros, na efabulação dessa vida que julgamos existir nos outros, tocamos a verdade da nossa vida. Esse poema é sobre a minha infância. Uma infância que podia ter sido a de Herberto Hélder. Também no contexto insular. A dele, a vida numa pequena cidade, o Funchal.

 

Qual é o primeiro verso do poema?

“No princípio era a ilha”. Foi ali o meu princípio biográfico e o meu princípio como poeta. Nasci ali e ali comecei a escrever. São duas marcas, duas etapas que determinam um tempo arquetípico. O meu arché [palavra grega que significa “princípio”] foi aquele lugar.

 

Que idade tinha quando descobriu Herberto?

Tinha 16 quando o comecei a ler. Foi uma grande descoberta. Foi como se pudesse ouvir a música do mundo. Sentir que todas as coisas estavam vivas. Um lado orgânico do real. E aqueles advérbios que nele dão mais do que qualquer adjectivo.

A entrada no seminário, que aconteceu muito cedo (tinha 11 anos) foi a possibilidade de entrar dentro de uma biblioteca.

 

Vamos devagar. Espere lá.

Isso era o que o Wittgenstein dizia. Quando as pessoas se encontram devem dizer uma à outra: “Avança devagar”. [riso] A vida dele é a vida de um santo. Uma vida que me comove muito.

 

Porque é que a vida de Wittgenstein o comove?

Porque é a vida de um foragido. Há nele uma fome de humanidade, de anonimato, de transformação e de silêncio que se encontra nos santos.

 

Antes de voltarmos ao seminário, e ao princípio que era a ilha, falemos de um outro foragido de que fala nos seus poemas, Pasolini.

É outro foragido, é.

 

Pasolini parece encarnar uma figura maldita. É um epíteto que vulgarmente se aplica à sua figura e obra. Mas fala dele como quem fala de um santo.

Não serei o único. A blasfémia não está tão longe da santidade como se pensa. Na tensão daquela vida há uma dádiva, uma capacidade de entrega, um desejo de verdade que só um Absoluto é capaz de saciar. “Bem aventurados os sedentos, bem aventurados os que têm fome e sede.”

Quando cheguei a Roma pela primeira vez, em 1989, no Palácios das Exposições passou uma integral do Pasolini. Gratuita. O que, para um estudante, era irresistível. Eu tinha tempo, e tinha vontade de conhecer aquele universo.

 

O que é que aprendeu com Pasolini?

Acho que o Pasolini me ensinou e me ensina isto (continuo a ler, tenho uma biblioteca que vou construindo com tudo o que sai em torno à obra dele): quando fez o Evangelho Segundo Mateus pensou muito em como relatar a experiência do sagrado. Como? O primeiro caminho que tomou, a cena do baptismo que filma em Viterbo [zona de Lácio], é um modo tradicional. Com um carácter extático, solene, hierofânico. Filmou essa cena e entrou numa grande crise criativa. Até que percebeu que o único modo de filmar o sagrado era [fazê-lo] como se filmasse o profano. Como se descrevesse a realidade. Este passo foi decisivo. O que vemos no cinema de Pasolini é que ele filma o sagrado com um óculo do profano. E filma o profano com o óculo do sagrado.

 

E desse modo aproxima-os. 

Diz que é uma coisa só. Por exemplo, Accattone é a história de um marginal que ele filma como se fosse o sacrifício de um mártir.

 

Mas Accattone, nome do protagonista, é uma figura que facilmente odiamos. Capaz de coisas abjectas, como roubar os próprios filhos. Ao mesmo tempo há um amor e compaixão que nos inspiram.

Os cristãos sabem que todos somos capazes de coisas abjectas. Detesto o moralismo. Penso que o moralismo falseia o encontro connosco próprios e com a humanidade. O que acontece aos outros acontece a cada um de nós. Dizia o cristianíssimo Dostoievski: “Somos responsáveis por tudo perante todos”. Não sinto que qualquer um de nós seja diferente de Accattone naquelas circunstâncias. Quero dizer: a experiência do mal atravessa todas as vidas. Todos precisamos de ser salvos. Daí também o naufrágio. Existe em nós a capacidade de construção, mas o remate final, aquilo que decide o que somos, só numa relação [é dado].

 

É perturbador o que diz. Porque tendemos a olhar para nós a partir de uma angular benevolente. Achamo-nos capazes dos melhores gestos, resistimos à ideia de que podemos ser Judas.

E somos tantas vezes. Somos mesquinhos, banais, egóticos, ressentidos. Se não tomamos consciência disso não conseguimos a transformação. A primeira condição da transformação é a nudez. Ser capaz de contar a sua verdade. Gosto muito da Flannery O’Connor, que é para mim, ao lado do Pasolini, uma mestre espiritual. Ela mostra um mundo que se diria monstruoso. De assassinos em série. De gente capaz de tudo. “Esse mundo somos nós”. Até que acontece o encontro com a graça. É esse encontro que transforma a nossa vida. Penso que não se pode dividir [a humanidade] entre homens bons e homens maus. Não há rapazes maus – como dizia o Padre Américo (essa figura tutelar de um certo século XX português). Há a experiência do mal, que é comum a todos, que nos atravessa, corrói, domina em tantos momentos.

 

Falou da graça. E pergunto pelo momento anterior: o do encontro com o mal. Estamos prevenidos para o encontro?

Não estamos. Mas esse encontro com o mal que nos habita é absolutamente necessário para tomarmos consciência de nós. Senão somos uma ilusão. Lidamos connosco próprios numa idealização tal que nunca aterramos verdadeiramente na realidade. A Flannery O’Connor tem um livro de ensaios sobre literatura chamado No Território do Diabo. Digamos que a nossa vida é também no território do diabo. No território da tentação, da luta, do combate interior. O grito existencialista de S. Paulo... “Quem me livrará deste corpo de morte, que não faço o bem que quero e faço o mal que não quero?” Todos sentimos esta forma paradoxal em que a nossa existência se desenvolve. O moralismo faz-nos criar os bodes expiatórios. O filósofo René Girard diz que a nossa sociedade tem um sistema vitimário. Colocamos num bode expiatório tudo o que não queremos ver em nós próprios. Então, como os antigos judeus faziam (colocavam num bode todos os pecados e mandavam-nos para o deserto) colocamos numa pessoa só (o maldito, o criminoso) todos os males, excluímos essa pessoa; e isso dá-nos um alívio muito grande. É o sistema do beco sem saída.

 

Porque um dia o bode seremos nós?

Por um lado, isso. Por outro, é uma vida não salva, não redimida. Só quanto tocamos a fundo a nossa vulnerabilidade (e até quando a amamos) é que somos capazes de dar passos noutro sentido.

 

Voltemos a Herberto Hélder, onde estávamos no começo deste excurso. É interessante que, estando já no seminário, o seu primeiro poema tenha sido sobre um poeta. Não parecia assente na palavra divina.

Mas o verso “No princípio era a ilha” é embebido da palavra divina. Era a meditação sobre a palavra, uma ruminação, uma apropriação. Era um corpo a corpo com a palavra e com a poesia. 

 

É uma bela maneira de pôr a questão. Corpo a corpo. Com a palavra, que é uma coisa intangível. Ao mesmo tempo, sabemos que as palavras têm poder, são actos.

Foi o meu primeiro encontro poético com a palavra. Mas já antes escrevia. Foi muito importante a figura da minha avó materna, uma contadora de histórias. Ela sabia alguns romances orais de cor. Uma das coisas que me comovem muito: numa recolha recente que se fez do romanceiro oral da Madeira uma das pessoas que estão lá é a minha avó. A minha avó que não sabia ler nem escrever.

 

Comove-o porque é uma maneira de ela perdurar?

Não. Comove-me porque a minha avó foi a minha primeira biblioteca. Tive a sorte de receber a grande literatura – ela sabia um romance medieval – através da voz humana, através do embalo da minha avó. Um encantamento. Depois [esse encantamento] aconteceu na poesia do Herberto Helder. E em poéticas como a de Ruy Belo, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, o Pasolini traduzido pelo Manuel Simões. Fui encontrando um carácter – como dizer? – polifónico dentro de um mundo encantado. Era como se estivesse dentro de um instrumento musical cósmico que aquelas vozes me traziam.

Isso misturado com os cromos do futebol, com as brincadeiras, uma vida completamente normal.

 

Os romances orais que a sua avó contava: pode dizer mais disso?

Ninguém sabe, já, aqueles romances de cor. Estão num romanceiro, na minha estante. Mas nunca vou esquecer que tive a fortuna de os ter escutado. Como quem ouve uma música. A Sophia disse que o poema já estava feito, e que se nos sentássemos quietos o podíamos ouvir. Isso era verdade na minha infância. Os grandes poemas estavam feitos. Se me sentasse perto da minha avó podia ouvi-los.

 

Como é que se chamava a sua avó?

Maria. Como todas as mulheres da minha família.

 

Chama-se José como todos os homens da sua família?

É verdade. Isto quer dizer alguma coisa.

 

A sua avó era muito religiosa?

Era. De uma religiosidade muito arcaica.

 

Viu-o poeta e viu-o padre?

Viu, as duas coisas. Estava no curso de Teologia, na universidade, quando morreu. As nossas mães, as nossas avós, vêem tudo o que somos antes de sermos. Vêem o que somos mesmo que nunca o digamos. Achamos que somos opacos, mas se alguém nos olhar com atenção somos transparentes.    

 

Foi através dela que chegou até si o Cântico dos Cânticos?

Não. Ouvi o Cântico dos Cânticos, recitado por uma mulher também analfabeta, que era zeladora da igreja da paróquia onde vivia. Uma vez disse-me aquele poema e fiquei aturdido, extasiado, aquelas palavras apoderaram-se de mim. Nunca tinha ouvido nada assim fascinado. Há um antes e um depois daquele momento. De vez em quando pedia-lhe que repetisse. Ela não sabia o que era aquilo. Tinha aprendido de cor. Anos mais tarde descobri que era um texto bíblico. Estudei-o muito. Traduzi-o para português. 

O S. Tomás de Aquino dizia que, quando morresse, queria que lhe lessem o Cântico dos Cânticos, e assim aconteceu. Uma morte santa. [risos]

 

Neste livro de poemas põe a Patti Smith a explicar o Cântico dos Cânticos.

E ela explica tão bem... É outra foragida. Explica pelo desamparo, pela procura, por ser apenas uma criança.

 

Foi para o seminário com 11 anos, escreveu o primeiro poema aos 16. Quando é que percebeu que o caminho da Teologia e o da poesia eram os seus?

Penso que fui percebendo, estou a perceber. Aos 16 anos não sabia nada. Só sabia que amava o Herberto Hélder.

 

Conheceu-o?

Já me encontrei com ele. Mas não temos uma relação. Tenho a veneração que a maioria de nós tem por ele. É quanto baste.

Esse primeiro poema fala de coisas que fazia na infância. Deitar-me na terra para olhar as estrelas. Ordenar berlindes sobre a erva. Andar pelos baldios. Essa dimensão dos espaços...

 

Panteísta?

Não era panteísta, que engraçado. Era o esplendor do mundo. A infância expande os espaços. Se calhar há um sentido religioso em tudo isto, mas não o vivia assim.

 

Também se dá a coincidência de o seu primeiro livro de poesia ter sido editado no ano da sua ordenação. É mais uma coisa a firmar a indissolubilidade destes dois laços.

É verdade, 1990. Não pensei nisso assim, mas aconteceram ambas as coisas no mesmo ano. A poesia, como a vida religiosa, é uma vocação. O Rainer Maria Rilke descreve-a como um sacerdócio, como uma forma de religação. Não as sinto como duas vocações. Sinto ambas como uma única vocação. Como um caminho exigente, desafiador, apaixonado.

Eu sou muitos, como Pessoa ensina. Da multiplicidade todos somos desafiados a construir uma unidade. Mas sem dúvida que a experiência religiosa traz uma marca específica à minha experiência poética. Também a experiência poética desafia, por dentro, a experiência religiosa.

 

Explique-me melhor isso.

A experiência religiosa é uma experiência de relação, de procura. Às vezes é uma experiência fusional – sentimo-nos dentro do mistério. Outras vezes, porventura a maior parte das vezes, é uma experiência de interrogação, de deserto. Por vezes crucificante. Um permanecer apesar de. Ou contra o silêncio. Essa é a experiência da fé. E essa é também a experiência poética, de comunhão, tão profunda que parece que nos funde com a própria realidade. O mundo torna-se experiência. Ao mesmo tempo, nada é fácil para o poeta. Nada lhe é dado. Ele tem de fazer aquele caminho de pedras, de pergunta em pergunta, afinando, na dificuldade, os instrumentos da sua audição. O poema dá a ouvir o inaudível, e nisso ajuda-me na experiência religiosa. Diz, procura dizer, dá a ficção do dizer o indizível.

 

Cita Rilke no seu livro de ensaios: “Quase tudo o que acontece é inexprimível e passa-se numa região que a palavra jamais atingiu”.

É de um livro da formação da minha alma, Cartas a um Jovem Poeta. É logo na primeira carta: “Vire-se para si mesmo e perceba que o mais importante é esse corpo a corpo com o que ainda não está dito”. Mais à frente diz: “E coloque-se como se fosse o primeiro homem. A sentir, a dizer, a ver as coisas”. Há, digamos, um chamamento para a experiência. Senão, é um ornamento. O que mata a estético é o esteticismo.

 

Fez uma tese de doutoramento sobre versículos misteriosos de Lucas. O que se procura é uma decifração do que lá está e onde, apesar disso, as palavras não penetram. Estamos a falar de diferentes faces do mesmo poliedro?

A importância da decifração... Sim, isso conta um bocado de mim. Esse esforço de interpretar, essa paixão hermenêutica pelo mundo, pelo Homem, por Deus. Ao mesmo tempo, o hermeneuta, o intérprete sabe que o mundo é intraduzível. Há um lado da experiência humana que não é alcançável pelas palavras. Como aquelas paisagens que vi pela primeira vez no barco do meu pai. A vida, depois de dizermos tudo, há-de continuar a ser assim. Gosto de uma expressão do [filósofo Tzvetan] Todorov que diz que a interpretação é um naufrágio. Porque o intérprete é sempre vencido pelo texto. Acho que a nossa vida é o testemunho dessa derrota.

 

É descoroçoante lidar com essa derrota e com a evidência de o texto ser inexpugnável.

