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Anabela Mota Ribeiro

Adriana Calcanhotto

02.10.22

Ela canta no disco novo: “A uma hora dessas/ por onde estará teu pensamento”. Pequenas variações noutros versos: por onde andará teu pensamento. Vagará teu pensamento. Passará teu pensamento. O que pensará Adriana? O que sentirá Adriana? Quem será Adriana?

Ela é a mulher enfeitiçada pela deusa Tétis, a voz mansa que canta os poetas, a artista que gosta das cores de Hélio Oiticica e Pedro Almodovar. A que gosta de opostos.

Encontro num hotel de Lisboa, ao fim da tarde. Uma luz de Verão. Os olhos de um verde translúcido – ocorre-me uma linha de um samba da Mangueira: “Me sinto pisando, um chão de esmeraldas”. Os olhos chão de esmeraldas. A Mangueira que é a escola de que ela gosta, por causa de Cartola e não só.

Adriana Calcanhotto não é uma brasileira do samba, da pele morena, de jeito dengoso. É uma mulher que conjuga o verbo flanar com frequência. Que regressa a casa com as malas cheias de livros. E que gosta de dançar no Lux e de ouvir fado em Alfama. Imensamente requintada, sofisticada. Delicada.

O fotógrafo tirou as fotografias, o pessoal da produção abandonou a sala. Ficámos a sós para uma conversa que tinha o disco novo como ponto de partida. “Maré”. Já nos conhecemos há anos, mas ela nunca me tinha falado de lavar a louça e ouvir na rádio um poema de Ferreira Gullar musicado…

  

Vou cantar-lhe uma canção tradicional portuguesa…

Oba!

 

“O mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz, bate na areia e desmaia, porque se sente feliz”.

Ai que lindo! Aprendi uma música, também: “O preto, minha senhora, não gosta de bacalhau, só gosta de arroz doce, e mais farinha de pão! Ora vai p’ra aqui, ora vai p’ra acolá, e o preto ri, ra ra ra”.

 

A minha canção serve de intróito para falar do seu disco “Maré”. Qual é a melhor maneira de mergulhar no seu mar, na sobreposição de camadas que definem a sua identidade? Atiramo-nos de onde?

Não sei! Esse mar ficou cheio de camadas porque ele é cheio de camadas, que vão vindo de há muito. Esse “Mar(é)” se revelou o segundo de uma trilogia; na verdade, quando fiz o primeiro, [“Marítimo”], eu não pensava nisso. As canções que fui seleccionado, quando me dei conta, de um jeito ou de outro estavam relacionadas com o mar – mesmo “Três”, onde o mar é um cenário apenas. Por onde começar? Não sei, nem investigo.

 

Isso não lhe interessa, apurar a origem das coisas?

Não. Nunca me dou bem conta… Quando me vejo, é já num processo. 

 

Não era você que citava Heraclito para dizer que não nos banhamos duas vezes nas águas do mesmo rio?

É. É a mesma ideia de água corrente.

 

Fale-me do mar como seu elemento preferencial, mais do que a água; e inspirador.

As coisas vão me levando. Muitas coisas que me impactaram levam-me para o mar. É uma sensação de repuxo…, o mar é que me puxa. Há coisas muito importantes, como o “Limite”, o filme do Mário Peixoto, que é recorrente. Não consigo assimilar, deglutir de todo, ele é ainda misterioso para mim. Eu ando com esse filme... Uma parte dele era projectada no [show] “Partimpim”.

 

O filme não é conhecido em Portugal. Pode apresentá-lo?

Mário Peixoto fez o filme, que é um esforço intelectual imenso, nos anos 20. Totalmente por acaso conheci o Mário Peixoto e comprei a casa que tem essa visão do mar: uma inclinação do sol numa determinada época do ano, que faz com que o mar fique prateado, de uma maneira que só acontece ali e naquela época. Meu Lar de Amália é numa das ilhas de Angra dos Reis, a Ilha Comprida, e Mário Peixoto esteve lá algumas vezes, mas a casa não aparece no filme. Ele viveu grande parte da vida na Ilha do Morcego.

 

Como é que essas coisas ficam impressas em si?

Permeiam tudo. Aquele jeito de filmar e pensar a luz, as mutações, a inclinação específica, ser cinza e verde e prata… É fascinante em termos de pintura, de cinema. Tudo isso está influenciando, sempre a escolha das canções. As canções vão chegando, apresentam-se; e aí, eu fico interessada em não investigar, em não esmiuçar essas chegadas… Vou deixando fluir.

 

Deixa-se levar nesse movimento auto-gerado, digamos assim. Um movimento de água que não se pode controlar ou estancar ou descodificar, mas que permite navegar nele…

Exactamente.

 

A alusão a Mário Peixoto abre a porta para falar de cinema, luz, cor, que são coisas essenciais em si. Como é a poesia, e como é a música. É extraordinário estar a falar com uma artista, que se exprime sobretudo na composição e no canto – uma cantora, portanto – e começar por falar de outras artes… Parece que não se sente uma cantora, no sentido estrito do termo.

[Riso] É verdade, não me sinto mesmo. E hoje em dia me sinto menos e menos. E entender as coisas assim me dá mais liberdade do que angústia. Quando eu era pequena e pensava viver de música e fazer música, não era tanto pela música. O que me chamava atenção eram as coisas que via na televisão, os artistas… Rita Lee, vestida de noiva, grávida. Coisas pop, ligadas a um contexto visual e de ideias e de humor. Não me chamava a atenção o modo de encarar a música do meu pai: o de um instrumentista, em que a música era apenas a música. Eu ficava mais interessada na música veiculando outras ideias. Via os Secos e Molhados, cantando, completamente mascarados, e queria exactamente aquilo.

 

Nunca quis ser uma cantora?, quis ser uma artista?

Gal Costa, por exemplo, conta que quando era pequena botava uma panela imensa na cabeça para ouvir a própria voz, fascinada com a própria voz. Eu jamais tive esse tipo de relação com a minha voz e mesmo com a música.

 

Quando é que descobriu a sua voz? Ou que era por aí que se ia exprimir.

Fui fazendo, não descobri, não. Caetano fez uma tentativa de definir os shows da Bethânia: que pareciam filmes de arte que se passam toda a noite. Eu me sinto identificada com isso, sempre me senti.

 

Há algumas presenças na sua infância cuja influência foi determinante: o seu pai é baterista, e a música está na sua vida, a sua mãe era bailarina e é claro o seu interesse pelo movimento, pelo corpo; e uma tia, professora de literatura, que lhe passou livros de História de Arte – áreas que a atraem muito. Estão aqui as artes todas!

É! [riso] Nasci nessa família não burguesa, não convencional: era uma família de artistas. As minhas percepções eram estimuladas, mas não tinha noção de fronteira entre as linguagens. Você fala de “todas as artes”: não tinha tanta diferença assim entre música, o desenho, a dança. Teve uma época, no final dos anos 80, em que eu seria considerada uma artista multimédia! – uma definição que confunde mais do que esclarece. O que as pessoas fazem hoje nos computadores, mexendo em tudo, misturando tudo… é mais natural para mim.

 

Ou seja, não há zonas incontaminadas. Ao contrário, o que se pretende é essa fertilização permanente.

É. As pessoas perguntam-me muito: onde é que uma arte influencia a outra. Não sei dizer, porque não tem tanta definição assim. E não importa.

 

Hoje perguntava-me como é que foi quando aprendeu a ler, ou quando viu o mar pela primeira vez, ou um quadro de Matisse. Mas não me perguntei pelas primeiras músicas que ouviu.

A primeira música que ouvi, não sei. Havia tanta música na minha casa… Foi hiper-constante: ouvia música com as babás, as empregadas, depois à noite com os meus pais, no fim de semana ouvia o meu pai ensaiando na garagem…

 

Eram músicas diferentes. Sendo o seu pai baterista de jazz, imagino que a música fosse negra, norte americana, cool

Cool jazz e Bossa Nova. Ele gostava muito de João Gilberto e tocava bateria desse jeito, [ao estilo da Bossa Nova]. Com as babás ouvia rádio AM [onda média]: Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Roberto Carlos. Era rádio popular, e ali sim, tinha a noção de canções: entrava uma canção, depois outra canção, as canções diziam coisas que eu compreendia – as do meu pai diziam coisas que não entendia. Depois o meu pai, não me pergunte porquê, começou a ouvi rock progressivo.

 

Pobrezinha… [riso colectivo]

Fiquei traumatizada para sempre! A minha mãe ouvia música como um veículo para a dança, não ouvia música como o meu pai. Eram camadas, música o tempo todo, e por isso não saberia dizer que música primeiro me impactou. Mas sei exactamente o momento em que li a primeira palavra. Eu queria tanto… Era a coisa que mais queria: aprender a ler. Achava que sabendo ler eu poderia… ir embora.

 

Ir embora? Que desejo extraordinário numa criança tão pequena.

Na verdade, eu tinha a ideia de ir embora, ser dona do meu nariz, ganhar o mundo… Isso com três, quatro anos. E a minha tia, essa professora, tinha ido visitar o México e tinha trazido muitos souvenirs. A casa estava cheia de objectos do México; e lembro da sensação de estar na cama com a minha mãe, minha mãe vendo uma revista, e eu bati o olho nalguma coisa, um objecto que estava em cima de uma prateleira, fiz o link das letras que já conhecia e li: México. Foi um rito de passagem, fiquei louca de alegria, saí correndo pela casa: eu tinha lido. Tinha quatro anos.

 

Então, quando foi para a escola, já sabia ler bem?

Fui para a escola completamente alfabetizada, e ficava entediada, esperando que meus colegas aprendessem… Eu já lia, porque queria muito ler. Tenho essa memória muito mais nítida do que a de qualquer canção.

 

Já voltamos a esse desejo de ir embora. Porque a viagem, a descoberta, o partir são associações imediatas com o mar e com a sua alma de marinheiro! Mas, para já, conte da primeira vez que viu o mar, e um quadro do Matisse.

Do encontro, do impacto visual com uma pintura, não saberia dizer. É como a música: parece que sempre esteve lá. Vi pela primeira vez o mar, não especialmente bonito ou charmoso, das praias do sul. A cidade onde nasci não tem mar, mas a uma hora e meia de viagem, tem este mar marron. Tenho fotos dessa primeira vez que vi o mar. A minha cara é muito satisfeita! Lembro-me de minha mãe me levar para o mar e a gente quase se afogar… A minha mão escapava da mão dela. Seria uma experiência traumatizante que não conseguiu me traumatizar. A coisa com o mar foi crescendo e fui me dando conta que ir embora, era ir embora para um lugar mais perto do mar. Não preciso ver, mas preciso saber que está ali. Não poderia viver num lugar em que não houvesse mar. Vou ficando um peixe, [faz o som da falta de ar], aflita.

 

Um peixe? Uma sereia?

Sereia!

 

Precisa do contacto físico com o mar? Mergulhar, sentir areia nos pés?

Preciso. Não gosto daquela coisa de banhista, de ir para a areia e ficar fritando ao sol. Gosto de mergulhar, gosto da praia ao final da tarde, em dias em que não tem ninguém. Não frequento a praia no Rio de Janeiro, por exemplo. O mar de Ipanema, do Leblon, o mar que me fez ir morar no Rio de Janeiro, é o mar que está ali e passo por ele: de carro, passando na orla, de bicicleta. Esse é um outro mar, que está na cidade, que corrói os objectos que estão na primeira quadra [quarteirão], que tem barulho de mar.

