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Anabela Mota Ribeiro

Miguel Vale de Almeida - Calendário do Advento

30.11.22
Miguel Vale de Almeida é antropólogo, nasceu em 1960. As questões de género e sexualidade, assim como raça e pós-colonialismo, estão no centro da sua investigação. É professor catedrático do ISCTE, activista dos direitos LGBT. Tem uma filha chamada Salomé de 14 anos. No livro mais recente escreveu: “a vida é mesmo um maná de símbolos à nossa escolha”. Algumas noções, tão férteis quanto símbolos, de que vamos falar hoje, 30 Nov: genealogia, memória, hibridez, utopia.
 

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Calendário do Advento, RTP3, 20h. Todos os dias até ao Natal.
Fotografias de Estelle Valente.

Helena Pato - Calendário do Advento

29.11.22
Helena Pato não passou nenhum Natal na prisão. Nasceu em casa, num tempo em que se nascia em casa, na Beira Litoral, em 1939. Conseguimos imaginar o que era esse Portugal, no ano em que começa a Segunda Guerra Mundial? Foi professora de matemática durante 36 anos, militante antifascista, sindicalista. A sua atividade política começou no MUD Juvenil, em 1958. Militou no Partido Comunista entre 1962 e 1991.
 

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Calendário do Advento, RTP3, 20h. Todos os dias até ao Natal.
Fotografias de Estelle Valente.

Pedro Strecht - Calendário do Advento

28.11.22

“A alegria é a coisa mais séria da vida”, escreveu Almada Negreiros, artista imenso, que fez, até, um presépio que se vislumbra no nosso cenário. A alegria é uma boa tradução de felicidade, e é uma associação com o tempo do Natal e do ser criança. Palavras também irmãs: crianças e Natal. Este programa chama-se Calendário do Advento. Um calendário marca o tempo. Então, uma definição de tempo por uma criança de sete anos: “o tempo é uma bola redonda que ainda não parou de andar”. Hoje, para correr atrás dessa bola, brincar com ela, experimentar a alegria, falo com o pedopsiquiatra Pedro Strecht.

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Calendário do Advento, RTP3, 20h. Todos os dias até ao Natal.
Fotografias de Estelle Valente.



Aldina Duarte - Calendário do Advento

27.11.22

“Ser-se de esquerda é parecido com ser-se cristão. Eu não sou católica, mas sou devota do cristianismo. Adoro toda a história de Jesus. E acho que se se partir do Amor, vai-se sempre num caminho bom”. Aldina Duarte, uma princesa prometida, uma presença messiânica, é a primeira entrevistada do Calendário do Advento. Todos os dias, folheamos este mapa do tempo, vamos até à véspera do Natal. Em cada sulco, uma surpresa, um encontro, uma maneira de interpretar o grande mistério da Natividade. Aldina nasceu em Lisboa em 1967, é fadista. Ouvir Aldina é assistir a um estranho fulgor.

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Calendário do Advento, RTP3, 20h. Todos os dias até ao Natal.
Fotografias de Estelle Valente.

Álvaro Siza Vieira

13.11.22

Não a propósito da arquitectura, mas do desenho, tinha dito: “Há uma ligação entre mão e mente muito estreita”. Ao longo da entrevista, procurou-se essa ligação. Falou dele próprio e menos do génio mundialmente conhecido por Siza Vieira. Nasceu em 1933.

O dia da entrevista estava marcado com um mês e uma semana de antecedência. Pelo meio, fez incontáveis viagens, e recebeu o prestigiado RIBA das mãos da Rainha de Inglaterra. Uma canseira. Mas acaba por gostar.

Gosta da vida que tem. Não é o misantropo que dizem que é. Ri-se por isto e por aquilo. Dá gargalhadas, espessas, de quem tem a voz e as cordas vocais entupidas pelo tabaco. Fuma muito.

A entrevista foi uma viagem. Às Sete Casas onde passou a infância, em Matosinhos. A um tempo em que a Segunda Guerra era uma ameaça. Ao Marco, à sua única igreja construída. Mas, por acaso, fomos dar ao Marco por causa de uma irmã que é freira e da descrição de uma casa onde as mulheres eram de missa diária. Não fomos às piscinas de Leça da Palmeira, nem ao salão de chá da Boa Nova, obras de final dos anos 50, quando ele era um arquitecto recém-formado. Nem fomos à muito celebrada Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, obra maior dos últimos anos. Mas fomos ao Brasil que o pai lhe deu a conhecer, através de relatos dos 12 anos que aí viveu. Fomos a muito lado. Sem sair da sala onde trabalha.

Siza Vieira falou de quase tudo. Não tocou em assuntos que eu e toda a gente sabemos que são tabu. Assuntos íntimos. “Não vou fazer confissões nem revelar a intimidade, não é?”. É viúvo e tem dois filhos. 