Acho que gera em nós a fome. Hoje entendo a vida como um lugar para termos a maior fome que pudermos, a maior sede de que formos capazes. A vida é uma máquina de construir desejo. Bem aventurados os que têm um desejo tão grande, tão grande, tão grande que nada pode responder. Isso faz-nos procurar outras respostas. Pessoa também diz: “Triste de quem está contente”, não é? A insatisfação é uma dor. Mas essa ferida torna-se fecunda, criativa.     

 

Esta conversa, muito poética e enredada nas questões do espírito, merece uma tradução prosaica. Uma coisa rente à vida de todos os dias. Para que não pareça simplesmente um consolo. Ouvimos as suas palavras e elas resgatam-nos. Talvez eu esteja a sentir um excessivo conforto com o que diz...

Olhe que eu estou muito desconfortável! [riso] Porquê? É sempre descer a regiões... Sou um bicho do silêncio.

 

Queria que se dirigisse para os não crentes, para os atordoados.

Dirijo-me quase sempre para esses. Não tenho um discurso para crentes. Acredito muito naquilo que Simone Weil diz: “Estão dois homens, um diz que é crente, o outro diz que é não crente. Este está mais próximo de Deus do que o crente”. O Prof. Eduardo Lourenço, há uns anos, quando lhe perguntaram o que pensava de Deus, disse: “O importante não é o que penso de Deus. É o que Deus pensa de mim. Essa é a questão. Hoje, mais do que uma crise do crer, há uma crise do pertencer. Onde é que as coisas em que acredito encontram uma comunidade, um ancoradouro? Vivemos a crise do pertencer.

 

Procuramos uma forma de pertença?

Há mais dificuldade na pertença do que na crença. Não é por acaso que hoje se fala dos crentes culturais. Portugal, culturalmente, é um país católico. O que não quer dizer que os católicos sejam a maioria da população. São uma minoria os católicos praticantes.

Sei que o que tem crescido é uma crise em relação à pertença; e uma crença que fica por esclarecer, aprofundar. Faltam interlocutores para essa crença. Esse é o grande desafio que hoje se coloca à igreja: a capacidade de dialogar com os crentes que não se reconhecem na pertença eclesial.

 

Parece ser, a esse nível, um interlocutor privilegiado. Os poeta que cita, os foragidos que traz, são frequentemente apelidados de ovelhas negras de um rebanho tresmalhado. O que é que Adília Lopes tem a ver com Deus?

Ah... A Adília tem um verso: “Deus é a mulher a dias”. Como tem o verso do Cristo osga. Usa a imagem dos bichos que estão presentes na casa e pelos quais não damos. São como os sinais religiosos. Diz que o crucifixo está na parede e que não o olhamos. Banalizamos a presença do sagrado. Ela, de uma forma irónica, e crente, é capaz de devolver-nos essa banalidade de Deus.

 

Banalidade?

Para os crentes, Deus não é um facto extraordinário. Quando Adília mistura Deus com o quotidiano mais banal do bairro da Estefânia... Não sei se há textos teológicos tão importantes como a poesia que a Adília Lopes está a escrever no Portugal contemporâneo.

 

O que diz parece estar entre o sacrilégio e a boutade. E pergunto-me se a cúpula eclesiástica não lhe cai em cima quando diz estas coisas. Ou aceitam a sua heterodoxia?

Isto não é uma heterodoxia. A Teologia tem consciência da sua miséria. Isto é, do seu carácter provisório, insuficiente. A Teologia é uma tentativa de uma palavra sobre Deus, construindo um património impressionante de sabedoria, de humanidade. Mas, em última análise, sabemos que é no silêncio, no símbolo, na metáfora, na parábola, no poema, que Deus se dá a ver melhor.

 

Os tratados de Teologia também estão cheios de parábolas. Basta ler a Bíblia.

A Bíblia é um grande poema. Tem uma dimensão literária. Isso também lhe dá uma grande carga revelatória. Torna-a um livro intemporal. A Bíblia não é um catecismo.

 

Tem agora 47 anos. As suas leituras são substancialmente novas em função do ponto do caminho em que está? Aquele que acabou o seminário, aquele que esteve em Roma a doutorar-se, aquele que passou o último ano em Nova Iorque a investigar o tema “Religião e Espaço Público”, não leu as mesmas parábolas da mesma maneira.

Hoje tenho vontade de ler coisas inactuais. Interessa-me muito a literatura cristã dos primeiros séculos. Autores como Tertuliano, Orígenes. Tem sido um alimento muito grande. Interessam-me os espirituais, os místicos, o Maître Eckhart, o João da Cruz, Teresa D’Ávila. Mas agora estou a ler tudo da Maria Gabriela Llansol. Essa visão de conjunto é o que considero uma possibilidade de leitura. Como se não me bastasse ler um fragmento. Como se precisasse de grandes sequências para colher o sentido.

 

Também as leituras que faz da Bíblia são diferentes, porque vai sendo outro. A paixão hermenêutica não se exerceu no mesmo sentido.

Completamente. A importância que hoje têm os salmos, o Livro de Job, S. Paulo... Em NY trabalhei um ano sobre a carta de S. Paulo aos romanos (que estou também a traduzir para uma nova tradução da Bíblia que se está a fazer). Esse texto, que é um dos grandes textos cristãos, um texto identitário por excelência, só nesta idade, a meio da vida, poderia perceber a sua centralidade.

 

O que é que lá está que não poderia perceber com 20 anos?

Não poderia perceber o drama humano. O drama do crente que Paulo encena no seu corpo. Não poderia entender a divisão interior que Paulo vive entre cristianismo e judaísmo. E não poderia perceber a centralidade que Paulo dá à cruz  como lugar da salvação, da construção. Para entender os mistérios cristãos é preciso uma vida adulta. Madalena era alguém que vivia um exílio muito grande de si mesma. Esteve como morta e num encontro com Jesus renasceu. Não é por acaso que Jesus apareceu primeiro a Madalena. Porque só quem esteve como morto pode entender a ressurreição.  

Cada vez preciso menos da analogia e da metáfora.

 

Significa que devemos entender literalmente a maior parte do que aqui está a ser dito?

Não acho que se deva entender literalmente a Bíblia. A Bíblia precisa de interpretação. Mas o que estamos a dizer, sim, é bastante literal.

 

Alguma vez teve um grande naufrágio após o qual ressuscitou? E começou de novo. Não me refiro aos combates íntimos, diários.

A experiência do luto é sempre um naufrágio. A morte do meu pai foi uma experiência de desamparo, de interrogação muito forte. Mas uma vez fui ao cemitério, estive lá muito tempo. Estava sentado a olhar para o túmulo, numa conversa silenciosa. E ao meu lado puseram-se dois gatos. Aquilo fez-me muito bem.

 

O que é que isso quer dizer?

Não quer dizer nada. Quer dizer a doçura da vida. Mesmo no meio do luto, os sinais do presente, a narrativa da existência, continuam. Em pequeninas medidas, quando a gente sente que a vida se vem sentar ao nosso lado, mansamente, estamos a renascer. Que o processo do luto se torna um lugar de reaprendizagem, de reenvio para a própria vida.

 

Vou fazer uma pergunta íntima (espero não ser ofensiva). Depois da morte do seu pai, alguma vez lhe ocorreu ter um filho? Sendo que isso seria um desmantelamento de uma vida e a concepção de uma outra vida.

Sinto-me pai. Sinto que exerço a paternidade. É interessante, nos primeiros anos da ordenação fazia-me impressão que as pessoas me chamassem padre. Talvez tenha sido a minha geração que viveu assim a entrada no ministério. Pedia às pessoas que me tratassem pelo nome, e continua a haver muitas pessoas que me tratam pelo nome. Mas quando me chamam padre isso não é indiferente. Quando me chamam padre associo imediatamente a pai. Sou padre há 23 anos. Essa dimensão da minha vida também se cumpriu, mesmo não tendo nenhum filho biológico.

 

Ideia recorrente no seu universo poético: qual de nós é a sombra do outro?

É verdade, é. A Simone Weil propunha que se traduzisse “No princípio era o verbo” por “No princípio era a relação”. Acho que se devia traduzir assim.

 

Etimologicamente, a palavra permite essa tradução?

Numa tradução semântica, sim. Num sentido puramente etimológico, não. Há uns brasileiros que traduzem: “No princípio era o desejo de falar”. É uma tradução semântica. Acredito nisso. Não era só a palavra. Era o desejo de que a palavra fosse um elo.

 

A fala pressupõe um outro, um que escuta.

Claro. Mesmo quando falamos sozinhos é na expectativa de que exista um outro, mesmo que imaginário, que nos escuta. 

 

“Os verbos transitivos inscrevem-se no domínio do “isso”. Mas a verdade é que o “isso” não basta: precisamos de um “tu”. O “isso” é uma coisa que possuímos. Pelo contrário, quem diz “tu” não possui coisa nenhuma, e, a bem dizer, não possui nada: permanece simplesmente em relação. E a relação é o nosso princípio”.

Acredito muito nessas palavras. A relação exige um desprendimento muito grande. Como a liberdade. Hoje estamos nos lugares, e amanhã deixamo-los. Hoje estamos aqui, e amanhã partimos de viagem. Nessa arte do desprendimento o que fica é o que demos e o que recebemos dos outros. Fica o momento, fica a ressoar. O resto é para a grande História. Acredito muito no tráfico do dom.

 

Parecem duas palavras que não se podem justapor, tráfico e dom.

[riso] Gosto muito de ambas. Tráfico é ambivalente. É o fluir (o trânsito) e é uma certa ilegalidade. O dom, por natureza, é qualquer coisa que transcende a própria lei. O dom é da ordem do amor. Claro que me interessa um mundo justo e onde, no mínimo, há justiça. O máximo é o amor, como diz S. Paulo. E é isso que não passa, não acaba.     

 

Tem no seu livro um capítulo que se chama “Amar a imperfeição”. Contrasta com a conversa que esperamos ouvir dos padres (digo assim, assumindo a carga pejorativa que isto tem), cheia de bons sentimentos e de um desejo de perfeição.

Isso também me deixa amarelo.

 

Por isso se lê com surpresa este texto no qual se faz a apologia da imperfeição.

Ou faz a apologia da realidade. Deus ama-nos como somos. Sermos nós próprios é percebermos o caminho da imperfeição. O que nos mata é essa perseguição da perfeição. Não temos de ser perfeitos. Temos de ser inteiros.

 

Fustigamo-nos quando somos imperfeitos. A culpa é uma marca, aliás, da cultura judaico-cristã.

É um entendimento errado do que é a perfeição. A verdadeira perfeição é a de quem não tem pés e não desiste de andar. Este não desistir de si é o essencial. É preciso combater esta culpa, esta moralização em torno de modelos de perfeição que são inatingíveis, e que, muitas vezes, deixam submersa a vida como ela é. Depois acabamos por viver longe de nós mesmos.

 

Onde é que aprendeu isto tudo?

[sorriso] Num grão de arroz.

 

Conhece aquele filme de Abbas Kiarostami Onde fica a Casa do meu Amigo?

Ah, é tão bonito.

 

Acontece depois de um terramoto, no Irão. Gostava de o cruzar com o título do seu ensaio sobre a amizade, Nenhum Caminho será Longo, para lhe perguntar quem é o seu amigo e onde fica a casa do seu amigo.

Às vezes penso – é uma coisa tola, pode até parecer pretensiosa, mas são aqueles pensamentos que nos ocorrem em horas ociosas: se tivesse de escolher um epitáfio, o que é que escolhia? O epitáfio ajuda a perceber o que é a vida, e não a morte. Gosto muito do epitáfio do Mallarmé: “O que é verdade não morre”. Eu escolheria um verso de Alberto Caeiro: “E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre”. É um poema sobre a vinda do Menino Jesus até à vida do poeta.

Sei que estas palavras são um mapa. Um mapa que explica a minha vida.

 

Que versos sublinharia desse longo poema?

Quando eu morrer, filhinho, pega-me tu ao colo, despe o meu ser cansado e humano e leva-me até esse dia que tu sabes qual é.

 

Qual é?

É o dia da infância. Voltamos à conversa da infância.

 

Transformou-se numa presença importante, um farol para a comunidade católica, em especial para uma geração. Quem é que desempenha este papel junto de si? Quem é que lhe pega ao colo, como no poema? Usemos a imagem da Pietà, tão poderosa e comovente.

A Adília diz que é uma obra dos outros. É uma frase extraordinária. Sinto-me assim. Sinto-me uma obra dos outros no sentido em que sou construído pela ternura, pela confiança, pela esperança dos outros. Sinto-me muito amparado pelo amizade dos outros.

Quando se distribuiu o território de Israel pelas 12 tribos, todas tiveram um bocado de terra – menos uma. A tribo dos Levitas, que estavam ligadas ao exercício do sacerdócio no templo. A herança deles não era uma terra concreta, mas o que os irmãos lhes davam. Viviam da partilha dos outros. Eu também vivo assim. É uma vida pobre? É. É uma vida riquíssima? É. [sorriso] Sou assim.  

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012

 

O Livro de Agustina

13.10.22

Uma famosa carta de Teixeira de Pascoaes de 1950, que andou desencontrada da sua dona durante algum tempo, exprime de forma notável e premonitória, (que é uma palavra que vai bem com Agustina), o que ainda hoje podemos dizer dela: que se trata de “uma escritora de raça, dotada de excepcionais qualidades visionárias ou dotadas do instinto do real”. É desta expressão de Pascoaes que me sirvo para iniciar esta apresentação: Agustina, a escritora dotada de instinto do real.

Depois de folhear a sua autobiografia, e de ter a benção de acompanhá-la com as fotografias, que já nos dizem muito, torna-se mais fácil perceber o seu encontro com o real, o modo como se deixa impregnar pelo real, o modo como o real se apropria dela. E como, do equilíbrio entre uma e outra coisa, resultou o que podemos conhecer de Agustina.