 

Não consigo imaginá-la morena… É tão branca.

Mas posso ficar. Quando era adolescente, gostava de ser morena.

 

Se falo nisto, é porque não corresponde ao estereótipo da brasileira, bronzeada, obcecada com o corpo e a exposição ao sol. O seu universo visual, estético parece-se mais com o europeu do que com o brasileiro.

Tenho ouvido uma coisa muito interessante de pessoas que nem me conhecem bem, mas que vão aos meus concertos, fora do Brasil. Dizem: “Nunca tinha pensado no Brasil nesses termos”. O Brasil é cheio de camadas, e tem essa primeira imagem do que se pensa ser um tipo brasileiro, uma cultura brasileira. Mas as coisas são bem mais complexas. Eu gosto disso, das pessoas que olham de uma outra maneira para o Brasil, por um outro prisma, a partir dos concertos de uma mulher que não parece uma mulher brasileira. Acho bacana que seja assim.

 

Bacana é uma palavra muito brasileira! Voltemos ao disco. Para “Maré” recorreu sobretudo à colaboração de Moreno Veloso, Domênico e Kassin, com quem trabalhou de perto nos últimos anos. E com eles, viu uma outra parte do mundo – o Japão, que não conhecia. Isto não pode ser associado ao mar, mas à descoberta e à viagem, sim.

O começo de tudo foi quando eu ouvi o disco do Moreno [“Moreno +2”] e tive um impacto que não esperava mais ter. O tipo de impacto que só tive ouvindo as pessoas mais velhas, os ídolos. Quando era muito jovem ouvia os discos e aquilo me arrebatava de uma maneira que depois deixei de sentir. Aí ouvi o disco do Moreno e parecia que eles tinham conseguido uma coisa que se eu pudesse, se tivesse meios de ter feito, teria feito. Quando começaram com os shows, me convidaram para uma participação. Era tanta identificação… E aquilo partir deles, foi importante.

 

Participou depois nos discos “Domênico +2” e “Kassin +2”, do mesmo colectivo.

Agora, além de amigos, somos parceiros. Viajámos juntos e fomos para o Japão. Aquilo nos aproximou ainda mais. O Moreno e eu somos loucos pelos Tour de França e acompanhámos pela televisão…

 

No Japão, dois brasileiros, a seguir o Tour de França…

A gente gosta de bicicletas, sobe montanhas de bicicleta… enfim, muita coisa extra música que a gente viveu. E quando voltámos, fomos para estúdio num nível de sintonia que não era preciso falar muita coisa. Este disco não foi muito falado. As pessoas vinham e faziam o que elas queriam. As melhores coisas como que se auto-elegeram. Teve poucas sobras. Foi tudo muito essencial, e a responsabilidade disso é da nossa viagem.

 

Sentiu-se como a personagem de Scarlett Joahansson no “Lost in Translation”, da Sofia Coppola?

Menos do que imaginei. Eu achei que ia me sentir hiper-acelerada, por causa da quantidade de informação, no meio de néons. Mas, ao contrário, e com o passar dos dias, fui-me sentindo muito em paz. Por causa do jeito das pessoas. Muito tranquilas. Pacífico, profundo.

 

Essa convivência foi importada para o disco. “Maré” mantém tudo o que lhe é essencial e denota a influência destes músicos – nos ambientes sonoros, em subtilezas de produção.

 Sim, o meu núcleo mantém-se, mas estou já completamente influenciada por eles. Dos discos, das parcerias. Nesse disco resolvi não sugerir ou pré-determinar. E depois, da base que armaram, fui pinçando as outras colaborações. Com todos os convidados, já tinha feito coisas. Já tinha tocado com o Gilberto Gil, já tinha feito canções com a Marisa [Monte], tinha cantado com Los Hermanos, e portanto com o Rodrigo [Amarante], tinha gravado e feito concertos com o [Jards] Macalé. Nesse sentido, não são inaugurações, são desenvolvimentos.

 

Há um paralelismo esboçado na entrevista que lhe é feita por Eucanaã Ferraz e que acompanha o material promocional do disco. Ele diz que é como um realizador que trabalha sempre com os mesmos actores.

 É um paralelismo interessante, mas me interessam os aprofundamentos das colaborações. Não chamo as pessoas porque já sei o que esperar delas. Com estas pessoas, eu não sei o que esperar!, nunca tenho a certeza, sei que elas não vão ficar se repetindo. Este universo de autores é o que acaba me dizendo coisas. Enquanto estou fazendo, não posso ficar pensando se isso é repetição ou continuidade. Penso depois que está feito, penso agora, aqui com você, com as pessoas. Na hora são as canções e o que elas me provocam.

 

Quando se fala de influência e contaminação, fala-se mais especificamente de quê? Das conversas que têm nas horas que passam juntos, nos discos que ouvem juntos, em toda essa matéria que fica sedimentada? Pode especificar o modo como a relação molda o que está a fazer?

Depende do colaborador, da química que se estabelece entre nós, da história de trabalho que nós temos. Mesmo com estes três, eles são uma banda mas eu tenho uma relação individual com cada um deles.

 

No caso destes rapazes, (no Brasil chamam-lhes “meninos”), são mais novos cerca de dez anos. Os seus parceiros da escrita, o Ferreira Gullar, Wally Salomão, António Cícero, são pessoas mais velhas. Já tinha pensado nisto, de estar entre gerações?

Os “rapazes” têm muitas coisas já assimiladas com mais naturalidade do que eu, porque tenho dez anos a mais. Lidam com humor, com desprendimento, com uma saudável falta de compromisso. Sem peso. Mesmo o Moreno, que tem um peso maior, pelo facto óbvio de ser filho de quem é [Caetano Veloso], lida com isso com sabedoria. Os mais velhos trazem da escrita deles, e a escrita é toda permeada por escritas ainda mais antigas. Essa música mais solta, relaxada, descompromissada, veicula e viabiliza para mim essa escrita mais… potente.

 

E a parceria com a Marisa Monte, que aparece no disco a fazer um canto de sereia?

A Marisa é, em primeiro lugar, uma querida amiga, uma pessoa generosíssima. Tive necessidade de ter ali uma sereia.

 

Mas porquê ela? Porque é que essa sereia não é a Adriana? Eu pensaria que a sereia, criatura híbrida, encantatória e enigmática, seria uma bela imagem daquilo que o seu mundo é: um mundo de fusões impossíveis, de sínteses. Uma sereia muito mais do que um peixe, que tem uma natureza inteira.

É. Nesse momento do disco, não sou eu. Fiquei mais interessada em me deixar seduzir pelo canto da sereia. E tinha de ser a Marisa, não só pelo canto dela, mas porque se interessa pelo arquétipo da sereia. Qualquer coisa muito sedutora, ela chama de “canto de sereia”. Fiquei feliz que ela tivesse curtido a ideia – podia dizer que não, que não lhe interessava. 

 

Chegou a haver um tempo na sua infância em que acreditou nas sereias? Assim como quem acredita no Pai Natal.

Eu acho que acredito ainda, que não passei dessa fase![risos] Deixei de acreditar tanto, ou de ter esse ícone, quando falei com Hélio Eichbauer e ele me disse que em África a figura da kianda não tem essa imagem de metade mulher e metade peixe. Elas existem mas não têm essa figura ocidental, hollywoodiana, cabelo louro, glamorosa. Mas que las hay, las  hay!

     

Fala sobre sereias com o seu cenógrafo? Estaria tentada a adivinhar que falam de efeitos cénicos, de pintura, mas não de sereias.

Ele faz os cenários dos meus espectáculos, mas é um colaborador para além disso. Conversamos muito sobre o mar, sobre os mitos, sobre Tétis.

 

Porquê Tétis, que é uma divindade marítima?

Para o concerto, de todos os arquétipos que poderia encarnar e que posso citar, Tétis é talvez a coisa mais parecida comigo. No sentido de alguém que se metamorfoseia e que escapa do seu aspecto o tempo todo.

 

E que é inapropriável justamente por causa disso.

Sim. Ela transfigura-se e transforma-se em fogo, pássaro, em água. Ela pode ser, até, ela mesma. Essa capa do disco, aconteceu por acaso, mas se eu pensasse uma maquilhagem que Tétis usasse, seria essa. Conversando com Hélio sobre essas coisas, a coisa de Tétis ficou forte e permeia o concerto e o disco. Ele não é o cara que projecta meu cenário, é um cara com quem eu sento a conversar de mitologia, a quem peço referências. É bem mais complexo, enquanto colaboração, do que alguém a quem encomendo um cenário para um concerto.

 

Como se diz em Portugal, isto anda tudo ligado. E a partir da ideia de metamorfose, da mudança e movimento que lhe estão implícitos, gostava que me falasse do seu desejo antigo, infantil mesmo, de mudar o mundo. E de partir.

Todas as sensações ligadas a ir embora eram muito fortes. Gosto muito de bicicletas talvez porque tive bicicletas desde muito pequena. E lembro cada progresso que fazia: ir até uma determinada esquina de bicicleta, era ganhar o mundo de uma certa forma. Eu vivia para aquilo, para ganhar a próxima esquina. Sempre fui assim. Esse é o meu movimento. As metamorfoses: exercitei isso quando me aproximei do teatro. Tenho uma ligação forte com as possibilidades de ser outras coisas, não de representar, mas de ser. E mudar o mundo, era mudar o mundo mesmo.

 

Onde radica esse desejo?

Começou por eu achar tudo muito convencional: as cadeiras são para sentar, as portas são para abrir, as mesas… Era previsível demais. Porque é que as roupas eram assim? Tinha um grande desassossego em relação a tudo. Era tudo excessivamente conformado às coisas como elas eram. Hoje, acho que as mudanças se dão nas pequenas coisas e não nas enormes. Se você lê um poema e o poema te modifica, já está tudo modificado. Como dizia: isto anda tudo ligado. E se você está no mundo e mudou, já mudou o mundo. Mas na adolescência, era uma ideia de revolução. Militei no Movimento Estudantil Secundarista, achei que era possível mudar o mundo assim.

 

Disse que foi educada para ser artista e que a expectativa dos adultos era que fosse artista. Havia um desígnio, que era de outros, para cumprir. O desejo de partir está ligado ao medo de decepcionar? Ou a uma rebelião quanto a esse projecto?

Não, acho que não. O desejo de partir era para fazer isso logo! Era partir da infância de uma vez por todas. Era disso que eu queria me livrar. Não queria que as pessoas me dissessem o que fazer: agora janta, agora estuda. Eu queria fazer o que eu quisesse, na hora que eu quisesse. Talvez fosse para me tornar uma artista logo. Achava o mundo dos adultos fascinante e o mundo das crianças menor, entediante, sendo tratada daquele modo [faz uma voz infantil].

 

Mas havia uma expectativa? Queriam fazer de si uma Shirley Temple?

Não posso dizer que fosse isso, não era a cena da mãe da miss. Na verdade era um investimento na minha percepção, era muito estimulada nas minhas sensibilidades artísticas. Mas não sentia um peso. Tinha muita curiosidade… Eram muito importantes as noites em que o meu pai chegava na sala com um disco novo. E mesmo quando ele enveredou pelo rock progressivo aquilo tinha a graça de ele chegar com um disco novo. Mas o acesso não era livre, era regulado. Eu queria era participar de tudo. Ouvir os comentários do meu pai sobre uma sonoridade, aquele maravilhamento. Muitas vezes fingia estar dormindo no sofá. Se eu estivesse dormindo, eles não iam me mandar para a cama. Ficava invisível, ouvindo a música e sobretudo os comentários. Fazia tudo certo, mas batia o pé de acordo com o ritmo! O pé me entregava!

 

Tudo isto aponta para uma existência solitária. Mas tem um irmão.

Algumas coisas eram feitas a dois, outras não. Meu irmão era viciado em televisão e em filmes de cowboys. Eu achava aquilo completamente menor! O problema é que eu precisava dele para fazer certas performances, coreografias. Ele só vinha pago! Ou batia ou pagava!, e ele era obrigado a vir. Como sou mais velha três anos, dava para bater bem! [risos]

 

Deve ter sido horrível quando ele nasceu…

Foi. Não tenho memória, mas sei pelas histórias que minha mãe contou que não foi fácil. Mesmo quando a gente quer, nunca é fácil. Eu me lembro da barriga da minha mãe, da expectativa da chegada do irmão.  

 

Na adolescência, pegou no violão e foi pelas suas pernas à descoberta do mundo. Anunciou que ia começar por cantar em bares.

Quando os meus pais se separaram, aquilo foi muito doloroso e a maneira que encontrei de lidar com aquilo foi pegar no violão, que estava abandonado, e fazer uma safra de canções. Não tinha aulas fazia anos. Lembrava de três, quatro acordes e já não sabia como aquilo progredia. Achei mais fácil inventar as minhas canções. Entre um acorde e outro, errava um e encontrava um caminho novo. Voltei a sentir um desejo muito forte que tinha tido, quando assistia à Rita Lee ou Ney Matogrosso, de fazer música, de viver disso. Uma coisa me fascinava: a vida das pessoas que faziam música se fazia à noite. Tocavam à noite e dormiam de manhã. Eu hoje sei que vive-se à noite e dá-se entrevista de manhã. [riso] Mas aquilo é que era a vida que eu queria.

 

Essa descoberta adolescente foi feita com colegas?

Houve um momento no colégio em que se deu uma bifurcação: as pessoas ou foram para o rock, ainda progressivo, ou foram para a Música Popular Brasileira mais ligada à palavra, com Chico Buarque, Maria Bethânia. Não fiquei nem dividida porque não conseguia entender como é que as pessoas podiam ter escolhido o outro caminho. Não quero nem ficar falando mal de bandas que nem conheço! Esse foi todo o caminho que meu irmão rumou.

 

Ficou com os poetas, como se vê.

Eu fiquei com os discos do Caetano, do Chico Buarque, que davam para a literatura, para outros poetas de que nunca tinha ouvido falar. Eu não conhecia Clarice Lispector até ouvir determinado disco de Maria Bethânia. As coisas da palavra me arrebatavam. Quando meus pais se separaram, tinha tarefas em casa para ajudar minha mãe. A minha principal tarefa era lavar a louça. Fazia-o com prazer. Era num momento em que a minha mãe dormia para dar aula na faculdade, um pouco mais tarde. Então, adquiri uma técnica de lavar a louça sem fazer barulho e ficava ouvindo a rádio, muito baixinho, para que ela não acordasse. Aquilo para mim não tinha fim. O Chico Buarque lançando cada ano um disco mais maravilhoso… Um poema do Ferreira Gullar, musicado, tocado na rádio, na hora de lavar louça.

 

Ferreira Gullar na hora de lavar louça é outra síntese improvável. É como cauda de peixe e corpo de mulher.

Sim, era um privilégio.

 

Quando vim para a entrevista só sabia duas coisas: como é que começaria e como é que terminaria.

Não é mau.

 

Determinei que começaria com a canção popular portuguesa sobre o mar e que terminaria de modo abrupto, interrompendo um movimento de marés. Uma vez no mar, pode-se estar lá horas, navegando sem fim. Se não tiver nada de urgente para dizer, ficamos por aqui, como quem regressa à praia.

[gargalhada] Não, fique à vontade… Acho bom assim. Falei demais…

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2010

 

Tatiana Salem Levy

02.10.22

Leio a Tatiana Salem Levy desde o primeiro romance. Ou seja, desde A Chave de Casa, editado em 2007 pela Cotovia. Tenho, por isso, uma relação antiga com as suas "palavras doídas". Recentemente, a escritora desafiou-me a falar com ela na Embaixada do Brasil em Lisboa. Um diálogo seria sempre mais estimulante, disse-me, do que uma exposição do autor sobre a sua obra. Aceitei. Porque gosto da Tatiana, porque gosto da sua escrita, porque isso me dava um bom pretexto para ler (reler), agora de um modo organizado, os seus três romances, imergir num certo tom, em dias seguidos. Foi como ver uma exposição retrospectiva, que nos conduz a um processo introspectivo, de um artista. Intervim longamente, fiz poucas perguntas, avisei mesmo que iria terminar as minhas frases com um ponto final. Que ficaria para a Tatiana a continuação do texto. O que a seguir podem ler, é o resumo desse encontro. 

 

Vou ler excertos dos livros. Uma frase apenas, do Dois Rios: "Eu, ao lado dela, uma enorme vontade de viver" (pág. 38, edição Tinta da China, 2012). É forte pensar que, na presença de uma pessoa, temos vontade de participar da vida, fazer planos, querer que o instante a seguir aconteça.

N' A Chave de Casa: "Conto (crio) essa história dos meus antepassados, essa história das imigrações e suas perdas, essa história da chave de casa, da esperança de retornar ao lugar de onde eles saíram... [...]. Conto (crio) essa história para dar algum sentido à imobilidade, para dar uma resposta ao mundo e, de alguma forma, a mim mesma..." (pág. 138) Aqui interessa-me especialmente a ideia de narrar e criar. Não são exactamente o mesmo, mas talvez os veja como gémeos. E todos os teus livros têm situações gemelares: irmãos gémeos, a mãe e o bebé na barriga, a relação da autora com as suas palavras. A criação como forma de dar resposta ao mundo é um bom tópico. E pronto.

Vamos às perguntas que não são perguntas. Vou começar por um outro livro, que não é nenhum desses três. É um livro que estou terminando agora. De não-ficção. Tem uns três anos que escrevo uma coluna para o Valor Econômico, um jornal no Brasil. Sobre livros. Posso falar sobre o que eu quiser desde que tenha um livro envolvido. Resolvi juntar parte dessas colunas e escrever outros textos, inéditos. Há em muitas crónica um tema comum. Uma espécie de apocalipse, de fim de mundo. Que é o sentimento generalizado, entre nós, seres humanos. Entre os brasileiros, ainda mais do que entre os portugueses. Por acaso, o título saiu da tua boca, sem querer, num jantar: "O mundo não vai acabar". Porquê? Ao mesmo tempo que o mundo está acabando, e que o mundo está sempre acabando, e nunca acaba, a literatura tem esse poder de criação de mundos. A narrativa cria os mundos. Quando digo "O mundo não vai acabar", estou dizendo que enquanto a gente puder escrever e, sobretudo, ler, haverá sempre mundos.

Qualquer escritor é, antes de mais nada, um leitor. Essa possibilidade de escrever sobre livros é como um prolongamento, uma reacção àquilo que me estimula. A Joana, personagem e narradora de Dois Rios, que diz a frase que tu disseste mas que já esqueci...

 

Qualquer coisa como: ao pé dela tenho vontade de viver.

Algo assim. Não era "ao pé dela", porque esse é o português de Portugal.

 

Parêntesis: há um capítulo nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em que, repetidamente, se usa a expressão "ao pé dela". É uma coisa perversa, porque ela, a Eugênia, era coxa! É apelidada de Vénus Manca. Roberto Schwarz tem um ensaio em que denuncia o "festival de maldades" deste capítulo, pelo uso, no contexto desta personagem coxa, de palavras como botas, pés... Fecho o parêntesis. A tua frase: "Eu, ao lado dela, uma enorme vontade de viver."

A literatura para mim é isso. A Marie-Ange, personagem que aparece na vida da Joana e do Antônio, é esse Outro, é esse estranhamento que activa em mim a vontade de viver e a vontade de escrever. A própria leitura me dá essa vontade de escrever. Hoje estava terminando a leitura de um romance de uma japonesa. Por acaso sei o sobrenome, é Murakami, igual ao escritor, mas esqueci o primeiro nome. É um livro contemporâneo sobre o qual quero escrever também. Conta a história do tsunami que houve no Japão em 2011 e o logo após o tsunami. O personagem principal é um pescador. Ele, ela, descreve a catástrofe, e há coisa da beleza do fim do mundo, enquanto o mundo está acabando. Depois é o horror de o mundo ter acabado. Todos aqueles destroços... E os sobreviventes que, aos poucos, encontram uma possibilidade de continuar a viver. Há uma pessoa que encontra uma amante. Mas como? É exactamente isso: no momento mais terrível, de repente, brota uma necessidade de vida.

 

Essa necessidade de vida encontra-se na Chave. É uma sequência galopante, de passagem directa, capítulo a capítulo, do sexo para a morte, da morte para o sexo, do sexo para a morte. Tem que ver com a urgência de sobreviver. Eros e Tanatos. Aqui deixo meio ponto de interrogação, meio ponto final. [Risos]

A Chave de Casa é um livro que trabalha muito com esses extremos. Inclusive a personagem começa deitada na cama. Não consegue se mexer. É esse não conseguir sair do lugar, essa espécie de morte que está vivendo, que faz com que ela busque um sentido para aquilo. Tem o tempo todo essas contradições. A parte amorosa e mais sexual pode ter sido um dos motivos para a personagem estar paralisada na cama e é também o que a impulsionou para um outro lugar.

 

A questão do encontro com outro é muito importante, nos três livros. O que te interessa é a detonação que vem com isso, um não saber o que vem? Não sei nada de física nem de química, mas visualizo entes separados e uma alteração na matéria que resulta do encontro. Eles deixam de ser quem são e são alterados, transformados noutros, a partir do momento em que colidem.

É. Isso tem muito a ver com o modo como eu, Tatiana, vivo as coisas. Sou muito impulsionada pelo encontro. Seja com alguém, seja com um lugar, seja com um livro. Para mim, dificilmente uma coisa vem do nada, entendeu? Até as próprias histórias dos livros. É uma das maiores alegrias, quando uma coisa desperta em você e aquilo te dá... [faz suspiro de excitação]

 

Procuras ou deixas que te aconteça, que te invada o acidente?

Acho que é o acaso, mesmo. Mas claro que o acaso acontece mais se você se abrir mais. Não tem a ver com querer, né? O Dois Rios, para quem não leu: são duas partes, a primeira é narrada pela Joana, a segunda pelo Antônio, irmão gémeo da Joana. E, na verdade, é uma história ou outra. Ao mesmo tempo que elas se misturam, é uma ou outra, porque, ou a Marie-Ange vai para o Brasil e conhece a Joana e transforma a vida da Joana; ou ela fica na França, conhece o Antônio e transforma a vida do Antônio. No Paraíso [Tinta da China, 2016], também. Toda aquela história é porque ela sai um dia à noite, tem uma relação com um cara (isso eu posso falar porque está na primeira página), e depois ele diz para ela que tem Aids, que é seropositivo. Ela pensa: bom, se não tivesse saído de casa, se não tivesse ido àquela festa... Eu perco muito tempo na minha vida com isso. Tenho muitas insónias pensando no se, se, se. É um pouco difícil ser assim, mas...

 

Estas personagens, estes enredos... no fundo, de onde surgiram estes livros?