Insisto: o que podemos conhecer. Porque o humano é dotado de uma espécie de mistério original que o deixa razoavelmente opaco para todos os outros. Um ser uno, consigo, a sós. Contudo, página a página, encontramos figuras referenciáveis: o Avô Lourenço, de quem herdou a têmpera, o Pai que vivia no “contraste entre a presa e o predador”, (que é uma maneira de dizer que o habitava o vício e a vocação para o jogo), a Mãe “adaptada e presa aos provérbios” _ Agustina, temerária, expõe-se na singularidade do aforismo. Vêmo-los, a estes e a outros, gente com nome que marca individualmente, ou gente que é turba e que molda no colectivo. Vêmo-los e embarcamos na ilusão de que nos abre mais as portas, que ficamos a saber quase tudo dela. Quando neste livro talvez persista, ainda, aquilo que Agustina diz haver nos seus primeiros livros: “Um estigma infantil onde o traço é indefinido e obriga a imaginação a completá-lo”. O esfumado, o carácter inacabado, o enigma são a exaltação que Agustina nos oferece. O mistério, para Agustina, é como o jogo para o pai de Agustina: vale mais o decifrá-lo, o lance, que a clareza da decifração. A sabedoria, para ser plena, no que ela pode ser plena, tem de ser lúdica.

O que há então nestas 160 páginas? Primeiro, a sensação de um reconhecimento. O amor, no dizer platónico, vive da identificação, que pressupõe o feliz encontro de um no outro. Para a pureza deste amor não são necessários os sentimentos, “passos de bailado” _ como me dizia Agustina este Verão, parafraseando a vidente de Lourdes. A pureza está para lá do momento e do artifício da sua ocorrência. Não está sujeita à vida de todos os dias. O gosto tem pouco que ver com o interesse. Como se escreve no livro: “O que me interessa não é o que eu gosto”.

Nestas 160 páginas estão figuras de romance, ponto. Cada uma delas está destilada nos livros de Agustina, que confirma que a realidade supera sempre a imaginação. Desde que a realidade seja lida com sageza sibilina, bem entendido.

Fazem parte dos livros de Agustina a Avó Justina, que se enamorou de José aos sete anos porque este a ajuda a passar um ribeiro e promete casar com ela; casam no mês de Março, o mês que congrega a vida dos dois. Ou a Mãe Laura, abordada por Artur com um prato de figos, vestida de preto, não por luto mas por promessa. Ou Artur que se enfastia de doces e foge para a vida solta dos meninos que comem o que os pescadores deixam. Ou a Empregada que diz ao cão: “Brilhante, põe-te aqui num instante”. Ou a Condessa Andrée que “gostava mais de gatos que de todo o Douro vinhateiro, ignorante e pedante”. Ou a professora Inês, “mistura de mulher de letras e bailarina de music-hall”.

Para não falar da própria Agustina, que não veste luto pela avó e se entrega à delícia de Setembro. Agustina “amada pela mãe, mas sem demonstrações”. O pai, paga-lhe a edição d’ “Os Super-Homens”, “não porque acreditasse muito nela, mas porque não perdia a ocasião de apostar num provável vencedor”. Agustina que sai do hotel sozinha, aos três anos, com a aspiração que mantém, ( e este é o seu tesouro), de caminhar sem rumo. “Dizem que é um fio de epilepsia”, escreve neste livro. “Talvez a liberdade seja um sintoma epiléptico”. Ela que percebe cedo que a grande escrita é um “milagre, porque é a criação do mundo”. Que escrevia numa letra intrincada a teimar que alguém, mesmo assim, a decifrasse. Como uma pérola resguardada, só ao alcance de alguns. “Uma pequena sereia, leve como uma pluma e no entanto profunda como o mar”. Uma pequena sereia pintada pela amiga Vieira da Silva, cujo destino é “mover-se na imensidão do oceano. O destino é um conflito breve com o sonho”.

Agustina enfrenta-o com a serenidade corajosa que se vê, por exemplo, na fotografia da contra-capa deste livro. Essa rapariga, se lesse Sartre n’ “As Palavras”: “Não te agarres, apoia-te só”, saberia o que isso quer dizer.

Eu não conheço espírito mais livre que o de Agustina, tomado por fio epiléptico e saboreando isso. Talvez isso a torne “anormal segundo os critérios humanos”. Por ser filha de Deus. Trata-se de uma outra condição. E não há nisto presunção, mas o encontro com a verdade da natureza que se possui.

Agustina, a eleita, não tinha dúvida acerca disto: de ser filha de Deus. Todavia, entre os homens, queria ser excelente em algo. A excelência é uma propriedade da excepção. Significa ser diferente de todas as outras, postas, juntas, num bando. Ser excepcional é ser único, é ser cosido pelo fio da singularidade. Ainda pensou que pudesse ser na pintura, à conta de um sonho premonitório. Mas foi nas palavras. Diz, com Gogol, que “ A palavra é às vezes mais preciosa do que o objecto designado”.

Quando aprendeu a ler, no mundo fez-se luz e passou a compreender tudo – escreve. Mais adiante, explicita que o cinema e os livros e a D. Inês deram com ela em escritora. Porque queria, e termino citando, “Escrever, entrar no coração das pessoas, beber-lhes o sangue, avançando sempre, criando enredos e fazendo saltar os personagens das páginas. Há pouca gente que percebe que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se têm encontros com Deus”. 

 

 

Texto de apresentação de O Livro de Agustina, na Cooperativa Árvore, no Porto, em 2002

 

 

Adriana Calcanhotto

02.10.22

Ela canta no disco novo: “A uma hora dessas/ por onde estará teu pensamento”. Pequenas variações noutros versos: por onde andará teu pensamento. Vagará teu pensamento. Passará teu pensamento. O que pensará Adriana? O que sentirá Adriana? Quem será Adriana?

Ela é a mulher enfeitiçada pela deusa Tétis, a voz mansa que canta os poetas, a artista que gosta das cores de Hélio Oiticica e Pedro Almodovar. A que gosta de opostos.

Encontro num hotel de Lisboa, ao fim da tarde. Uma luz de Verão. Os olhos de um verde translúcido – ocorre-me uma linha de um samba da Mangueira: “Me sinto pisando, um chão de esmeraldas”. Os olhos chão de esmeraldas. A Mangueira que é a escola de que ela gosta, por causa de Cartola e não só.

Adriana Calcanhotto não é uma brasileira do samba, da pele morena, de jeito dengoso. É uma mulher que conjuga o verbo flanar com frequência. Que regressa a casa com as malas cheias de livros. E que gosta de dançar no Lux e de ouvir fado em Alfama. Imensamente requintada, sofisticada. Delicada.

O fotógrafo tirou as fotografias, o pessoal da produção abandonou a sala. Ficámos a sós para uma conversa que tinha o disco novo como ponto de partida. “Maré”. Já nos conhecemos há anos, mas ela nunca me tinha falado de lavar a louça e ouvir na rádio um poema de Ferreira Gullar musicado…

  

Vou cantar-lhe uma canção tradicional portuguesa…

Oba!

 

“O mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz, bate na areia e desmaia, porque se sente feliz”.

Ai que lindo! Aprendi uma música, também: “O preto, minha senhora, não gosta de bacalhau, só gosta de arroz doce, e mais farinha de pão! Ora vai p’ra aqui, ora vai p’ra acolá, e o preto ri, ra ra ra”.

 

A minha canção serve de intróito para falar do seu disco “Maré”. Qual é a melhor maneira de mergulhar no seu mar, na sobreposição de camadas que definem a sua identidade? Atiramo-nos de onde?

Não sei! Esse mar ficou cheio de camadas porque ele é cheio de camadas, que vão vindo de há muito. Esse “Mar(é)” se revelou o segundo de uma trilogia; na verdade, quando fiz o primeiro, [“Marítimo”], eu não pensava nisso. As canções que fui seleccionado, quando me dei conta, de um jeito ou de outro estavam relacionadas com o mar – mesmo “Três”, onde o mar é um cenário apenas. Por onde começar? Não sei, nem investigo.

 

Isso não lhe interessa, apurar a origem das coisas?

Não. Nunca me dou bem conta… Quando me vejo, é já num processo. 

 

Não era você que citava Heraclito para dizer que não nos banhamos duas vezes nas águas do mesmo rio?

É. É a mesma ideia de água corrente.

 

Fale-me do mar como seu elemento preferencial, mais do que a água; e inspirador.

As coisas vão me levando. Muitas coisas que me impactaram levam-me para o mar. É uma sensação de repuxo…, o mar é que me puxa. Há coisas muito importantes, como o “Limite”, o filme do Mário Peixoto, que é recorrente. Não consigo assimilar, deglutir de todo, ele é ainda misterioso para mim. Eu ando com esse filme... Uma parte dele era projectada no [show] “Partimpim”.

 

O filme não é conhecido em Portugal. Pode apresentá-lo?

Mário Peixoto fez o filme, que é um esforço intelectual imenso, nos anos 20. Totalmente por acaso conheci o Mário Peixoto e comprei a casa que tem essa visão do mar: uma inclinação do sol numa determinada época do ano, que faz com que o mar fique prateado, de uma maneira que só acontece ali e naquela época. Meu Lar de Amália é numa das ilhas de Angra dos Reis, a Ilha Comprida, e Mário Peixoto esteve lá algumas vezes, mas a casa não aparece no filme. Ele viveu grande parte da vida na Ilha do Morcego.

 

Como é que essas coisas ficam impressas em si?

Permeiam tudo. Aquele jeito de filmar e pensar a luz, as mutações, a inclinação específica, ser cinza e verde e prata… É fascinante em termos de pintura, de cinema. Tudo isso está influenciando, sempre a escolha das canções. As canções vão chegando, apresentam-se; e aí, eu fico interessada em não investigar, em não esmiuçar essas chegadas… Vou deixando fluir.

 

Deixa-se levar nesse movimento auto-gerado, digamos assim. Um movimento de água que não se pode controlar ou estancar ou descodificar, mas que permite navegar nele…

Exactamente.

 

A alusão a Mário Peixoto abre a porta para falar de cinema, luz, cor, que são coisas essenciais em si. Como é a poesia, e como é a música. É extraordinário estar a falar com uma artista, que se exprime sobretudo na composição e no canto – uma cantora, portanto – e começar por falar de outras artes… Parece que não se sente uma cantora, no sentido estrito do termo.

[Riso] É verdade, não me sinto mesmo. E hoje em dia me sinto menos e menos. E entender as coisas assim me dá mais liberdade do que angústia. Quando eu era pequena e pensava viver de música e fazer música, não era tanto pela música. O que me chamava atenção eram as coisas que via na televisão, os artistas… Rita Lee, vestida de noiva, grávida. Coisas pop, ligadas a um contexto visual e de ideias e de humor. Não me chamava a atenção o modo de encarar a música do meu pai: o de um instrumentista, em que a música era apenas a música. Eu ficava mais interessada na música veiculando outras ideias. Via os Secos e Molhados, cantando, completamente mascarados, e queria exactamente aquilo.

 

Nunca quis ser uma cantora?, quis ser uma artista?

Gal Costa, por exemplo, conta que quando era pequena botava uma panela imensa na cabeça para ouvir a própria voz, fascinada com a própria voz. Eu jamais tive esse tipo de relação com a minha voz e mesmo com a música.

 

Quando é que descobriu a sua voz? Ou que era por aí que se ia exprimir.

Fui fazendo, não descobri, não. Caetano fez uma tentativa de definir os shows da Bethânia: que pareciam filmes de arte que se passam toda a noite. Eu me sinto identificada com isso, sempre me senti.

 

Há algumas presenças na sua infância cuja influência foi determinante: o seu pai é baterista, e a música está na sua vida, a sua mãe era bailarina e é claro o seu interesse pelo movimento, pelo corpo; e uma tia, professora de literatura, que lhe passou livros de História de Arte – áreas que a atraem muito. Estão aqui as artes todas!

É! [riso] Nasci nessa família não burguesa, não convencional: era uma família de artistas. As minhas percepções eram estimuladas, mas não tinha noção de fronteira entre as linguagens. Você fala de “todas as artes”: não tinha tanta diferença assim entre música, o desenho, a dança. Teve uma época, no final dos anos 80, em que eu seria considerada uma artista multimédia! – uma definição que confunde mais do que esclarece. O que as pessoas fazem hoje nos computadores, mexendo em tudo, misturando tudo… é mais natural para mim.

 

Ou seja, não há zonas incontaminadas. Ao contrário, o que se pretende é essa fertilização permanente.

É. As pessoas perguntam-me muito: onde é que uma arte influencia a outra. Não sei dizer, porque não tem tanta definição assim. E não importa.

 

Hoje perguntava-me como é que foi quando aprendeu a ler, ou quando viu o mar pela primeira vez, ou um quadro de Matisse. Mas não me perguntei pelas primeiras músicas que ouviu.

A primeira música que ouvi, não sei. Havia tanta música na minha casa… Foi hiper-constante: ouvia música com as babás, as empregadas, depois à noite com os meus pais, no fim de semana ouvia o meu pai ensaiando na garagem…

 

Eram músicas diferentes. Sendo o seu pai baterista de jazz, imagino que a música fosse negra, norte americana, cool

Cool jazz e Bossa Nova. Ele gostava muito de João Gilberto e tocava bateria desse jeito, [ao estilo da Bossa Nova]. Com as babás ouvia rádio AM [onda média]: Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Roberto Carlos. Era rádio popular, e ali sim, tinha a noção de canções: entrava uma canção, depois outra canção, as canções diziam coisas que eu compreendia – as do meu pai diziam coisas que não entendia. Depois o meu pai, não me pergunte porquê, começou a ouvi rock progressivo.

 

Pobrezinha… [riso colectivo]

Fiquei traumatizada para sempre! A minha mãe ouvia música como um veículo para a dança, não ouvia música como o meu pai. Eram camadas, música o tempo todo, e por isso não saberia dizer que música primeiro me impactou. Mas sei exactamente o momento em que li a primeira palavra. Eu queria tanto… Era a coisa que mais queria: aprender a ler. Achava que sabendo ler eu poderia… ir embora.

 

Ir embora? Que desejo extraordinário numa criança tão pequena.

Na verdade, eu tinha a ideia de ir embora, ser dona do meu nariz, ganhar o mundo… Isso com três, quatro anos. E a minha tia, essa professora, tinha ido visitar o México e tinha trazido muitos souvenirs. A casa estava cheia de objectos do México; e lembro da sensação de estar na cama com a minha mãe, minha mãe vendo uma revista, e eu bati o olho nalguma coisa, um objecto que estava em cima de uma prateleira, fiz o link das letras que já conhecia e li: México. Foi um rito de passagem, fiquei louca de alegria, saí correndo pela casa: eu tinha lido. Tinha quatro anos.

 

Então, quando foi para a escola, já sabia ler bem?