A Chave de Casa é o mais autobiográfico. Desde criança ouvia a história da minha família, que tinha sido expulsa de Portugal na época da Inquisição, tinha ido para a Turquia e depois para o Brasil. E tinha transmitido de geração em geração a chave da casa em Portugal, de onde tinham sido expulsos. Aquilo povoou o meu imaginário. Eu achava muito forte como é que tantos séculos depois ainda havia aquela chave. O que seria poder voltar a um lugar que, na realidade, já não existia há muito tempo?

Eu escrevia contos. Um dia pensei que essa história dava um romance. Daí começou. Foi mudando muito ao longo da própria escrita. A chave de casa de Portugal virou a chave de casa da Turquia. Primeiro tinha a ideia de fazer um romance mais histórico. Mas a ideia do romance histórico não cabia no meu jeito de escrever. Trabalho muito com os vazios, silêncios.

 

E isto com 20 e poucos anos. Eras uma menina.

É. Mas com 20 e poucos anos muita gente já tinha feito muitas coisas. [riso]

 

Alexandre, o Grande, até tinha conquistado o mundo todo. [risos]

Para ser bem sincera, a ideia para este romance também surgiu de um trabalho pessoal, de psicanálise, que tinha a ver com o facto de eu me sentir meio paralisada. Queria problematizar as emigrações da família, de eu ter nascido no exílio (dos meus pais, em Portugal), as viagens (minhas e da minha família), e aquele corpo parado, em oposição. Ao mesmo tempo que escrevia o livro pensava que o sentido da paralisia desse corpo não era, simplesmente, resultado de ela carregar a dor do passado (da expulsão, do exílio). Talvez a dor não fosse só do passado, mas uma dor dela mesma. Surgiram as outras histórias. A história da morte da mãe, a da relação mais violenta com aquele cara...

 

A Chave constitui a tua tese de doutoramento, feita na PUC-Rio. Recentemente estivemos com uma professora que integrou o teu júri (a banca, como se diz lá), Ana Kiffer. Comentámos como tinha sido um exercício audaz e tão bem conseguido fazer de um romance um trabalho académico. Foi importante o facto de o romance ter sido bem acolhido, traduzido; o The Independent, há uns dois anos, falou de ti como uma das vozes mais fulgurantes da literatura brasileira.

Eu estava escrevendo o romance e estava escrevendo a tese. Tese e romance dialogavam. Na tese, trabalhava com a questão do corpo. A minha orientadora, lá pelas tantas, uma senhora curva, cabelo branco... Se víssemos uma foto de todo o corpo docente da PUC-Rio e falassem assim: "Adivinhem qual dessas professoras falou para a sua orientanda fazer uma tese como um romance..."... Ela seria a última pessoa que você diria, mas foi a primeira. Insistiu para que eu defendesse o romance como tese. Achava que eu estava mais engajada com o romance do que com a tese. E achava que era importante para a universidade colocar o romance como uma produção de conhecimento. A PUC estava abrindo um curso de formação de escritores. Usou-me como cobaia!

 

Bela aposta.  

Sofri, sofri na banca, sofri. Houve de tudo.

 

O Dois Rios e o Paraíso, vêm de onde?

Dois Rios vem de um encontro com dois lugares. De uma viagem que fiz para a Córsega. E logo depois para Dois Rios, um vilarejo na Ilha Grande [Angra dos Reis]. Pensei: quero escrever sobre esses lugares. Depois pensei: quero escrever sobre um encontro que transforma os personagens. Esses lugares têm uma coisa em comum, são duas ilhas. A ideia de ilha, para mim, tem muita a ver com a ideia de literatura.

 

Porquê?

É a possibilidade de você estar num espaço fora, num tempo fora. Tem uma certa suspensão do tempo e do espaço. Na altura li muitos livros sobre mar, ilhas. Gosto de ler textos que tenham a ver com o que estou escrevendo. Li o Quarteto de Alexandria do Lawrence Durrell. Tem um momento  em que um dos personagens vai receber convidados em casa; o narrador diz que ele desliga todos os relógios da casa porque é um hábito da região: parar a contagem das horas quando se recebe alguém. É muito bonito. Para mim, escrever e ler é isso. É parar a contagem das horas. Eu queria escrever um livro que estivesse neste ritmo, de suspensão do tempo e do espaço.

 

Do Paraíso, leio este excerto "Mas, se por um lado, não acreditava no poder da profecia, por outro, acreditava no poder da palavra. Achava que a partir do momento em que as mulheres tomavam conhecimento da maldição, ela ganhava terreno para se concretizar. Não tinha nada a ver com Deus nem com poderes místicos. Tinha a ver com o medo que a história poderia produzir na mente de cada mulher." (pág. 138) O que me interessa é o poder da palavra, a palavra como signo primordial de ligação com o outro, com o mundo. No princípio era o verbo.

Na verdade, um romance vem de vários lugares. Em primeiro lugar, veio de uma história que ouvi, de uma amiga, que dizia que na família existia uma maldição. É a maldição que está no livro. De uma escrava que era rainha em sua tribo. A sinhá tinha-a enterrado viva, e antes de ser enterrada, tinha amaldiçoado as mulheres da família: a serem infelizes no amor durante cinco ou seis gerações. Peguei essa história para mim com autorização dela. Tem a ver com o que eu escrevo, essa ideia da herança que se passa. Uma herança não material mas narrativa. O que é receber uma chave do século XVI? O que é receber uma maldição de uma escrava numa fazenda de café? De novo, comecei a fazer um romance histórico. Não deu certo, abandonei. Fui fazer outro romance, que tenho pela metade e que gostaria de terminar.

Gosto, quando posso, de me retirar para escrever. Aquele cliché do escritor?, gosto de cumprir, de ficar sozinha em algum lugar mais isolado, fora da cidade grande. Funciona, comigo. Quando estava nesse lugar, surgiu a vontade de escrever este livro. Eu, sozinha, muito medrosa, numa casa de campo, começo a pensar nos fantasmas, a conversar com eles. Lá veio o fantasma da escrava. Parei o livro que estava escrevendo e comecei a escrever o Paraíso.

 

Falas com fantasmas no Paraíso, falas com mortos na Chave, falas sobretudo contigo mesmo em todos eles, não é? Estas vozes não são senão uma forma de diálogo contigo mesma, de compreensão do mundo.

Sim. Acho que comigo e com os fantasmas. No Dois Rios também aparece essa questão: na Córsega, o quarto mais bonito da casa, é o quarto dos mortos. Tenho um certo fascínio por essa conversa com os mortos. Com o que veio antes. Tem a ver com a memória.

 

E com raiz e identidade. Voltemos à leitura: "Essa herança dói. O que trago comigo sem escolha dói. Essa nossa conversa, mãe, também dói. [...] Dói escrever esta história: cada nova palavra que encontro dói. Escrever, mãe, dói imensamente: dói tanto quanto é necessário." (pág. 152, da Chave)

O mal é ser necessário. Para algumas pessoas talvez não seja, talvez seja mais fácil. As coisas não têm um sentido em si. Escrever é construir um sentido. O diálogo com o passado é uma tentativa de criar um sentido para o presente. De alguma forma, acabo passando pelo passado do Brasil (a escravatura, as fazendas de café, a ditadura). São rastos da História. Como nunca consigo fazer o tal romance histórico, a História vai aparecendo nos seus vestígios, na vida dos personagens.

 

Agora vives em Portugal (há quatro anos). Agora foste mãe. O que é que estas duas explosões (mudar de país, cultura, continente; e a outra, talvez a rebentação maior, que é ter um filho) provocam em ti? Enquanto escritora. Enquanto pessoa, acho que conseguimos imaginar. Se falas da força do encontro para suscitar novas criações, é interessante pensar como a seguir escreves. Porque és outra. Ou não?

Sim, com certeza. Portugal: é mais difícil responder, porque ainda não consegui descobrir no que é que viver aqui me transformou. Tirando uma questão de vocabulário, porque chega uma hora em que você já não sabe mais o que é de lá e o que é daqui, vai misturando...

 

Ao pé.

Ao pé. Paraíso foi escrito inteiramente aqui e nele já aparece esta questão do vocabulário. Não sei como é que Portugal me mudou. É uma pergunta que me coloco, mas não tenho resposta. Não quer dizer que eu vá ficar aqui para sempre, mas não tenho data para voltar. Não é como na França, em que vivia com uma bolsa, sabia que ia ficar lá aquele tempo e depois voltar. Eu já era próxima da cultura portuguesa, da literatura portuguesa há um bom tempo. Já vinha muito a Portugal. Não tive tanto a coisa do estranhamento. A língua ajuda, dá sempre uma familiaridade.

 

Em relação ao Vicente, o teu bebé...

Tenho escrito menos por causa do Vicente. [Ter um filho] traz uma espécie de paciência, de calma, que pode ser boa para a escrita. E um impulso, também. Porque me obriga a estar muito viva. Ser mãe obriga a descobrir coisas o tempo todo. Ele vai descobrindo, você vai descobrindo com ele. Acabo entrando num monte de clichés sobre a maternidade, mas que fazem sentido. É um novo gás. Me dá uma vontade muito grande de trabalhar. Ao mesmo tempo, a gente se dá tanto para aquele ser (uma doação física, de estar grávida, amamentar, etc.) que chega uma hora em que bate uma necessidade de ter um espaço próprio. Preciso do meu espaço. Descolar. Escrever. Não perder a minha subjectividade. E é um impulso que vem da própria maternidade: querer não ser mãe, querer continuar a ser uma pessoa inteira. Tenho muitas coisas para aprender. Estava acostumada a ter horas muito compridas para escrever. De repente, as horas já não são tão compridas.   

 

Pode dizer-se que escreves com o corpo? Há escritores que são mais cerebrais no gesto da escrita. Há outros em que a escrita vem da fractura, da víscera, da cicatriz. Há uma dimensão física forte em todos os romances. A relação fusional com o irmão gémeo, ou com a mãe, ou a própria relação sexual são expressão disso. Nesse instante, parece que os sujeitos perdem a sua individualidade e passam a existir num uno. Não sabia que a tese de doutoramento (a começada) era sobre o corpo, mas faz-me todo o sentido. Por outro lado, o verbo, a palavra, é um sopro, uma coisa não tangível, mesmo que venha de um lugar tangível, a carne.

Escrever para mim é um processo muito físico. Tanto imageticamente como a forma como vivo a escrita. Sou dominada por aquilo, é uma coisa que vive no meu corpo. E a escrita é difícil fisicamente. São muitos osteopatas! [risos] Tudo em mim acontece no corpo. O que não consigo falar com as palavras, aparece, dito, no meu corpo.

 

O que não consegues dizer que com as palavras...? Parece um contra-senso.

Primeiro aparece no corpo. Depois vou procurando as palavras para dizer o que o corpo está dizendo.

 

São dois níveis de conhecimento. Um que é mais inconsciente, que se exprime no corpo, e outro, que procura as palavras para essas coisas. É uma forma de compreender o que está a ser dito numa linguagem ainda não decifrada.

Ou [é uma forma] de criar. Hum. Não sei o que corpo está dizendo, vou em busca das palavras, mas na verdade essa buscar é uma invenção! Vão caminhando juntas.

 

Nos livros, o lugar do desastre, a importância do desastre na vidas das personagens, não é pequena. Outro lugar importante: o gemelar, como lhe chamei, aqueles onde existe uma relação simbiótica - e aí não há desastre, ao contrário das relações cá fora.

Em algum momento, essas relações são plenas.

 

Ainda sobre a imagem que há pouco usaste, da ilha: escrever está no interior da ilha ou no litoral?

É esquisito o que vou falar agora: já aconteceu estar num enterro, sofrer com aquilo, e pensar: vai ser bonito, vai ser bom escrever sobre isso. É como se estivesse me aproveitando, né? Esquisito. Mas isto traduz a sensação de estar completamente dentro de uma coisa e ao mesmo tempo saindo dela. Isto é uma tentativa de chegar no indizível. E é a contradição da literatura: você vai encontrar palavras que vão dizer aquilo que você não conseguiria dizer. Tem a ver com o possível. A palavra é a possibilidade de algo que não é possível. Não sei se fui clara...

 

Isso é imbricado mesmo. Não há outro jeito de falar do indizível. É importante teres dito que tens a força que vem do centro da Terra, da ilha, e ao mesmo há qualquer coisa que te atira para fora, para o leitor, para a escrita, para o dizível - e isso é o litoral. A borda. Falemos de outra coisa: quem são os protagonistas das tuas histórias? Poderíamos responder instintivamente que são mulheres. Mas os homens têm um peso grande. Por exemplo, no Paraíso, o encontro com um homem recluso, no sítio onde a protagonista se refugia, acaba por secundarizar a trama inicial, e inclusive a herança histórica, da escrava enterrada viva.

Então. Eu estava nesse sítio. Ouvi falar de um artista que supostamente estaria morando ali. Mas o artista nunca estava ali. A casa era no meio da mata. Eu passava por ali, ficava olhando, imaginando: quem seria essa pessoa?, que trabalho estaria fazendo? Tinha criado a casa, ele mesmo. A ausência dele fez com que eu imaginasse ele. Aos poucos, foi surgindo justamente por não estar.

Todo o escritor tem as suas obsessões. Todo o escritor se repete. Essa repetição tem a ver com a obsessão - que é o que nos leva a escrever. Tem uma obsessão minha quer vai aparecendo: daquilo que não é dito mas vai passando, de alguma forma, de geração em geração. Todo o mundo tem silêncios na sua família. Como é que os silêncios vão passando? No Paraíso, o avô desse artista tem a ilusão de que, não falando, não passaria a história. O horror terminaria ali. Só que o silêncio também traz a palavra. O silêncio também transmite o horror vivido anteriormente. Por isso é que o Daniel está a tentar reelaborar isso. Tem umas coisas de umas cartas do avô, não tem?

 

Umas cartas do avô?

Esqueço tudo. Mas lembro de umas cartas. A família materna do meu pai era de judeus italianos. Ficaram escondidos durante a guerra. Chegaram a mandar umas cartas para o meu avô, pedindo ajuda, falando que estavam passando fome. A certa altura, pedi essas cartas para o meu pai. Queria usá-las. Quando estava escrevendo esse livro e veio o personagem do Daniel, me lembrei dessas cartas. Fui para o Brasil umas duas vezes e não encontrei essas cartas por nada. Aí a obsessão aumentou. Pensei: agora tenho de escrever, inventar as cartas.  

 

Como é que te esqueces de tudo?, como é que não lembras o que escreveste?

Primeiro ano de maternidade, a gente não lembra de nada! [gargalhada]

 

É preciso esquecer. Para dar espaço para o novo. Ouvindo-te, folheava o livro e dei de caras com uma palavra central de que falámos pouco: o medo. As pessoas estão tolhidas pelo medo. Na Chave, então, está imobilizada pelo medo. O medo de não ser amada, de ser abandonada, da morte. De onde vem tanto medo?

Não sei. Acho que é meu.  

 

Talvez não seja só teu. É nosso, constitutivo de quem somos.  

Ao mesmo tempo que o medo paralisa, o medo também faz com que as coisas aconteçam. A personagem de Paraíso refugia-se para escrever porque tem medo de um resultado [de um exame]. A Joana, de Dois Rios, está paralisada pelo medo, pela culpa.

 

Culpa: vamos deixar essa palavra de fora! Senão ficamos enterradas nela. Disseste que um escritor é antes de mais um leitor. E estás a organizar um livro em que surge a leitora. Passaste anos a ler de forma sistemática, dirigida, a pensar no trabalho académico. Como é que lês agora?

Há três anos que tenho essa coluna no Valor sobre livros. Tenho de novo a obrigação de ler sublinhando, anotando.

 

Sabes ler de outra maneira?

Sei. Quando decidi sair da universidade (depois do doutorado ainda fiz um pós-doutorado), pensei que seria bom poder ler sem lápis. Durante um bom tempo li assim. Perdia frases... Mas há um certo prazer nisso, em esquecer a frase. São duas experiências de leitura: com lápis ou sem lápis.

 

Achas péssimo que eu escreva a caneta sobre os teus livros?

Não! E adoro ler livros emprestados.

 

Não é desrespeito, é apropriação. E escrevo com o que tenho à mão.

Entendo. Eu anoto com caneta quando não tenho lápis à mão.

 

Para terminar, lê um pouco.

Primeira página.

 

Os teus arranques são muito fortes.

O livro preferido dos leitores nunca é o livro preferido dos autores. [Pega em Dois Rios] "Foi a Marie-Ange que me salvou. Se é que isso existe, a salvação. Antes do nosso encontro, eu estava presa a casa e a tudo o que ela encerra. A umidade, o mofo, as fotografias desbotadas, a loucura da minha mãe e o silêncio."

 

 

Publicado originalmente na revista Ler na Primavera de 2017. 

 

Moreno Veloso

02.10.22

Moreno Veloso nasceu na Bahia em 1972. Tem, evidentemente, um jeito baiano de ser. É um físico atómico que sabe sambar, que samba maravilhosamente. É tentador pensar que a Física era um modo de escapar da sombra “maçante” (como repete) de ser o filho de Caetano Veloso, de levar com o rótulo. Ele nega. Esteve em Portugal a apresentar o disco Coisa Boa, deu show, deu entrevistas, deu-se. Cheio de graça.

Há qualquer coisa em Moreno, na sua presença.

Se estava cansado, não parecia. Estava cansado e não transparecia. Viajara durante a noite, começara a maratona de entrevistas de promoção. Esta foi a quarta. Uma ilha de uma hora e meia em que deu para ir à Bahia e voltar. A maratona: “A gente aprende”. Aprende a chegar ao Japão, lá do outro lado do Brasil, chegar e seguir directo para uma livraria, cantar como se não fosse nada, como se o fuso fosse o mesmo, as pessoas em roda, atentas. A gente aprende a ser artista.

Claro que já nasceu artista. Culpa da Santa Cecília, do seu 22 de Novembro. Favor não repetir que filho de peixe sabe nadar. Prato riscado. Aprendeu até, e facilmente, a tocar prato e faca. Aprendeu muito em casa, é certo. Mas aprendeu muito com a sua turma, de que fala a cada som, como quem fala de uma família alargada. E aprendeu por se ouvir, a si, como quem se ouve numa sala vazia e encontra o seu idioma.

Moreno Veloso: talento espalhado por aí. Por exemplo no projecto +2, na Orquestra Imperial, nos discos que produz, na escrita de canções. Agora no Coisa Boa.

Esta semana, em Lisboa, foi esse aí. Deixou ver como é a educação de um príncipe.

  

Na capa do Coisa Boa, há uma praia, uma luz rosa incrivelmente linda. Não vou começar pelo menino que está sozinho na areia, mas pelo menino que você foi. O menino que foi na Baía.

Mas somos o mesmo. Eu sou esse menino, aí.

 

Na fotografia está sentado na balaustrada, entre amigos, a olhar a praia e esse menino.

Exactamente. Aprendi a nadar nesse mar, nessa água que está na capa do disco. Nadando do colo da minha mãe para o colo do meu pai, do colo do meu pai para o colo da minha mãe. Eles dentro de água, afastando-se cada vez mais, até eu aprender. Era muito pequeno.

A primeira infância foi na Bahia. Foi onde aprendi a andar, a falar, a nadar, e creio que a cantar. Me lembro de meu pai me ensinando “Só vendo que beleza”, aquela canção que gravei no Máquina de Escrever Música [2000]. Uma canção da década de 40, eu acho.

 

Como é que é?

[canta] “Eu tenho uma casinha... fica na beira da praia...” Foi a primeira música que aprendi a cantar, inteira. Meus pais fizeram até uma gravação, depois perderam-na. Eu com três anos de idade.

 

Cronologicamente, a arrumação é qual?

Sou baiano de pai e mãe e nascimento. Até aos três anos e pouco, vivi na Bahia. Nasci logo que meus pais voltaram do exílio, em Londres. Eles se casaram e foram viver em São Paulo. Meu pai foi preso em São Paulo, depois foi forçado a viver em Salvador numa espécie de prisão domiciliária, depois foi exilado. Quando puderam voltar ao Brasil, voltaram a viver em Salvador.

 

Depois desses anos de infância, só em 2010 viveu na Bahia por um período prolongado? Então mudou-se porque a sua mulher tinha um trabalho lá.

É. Mas quando tinha 18 ou 19 anos, fiz uma tentativa de viver na Bahia. Sozinho. Fiquei uns meses, uns quatro.

 

O que é que procurava?

Já estava estudando Física. A Universidade Federal da Bahia (o campus onde tinha Física) era defronte da casa da minha mãe. Achei que ia ser uma coisa fácil, mas não foi. Não tinha ninguém comigo. Embora tivesse a casa, como infra-estrutura, não tinha muito mais do que isso. Passei lá uns meses e foi marcante. Foi conhecer, reconhecer a Baía fora do período tão específico em que tem as festas, a festa do 2 de Fevereiro, o Carnaval. No resto do ano chove muito. É uma cidade totalmente diferente daquela que se conhece no Verão. Adorei ficar na chuvinha.

 

Estou a perguntar pelas suas raízes quando pergunto pela Bahia e pelo menino que foi. Estou a tentar perceber como é que o ser baiano marcou a sua vida, a sua aprendizagem.

Quando fomos viver para o Rio, o meu ambiente familiar, completamente baiano, era muito distinto das outras casas que eu conhecia. Das casas de colegas como o Pedro Sá [músico, co-produtor do disco], o Carlos Artur (que tirou a foto da capa deste disco). São colegas do tempo do colégio, da mesma sala. Domenico [Lancellotti], também. A comida, completamente diferente. As pessoas, o jeito das pessoas, as reacções.

 

Como é que é ser baiano em casa, no Rio ou em qualquer lugar?

É um ritmo. Tem uma culinária específica, um gosto, um modo de preparar que é meio africanizado. Talvez mais africanizado que no resto do país. Com elementos europeus, também.

A família do Pedro Sá é carioca. O pai era macrobiótico. O Gilberto Gil também era macrobiótico. Mas o sentar-se à mesa na casa do Gilberto Gil, que morava no Rio, naquela altura, e o sentar-se à mesa na casa dos pais do Pedro Sá, eram universos distintos.

 

Tudo se passava à volta da mesa?

Na Baía, a mesa é um lugar de encontro. É a hora em que a família inteira se encara, se olha. As pessoas vão conversar, trazer as notícias à tona. Para as crianças é até uma imposição. Tem que vir para a mesa, não pode trazer revistinha, não pode estar ouvindo música – para estar livre para a interacção. Se estiver a ver televisão enquanto come, não consegue interagir com as outras pessoas.

 

Tinha a noção, enquanto criança, de que era ouvido como um igual? Ou existia um grande desnível entre adultos e crianças?