Fui para a escola completamente alfabetizada, e ficava entediada, esperando que meus colegas aprendessem… Eu já lia, porque queria muito ler. Tenho essa memória muito mais nítida do que a de qualquer canção.

 

Já voltamos a esse desejo de ir embora. Porque a viagem, a descoberta, o partir são associações imediatas com o mar e com a sua alma de marinheiro! Mas, para já, conte da primeira vez que viu o mar, e um quadro do Matisse.

Do encontro, do impacto visual com uma pintura, não saberia dizer. É como a música: parece que sempre esteve lá. Vi pela primeira vez o mar, não especialmente bonito ou charmoso, das praias do sul. A cidade onde nasci não tem mar, mas a uma hora e meia de viagem, tem este mar marron. Tenho fotos dessa primeira vez que vi o mar. A minha cara é muito satisfeita! Lembro-me de minha mãe me levar para o mar e a gente quase se afogar… A minha mão escapava da mão dela. Seria uma experiência traumatizante que não conseguiu me traumatizar. A coisa com o mar foi crescendo e fui me dando conta que ir embora, era ir embora para um lugar mais perto do mar. Não preciso ver, mas preciso saber que está ali. Não poderia viver num lugar em que não houvesse mar. Vou ficando um peixe, [faz o som da falta de ar], aflita.

 

Um peixe? Uma sereia?

Sereia!

 

Precisa do contacto físico com o mar? Mergulhar, sentir areia nos pés?

Preciso. Não gosto daquela coisa de banhista, de ir para a areia e ficar fritando ao sol. Gosto de mergulhar, gosto da praia ao final da tarde, em dias em que não tem ninguém. Não frequento a praia no Rio de Janeiro, por exemplo. O mar de Ipanema, do Leblon, o mar que me fez ir morar no Rio de Janeiro, é o mar que está ali e passo por ele: de carro, passando na orla, de bicicleta. Esse é um outro mar, que está na cidade, que corrói os objectos que estão na primeira quadra [quarteirão], que tem barulho de mar.

 

Não consigo imaginá-la morena… É tão branca.

Mas posso ficar. Quando era adolescente, gostava de ser morena.

 

Se falo nisto, é porque não corresponde ao estereótipo da brasileira, bronzeada, obcecada com o corpo e a exposição ao sol. O seu universo visual, estético parece-se mais com o europeu do que com o brasileiro.

Tenho ouvido uma coisa muito interessante de pessoas que nem me conhecem bem, mas que vão aos meus concertos, fora do Brasil. Dizem: “Nunca tinha pensado no Brasil nesses termos”. O Brasil é cheio de camadas, e tem essa primeira imagem do que se pensa ser um tipo brasileiro, uma cultura brasileira. Mas as coisas são bem mais complexas. Eu gosto disso, das pessoas que olham de uma outra maneira para o Brasil, por um outro prisma, a partir dos concertos de uma mulher que não parece uma mulher brasileira. Acho bacana que seja assim.

 

Bacana é uma palavra muito brasileira! Voltemos ao disco. Para “Maré” recorreu sobretudo à colaboração de Moreno Veloso, Domênico e Kassin, com quem trabalhou de perto nos últimos anos. E com eles, viu uma outra parte do mundo – o Japão, que não conhecia. Isto não pode ser associado ao mar, mas à descoberta e à viagem, sim.

O começo de tudo foi quando eu ouvi o disco do Moreno [“Moreno +2”] e tive um impacto que não esperava mais ter. O tipo de impacto que só tive ouvindo as pessoas mais velhas, os ídolos. Quando era muito jovem ouvia os discos e aquilo me arrebatava de uma maneira que depois deixei de sentir. Aí ouvi o disco do Moreno e parecia que eles tinham conseguido uma coisa que se eu pudesse, se tivesse meios de ter feito, teria feito. Quando começaram com os shows, me convidaram para uma participação. Era tanta identificação… E aquilo partir deles, foi importante.

 

Participou depois nos discos “Domênico +2” e “Kassin +2”, do mesmo colectivo.

Agora, além de amigos, somos parceiros. Viajámos juntos e fomos para o Japão. Aquilo nos aproximou ainda mais. O Moreno e eu somos loucos pelos Tour de França e acompanhámos pela televisão…

 

No Japão, dois brasileiros, a seguir o Tour de França…

A gente gosta de bicicletas, sobe montanhas de bicicleta… enfim, muita coisa extra música que a gente viveu. E quando voltámos, fomos para estúdio num nível de sintonia que não era preciso falar muita coisa. Este disco não foi muito falado. As pessoas vinham e faziam o que elas queriam. As melhores coisas como que se auto-elegeram. Teve poucas sobras. Foi tudo muito essencial, e a responsabilidade disso é da nossa viagem.

 

Sentiu-se como a personagem de Scarlett Joahansson no “Lost in Translation”, da Sofia Coppola?

Menos do que imaginei. Eu achei que ia me sentir hiper-acelerada, por causa da quantidade de informação, no meio de néons. Mas, ao contrário, e com o passar dos dias, fui-me sentindo muito em paz. Por causa do jeito das pessoas. Muito tranquilas. Pacífico, profundo.

 

Essa convivência foi importada para o disco. “Maré” mantém tudo o que lhe é essencial e denota a influência destes músicos – nos ambientes sonoros, em subtilezas de produção.

 Sim, o meu núcleo mantém-se, mas estou já completamente influenciada por eles. Dos discos, das parcerias. Nesse disco resolvi não sugerir ou pré-determinar. E depois, da base que armaram, fui pinçando as outras colaborações. Com todos os convidados, já tinha feito coisas. Já tinha tocado com o Gilberto Gil, já tinha feito canções com a Marisa [Monte], tinha cantado com Los Hermanos, e portanto com o Rodrigo [Amarante], tinha gravado e feito concertos com o [Jards] Macalé. Nesse sentido, não são inaugurações, são desenvolvimentos.

 

Há um paralelismo esboçado na entrevista que lhe é feita por Eucanaã Ferraz e que acompanha o material promocional do disco. Ele diz que é como um realizador que trabalha sempre com os mesmos actores.

 É um paralelismo interessante, mas me interessam os aprofundamentos das colaborações. Não chamo as pessoas porque já sei o que esperar delas. Com estas pessoas, eu não sei o que esperar!, nunca tenho a certeza, sei que elas não vão ficar se repetindo. Este universo de autores é o que acaba me dizendo coisas. Enquanto estou fazendo, não posso ficar pensando se isso é repetição ou continuidade. Penso depois que está feito, penso agora, aqui com você, com as pessoas. Na hora são as canções e o que elas me provocam.

 

Quando se fala de influência e contaminação, fala-se mais especificamente de quê? Das conversas que têm nas horas que passam juntos, nos discos que ouvem juntos, em toda essa matéria que fica sedimentada? Pode especificar o modo como a relação molda o que está a fazer?

Depende do colaborador, da química que se estabelece entre nós, da história de trabalho que nós temos. Mesmo com estes três, eles são uma banda mas eu tenho uma relação individual com cada um deles.

 

No caso destes rapazes, (no Brasil chamam-lhes “meninos”), são mais novos cerca de dez anos. Os seus parceiros da escrita, o Ferreira Gullar, Wally Salomão, António Cícero, são pessoas mais velhas. Já tinha pensado nisto, de estar entre gerações?

Os “rapazes” têm muitas coisas já assimiladas com mais naturalidade do que eu, porque tenho dez anos a mais. Lidam com humor, com desprendimento, com uma saudável falta de compromisso. Sem peso. Mesmo o Moreno, que tem um peso maior, pelo facto óbvio de ser filho de quem é [Caetano Veloso], lida com isso com sabedoria. Os mais velhos trazem da escrita deles, e a escrita é toda permeada por escritas ainda mais antigas. Essa música mais solta, relaxada, descompromissada, veicula e viabiliza para mim essa escrita mais… potente.

 

E a parceria com a Marisa Monte, que aparece no disco a fazer um canto de sereia?

A Marisa é, em primeiro lugar, uma querida amiga, uma pessoa generosíssima. Tive necessidade de ter ali uma sereia.

 

Mas porquê ela? Porque é que essa sereia não é a Adriana? Eu pensaria que a sereia, criatura híbrida, encantatória e enigmática, seria uma bela imagem daquilo que o seu mundo é: um mundo de fusões impossíveis, de sínteses. Uma sereia muito mais do que um peixe, que tem uma natureza inteira.

É. Nesse momento do disco, não sou eu. Fiquei mais interessada em me deixar seduzir pelo canto da sereia. E tinha de ser a Marisa, não só pelo canto dela, mas porque se interessa pelo arquétipo da sereia. Qualquer coisa muito sedutora, ela chama de “canto de sereia”. Fiquei feliz que ela tivesse curtido a ideia – podia dizer que não, que não lhe interessava. 

 

Chegou a haver um tempo na sua infância em que acreditou nas sereias? Assim como quem acredita no Pai Natal.

Eu acho que acredito ainda, que não passei dessa fase![risos] Deixei de acreditar tanto, ou de ter esse ícone, quando falei com Hélio Eichbauer e ele me disse que em África a figura da kianda não tem essa imagem de metade mulher e metade peixe. Elas existem mas não têm essa figura ocidental, hollywoodiana, cabelo louro, glamorosa. Mas que las hay, las  hay!

     

Fala sobre sereias com o seu cenógrafo? Estaria tentada a adivinhar que falam de efeitos cénicos, de pintura, mas não de sereias.

Ele faz os cenários dos meus espectáculos, mas é um colaborador para além disso. Conversamos muito sobre o mar, sobre os mitos, sobre Tétis.

 

Porquê Tétis, que é uma divindade marítima?

Para o concerto, de todos os arquétipos que poderia encarnar e que posso citar, Tétis é talvez a coisa mais parecida comigo. No sentido de alguém que se metamorfoseia e que escapa do seu aspecto o tempo todo.

 

E que é inapropriável justamente por causa disso.

Sim. Ela transfigura-se e transforma-se em fogo, pássaro, em água. Ela pode ser, até, ela mesma. Essa capa do disco, aconteceu por acaso, mas se eu pensasse uma maquilhagem que Tétis usasse, seria essa. Conversando com Hélio sobre essas coisas, a coisa de Tétis ficou forte e permeia o concerto e o disco. Ele não é o cara que projecta meu cenário, é um cara com quem eu sento a conversar de mitologia, a quem peço referências. É bem mais complexo, enquanto colaboração, do que alguém a quem encomendo um cenário para um concerto.

 

Como se diz em Portugal, isto anda tudo ligado. E a partir da ideia de metamorfose, da mudança e movimento que lhe estão implícitos, gostava que me falasse do seu desejo antigo, infantil mesmo, de mudar o mundo. E de partir.

Todas as sensações ligadas a ir embora eram muito fortes. Gosto muito de bicicletas talvez porque tive bicicletas desde muito pequena. E lembro cada progresso que fazia: ir até uma determinada esquina de bicicleta, era ganhar o mundo de uma certa forma. Eu vivia para aquilo, para ganhar a próxima esquina. Sempre fui assim. Esse é o meu movimento. As metamorfoses: exercitei isso quando me aproximei do teatro. Tenho uma ligação forte com as possibilidades de ser outras coisas, não de representar, mas de ser. E mudar o mundo, era mudar o mundo mesmo.

 

Onde radica esse desejo?

Começou por eu achar tudo muito convencional: as cadeiras são para sentar, as portas são para abrir, as mesas… Era previsível demais. Porque é que as roupas eram assim? Tinha um grande desassossego em relação a tudo. Era tudo excessivamente conformado às coisas como elas eram. Hoje, acho que as mudanças se dão nas pequenas coisas e não nas enormes. Se você lê um poema e o poema te modifica, já está tudo modificado. Como dizia: isto anda tudo ligado. E se você está no mundo e mudou, já mudou o mundo. Mas na adolescência, era uma ideia de revolução. Militei no Movimento Estudantil Secundarista, achei que era possível mudar o mundo assim.

 

Disse que foi educada para ser artista e que a expectativa dos adultos era que fosse artista. Havia um desígnio, que era de outros, para cumprir. O desejo de partir está ligado ao medo de decepcionar? Ou a uma rebelião quanto a esse projecto?

Não, acho que não. O desejo de partir era para fazer isso logo! Era partir da infância de uma vez por todas. Era disso que eu queria me livrar. Não queria que as pessoas me dissessem o que fazer: agora janta, agora estuda. Eu queria fazer o que eu quisesse, na hora que eu quisesse. Talvez fosse para me tornar uma artista logo. Achava o mundo dos adultos fascinante e o mundo das crianças menor, entediante, sendo tratada daquele modo [faz uma voz infantil].

 

Mas havia uma expectativa? Queriam fazer de si uma Shirley Temple?

Não posso dizer que fosse isso, não era a cena da mãe da miss. Na verdade era um investimento na minha percepção, era muito estimulada nas minhas sensibilidades artísticas. Mas não sentia um peso. Tinha muita curiosidade… Eram muito importantes as noites em que o meu pai chegava na sala com um disco novo. E mesmo quando ele enveredou pelo rock progressivo aquilo tinha a graça de ele chegar com um disco novo. Mas o acesso não era livre, era regulado. Eu queria era participar de tudo. Ouvir os comentários do meu pai sobre uma sonoridade, aquele maravilhamento. Muitas vezes fingia estar dormindo no sofá. Se eu estivesse dormindo, eles não iam me mandar para a cama. Ficava invisível, ouvindo a música e sobretudo os comentários. Fazia tudo certo, mas batia o pé de acordo com o ritmo! O pé me entregava!

 

Tudo isto aponta para uma existência solitária. Mas tem um irmão.

Algumas coisas eram feitas a dois, outras não. Meu irmão era viciado em televisão e em filmes de cowboys. Eu achava aquilo completamente menor! O problema é que eu precisava dele para fazer certas performances, coreografias. Ele só vinha pago! Ou batia ou pagava!, e ele era obrigado a vir. Como sou mais velha três anos, dava para bater bem! [risos]

 

Deve ter sido horrível quando ele nasceu…

Foi. Não tenho memória, mas sei pelas histórias que minha mãe contou que não foi fácil. Mesmo quando a gente quer, nunca é fácil. Eu me lembro da barriga da minha mãe, da expectativa da chegada do irmão.  

 

Na adolescência, pegou no violão e foi pelas suas pernas à descoberta do mundo. Anunciou que ia começar por cantar em bares.