Acho que havia uma distinção. Conversas de adultos, festas de adultos, eram coisa separada de brincadeira de criança. Mas tinha hora marcada em que tudo isso tinha que se juntar. Todos os dias. Ouvi uns amigos de Minas Gerais dizendo que lá as crianças nem sentavam à mesa com os adultos.

 

Em Portugal, agora nem tanto, mas houve um tempo em que, dependendo da classe social, as crianças comiam à mesa com os adultos só a partir de determinada idade. Depois do exame da quarta classe, ou quando sabiam comportar-se.

Na Baía não é uma questão de classe social. Nas diversas famílias que conheci, e que são de classes diferentes, nunca vi essa diferença. Me lembro de Chico Buarque falando. Aliás, estava lendo o livro novo dele.

 

O Irmão Alemão. Está gostando?

Estava me divertindo tanto! Nossa, como eu gosto desse homem. Me lembro do Chico Buarque falando que a primeira vez que ele falou com o pai dele, foi uma entrevista formal, quando fez 14 anos. Antes disso, não, porque o pai não falava com criança. Era o Sérgio Buarque de Holanda.

Eu ouvia o Chico falar isso e ficava assustado. Meu pai ficava assustado. Meus Deus, como é que pode? Mas nenhum de nós era filho do Sérgio Buarque de Holanda.

 

Olha quem fala. Você é filho do Caetano Veloso.

Mas é uma outra vida. A minha primeira namorada foi a filha mas nova do Chico Buarque. Convivi dentro daquela casa durante muitos anos. Ele ainda casado com a Marieta [Severo], vivendo com as três filhas. Era totalmente diferente [da relação do Chico com o pai dele]. Parecia a estrutura lá de casa. Todos os dias tinha um encontro na mesa.

 

Falavam de música?

Na mesa se fala de tudo. Fora da mesa era mais difícil a interacção. Talvez por problemas astrológicos. [riso]

 

Astrológicos? Como assim?

Os geminianos são difíceis de capturar. A gente não entende direito onde é que eles estão.

 

Quem é que é geminiano, ou Gémeos, como aqui dizemos?

A Maria Bethânia, o Chico Buarque, o João Gilberto, o Pedro Sá, o Davi Moraes. São pessoas difíceis. Onde é que eles estão, cadê? Tenta pegar e são feitos de vento.

 

Voltando ao ritmo. Pode descrever o que é o ritmo do baiano?

Há um ritmo que é mais tranquilo. Na intenção de se pronunciar. No tempo de ouvir. Essa tranquilidade é marcada por um despojamento alegre. Ouve-se muita risada na rua. No Rio de Janeiro, é quase impossível. Em Minas Gerais, se ouvir uma risada pode jogar na lotaria. Isso tudo faz parte do ritmo e se ouve no ritmo musical. Se sente essa alegria na dança, nas festas. Sim, é um povo muito festeiro – porque há espaço para a alegria.

 

E os de fora?

Conheço gente que chega lá e fica angustiada. “A pessoa demora muito para falar. Fico cheio de paranóias esperando. Não aguento no supermercado porque o caixa demora uma hora para registrar os produtos...” Sou o contrário, adoro tudo isso. Engraçado, a primeira vez que fui a África, no país do Mali, cheguei de madrugada, cidade dormindo. Fiquei hospedado na casa de uns músicos malienses. Quando acordei, ouvi muita gente dando risada, e um cheiro de uma comida... Fiquei uns minutos pensando: em que lugar da Baía é que estou? Será que acordei num terreiro de candomblé que não é o Gantois? Senti que há realmente uma ligação ancestral com aquele jeito, com aquele espaço de festejo.

 

Falando tanto da Baía, ainda não falou de Dorival Caymmi nem de João Gilberto. Há o modo como esse vagar, essa alegria, essa atitude são traduzidos em música.

O Brasil, com todas as suas influências, a japonesa, holandesa, italiana, alemã... Tem vilarejos no Rio Grande do Sul onde falam alemão, e o português é uma terceira língua! Nesses vilarejos, ouvem música o tempo todo. Ou seja, com todas as influências, o Brasil é um país extremamente musical. Em qualquer canto, o Maranhão, o Pará, Amazónia, encontra gente ouvindo música, cantarolando, tocando, assistindo.

Na Baía tem essa ligação forte com África. O tambor que bate na África mexe com o corpo da pessoa, mexe com o coração da pessoa, explicitamente. Ele está contando uma história para o seu coração. Não é simplesmente um som batucando sobre o qual pode dançar. É uma coisa mais profunda. Em África o tambor foi feito para conversar com o seu espírito.

 

Como se fosse uma reverberação subterrânea?

Uma reverberação subterrânea que existe. Não é uma invenção. A pulsação, os ritmos corporais, os fluxos, todos esses ritmos tendem a se acoplar e a imitar os ritmos externos que estão chegando, e os internos tendem a se acoplar com os externos. Há uma modificação mútua.

 

Essa descrição parece de uma cena tribal.

É, estou evocando uma cena tribal para dizer o quão profundo é. Essa herança de cultura africana se desenvolveu imensamente, no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Bahia, de maneiras diferentes, dando no tal de samba. O samba, o ritmo mais brasileiro, na verdade, é um tradução de coisas africanas. A palavra samba tem nos Andes, na Jamaica, em todo o lugar onde teve diáspora negra. A palavra “semba” é muito próxima. É um ritmo angolano, uma roda, umbigo. No interior da Bahia tem o samba de roda. No norte chamam de umbigada.

 

Umbigada?

Tem uma roda, as pessoas estão batendo palmas, cantando e tocando qualquer instrumento, e no meio da roda entra uma pessoa para dançar. Dança, dança, dança, depois dá uma umbigada – encosta a barriga na barriga de alguém, e esse alguém vai ter que ir para a roda dançar no lugar da pessoa que estava dançando. E assim vai, de umbigada em umbigada, todo o mundo participando. Vi muito isso acontecer na casa, no quintal de minha avó [Dona Canô]. Isso é formação da minha vida, da minha infância.

 

Estava a ouvi-lo e a pensar no seu tio Rodrigo, que dança como quem levita.

Dança incrivelmente, não é? Como é bom a gente ter um tio desses!

 

Há uma cena do filme do seu pai, Cinema Falado (1986), em que Rodrigo dança no quintal, com senhoras tocando prato, e ele faz esse movimento, a umbigada. O excerto está no Youtube.

Essa roda foi onde aprendi a tocar prato e faca. Pretendo, não sei se vou conseguir, tocar no show [dia 8, Lisboa; entrevista do dia 6]. Trouxe prato para tocar.

 

Não pode ser um prato qualquer?

Até pode. Mas é melhor que seja um prato já usado. Vai gastar um pouco.

 

O som é diferente, imagino.

Cada prato tem um som. Tem uns de que gosto mais. Escolhi uns pratos da casa da minha mãe. Já quebrei vários. Sobraram alguns.

 

É um bom presente para lhe dar: um prato de Lisboa.

A porcelana portuguesa é muito boa e elaborada.

 

E cara.

Pena. Porque vou passar a faca por cima! Bom. Vou olhar no meu prato, ver se é português, mas acho que é feito em Minas Gerais. Aprendi a tocar prato no quintal da minha avó, vendo as mulheres tocando.

 

A sua avó tocava?

Tocava. A irmã de Nicinha, Dona Edith, era a que tocava melhor. Tinha um ritmo no pulso, um negócio diferenciado. Todo o mundo tocava meio assim, tocando.

 

Dona Edith do Prato? É conhecida. E Nicinha?

Nicinha é uma tia emprestada. Era a mais velha de todos os irmãos. Foi a minha bisavó, mãe do meu avô que pegou a menina, que estava doente. Sarampo, muito brabo. Estava morrendo. Os vizinhos não sabiam que fazer. A minha bisavó era parteira, as duas eram. E conheciam alguma coisa de Medicina. Levou a menina para casa e ficou tratando, meses e meses. Quando ficou boa, criou-se uma situação familiar, a menina ficou vivendo com meus avós. As irmãs dela viviam defronte.

 

Há uma coisa engraçada que vem daí: a ideia de casas cheias. Uma noção de família muito alargada, e de pertença que não passa exclusivamente pelo sangue. Isso é muito marcante na sua formação?

Com certeza. Quando falo da minha sensação de família e de casa, lembro da Bahia, de Santo Amaro. A casa é uma casa cheia de gente. Uma casa com uma pessoa só, para mim, é inconcebível. Nem dentro de um iglu! O esquimó vai ficar sozinho? Um eremita? Tudo bem, o cara vai meditar numa caverna do Himalaia. Mas em casa?, sozinho, não! Casa tem que ter uma porção de gente dentro.

 

Isso levanta problemas sérios. De a pessoa encontrar o seu espaço e identidade nessa casa com uma porção de gente dentro.

Aí entra o espaço interno de cada um. A pessoa tem que abrir um espaço dentro de si onde vai encontrar sua identidade, onde vai se afirmar, onde vai saber quem ela é. Essa delimitação interna é mais profunda e pessoal do que a externa. É a pessoa que está se formando [nesta delimitação], e não uma pessoa que está sendo esperada ou imaginada ou moldada à força.

Sempre adorei casas cheias. Meus pais, também. A casa deles vive cheia, a minha, também.

 

Vai replicando o “cabe sempre mais um”?

Cabe sempre mais um. Com as suas peculiaridades, a ideia da casa cheia vai-se replicando mesmo. Parte da família da minha mulher é da Bahia; casa enorme, família enorme, uns 80 primos.

 

Quando esteve uns meses sozinho na Baía, foi uma contingência, foi para estudar. Mas não havia, então, uma necessidade de encontrar esse espaço interior?

Um pouco. Não estava procurando, mas talvez tenha encontrado isso. Talvez tenha encontrado um pouco do Himalaia, do espaço ermitão. Aconteceu. Eu queria estar junto da Bahia, da família de lá, dos amigos de lá.

 

A Física era também uma maneira de construir o seu iglu?

Não sei. A Física é bastante eremita. Tinha facilidade na escola para a matemática, as ciências em geral. Facilidade que contrastava muito com a dificuldade dos meus colegas. Eu vendo que eles achavam aquilo (que eu achava tão fácil e excitante) maçante e dificílimo.

 

Excitantíssimo.

Não é? [gargalhada] Veja você. Aquilo me deixava ainda com mais vontade de seguir mais adiante. Aquela excitação era, no ambiente em que eu vivia, até rara. Tenho colegas da minha sala do colégio que foram fazer Física comigo: dois. Mais tarde, três. Num colégio com 700 alunos, três é pouca gente...

Estudar Física tem uma característica solitária, mas não era isso que eu estava buscando. O que eu estava buscando era a natural excitação em relação às ciências matemáticas. Encontrei bastante, cheguei nos meus limites e parei.

 

Conte mais disso. De certeza que a opção pela Física não tem que ver com o facto de o seu pai ser quem é? É uma certa recusa da música?

Você não acredita. Ninguém ia para o científico! Até minha mãe, que tinha facilidade para matemática, foi estudar letras, aprender latim.

 

Excitantíssimo (agora falando sério).