Quando os meus pais se separaram, aquilo foi muito doloroso e a maneira que encontrei de lidar com aquilo foi pegar no violão, que estava abandonado, e fazer uma safra de canções. Não tinha aulas fazia anos. Lembrava de três, quatro acordes e já não sabia como aquilo progredia. Achei mais fácil inventar as minhas canções. Entre um acorde e outro, errava um e encontrava um caminho novo. Voltei a sentir um desejo muito forte que tinha tido, quando assistia à Rita Lee ou Ney Matogrosso, de fazer música, de viver disso. Uma coisa me fascinava: a vida das pessoas que faziam música se fazia à noite. Tocavam à noite e dormiam de manhã. Eu hoje sei que vive-se à noite e dá-se entrevista de manhã. [riso] Mas aquilo é que era a vida que eu queria.

 

Essa descoberta adolescente foi feita com colegas?

Houve um momento no colégio em que se deu uma bifurcação: as pessoas ou foram para o rock, ainda progressivo, ou foram para a Música Popular Brasileira mais ligada à palavra, com Chico Buarque, Maria Bethânia. Não fiquei nem dividida porque não conseguia entender como é que as pessoas podiam ter escolhido o outro caminho. Não quero nem ficar falando mal de bandas que nem conheço! Esse foi todo o caminho que meu irmão rumou.

 

Ficou com os poetas, como se vê.

Eu fiquei com os discos do Caetano, do Chico Buarque, que davam para a literatura, para outros poetas de que nunca tinha ouvido falar. Eu não conhecia Clarice Lispector até ouvir determinado disco de Maria Bethânia. As coisas da palavra me arrebatavam. Quando meus pais se separaram, tinha tarefas em casa para ajudar minha mãe. A minha principal tarefa era lavar a louça. Fazia-o com prazer. Era num momento em que a minha mãe dormia para dar aula na faculdade, um pouco mais tarde. Então, adquiri uma técnica de lavar a louça sem fazer barulho e ficava ouvindo a rádio, muito baixinho, para que ela não acordasse. Aquilo para mim não tinha fim. O Chico Buarque lançando cada ano um disco mais maravilhoso… Um poema do Ferreira Gullar, musicado, tocado na rádio, na hora de lavar louça.

 

Ferreira Gullar na hora de lavar louça é outra síntese improvável. É como cauda de peixe e corpo de mulher.

Sim, era um privilégio.

 

Quando vim para a entrevista só sabia duas coisas: como é que começaria e como é que terminaria.

Não é mau.

 

Determinei que começaria com a canção popular portuguesa sobre o mar e que terminaria de modo abrupto, interrompendo um movimento de marés. Uma vez no mar, pode-se estar lá horas, navegando sem fim. Se não tiver nada de urgente para dizer, ficamos por aqui, como quem regressa à praia.

[gargalhada] Não, fique à vontade… Acho bom assim. Falei demais…

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010

 

Tatiana Salem Levy

02.10.22

Leio a Tatiana Salem Levy desde o primeiro romance. Ou seja, desde A Chave de Casa, editado em 2007 pela Cotovia. Tenho, por isso, uma relação antiga com as suas "palavras doídas". Recentemente, a escritora desafiou-me a falar com ela na Embaixada do Brasil em Lisboa. Um diálogo seria sempre mais estimulante, disse-me, do que uma exposição do autor sobre a sua obra. Aceitei. Porque gosto da Tatiana, porque gosto da sua escrita, porque isso me dava um bom pretexto para ler (reler), agora de um modo organizado, os seus três romances, imergir num certo tom, em dias seguidos. Foi como ver uma exposição retrospectiva, que nos conduz a um processo introspectivo, de um artista. Intervim longamente, fiz poucas perguntas, avisei mesmo que iria terminar as minhas frases com um ponto final. Que ficaria para a Tatiana a continuação do texto. O que a seguir podem ler, é o resumo desse encontro. 

 

Vou ler excertos dos livros. Uma frase apenas, do Dois Rios: "Eu, ao lado dela, uma enorme vontade de viver" (pág. 38, edição Tinta da China, 2012). É forte pensar que, na presença de uma pessoa, temos vontade de participar da vida, fazer planos, querer que o instante a seguir aconteça.

N' A Chave de Casa: "Conto (crio) essa história dos meus antepassados, essa história das imigrações e suas perdas, essa história da chave de casa, da esperança de retornar ao lugar de onde eles saíram... [...]. Conto (crio) essa história para dar algum sentido à imobilidade, para dar uma resposta ao mundo e, de alguma forma, a mim mesma..." (pág. 138) Aqui interessa-me especialmente a ideia de narrar e criar. Não são exactamente o mesmo, mas talvez os veja como gémeos. E todos os teus livros têm situações gemelares: irmãos gémeos, a mãe e o bebé na barriga, a relação da autora com as suas palavras. A criação como forma de dar resposta ao mundo é um bom tópico. E pronto.

Vamos às perguntas que não são perguntas. Vou começar por um outro livro, que não é nenhum desses três. É um livro que estou terminando agora. De não-ficção. Tem uns três anos que escrevo uma coluna para o Valor Econômico, um jornal no Brasil. Sobre livros. Posso falar sobre o que eu quiser desde que tenha um livro envolvido. Resolvi juntar parte dessas colunas e escrever outros textos, inéditos. Há em muitas crónica um tema comum. Uma espécie de apocalipse, de fim de mundo. Que é o sentimento generalizado, entre nós, seres humanos. Entre os brasileiros, ainda mais do que entre os portugueses. Por acaso, o título saiu da tua boca, sem querer, num jantar: "O mundo não vai acabar". Porquê? Ao mesmo tempo que o mundo está acabando, e que o mundo está sempre acabando, e nunca acaba, a literatura tem esse poder de criação de mundos. A narrativa cria os mundos. Quando digo "O mundo não vai acabar", estou dizendo que enquanto a gente puder escrever e, sobretudo, ler, haverá sempre mundos.

Qualquer escritor é, antes de mais nada, um leitor. Essa possibilidade de escrever sobre livros é como um prolongamento, uma reacção àquilo que me estimula. A Joana, personagem e narradora de Dois Rios, que diz a frase que tu disseste mas que já esqueci...

 

Qualquer coisa como: ao pé dela tenho vontade de viver.

Algo assim. Não era "ao pé dela", porque esse é o português de Portugal.

 

Parêntesis: há um capítulo nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em que, repetidamente, se usa a expressão "ao pé dela". É uma coisa perversa, porque ela, a Eugênia, era coxa! É apelidada de Vénus Manca. Roberto Schwarz tem um ensaio em que denuncia o "festival de maldades" deste capítulo, pelo uso, no contexto desta personagem coxa, de palavras como botas, pés... Fecho o parêntesis. A tua frase: "Eu, ao lado dela, uma enorme vontade de viver."

A literatura para mim é isso. A Marie-Ange, personagem que aparece na vida da Joana e do Antônio, é esse Outro, é esse estranhamento que activa em mim a vontade de viver e a vontade de escrever. A própria leitura me dá essa vontade de escrever. Hoje estava terminando a leitura de um romance de uma japonesa. Por acaso sei o sobrenome, é Murakami, igual ao escritor, mas esqueci o primeiro nome. É um livro contemporâneo sobre o qual quero escrever também. Conta a história do tsunami que houve no Japão em 2011 e o logo após o tsunami. O personagem principal é um pescador. Ele, ela, descreve a catástrofe, e há coisa da beleza do fim do mundo, enquanto o mundo está acabando. Depois é o horror de o mundo ter acabado. Todos aqueles destroços... E os sobreviventes que, aos poucos, encontram uma possibilidade de continuar a viver. Há uma pessoa que encontra uma amante. Mas como? É exactamente isso: no momento mais terrível, de repente, brota uma necessidade de vida.

 

Essa necessidade de vida encontra-se na Chave. É uma sequência galopante, de passagem directa, capítulo a capítulo, do sexo para a morte, da morte para o sexo, do sexo para a morte. Tem que ver com a urgência de sobreviver. Eros e Tanatos. Aqui deixo meio ponto de interrogação, meio ponto final. [Risos]

A Chave de Casa é um livro que trabalha muito com esses extremos. Inclusive a personagem começa deitada na cama. Não consegue se mexer. É esse não conseguir sair do lugar, essa espécie de morte que está vivendo, que faz com que ela busque um sentido para aquilo. Tem o tempo todo essas contradições. A parte amorosa e mais sexual pode ter sido um dos motivos para a personagem estar paralisada na cama e é também o que a impulsionou para um outro lugar.

 

A questão do encontro com outro é muito importante, nos três livros. O que te interessa é a detonação que vem com isso, um não saber o que vem? Não sei nada de física nem de química, mas visualizo entes separados e uma alteração na matéria que resulta do encontro. Eles deixam de ser quem são e são alterados, transformados noutros, a partir do momento em que colidem.

É. Isso tem muito a ver com o modo como eu, Tatiana, vivo as coisas. Sou muito impulsionada pelo encontro. Seja com alguém, seja com um lugar, seja com um livro. Para mim, dificilmente uma coisa vem do nada, entendeu? Até as próprias histórias dos livros. É uma das maiores alegrias, quando uma coisa desperta em você e aquilo te dá... [faz suspiro de excitação]

 

Procuras ou deixas que te aconteça, que te invada o acidente?

Acho que é o acaso, mesmo. Mas claro que o acaso acontece mais se você se abrir mais. Não tem a ver com querer, né? O Dois Rios, para quem não leu: são duas partes, a primeira é narrada pela Joana, a segunda pelo Antônio, irmão gémeo da Joana. E, na verdade, é uma história ou outra. Ao mesmo tempo que elas se misturam, é uma ou outra, porque, ou a Marie-Ange vai para o Brasil e conhece a Joana e transforma a vida da Joana; ou ela fica na França, conhece o Antônio e transforma a vida do Antônio. No Paraíso [Tinta da China, 2016], também. Toda aquela história é porque ela sai um dia à noite, tem uma relação com um cara (isso eu posso falar porque está na primeira página), e depois ele diz para ela que tem Aids, que é seropositivo. Ela pensa: bom, se não tivesse saído de casa, se não tivesse ido àquela festa... Eu perco muito tempo na minha vida com isso. Tenho muitas insónias pensando no se, se, se. É um pouco difícil ser assim, mas...

 

Estas personagens, estes enredos... no fundo, de onde surgiram estes livros?

A Chave de Casa é o mais autobiográfico. Desde criança ouvia a história da minha família, que tinha sido expulsa de Portugal na época da Inquisição, tinha ido para a Turquia e depois para o Brasil. E tinha transmitido de geração em geração a chave da casa em Portugal, de onde tinham sido expulsos. Aquilo povoou o meu imaginário. Eu achava muito forte como é que tantos séculos depois ainda havia aquela chave. O que seria poder voltar a um lugar que, na realidade, já não existia há muito tempo?

Eu escrevia contos. Um dia pensei que essa história dava um romance. Daí começou. Foi mudando muito ao longo da própria escrita. A chave de casa de Portugal virou a chave de casa da Turquia. Primeiro tinha a ideia de fazer um romance mais histórico. Mas a ideia do romance histórico não cabia no meu jeito de escrever. Trabalho muito com os vazios, silêncios.

 

E isto com 20 e poucos anos. Eras uma menina.

É. Mas com 20 e poucos anos muita gente já tinha feito muitas coisas. [riso]

 

Alexandre, o Grande, até tinha conquistado o mundo todo. [risos]

Para ser bem sincera, a ideia para este romance também surgiu de um trabalho pessoal, de psicanálise, que tinha a ver com o facto de eu me sentir meio paralisada. Queria problematizar as emigrações da família, de eu ter nascido no exílio (dos meus pais, em Portugal), as viagens (minhas e da minha família), e aquele corpo parado, em oposição. Ao mesmo tempo que escrevia o livro pensava que o sentido da paralisia desse corpo não era, simplesmente, resultado de ela carregar a dor do passado (da expulsão, do exílio). Talvez a dor não fosse só do passado, mas uma dor dela mesma. Surgiram as outras histórias. A história da morte da mãe, a da relação mais violenta com aquele cara...

 

A Chave constitui a tua tese de doutoramento, feita na PUC-Rio. Recentemente estivemos com uma professora que integrou o teu júri (a banca, como se diz lá), Ana Kiffer. Comentámos como tinha sido um exercício audaz e tão bem conseguido fazer de um romance um trabalho académico. Foi importante o facto de o romance ter sido bem acolhido, traduzido; o The Independent, há uns dois anos, falou de ti como uma das vozes mais fulgurantes da literatura brasileira.

Eu estava escrevendo o romance e estava escrevendo a tese. Tese e romance dialogavam. Na tese, trabalhava com a questão do corpo. A minha orientadora, lá pelas tantas, uma senhora curva, cabelo branco... Se víssemos uma foto de todo o corpo docente da PUC-Rio e falassem assim: "Adivinhem qual dessas professoras falou para a sua orientanda fazer uma tese como um romance..."... Ela seria a última pessoa que você diria, mas foi a primeira. Insistiu para que eu defendesse o romance como tese. Achava que eu estava mais engajada com o romance do que com a tese. E achava que era importante para a universidade colocar o romance como uma produção de conhecimento. A PUC estava abrindo um curso de formação de escritores. Usou-me como cobaia!

 

Bela aposta.  

Sofri, sofri na banca, sofri. Houve de tudo.

 

O Dois Rios e o Paraíso, vêm de onde?

Dois Rios vem de um encontro com dois lugares. De uma viagem que fiz para a Córsega. E logo depois para Dois Rios, um vilarejo na Ilha Grande [Angra dos Reis]. Pensei: quero escrever sobre esses lugares. Depois pensei: quero escrever sobre um encontro que transforma os personagens. Esses lugares têm uma coisa em comum, são duas ilhas. A ideia de ilha, para mim, tem muita a ver com a ideia de literatura.

 

Porquê?

É a possibilidade de você estar num espaço fora, num tempo fora. Tem uma certa suspensão do tempo e do espaço. Na altura li muitos livros sobre mar, ilhas. Gosto de ler textos que tenham a ver com o que estou escrevendo. Li o Quarteto de Alexandria do Lawrence Durrell. Tem um momento  em que um dos personagens vai receber convidados em casa; o narrador diz que ele desliga todos os relógios da casa porque é um hábito da região: parar a contagem das horas quando se recebe alguém. É muito bonito. Para mim, escrever e ler é isso. É parar a contagem das horas. Eu queria escrever um livro que estivesse neste ritmo, de suspensão do tempo e do espaço.