Também acho. Adoro línguas. Não estudei latim, ficou faltando no meu repertório. Mas estudei grego, russo, italiano (uma das línguas mais bonitas do mundo), japonês. Só que a minha propulsão mais forte era para as ciências ditas exactas. Quando as estudamos mais, têm muito pouco de exacto. [O estudo da Física] é só a explicitação de que não se conhece nada, que quase nada pode se dizer sobre a Natureza. O pouco que se pode, com muita dificuldade se aproxima da realidade. Dentro destas dificuldades, as pessoas se engalfinham para tentar alcançar alguma luzinha. Cada uma dessas luzinhas acaba por dissolver ainda mais a certeza que se tinha.

Mas em todo o período em que estive na Física dei aula de música para adolescentes.

 

Ensinando o quê?

Ensinando um pouco de canto coral, ritmos, um pouquinho de instrumentos de percussão. Era base de musicalização, não era nenhum instrumento específico.

 

A sua aprendizagem, além desse ambiente que já descreveu, foi acompanhada de aulas?

Tive aulas com professores muito importantes. O Almir Chediak foi o meu primeiro professor de violão. Tornou-se um expoente no Brasil por ter publicado livros de música popular bem feitos, com muita devoção e delicadeza da parte dele. Eu tinha nove anos de idade e estudei com ele durante anos violão clássico. Já adolescente, fui estudar violoncelo com o David Chew, um inglês-alemão que vive no Brasil. Além do Jaquinho [Morelenbaum], que não foi meu professor, mas foi meu mentor.

 

Sempre com grande prazer, essa aprendizagem?

Estudar música não exactamente um grande prazer. É muito repetitivo, mecanicamente repetitivo. Demora muito para conseguir galgar pequenos degraus. É um estudo em que dói a carne, dói a paciência, dói a esperança. Tem uma hora em que acha que nunca vai conseguir se aproximar da música ou do instrumento, tamanha é a dificuldade. Claro que há gente com muito mais facilidade. Mas mesmo o Jaquinho, que obviamente tem uma facilidade enorme: o dedo dele sangra. Sangrou muito e de vez em quando sangra ainda.

 

Gilberto Gil, que toca violão genialmente, ensinou você?

Me inspirou muito, me excita até hoje. Tive a grande sorte de poder sentar na frente dele, ver tocando de perto, aprender directamente dos dedos dele algumas das suas músicas. Mas para chegar nesse estádio, já tinha passado por anos de repetição maçante.

Quando você não sabe tocar um instrumento e vê alguém tocando, a primeira sensação é romântica. Nossa, como aquilo é bonito! Emociona mesmo. Quando quer se aproximar, se esquece do romantismo. Quase que não gosta mais do instrumento quando finalmente aprende a tocar.

 

O que significa aprender a tocar?

Significa ganhar intimidade suficiente para não precisar mais de tanta repetição e exercício, e ao mesmo tempo liberdade para andar por caminhos mais pessoais. Aí vem uma gratificação sem preço. Aquele esforço todo valeu a pena, lá no final. Há que ter fé! No meio, até a fé falta.

 

Estava a dizer que deu aulas a adolescentes. E que a música esteve sempre lá, mesmo quando era físico.

É. Estava construindo meus primeiros estúdios de gravação, em parceria com o [músico e amigo da adolescência] Lucas Santtana. Comprando equipamentos, escolhendo, ligando, aprendendo a mexer. Desenhando estúdios, construindo paredes, literalmente, cuidando a acústica, os ângulos de cada parede, o material de cada parede. Eu e minha turma: a gente gosta de tocar, de aprender, gosta de música de todos os buracos do mundo, não só da música ocidental e contemporânea; mas também adora o processo de gravação, o som que têm os instrumentos, o som que tem o equipamento que grava.

 

Foi então um físico atómico que sabe sambar.

Viu? Não tinha muitos na faculdade, mas eu era um deles.

 

Quando é que percebeu que a sua vida era mesmo a música?

Desde que nasci. Nasci no dia de Santa Cecília [padroeira dos músicos]. Não tenho o que fazer! O Domenico me ligava: “Cara, pode fazer o que você quiser. Não tem por onde fugir.” Domenico dava aulas comigo. Debatemos essa questão. Eu voltava da faculdade, ele me esperando para dar aula. Mas nunca pensei em parar, fugir. Não é o nome do meu pai ou da minha tia [Maria Bethânia]. O problema é Santa Cecília, lá em Roma. [riso] Estive na igreja dela, no Trastevere. Vi a tumba.

 

Que é que fez? Pôs-lhe uma flor?

Não. Assisti à missa, super linda, cantada. A igreja se tornou clarissa, de monjas reclusas. Um coral fabuloso. O padre era o regente. O missal era uma partitura. Santa Cecília era uma moça de Roma. Ouvia os anjos cantando e tocando. Quem chegava perto, ouvia também.

 

Para encerrar o assunto: trabalhou cinco anos num laboratório. Não foram cinco meses. Quero dizer, a Física foi um assunto sério. Mas desistiu.

A ciência era muito demandante. Se dedicasse a minha vida inteira àquilo, já iria ficar exausto. A minha vida tinha muita coisa. Lancei o disco Máquina de Escrever Música nessa altura. Estava produzindo, tocando, cantando pelo mundo todo. Como é que ia continuar fazendo isso e trabalhar no laboratório de uma maneira honesta? Não dava mais. Fiquei com a música, que foi aquilo com que sempre fiquei. A música não é uma escolha, é uma continuação.

 

Fomos por caminhos e caminhos. Agora que vimos dar novamente a casa, à música, à Bahia, falemos da génese deste disco, que tem lugar nesse período de dois anos e meio que passou em Salvador, entre 2010 e 2012. O que é que percebeu de si e da música que queria fazer?

Percebi que gosto desse ritmo que tenho dentro de mim e que reencontrei estando na Baía. Que seria bom se conseguisse traduzir esse ritmo para o disco, para o trabalho que estava na iminência de se fazer. Acho que conseguimos isso, Pedro Sá e eu. Ficou uma sensação de espaço delicado, calmo, também com certa festa, certa graça.

 

Atravessado pela espiritualidade da Bahia ou não?

Bastante. Não sei se explicitamente. Qualquer espaço de pausa que haja, mesmo numa casa cheia, naturalmente traz uma reflexão que se pode dizer espiritual. Além de tradições espirituais explícitas, vindas de África. Isso, que é muito evidente na Bahia, talvez se encontre dentro desse disco. Para dar um exemplo. Há uma história de Dorival Caymmi que meu pai contava. Ele foi ter com Dorival na casa dele, uma casa de veraneio no Rio, numa praia longe. Meu pai entrou. E Dorival: “Caetano, vem cá, para te mostrar uma coisa nova que eu fiz”. “Será que é um quadro?”, meu pai pensou; porque ele pintava. Uma música? Foi andando pelo corredor, levando-o para um quarto onde estaria essa coisa nova. Era um quarto vazio, tinha uma poltrona, um ventiladorzinho no chão, nada na parede. Dorival falou: “Olha para isso. Me sento nessa poltrona e fico só pensando em coisa boa.”

 

Coisa Boa é o título do disco, letra do Domenico escrita numa van a caminho do hotel. Já contou em diferentes entrevistas que era uma música de ninar que cantava para os seus filhos, Rosa e José, adormecerem.

É. Mas a coisa boa de que o Dorival falava era o espaço reflexivo que chega até a ser espiritual. Em muitas tradições religiosas isso é o fundamental. O título do disco ficou ligado a essa história, mas não foi de propósito. Foi, sei lá, um acaso. Mais curioso é o facto de Máquina de Escrever Música ser um título dado pelo Tom Jobim.

 

Que história é essa?

Estava trazendo um computador para o Rio de Janeiro vindo dos Estados Unidos, chegando no aeroporto que hoje tem o nome dele. O fiscal da alfândega falou: “Que é essa caixa, maestro?” “É minha máquina de escrever.” “É um pouco grande para ser uma máquina de escrever, não acha?” Aí o Tom respondeu: “É porque é uma máquina de escrever música”.

 

Foi o título do seu primeiro disco, que foi o primeiro dos três que gravou com a banda +2. Era, então, Moreno +2, depois Domenico +2, depois Kassin +2.

O título do Coisa Boa está geminado com Caymmi, Máquina de Escrever Música com Tom Jobim. Olha só, é assim que a gente se sente no Brasil, nos braços do Tom Jobim, nos braços do Dorival Caymmi. E não só porque sou filho do meu pai, sobrinho da minha tia: é porque sou brasileiro.

 

Metaforicamente, ok. É bom chegar ao Brasil e aterrar no aeroporto António Carlos Jobim, a que todo o mundo continua a chamar Galeão. Aterramos nos braços dele.

São metáforas. Não me joguei nos braços do Tom Jobim. Conheci todos eles. “Oi, como vai?” Fiquei sentadinho. Era criança. Não tenho nenhuma história para contar que nem essas do meu pai.

 

Quando é que deixou de ser o filho do seu pai, no sentido em que deixou de ser apresentado como o filho do Caetano? Agora é você com identidade própria, percurso próprio.

Tem que perguntar a uma outra pessoa que esteja fora de mim. Para mim, as duas coisas sempre aconteceram. Sempre fui e sempre vou ser o filho do meu pai. E sempre fui eu, com a minha identidade.

 

É barra pesada, lidar com o rótulo, a curiosidade.

A única parte realmente maçante são os jornalistas, que me perguntam isso sucessivamente, desde que sou criança. A gente aprende a deixar para lá, a achar graça, até, a se virar – e se vira. As pessoas em geral: algumas têm curiosidade, outras não, descobrem a posteriori e acham engraçado.

 

Eu, que não queria fazer as perguntas a que sempre se responde numa maratona de entrevistas, acabei fazendo a mais constante de todas.

A priori, a curiosidade é boa. Inclusive na minha carreira. Tem curiosidade em saber o que é que o filho do Sérgio Buarque de Holanda está fazendo? “Pôxa, ele escreveu um livro”. Lê o livro e fica maravilhado. Dá graças a Deus porque teve a curiosidade de ver o que é que o filho daquele grande escritor estava escrevendo. [Chico] é um grande escritor também. Que livro bom, que livros bons.

Se a pessoa não está publicando nada, essa curiosidade é mais maçante. Não tem muito o que mostrar.

 

Voltemos ao disco. Na nota de intenções, usa as palavras “amparo” e “graça”, que sublinhei. É um tímido que está sempre com outros, que procura nos outros um amparo. É isso?

Usei essas palavras para dizer a minha relação com a banda +2, com os meus amigos mais íntimos que me ajudaram nesse primeiro processo de descobrir como cantar, como fazer show, como fazer disco. Quando digo que fui amparado por eles, não é só a ideia de ter sido carregado. Principalmente eles foram um espelho. É uma forma de ter a certeza do que você está fazendo porque a outra pessoa está te mostrando o que você está fazendo. Sem essa certeza, é muito difícil seguir em frente. O amparo é ter esse diálogo, franco, de amigo de escola. Será que isso ‘tá legal? Gosta, não gosta? O que é que você ouve? Isso ampara o artista que está nascendo.

 

E graça?

Meus amigos não só servem de espelho como têm em si a chama artística. São compositores de mão cheia, têm a força de cativar o público. Isso pega. O fogo pega. A graça pega. Dividir o palco com o Domenico e o Kassin? As pessoas querem ver. O Domenico anda na rua e chama a atenção. O Kassin nem se fala. Não é por serem bonitos ou feios ou estranhos: é porque têm graça. No sentido de terem alguma coisa que dá vontade de parar para olhar.

 

E a sua graça, o seu estilo, é qual?