 

Do Paraíso, leio este excerto "Mas, se por um lado, não acreditava no poder da profecia, por outro, acreditava no poder da palavra. Achava que a partir do momento em que as mulheres tomavam conhecimento da maldição, ela ganhava terreno para se concretizar. Não tinha nada a ver com Deus nem com poderes místicos. Tinha a ver com o medo que a história poderia produzir na mente de cada mulher." (pág. 138) O que me interessa é o poder da palavra, a palavra como signo primordial de ligação com o outro, com o mundo. No princípio era o verbo.

Na verdade, um romance vem de vários lugares. Em primeiro lugar, veio de uma história que ouvi, de uma amiga, que dizia que na família existia uma maldição. É a maldição que está no livro. De uma escrava que era rainha em sua tribo. A sinhá tinha-a enterrado viva, e antes de ser enterrada, tinha amaldiçoado as mulheres da família: a serem infelizes no amor durante cinco ou seis gerações. Peguei essa história para mim com autorização dela. Tem a ver com o que eu escrevo, essa ideia da herança que se passa. Uma herança não material mas narrativa. O que é receber uma chave do século XVI? O que é receber uma maldição de uma escrava numa fazenda de café? De novo, comecei a fazer um romance histórico. Não deu certo, abandonei. Fui fazer outro romance, que tenho pela metade e que gostaria de terminar.

Gosto, quando posso, de me retirar para escrever. Aquele cliché do escritor?, gosto de cumprir, de ficar sozinha em algum lugar mais isolado, fora da cidade grande. Funciona, comigo. Quando estava nesse lugar, surgiu a vontade de escrever este livro. Eu, sozinha, muito medrosa, numa casa de campo, começo a pensar nos fantasmas, a conversar com eles. Lá veio o fantasma da escrava. Parei o livro que estava escrevendo e comecei a escrever o Paraíso.

 

Falas com fantasmas no Paraíso, falas com mortos na Chave, falas sobretudo contigo mesmo em todos eles, não é? Estas vozes não são senão uma forma de diálogo contigo mesma, de compreensão do mundo.

Sim. Acho que comigo e com os fantasmas. No Dois Rios também aparece essa questão: na Córsega, o quarto mais bonito da casa, é o quarto dos mortos. Tenho um certo fascínio por essa conversa com os mortos. Com o que veio antes. Tem a ver com a memória.

 

E com raiz e identidade. Voltemos à leitura: "Essa herança dói. O que trago comigo sem escolha dói. Essa nossa conversa, mãe, também dói. [...] Dói escrever esta história: cada nova palavra que encontro dói. Escrever, mãe, dói imensamente: dói tanto quanto é necessário." (pág. 152, da Chave)

O mal é ser necessário. Para algumas pessoas talvez não seja, talvez seja mais fácil. As coisas não têm um sentido em si. Escrever é construir um sentido. O diálogo com o passado é uma tentativa de criar um sentido para o presente. De alguma forma, acabo passando pelo passado do Brasil (a escravatura, as fazendas de café, a ditadura). São rastos da História. Como nunca consigo fazer o tal romance histórico, a História vai aparecendo nos seus vestígios, na vida dos personagens.

 

Agora vives em Portugal (há quatro anos). Agora foste mãe. O que é que estas duas explosões (mudar de país, cultura, continente; e a outra, talvez a rebentação maior, que é ter um filho) provocam em ti? Enquanto escritora. Enquanto pessoa, acho que conseguimos imaginar. Se falas da força do encontro para suscitar novas criações, é interessante pensar como a seguir escreves. Porque és outra. Ou não?

Sim, com certeza. Portugal: é mais difícil responder, porque ainda não consegui descobrir no que é que viver aqui me transformou. Tirando uma questão de vocabulário, porque chega uma hora em que você já não sabe mais o que é de lá e o que é daqui, vai misturando...

 

Ao pé.

Ao pé. Paraíso foi escrito inteiramente aqui e nele já aparece esta questão do vocabulário. Não sei como é que Portugal me mudou. É uma pergunta que me coloco, mas não tenho resposta. Não quer dizer que eu vá ficar aqui para sempre, mas não tenho data para voltar. Não é como na França, em que vivia com uma bolsa, sabia que ia ficar lá aquele tempo e depois voltar. Eu já era próxima da cultura portuguesa, da literatura portuguesa há um bom tempo. Já vinha muito a Portugal. Não tive tanto a coisa do estranhamento. A língua ajuda, dá sempre uma familiaridade.

 

Em relação ao Vicente, o teu bebé...

Tenho escrito menos por causa do Vicente. [Ter um filho] traz uma espécie de paciência, de calma, que pode ser boa para a escrita. E um impulso, também. Porque me obriga a estar muito viva. Ser mãe obriga a descobrir coisas o tempo todo. Ele vai descobrindo, você vai descobrindo com ele. Acabo entrando num monte de clichés sobre a maternidade, mas que fazem sentido. É um novo gás. Me dá uma vontade muito grande de trabalhar. Ao mesmo tempo, a gente se dá tanto para aquele ser (uma doação física, de estar grávida, amamentar, etc.) que chega uma hora em que bate uma necessidade de ter um espaço próprio. Preciso do meu espaço. Descolar. Escrever. Não perder a minha subjectividade. E é um impulso que vem da própria maternidade: querer não ser mãe, querer continuar a ser uma pessoa inteira. Tenho muitas coisas para aprender. Estava acostumada a ter horas muito compridas para escrever. De repente, as horas já não são tão compridas.   

 

Pode dizer-se que escreves com o corpo? Há escritores que são mais cerebrais no gesto da escrita. Há outros em que a escrita vem da fractura, da víscera, da cicatriz. Há uma dimensão física forte em todos os romances. A relação fusional com o irmão gémeo, ou com a mãe, ou a própria relação sexual são expressão disso. Nesse instante, parece que os sujeitos perdem a sua individualidade e passam a existir num uno. Não sabia que a tese de doutoramento (a começada) era sobre o corpo, mas faz-me todo o sentido. Por outro lado, o verbo, a palavra, é um sopro, uma coisa não tangível, mesmo que venha de um lugar tangível, a carne.

Escrever para mim é um processo muito físico. Tanto imageticamente como a forma como vivo a escrita. Sou dominada por aquilo, é uma coisa que vive no meu corpo. E a escrita é difícil fisicamente. São muitos osteopatas! [risos] Tudo em mim acontece no corpo. O que não consigo falar com as palavras, aparece, dito, no meu corpo.

 

O que não consegues dizer que com as palavras...? Parece um contra-senso.

Primeiro aparece no corpo. Depois vou procurando as palavras para dizer o que o corpo está dizendo.

 

São dois níveis de conhecimento. Um que é mais inconsciente, que se exprime no corpo, e outro, que procura as palavras para essas coisas. É uma forma de compreender o que está a ser dito numa linguagem ainda não decifrada.

Ou [é uma forma] de criar. Hum. Não sei o que corpo está dizendo, vou em busca das palavras, mas na verdade essa buscar é uma invenção! Vão caminhando juntas.

 

Nos livros, o lugar do desastre, a importância do desastre na vidas das personagens, não é pequena. Outro lugar importante: o gemelar, como lhe chamei, aqueles onde existe uma relação simbiótica - e aí não há desastre, ao contrário das relações cá fora.

Em algum momento, essas relações são plenas.

 

Ainda sobre a imagem que há pouco usaste, da ilha: escrever está no interior da ilha ou no litoral?

É esquisito o que vou falar agora: já aconteceu estar num enterro, sofrer com aquilo, e pensar: vai ser bonito, vai ser bom escrever sobre isso. É como se estivesse me aproveitando, né? Esquisito. Mas isto traduz a sensação de estar completamente dentro de uma coisa e ao mesmo tempo saindo dela. Isto é uma tentativa de chegar no indizível. E é a contradição da literatura: você vai encontrar palavras que vão dizer aquilo que você não conseguiria dizer. Tem a ver com o possível. A palavra é a possibilidade de algo que não é possível. Não sei se fui clara...

 

Isso é imbricado mesmo. Não há outro jeito de falar do indizível. É importante teres dito que tens a força que vem do centro da Terra, da ilha, e ao mesmo há qualquer coisa que te atira para fora, para o leitor, para a escrita, para o dizível - e isso é o litoral. A borda. Falemos de outra coisa: quem são os protagonistas das tuas histórias? Poderíamos responder instintivamente que são mulheres. Mas os homens têm um peso grande. Por exemplo, no Paraíso, o encontro com um homem recluso, no sítio onde a protagonista se refugia, acaba por secundarizar a trama inicial, e inclusive a herança histórica, da escrava enterrada viva.

Então. Eu estava nesse sítio. Ouvi falar de um artista que supostamente estaria morando ali. Mas o artista nunca estava ali. A casa era no meio da mata. Eu passava por ali, ficava olhando, imaginando: quem seria essa pessoa?, que trabalho estaria fazendo? Tinha criado a casa, ele mesmo. A ausência dele fez com que eu imaginasse ele. Aos poucos, foi surgindo justamente por não estar.

Todo o escritor tem as suas obsessões. Todo o escritor se repete. Essa repetição tem a ver com a obsessão - que é o que nos leva a escrever. Tem uma obsessão minha quer vai aparecendo: daquilo que não é dito mas vai passando, de alguma forma, de geração em geração. Todo o mundo tem silêncios na sua família. Como é que os silêncios vão passando? No Paraíso, o avô desse artista tem a ilusão de que, não falando, não passaria a história. O horror terminaria ali. Só que o silêncio também traz a palavra. O silêncio também transmite o horror vivido anteriormente. Por isso é que o Daniel está a tentar reelaborar isso. Tem umas coisas de umas cartas do avô, não tem?

 

Umas cartas do avô?

Esqueço tudo. Mas lembro de umas cartas. A família materna do meu pai era de judeus italianos. Ficaram escondidos durante a guerra. Chegaram a mandar umas cartas para o meu avô, pedindo ajuda, falando que estavam passando fome. A certa altura, pedi essas cartas para o meu pai. Queria usá-las. Quando estava escrevendo esse livro e veio o personagem do Daniel, me lembrei dessas cartas. Fui para o Brasil umas duas vezes e não encontrei essas cartas por nada. Aí a obsessão aumentou. Pensei: agora tenho de escrever, inventar as cartas.  

 

Como é que te esqueces de tudo?, como é que não lembras o que escreveste?

Primeiro ano de maternidade, a gente não lembra de nada! [gargalhada]

 

É preciso esquecer. Para dar espaço para o novo. Ouvindo-te, folheava o livro e dei de caras com uma palavra central de que falámos pouco: o medo. As pessoas estão tolhidas pelo medo. Na Chave, então, está imobilizada pelo medo. O medo de não ser amada, de ser abandonada, da morte. De onde vem tanto medo?

Não sei. Acho que é meu.  

 

Talvez não seja só teu. É nosso, constitutivo de quem somos.  

Ao mesmo tempo que o medo paralisa, o medo também faz com que as coisas aconteçam. A personagem de Paraíso refugia-se para escrever porque tem medo de um resultado [de um exame]. A Joana, de Dois Rios, está paralisada pelo medo, pela culpa.

 

Culpa: vamos deixar essa palavra de fora! Senão ficamos enterradas nela. Disseste que um escritor é antes de mais um leitor. E estás a organizar um livro em que surge a leitora. Passaste anos a ler de forma sistemática, dirigida, a pensar no trabalho académico. Como é que lês agora?

Há três anos que tenho essa coluna no Valor sobre livros. Tenho de novo a obrigação de ler sublinhando, anotando.

 

Sabes ler de outra maneira?

Sei. Quando decidi sair da universidade (depois do doutorado ainda fiz um pós-doutorado), pensei que seria bom poder ler sem lápis. Durante um bom tempo li assim. Perdia frases... Mas há um certo prazer nisso, em esquecer a frase. São duas experiências de leitura: com lápis ou sem lápis.

 

Achas péssimo que eu escreva a caneta sobre os teus livros?

Não! E adoro ler livros emprestados.

 

Não é desrespeito, é apropriação. E escrevo com o que tenho à mão.

Entendo. Eu anoto com caneta quando não tenho lápis à mão.

 

Para terminar, lê um pouco.

Primeira página.

 

Os teus arranques são muito fortes.

O livro preferido dos leitores nunca é o livro preferido dos autores. [Pega em Dois Rios] "Foi a Marie-Ange que me salvou. Se é que isso existe, a salvação. Antes do nosso encontro, eu estava presa a casa e a tudo o que ela encerra. A umidade, o mofo, as fotografias desbotadas, a loucura da minha mãe e o silêncio."

 

 

Publicado originalmente na revista Ler na Primavera de 2017. 

 

Moreno Veloso

02.10.22

Moreno Veloso nasceu na Bahia em 1972. Tem, evidentemente, um jeito baiano de ser. É um físico atómico que sabe sambar, que samba maravilhosamente. É tentador pensar que a Física era um modo de escapar da sombra “maçante” (como repete) de ser o filho de Caetano Veloso, de levar com o rótulo. Ele nega. Esteve em Portugal a apresentar o disco Coisa Boa, deu show, deu entrevistas, deu-se. Cheio de graça.

Há qualquer coisa em Moreno, na sua presença.

Se estava cansado, não parecia. Estava cansado e não transparecia. Viajara durante a noite, começara a maratona de entrevistas de promoção. Esta foi a quarta. Uma ilha de uma hora e meia em que deu para ir à Bahia e voltar. A maratona: “A gente aprende”. Aprende a chegar ao Japão, lá do outro lado do Brasil, chegar e seguir directo para uma livraria, cantar como se não fosse nada, como se o fuso fosse o mesmo, as pessoas em roda, atentas. A gente aprende a ser artista.

Claro que já nasceu artista. Culpa da Santa Cecília, do seu 22 de Novembro. Favor não repetir que filho de peixe sabe nadar. Prato riscado. Aprendeu até, e facilmente, a tocar prato e faca. Aprendeu muito em casa, é certo. Mas aprendeu muito com a sua turma, de que fala a cada som, como quem fala de uma família alargada. E aprendeu por se ouvir, a si, como quem se ouve numa sala vazia e encontra o seu idioma.

Moreno Veloso: talento espalhado por aí. Por exemplo no projecto +2, na Orquestra Imperial, nos discos que produz, na escrita de canções. Agora no Coisa Boa.

Esta semana, em Lisboa, foi esse aí. Deixou ver como é a educação de um príncipe.

  

Na capa do Coisa Boa, há uma praia, uma luz rosa incrivelmente linda. Não vou começar pelo menino que está sozinho na areia, mas pelo menino que você foi. O menino que foi na Baía.

Mas somos o mesmo. Eu sou esse menino, aí.

 

Na fotografia está sentado na balaustrada, entre amigos, a olhar a praia e esse menino.

Exactamente. Aprendi a nadar nesse mar, nessa água que está na capa do disco. Nadando do colo da minha mãe para o colo do meu pai, do colo do meu pai para o colo da minha mãe. Eles dentro de água, afastando-se cada vez mais, até eu aprender. Era muito pequeno.

A primeira infância foi na Bahia. Foi onde aprendi a andar, a falar, a nadar, e creio que a cantar. Me lembro de meu pai me ensinando “Só vendo que beleza”, aquela canção que gravei no Máquina de Escrever Música [2000]. Uma canção da década de 40, eu acho.

 

Como é que é?

[canta] “Eu tenho uma casinha... fica na beira da praia...” Foi a primeira música que aprendi a cantar, inteira. Meus pais fizeram até uma gravação, depois perderam-na. Eu com três anos de idade.

 

Cronologicamente, a arrumação é qual?

Sou baiano de pai e mãe e nascimento. Até aos três anos e pouco, vivi na Bahia. Nasci logo que meus pais voltaram do exílio, em Londres. Eles se casaram e foram viver em São Paulo. Meu pai foi preso em São Paulo, depois foi forçado a viver em Salvador numa espécie de prisão domiciliária, depois foi exilado. Quando puderam voltar ao Brasil, voltaram a viver em Salvador.

 

Depois desses anos de infância, só em 2010 viveu na Bahia por um período prolongado? Então mudou-se porque a sua mulher tinha um trabalho lá.

É. Mas quando tinha 18 ou 19 anos, fiz uma tentativa de viver na Bahia. Sozinho. Fiquei uns meses, uns quatro.

 

O que é que procurava?

Já estava estudando Física. A Universidade Federal da Bahia (o campus onde tinha Física) era defronte da casa da minha mãe. Achei que ia ser uma coisa fácil, mas não foi. Não tinha ninguém comigo. Embora tivesse a casa, como infra-estrutura, não tinha muito mais do que isso. Passei lá uns meses e foi marcante. Foi conhecer, reconhecer a Baía fora do período tão específico em que tem as festas, a festa do 2 de Fevereiro, o Carnaval. No resto do ano chove muito. É uma cidade totalmente diferente daquela que se conhece no Verão. Adorei ficar na chuvinha.

 

Estou a perguntar pelas suas raízes quando pergunto pela Bahia e pelo menino que foi. Estou a tentar perceber como é que o ser baiano marcou a sua vida, a sua aprendizagem.

Quando fomos viver para o Rio, o meu ambiente familiar, completamente baiano, era muito distinto das outras casas que eu conhecia. Das casas de colegas como o Pedro Sá [músico, co-produtor do disco], o Carlos Artur (que tirou a foto da capa deste disco). São colegas do tempo do colégio, da mesma sala. Domenico [Lancellotti], também. A comida, completamente diferente. As pessoas, o jeito das pessoas, as reacções.

 

Como é que é ser baiano em casa, no Rio ou em qualquer lugar?

É um ritmo. Tem uma culinária específica, um gosto, um modo de preparar que é meio africanizado. Talvez mais africanizado que no resto do país. Com elementos europeus, também.

A família do Pedro Sá é carioca. O pai era macrobiótico. O Gilberto Gil também era macrobiótico. Mas o sentar-se à mesa na casa do Gilberto Gil, que morava no Rio, naquela altura, e o sentar-se à mesa na casa dos pais do Pedro Sá, eram universos distintos.

 

Tudo se passava à volta da mesa?

Na Baía, a mesa é um lugar de encontro. É a hora em que a família inteira se encara, se olha. As pessoas vão conversar, trazer as notícias à tona. Para as crianças é até uma imposição. Tem que vir para a mesa, não pode trazer revistinha, não pode estar ouvindo música – para estar livre para a interacção. Se estiver a ver televisão enquanto come, não consegue interagir com as outras pessoas.

 

Tinha a noção, enquanto criança, de que era ouvido como um igual? Ou existia um grande desnível entre adultos e crianças?

Acho que havia uma distinção. Conversas de adultos, festas de adultos, eram coisa separada de brincadeira de criança. Mas tinha hora marcada em que tudo isso tinha que se juntar. Todos os dias. Ouvi uns amigos de Minas Gerais dizendo que lá as crianças nem sentavam à mesa com os adultos.

 

Em Portugal, agora nem tanto, mas houve um tempo em que, dependendo da classe social, as crianças comiam à mesa com os adultos só a partir de determinada idade. Depois do exame da quarta classe, ou quando sabiam comportar-se.

Na Baía não é uma questão de classe social. Nas diversas famílias que conheci, e que são de classes diferentes, nunca vi essa diferença. Me lembro de Chico Buarque falando. Aliás, estava lendo o livro novo dele.

 

O Irmão Alemão. Está gostando?

Estava me divertindo tanto! Nossa, como eu gosto desse homem. Me lembro do Chico Buarque falando que a primeira vez que ele falou com o pai dele, foi uma entrevista formal, quando fez 14 anos. Antes disso, não, porque o pai não falava com criança. Era o Sérgio Buarque de Holanda.

Eu ouvia o Chico falar isso e ficava assustado. Meu pai ficava assustado. Meus Deus, como é que pode? Mas nenhum de nós era filho do Sérgio Buarque de Holanda.

 

Olha quem fala. Você é filho do Caetano Veloso.

Mas é uma outra vida. A minha primeira namorada foi a filha mas nova do Chico Buarque. Convivi dentro daquela casa durante muitos anos. Ele ainda casado com a Marieta [Severo], vivendo com as três filhas. Era totalmente diferente [da relação do Chico com o pai dele]. Parecia a estrutura lá de casa. Todos os dias tinha um encontro na mesa.

 

Falavam de música?

Na mesa se fala de tudo. Fora da mesa era mais difícil a interacção. Talvez por problemas astrológicos. [riso]

 

Astrológicos? Como assim?

Os geminianos são difíceis de capturar. A gente não entende direito onde é que eles estão.

 

Quem é que é geminiano, ou Gémeos, como aqui dizemos?

A Maria Bethânia, o Chico Buarque, o João Gilberto, o Pedro Sá, o Davi Moraes. São pessoas difíceis. Onde é que eles estão, cadê? Tenta pegar e são feitos de vento.

 

Voltando ao ritmo. Pode descrever o que é o ritmo do baiano?

Há um ritmo que é mais tranquilo. Na intenção de se pronunciar. No tempo de ouvir. Essa tranquilidade é marcada por um despojamento alegre. Ouve-se muita risada na rua. No Rio de Janeiro, é quase impossível. Em Minas Gerais, se ouvir uma risada pode jogar na lotaria. Isso tudo faz parte do ritmo e se ouve no ritmo musical. Se sente essa alegria na dança, nas festas. Sim, é um povo muito festeiro – porque há espaço para a alegria.

 

E os de fora?

Conheço gente que chega lá e fica angustiada. “A pessoa demora muito para falar. Fico cheio de paranóias esperando. Não aguento no supermercado porque o caixa demora uma hora para registrar os produtos...” Sou o contrário, adoro tudo isso. Engraçado, a primeira vez que fui a África, no país do Mali, cheguei de madrugada, cidade dormindo. Fiquei hospedado na casa de uns músicos malienses. Quando acordei, ouvi muita gente dando risada, e um cheiro de uma comida... Fiquei uns minutos pensando: em que lugar da Baía é que estou? Será que acordei num terreiro de candomblé que não é o Gantois? Senti que há realmente uma ligação ancestral com aquele jeito, com aquele espaço de festejo.

 

Falando tanto da Baía, ainda não falou de Dorival Caymmi nem de João Gilberto. Há o modo como esse vagar, essa alegria, essa atitude são traduzidos em música.

O Brasil, com todas as suas influências, a japonesa, holandesa, italiana, alemã... Tem vilarejos no Rio Grande do Sul onde falam alemão, e o português é uma terceira língua! Nesses vilarejos, ouvem música o tempo todo. Ou seja, com todas as influências, o Brasil é um país extremamente musical. Em qualquer canto, o Maranhão, o Pará, Amazónia, encontra gente ouvindo música, cantarolando, tocando, assistindo.

Na Baía tem essa ligação forte com África. O tambor que bate na África mexe com o corpo da pessoa, mexe com o coração da pessoa, explicitamente. Ele está contando uma história para o seu coração. Não é simplesmente um som batucando sobre o qual pode dançar. É uma coisa mais profunda. Em África o tambor foi feito para conversar com o seu espírito.

 

Como se fosse uma reverberação subterrânea?

Uma reverberação subterrânea que existe. Não é uma invenção. A pulsação, os ritmos corporais, os fluxos, todos esses ritmos tendem a se acoplar e a imitar os ritmos externos que estão chegando, e os internos tendem a se acoplar com os externos. Há uma modificação mútua.

 

Essa descrição parece de uma cena tribal.

É, estou evocando uma cena tribal para dizer o quão profundo é. Essa herança de cultura africana se desenvolveu imensamente, no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Bahia, de maneiras diferentes, dando no tal de samba. O samba, o ritmo mais brasileiro, na verdade, é um tradução de coisas africanas. A palavra samba tem nos Andes, na Jamaica, em todo o lugar onde teve diáspora negra. A palavra “semba” é muito próxima. É um ritmo angolano, uma roda, umbigo. No interior da Bahia tem o samba de roda. No norte chamam de umbigada.

 

Umbigada?

Tem uma roda, as pessoas estão batendo palmas, cantando e tocando qualquer instrumento, e no meio da roda entra uma pessoa para dançar. Dança, dança, dança, depois dá uma umbigada – encosta a barriga na barriga de alguém, e esse alguém vai ter que ir para a roda dançar no lugar da pessoa que estava dançando. E assim vai, de umbigada em umbigada, todo o mundo participando. Vi muito isso acontecer na casa, no quintal de minha avó [Dona Canô]. Isso é formação da minha vida, da minha infância.

 

Estava a ouvi-lo e a pensar no seu tio Rodrigo, que dança como quem levita.

Dança incrivelmente, não é? Como é bom a gente ter um tio desses!

 

Há uma cena do filme do seu pai, Cinema Falado (1986), em que Rodrigo dança no quintal, com senhoras tocando prato, e ele faz esse movimento, a umbigada. O excerto está no Youtube.

Essa roda foi onde aprendi a tocar prato e faca. Pretendo, não sei se vou conseguir, tocar no show [dia 8, Lisboa; entrevista do dia 6]. Trouxe prato para tocar.

 

Não pode ser um prato qualquer?

Até pode. Mas é melhor que seja um prato já usado. Vai gastar um pouco.

 

O som é diferente, imagino.

Cada prato tem um som. Tem uns de que gosto mais. Escolhi uns pratos da casa da minha mãe. Já quebrei vários. Sobraram alguns.

 

É um bom presente para lhe dar: um prato de Lisboa.

A porcelana portuguesa é muito boa e elaborada.

 

E cara.

Pena. Porque vou passar a faca por cima! Bom. Vou olhar no meu prato, ver se é português, mas acho que é feito em Minas Gerais. Aprendi a tocar prato no quintal da minha avó, vendo as mulheres tocando.

 

A sua avó tocava?

Tocava. A irmã de Nicinha, Dona Edith, era a que tocava melhor. Tinha um ritmo no pulso, um negócio diferenciado. Todo o mundo tocava meio assim, tocando.

 

Dona Edith do Prato? É conhecida. E Nicinha?

Nicinha é uma tia emprestada. Era a mais velha de todos os irmãos. Foi a minha bisavó, mãe do meu avô que pegou a menina, que estava doente. Sarampo, muito brabo. Estava morrendo. Os vizinhos não sabiam que fazer. A minha bisavó era parteira, as duas eram. E conheciam alguma coisa de Medicina. Levou a menina para casa e ficou tratando, meses e meses. Quando ficou boa, criou-se uma situação familiar, a menina ficou vivendo com meus avós. As irmãs dela viviam defronte.

 

Há uma coisa engraçada que vem daí: a ideia de casas cheias. Uma noção de família muito alargada, e de pertença que não passa exclusivamente pelo sangue. Isso é muito marcante na sua formação?

Com certeza. Quando falo da minha sensação de família e de casa, lembro da Bahia, de Santo Amaro. A casa é uma casa cheia de gente. Uma casa com uma pessoa só, para mim, é inconcebível. Nem dentro de um iglu! O esquimó vai ficar sozinho? Um eremita? Tudo bem, o cara vai meditar numa caverna do Himalaia. Mas em casa?, sozinho, não! Casa tem que ter uma porção de gente dentro.

 

Isso levanta problemas sérios. De a pessoa encontrar o seu espaço e identidade nessa casa com uma porção de gente dentro.

Aí entra o espaço interno de cada um. A pessoa tem que abrir um espaço dentro de si onde vai encontrar sua identidade, onde vai se afirmar, onde vai saber quem ela é. Essa delimitação interna é mais profunda e pessoal do que a externa. É a pessoa que está se formando [nesta delimitação], e não uma pessoa que está sendo esperada ou imaginada ou moldada à força.

Sempre adorei casas cheias. Meus pais, também. A casa deles vive cheia, a minha, também.

 

Vai replicando o “cabe sempre mais um”?

Cabe sempre mais um. Com as suas peculiaridades, a ideia da casa cheia vai-se replicando mesmo. Parte da família da minha mulher é da Bahia; casa enorme, família enorme, uns 80 primos.

 

Quando esteve uns meses sozinho na Baía, foi uma contingência, foi para estudar. Mas não havia, então, uma necessidade de encontrar esse espaço interior?

Um pouco. Não estava procurando, mas talvez tenha encontrado isso. Talvez tenha encontrado um pouco do Himalaia, do espaço ermitão. Aconteceu. Eu queria estar junto da Bahia, da família de lá, dos amigos de lá.