Então. De alguma forma, você traz isso dentro de você, mas também vai sendo influenciado. O sorriso traz o sorriso, o choro traz o choro. Eu tinha qualquer coisa para mostrar que se sintonizava com aquilo que os meus amigos tinham. A sintonia também pode ser amparo e graça.

 

E a sua madrinha, Graça? Produziu com o seu pai o disco Recanto (2011). Têm uma relação forte.

Gal [Costa], minha madrinha. Maria da Graça. Não conheço gente jovem com esse nome. A mãe de Gal chamava ela de Gracinha. Era lindo ouvir: Gracinha!

 

Que música acordou a cantar? Chegou a Lisboa há poucas horas, fez a viagem durante a noite.

Era uma coisa que estava tocando na minha cabeça. Que é que era? Ah! Era aquela música do meu pai, que estava, no outro dia, com meus irmãos, tocando. O meu irmão Zeca conheceu a música por acaso, com uma outra pessoa cantando, e foi descobrir que aquela música é do nosso pai. “Ela e Eu.” A minha tia Bethânia gravou, a Marina Lima gravou.

 

Como é que é?

[canta] “Há muitos planetas habitados... imensidão do céu... mas nada é igual a ela e eu”.

 

Quer dizer mais alguma coisa?

Quero dizer que adoro música. O formato canção, do ponto de vista da comunicação, com os outros seres humanos, com o mundo, comigo mesmo, é fundamental. Se não existisse a canção, não sei o que seria de mim. Juro. Talvez eu fosse até incapaz de me comunicar.

 

 

 Publicado originalmente no Público em 2015

 

 

 

 

 

 

 

Love Letter para Maria de Sousa

02.10.22

Escrevo a ouvir Dido e Eneias de Purcell. Maria assistiu à sua representação, todas as noites, presa à voz de Janet Baker. Foi na Escócia, há muitos anos.

Escrevo uma love letter para Maria, uma carta de amor num quadro de pandemia vírica que a levou. Maria morreu na madrugada de 14. Sabia da probabilidade da morte iminente, sabia como o corpo ia capitular (ou simplesmente dizer: não posso mais), sabia como uma médica e cientista sabe, depois de ter a confirmação de que havia casos de infecção na clínica onde fazia hemodiálise três vezes por semana. Poucos dias antes, já com sintomas, escreveu um poema que é uma despedida — e que é, sobretudo, uma exortação à vida. De uma pessoa que encontra nos dias uma nitidez, um brilho, uma alegria infantil. Que tem uma fome de vida.

Começo pela Escócia e pela música, começo pelo poema que revela a sua coragem e sabedoria, núcleos da vida de Maria.

Esteve para ser pianista. No meio de curso de Medicina impôs-se a escolha, e preteriu o conservatório. “Prevaleceu a importância de dar prazer aos outros.” Uma forma elegante de falar do sentido de dever, daquele Portugal em que uma mulher estuda Medicina. Esteve anos sem tocar. Em Glasgow, jovem investigadora, ouve Janet Baker, uma aparição, outras vozes, e olha pela janela do laboratório.

Vejo devagar essa janela, em duas fotografias, reproduzidas no livro de Maria Meu dito, meu escrito. As galinhas são as mesmas, numa é Inverno e há neve, na outra é Verão. A paisagem é simples: árvores, uma cerca, um casinhoto. As imagens revelam os ciclos da natureza, a rotina de quem vê todos os dias as mesmas ramagens ao fundo, o andar sem tino das galinhas (que comem e mais o quê?), o tempo que pesa de outra maneira quando o vemos à distância de 50 anos. Como escreveu nos seus últimos versos

Momentos então

Eternidades agora

A vida visível daquela janela dá-nos o tempo cronológico da Maria, e tem agora a espessura do tempo histórico, da eternidade. Porque é que Maria quis incluir aquelas fotografias?, o que é que nos estava a dizer?

Neste tempo cronológico em que estou e escrevo, dia 16 de Abril, sinto dificuldade em elaborar um mapa preciso da sua vida. Isto não é um obituário, é uma carta de amor. Mas preciso partilhar com outros o legado, o fulgor de Maria, o privilégio de tê-la conhecido. Porque é que ela fazia tanta diferença.

— E agora, Cláudio, quando quisermos perguntar o que fazer, perguntamos a quem?

— À memória da Maria. E damo-nos descomposturas, para ter a certeza de que ela está viva. 

Dar descomposturas (a toda, mas mesmo toda a gente — e daí vem uma fama de ser feroz) era uma forma de gritar: “Não prestes atenção ao que não merece atenção. Observa, interroga, escolhe”. Dito com frontalidade e amor. Estando absolutamente naquele instante e com aquela pessoa, sem dispersões.

(A mim dizia-me: “A impressão que me faz que ande aí num virote. Para quê? Sente-se a escrever”.)

Maria de Sousa nasceu em Outubro de 1939. Pouco antes, o pai, que era piloto da barra, escreveu no diário: “Hoje começou a guerra. Stop”. A escrita diarística, poética, científica, a escrita de cartas, emails, é, para si, um exercício essencial: “Os momentos muito importantes não se podem escoar. Tem de se pôr uma rolha no rio. Tem de se fazer parar o rio, senão aquilo vai tudo. Não temos uma memória infinita e a pessoa não se vai lembrar dos pormenores todos, é impossível. A sensação que tenho é que escrevo, e sobretudo escrevo nalguns momentos, para procurar fazer parar o momento”.

Imagem poética e estranhamente exacta: pôr uma rolha no rio. Estancar o fluir, parar a vida, criar cápsulas, ver no microscópio. Senão aquilo vai tudo, na enxurrada.

Compreender o movimento, o devir, o sentido que as coisas têm esteve na origem da sua célebre descoberta, em 1966. Resumiu-o na primeira entrevista que lhe fiz, em 2014: “As minhas observações demonstravam que os animais timectomizados à nascença ainda tinham linfócitos. E mais, os espaços vazios de linfócitos eram distintos dos espaços onde havia linfócitos, o que significava que as células pareciam saber para onde ir. [...] As do timo iam para o território a que chamámos ‘área dependente do timo’ e que hoje é conhecida por Área T. E achei esse fenómeno de as células saberem para onde vão tão importante que lhe dei um nome: ecotaxis.”

Maria soube sempre para onde ia. Depois do Reino Unido, foi para Nova Iorque. O seu contributo para a ciência foi notável, fez escola, deixou discípulos. Tenho a impressão de que isso era, para ela, o mais importante: a relação com os alunos, a procura do saber, interrogar o que não se sabe. Menos a glória pública, que também teve. Era imensamente discreta. Tinha, por isso, uma relação ambígua com o livro Um mundo imaginado, de que foi protagonista e que inspirou gerações de jovens cientistas em todo o mundo. A autora, June Goodfield, acompanhou durante anos Anna Brito (a Maria Ângela Brito de Sousa), e registou o processo de investigação, a dedicação absoluta, a dinâmica das equipas — aquele estar no mundo.

Quando regressou a Portugal, os amigos achavam que estava maluca, porque ia trocar Nova Iorque pelo Porto. Durante quatro anos, preparou a transição, e assistiu ao florescer faseado das flores: mais cedo no Porto, mais tarde em Boston e em Nova Iorque.

Maria amava as flores.

— Flores por perto. Keep blossom.

Wear your tribulation like a rose: verso-essência de Auden, o poeta preferido. Veste a tua tribulação como uma rosa. Talvez isto queira dizer: a poesia e a ciência como formas de procura, tentativa de descortinar as regras do desconhecido, com delicadeza e urgência. A poesia como aquele lugar onde as palavras parecem saber para onde ir. Como as células do timo.  

Na conversa de uma semana que resultou no livro Este ser e não ser — cinco conversas com Maria de Sousa (feito para assinalar os 50 anos da sua descoberta e distribuído na comunidade científica), começámos por falar das rosas do jardim: de como teriam sobrevivido à intempérie da noite passada. Tão desprotegidas. Maria lembrou que têm espinhos, pétalas, que ferem e deslumbram. E juntas compreendemos que o aroma da rosa não se vê numa TAC, não se isola no microscópio. Não quer dizer que não exista, que não se sinta, que não opere milagres. O riso de Maria, expressão daquele gozo de estar viva e fazer coisas, não aparecia numa TAC. Mas aparece agora cada vez mais. É aquilo que nós, amigos da Maria, cúmplices de uma viagem, pessoas que foram tocadas pela sua presença, mais ouvimos. Ouviremos o riso, teremos a lembrança, saberemos que é isso que no-la devolve à esfera da vida. A sua presença está nisto. Escreveu-o num último poema, em inglês, que era uma outra língua materna, e que teve tradução do poeta e médico, e aluno da Maria, João Luís Barreto Guimarães.

Porque posso morrer e vós tereis de viver

Na vossa vida a esperança da minha duração.

 

Os últimos dois anos e meio de Maria de Sousa foram uma Primavera inesperada. Foi mesmo um florescimento, quando podia ser um definhar árido e doloroso. Uma insuficiência renal obrigou-a, a partir de Dezembro de 2017, a fazer hemodiálise três vezes por semana. Nos restantes quatro dias, continuou a trabalhar, a estudar, a acompanhar alunos e investigadores. Manteve-se igual a si própria: lúcida, corajosa, combativa. Com alegria na vida. Apesar do enorme esforço físico que isso representava. 

Nos últimos meses, voltou a escrever poesia, em inglês. O poema-despedida não é uma peça isolada. Foi escrito no dia 3 de Abril, antes mesmo de fazer o teste que confirmaria que estava infectada com Covid 19. O teste foi feito no dia 6, no dia 7 à noite foi internada no Hospital Curry Cabral, e depois transferida para os cuidados intensivos do São José, onde morreu na madrugada de 14. 

Os dias anteriores ao teste foram de enorme apreensão: tinha sintomas. E exasperava-se com o funcionamento da clínica NephroCare no Restelo, onde era paciente. Numa das muitas conversas telefónicas que tivemos já em isolamento, repetiu-me as palavras que usou para manifestar a discordância (e mesmo indignação) pela não-observância de alguns cuidados: "Falo consigo [directora da clínica] não como utente, mas como sua colega, como médica e cientista. Isto não faz sentido". E queixou-se-me do frio. Disse o mesmo ao médico e amigo Hélder Araújo, a outros amigos. 

Esteve desde sempre consciente do perigo. "Se alguém na clínica estiver infectado, vamos todos num instante." Foram duas semanas, no seu caso, entre o início da sintomatologia e o fim. Alegadamente, foi infectada na clínica. Um bombeiro confirmou-lhe que havia várias pessoas infectadas. A sua cuidadora, Aurora, passou a dormir em sua casa. Feito o teste no mesmo dia, o resultado foi negativo. Segundo uma notícia da RTP, a clínica abriu um inquérito para apurar responsabilidades. Aguardo, aguardamos.  

A notícia da morte de Maria deixou muitos, muitos numa tristeza profunda. Na impossibilidade de nos despedirmos dela, fizemos (cerca de 150) um velório por Zoom. Deixou-nos mais apaziguados, porque foi uma forma de velar e chorar a nossa amiga. Espero não perder o que me ensinou. Entre essas coisas, está a faculdade e a disponibilidade para encontrar a beleza; por exemplo, nem há um mês, numa das sessões de hemodiálise, ouviu um programa de Martim Sousa Tavares na Antena 2 e ficou a pensar na pergunta que aí era feita: porque é que a voz humana não chega?, como é que se passa para os outros instrumentos?

 

Publicado originalmente no Jornal de Letras em Abril de 2020