 

A Física era também uma maneira de construir o seu iglu?

Não sei. A Física é bastante eremita. Tinha facilidade na escola para a matemática, as ciências em geral. Facilidade que contrastava muito com a dificuldade dos meus colegas. Eu vendo que eles achavam aquilo (que eu achava tão fácil e excitante) maçante e dificílimo.

 

Excitantíssimo.

Não é? [gargalhada] Veja você. Aquilo me deixava ainda com mais vontade de seguir mais adiante. Aquela excitação era, no ambiente em que eu vivia, até rara. Tenho colegas da minha sala do colégio que foram fazer Física comigo: dois. Mais tarde, três. Num colégio com 700 alunos, três é pouca gente...

Estudar Física tem uma característica solitária, mas não era isso que eu estava buscando. O que eu estava buscando era a natural excitação em relação às ciências matemáticas. Encontrei bastante, cheguei nos meus limites e parei.

 

Conte mais disso. De certeza que a opção pela Física não tem que ver com o facto de o seu pai ser quem é? É uma certa recusa da música?

Você não acredita. Ninguém ia para o científico! Até minha mãe, que tinha facilidade para matemática, foi estudar letras, aprender latim.

 

Excitantíssimo (agora falando sério).

Também acho. Adoro línguas. Não estudei latim, ficou faltando no meu repertório. Mas estudei grego, russo, italiano (uma das línguas mais bonitas do mundo), japonês. Só que a minha propulsão mais forte era para as ciências ditas exactas. Quando as estudamos mais, têm muito pouco de exacto. [O estudo da Física] é só a explicitação de que não se conhece nada, que quase nada pode se dizer sobre a Natureza. O pouco que se pode, com muita dificuldade se aproxima da realidade. Dentro destas dificuldades, as pessoas se engalfinham para tentar alcançar alguma luzinha. Cada uma dessas luzinhas acaba por dissolver ainda mais a certeza que se tinha.

Mas em todo o período em que estive na Física dei aula de música para adolescentes.

 

Ensinando o quê?

Ensinando um pouco de canto coral, ritmos, um pouquinho de instrumentos de percussão. Era base de musicalização, não era nenhum instrumento específico.

 

A sua aprendizagem, além desse ambiente que já descreveu, foi acompanhada de aulas?

Tive aulas com professores muito importantes. O Almir Chediak foi o meu primeiro professor de violão. Tornou-se um expoente no Brasil por ter publicado livros de música popular bem feitos, com muita devoção e delicadeza da parte dele. Eu tinha nove anos de idade e estudei com ele durante anos violão clássico. Já adolescente, fui estudar violoncelo com o David Chew, um inglês-alemão que vive no Brasil. Além do Jaquinho [Morelenbaum], que não foi meu professor, mas foi meu mentor.

 

Sempre com grande prazer, essa aprendizagem?

Estudar música não exactamente um grande prazer. É muito repetitivo, mecanicamente repetitivo. Demora muito para conseguir galgar pequenos degraus. É um estudo em que dói a carne, dói a paciência, dói a esperança. Tem uma hora em que acha que nunca vai conseguir se aproximar da música ou do instrumento, tamanha é a dificuldade. Claro que há gente com muito mais facilidade. Mas mesmo o Jaquinho, que obviamente tem uma facilidade enorme: o dedo dele sangra. Sangrou muito e de vez em quando sangra ainda.

 

Gilberto Gil, que toca violão genialmente, ensinou você?

Me inspirou muito, me excita até hoje. Tive a grande sorte de poder sentar na frente dele, ver tocando de perto, aprender directamente dos dedos dele algumas das suas músicas. Mas para chegar nesse estádio, já tinha passado por anos de repetição maçante.

Quando você não sabe tocar um instrumento e vê alguém tocando, a primeira sensação é romântica. Nossa, como aquilo é bonito! Emociona mesmo. Quando quer se aproximar, se esquece do romantismo. Quase que não gosta mais do instrumento quando finalmente aprende a tocar.

 

O que significa aprender a tocar?

Significa ganhar intimidade suficiente para não precisar mais de tanta repetição e exercício, e ao mesmo tempo liberdade para andar por caminhos mais pessoais. Aí vem uma gratificação sem preço. Aquele esforço todo valeu a pena, lá no final. Há que ter fé! No meio, até a fé falta.

 

Estava a dizer que deu aulas a adolescentes. E que a música esteve sempre lá, mesmo quando era físico.

É. Estava construindo meus primeiros estúdios de gravação, em parceria com o [músico e amigo da adolescência] Lucas Santtana. Comprando equipamentos, escolhendo, ligando, aprendendo a mexer. Desenhando estúdios, construindo paredes, literalmente, cuidando a acústica, os ângulos de cada parede, o material de cada parede. Eu e minha turma: a gente gosta de tocar, de aprender, gosta de música de todos os buracos do mundo, não só da música ocidental e contemporânea; mas também adora o processo de gravação, o som que têm os instrumentos, o som que tem o equipamento que grava.

 

Foi então um físico atómico que sabe sambar.

Viu? Não tinha muitos na faculdade, mas eu era um deles.

 

Quando é que percebeu que a sua vida era mesmo a música?

Desde que nasci. Nasci no dia de Santa Cecília [padroeira dos músicos]. Não tenho o que fazer! O Domenico me ligava: “Cara, pode fazer o que você quiser. Não tem por onde fugir.” Domenico dava aulas comigo. Debatemos essa questão. Eu voltava da faculdade, ele me esperando para dar aula. Mas nunca pensei em parar, fugir. Não é o nome do meu pai ou da minha tia [Maria Bethânia]. O problema é Santa Cecília, lá em Roma. [riso] Estive na igreja dela, no Trastevere. Vi a tumba.

 

Que é que fez? Pôs-lhe uma flor?

Não. Assisti à missa, super linda, cantada. A igreja se tornou clarissa, de monjas reclusas. Um coral fabuloso. O padre era o regente. O missal era uma partitura. Santa Cecília era uma moça de Roma. Ouvia os anjos cantando e tocando. Quem chegava perto, ouvia também.

 

Para encerrar o assunto: trabalhou cinco anos num laboratório. Não foram cinco meses. Quero dizer, a Física foi um assunto sério. Mas desistiu.

A ciência era muito demandante. Se dedicasse a minha vida inteira àquilo, já iria ficar exausto. A minha vida tinha muita coisa. Lancei o disco Máquina de Escrever Música nessa altura. Estava produzindo, tocando, cantando pelo mundo todo. Como é que ia continuar fazendo isso e trabalhar no laboratório de uma maneira honesta? Não dava mais. Fiquei com a música, que foi aquilo com que sempre fiquei. A música não é uma escolha, é uma continuação.

 

Fomos por caminhos e caminhos. Agora que vimos dar novamente a casa, à música, à Bahia, falemos da génese deste disco, que tem lugar nesse período de dois anos e meio que passou em Salvador, entre 2010 e 2012. O que é que percebeu de si e da música que queria fazer?

Percebi que gosto desse ritmo que tenho dentro de mim e que reencontrei estando na Baía. Que seria bom se conseguisse traduzir esse ritmo para o disco, para o trabalho que estava na iminência de se fazer. Acho que conseguimos isso, Pedro Sá e eu. Ficou uma sensação de espaço delicado, calmo, também com certa festa, certa graça.

 

Atravessado pela espiritualidade da Bahia ou não?

Bastante. Não sei se explicitamente. Qualquer espaço de pausa que haja, mesmo numa casa cheia, naturalmente traz uma reflexão que se pode dizer espiritual. Além de tradições espirituais explícitas, vindas de África. Isso, que é muito evidente na Bahia, talvez se encontre dentro desse disco. Para dar um exemplo. Há uma história de Dorival Caymmi que meu pai contava. Ele foi ter com Dorival na casa dele, uma casa de veraneio no Rio, numa praia longe. Meu pai entrou. E Dorival: “Caetano, vem cá, para te mostrar uma coisa nova que eu fiz”. “Será que é um quadro?”, meu pai pensou; porque ele pintava. Uma música? Foi andando pelo corredor, levando-o para um quarto onde estaria essa coisa nova. Era um quarto vazio, tinha uma poltrona, um ventiladorzinho no chão, nada na parede. Dorival falou: “Olha para isso. Me sento nessa poltrona e fico só pensando em coisa boa.”

 

Coisa Boa é o título do disco, letra do Domenico escrita numa van a caminho do hotel. Já contou em diferentes entrevistas que era uma música de ninar que cantava para os seus filhos, Rosa e José, adormecerem.

É. Mas a coisa boa de que o Dorival falava era o espaço reflexivo que chega até a ser espiritual. Em muitas tradições religiosas isso é o fundamental. O título do disco ficou ligado a essa história, mas não foi de propósito. Foi, sei lá, um acaso. Mais curioso é o facto de Máquina de Escrever Música ser um título dado pelo Tom Jobim.

 

Que história é essa?

Estava trazendo um computador para o Rio de Janeiro vindo dos Estados Unidos, chegando no aeroporto que hoje tem o nome dele. O fiscal da alfândega falou: “Que é essa caixa, maestro?” “É minha máquina de escrever.” “É um pouco grande para ser uma máquina de escrever, não acha?” Aí o Tom respondeu: “É porque é uma máquina de escrever música”.

 

Foi o título do seu primeiro disco, que foi o primeiro dos três que gravou com a banda +2. Era, então, Moreno +2, depois Domenico +2, depois Kassin +2.

O título do Coisa Boa está geminado com Caymmi, Máquina de Escrever Música com Tom Jobim. Olha só, é assim que a gente se sente no Brasil, nos braços do Tom Jobim, nos braços do Dorival Caymmi. E não só porque sou filho do meu pai, sobrinho da minha tia: é porque sou brasileiro.

 

Metaforicamente, ok. É bom chegar ao Brasil e aterrar no aeroporto António Carlos Jobim, a que todo o mundo continua a chamar Galeão. Aterramos nos braços dele.

São metáforas. Não me joguei nos braços do Tom Jobim. Conheci todos eles. “Oi, como vai?” Fiquei sentadinho. Era criança. Não tenho nenhuma história para contar que nem essas do meu pai.

 

Quando é que deixou de ser o filho do seu pai, no sentido em que deixou de ser apresentado como o filho do Caetano? Agora é você com identidade própria, percurso próprio.

Tem que perguntar a uma outra pessoa que esteja fora de mim. Para mim, as duas coisas sempre aconteceram. Sempre fui e sempre vou ser o filho do meu pai. E sempre fui eu, com a minha identidade.

 

É barra pesada, lidar com o rótulo, a curiosidade.

A única parte realmente maçante são os jornalistas, que me perguntam isso sucessivamente, desde que sou criança. A gente aprende a deixar para lá, a achar graça, até, a se virar – e se vira. As pessoas em geral: algumas têm curiosidade, outras não, descobrem a posteriori e acham engraçado.

 

Eu, que não queria fazer as perguntas a que sempre se responde numa maratona de entrevistas, acabei fazendo a mais constante de todas.

A priori, a curiosidade é boa. Inclusive na minha carreira. Tem curiosidade em saber o que é que o filho do Sérgio Buarque de Holanda está fazendo? “Pôxa, ele escreveu um livro”. Lê o livro e fica maravilhado. Dá graças a Deus porque teve a curiosidade de ver o que é que o filho daquele grande escritor estava escrevendo. [Chico] é um grande escritor também. Que livro bom, que livros bons.

Se a pessoa não está publicando nada, essa curiosidade é mais maçante. Não tem muito o que mostrar.

 

Voltemos ao disco. Na nota de intenções, usa as palavras “amparo” e “graça”, que sublinhei. É um tímido que está sempre com outros, que procura nos outros um amparo. É isso?

Usei essas palavras para dizer a minha relação com a banda +2, com os meus amigos mais íntimos que me ajudaram nesse primeiro processo de descobrir como cantar, como fazer show, como fazer disco. Quando digo que fui amparado por eles, não é só a ideia de ter sido carregado. Principalmente eles foram um espelho. É uma forma de ter a certeza do que você está fazendo porque a outra pessoa está te mostrando o que você está fazendo. Sem essa certeza, é muito difícil seguir em frente. O amparo é ter esse diálogo, franco, de amigo de escola. Será que isso ‘tá legal? Gosta, não gosta? O que é que você ouve? Isso ampara o artista que está nascendo.

 

E graça?

Meus amigos não só servem de espelho como têm em si a chama artística. São compositores de mão cheia, têm a força de cativar o público. Isso pega. O fogo pega. A graça pega. Dividir o palco com o Domenico e o Kassin? As pessoas querem ver. O Domenico anda na rua e chama a atenção. O Kassin nem se fala. Não é por serem bonitos ou feios ou estranhos: é porque têm graça. No sentido de terem alguma coisa que dá vontade de parar para olhar.

 

E a sua graça, o seu estilo, é qual?

Então. De alguma forma, você traz isso dentro de você, mas também vai sendo influenciado. O sorriso traz o sorriso, o choro traz o choro. Eu tinha qualquer coisa para mostrar que se sintonizava com aquilo que os meus amigos tinham. A sintonia também pode ser amparo e graça.

 

E a sua madrinha, Graça? Produziu com o seu pai o disco Recanto (2011). Têm uma relação forte.

Gal [Costa], minha madrinha. Maria da Graça. Não conheço gente jovem com esse nome. A mãe de Gal chamava ela de Gracinha. Era lindo ouvir: Gracinha!

 

Que música acordou a cantar? Chegou a Lisboa há poucas horas, fez a viagem durante a noite.

Era uma coisa que estava tocando na minha cabeça. Que é que era? Ah! Era aquela música do meu pai, que estava, no outro dia, com meus irmãos, tocando. O meu irmão Zeca conheceu a música por acaso, com uma outra pessoa cantando, e foi descobrir que aquela música é do nosso pai. “Ela e Eu.” A minha tia Bethânia gravou, a Marina Lima gravou.

 

Como é que é?

[canta] “Há muitos planetas habitados... imensidão do céu... mas nada é igual a ela e eu”.

 

Quer dizer mais alguma coisa?

Quero dizer que adoro música. O formato canção, do ponto de vista da comunicação, com os outros seres humanos, com o mundo, comigo mesmo, é fundamental. Se não existisse a canção, não sei o que seria de mim. Juro. Talvez eu fosse até incapaz de me comunicar.

 

 

 Publicado originalmente no Público em 2015

 

 

 

 

 

 

 

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