 

 

Perguntou-me qual é o tema da entrevista. Quando disse que o tema era o senhor e a sua obra, respondeu, muito pasmado: “Eu?”. Já chegámos à fase em que o ícone Siza ocupa de tal maneira o espaço que o homem Álvaro Siza não é um tema?

É que isso, [quem sou], é do domínio do privado. Não vou fazer confissões nem revelar a intimidade, não é? Quem sou é um tema em princípio pobre. Mas agora depende mais de si do que de mim.

 

Comecemos pelo princípio. Para estarmos sempre entre a obra e o homem, peço-lhe que descreva a casa da sua infância. Que é um modo de perguntar como começou a olhar o espaço.

Ainda era o tempo em que as famílias eram grandes. Havia tias, tios, avó – avô, não –, pais; irmãos, éramos cinco. Era uma casa cheia e com aquele staff importantíssimo: as tias solteiras, que garantiam o funcionamento da casa com enorme dedicação e competência. Tias paternas. Havia uma tia materna, mas essa vivia em Lisboa – o que me proporcionou algumas férias em Lisboa. A primeira vez foi em 1940; o fim era a Exposição do Mundo Português.

 

O espaço da casa, propriamente, era como?

Era uma série de casas, contínuas, construídas pelo chamado Brasileiro Torna Viagem, que ainda conheci. Na Rua Brito Capelo. Era a rua onde, mais à frente, estava a câmara, as lojas; mas esta zona era só residencial. O brasileiro construiu sete casas; aliás, são conhecidas pelas Sete Casas.

 

O senhor nasceu em casa?

Sim. Uma casa com uma ala contínua, cave e dois pisos. Não era uma cave: era um piso de pouca altura, onde estavam as lojas, os serviços, uma sala onde se brincava. E com jardim. Uma parte da minha infância tem lugar no jardim, no pátio, com relações muito fortes com a vizinhança. Tudo famílias grandes. Juntávamo-nos no quintal de uma das casas, conforme fosse, e brincávamos aí. Portanto, uma infância feliz.

 

Quando pensa nessa infância feliz, que episódios é que aparecem?

Ui, deixe ver se me lembro… Mudança marcante: os meus pais deixaram a casa; foi quando nasceu a minha irmã que é 15 anos mais nova do que eu. Já não havia condições para ficar ali, com conforto.

 

Quantos irmãos são? Como era a família?

O meu irmão mais velho morreu muito jovem. Morreu num acidente. Tinha acabado de se formar em medicina, brilhantemente. Era desportista, jogava basquete. Uma trave, um cesto que caiu, apanhou-o, estava sentado, de costas. Ele tinha 21 anos e eu 19. Era o mais velho; dois anos menos, eu. Depois um irmão que vive ainda em Matosinhos, engenheiro. Uma irmã que é freira, doroteia. E outra irmã que é a Teresa.

 

Tinha de partilhar o quarto? E como era o quarto?

Na casa da minha avó havia um quarto no piso de cima, onde estávamos eu e o meu irmão mais velho. A minha irmã tinha outro quarto, e quando nasceu a Teresa fomos logo para outra casa. Perto. As refeições eram com 12, 14 pessoas à mesa. O centro da casa era a sala de jantar, que era também sala de estar. Levantava-se a mesa, as pessoas ficavam ali à volta. A tricotar (a minha mãe e as minhas tias). O meu pai, habitualmente, a estudar, a trabalhar. Tinha uma vida muito ocupada. Como tinha de ser para manter a família. Era engenheiro na refinaria de Matosinhos. Mas à noite dava aulas na escola Infante Dom Henrique – desenho de máquinas. E nós, brincávamos.

 

Brincava a quê?

Eu, desde muito cedo, fazia desenhos ao colo de um tio. Que embora fosse uma negação para o desenho, me instruía e animava essa vontade. Suponho mesmo que criou essa vontade – coisa estranha. A minha mãe era outra negação para o desenho. Quer eu quer o meu irmão mais velho, a [escola] primária, estudámos em casa.

 

Tinham uma preceptora?

Era uma prima da minha mãe que era professora e que mais tarde foi nossa explicadora de inglês. Morava em frente. Está a ver, era tudo muito relacionado… Atravessa a rua de manhã e dava-nos aulas.

 

Porque é que os seus pais optaram por não os mandar à escola?

Possivelmente por quererem ter os filhos por perto. Isso colocou-me alguns problemas. Quando fiz o exame da terceira classe, não tinha a mínima noção do que era uma turma, e mesmo do comportamento [que se devia ter. Em casa] chegava a minha professora, beijinho, sentar – sempre na sala de jantar –, o ditado, a cópia, essas coisas. No exame, os meninos levantaram-se todos, eu não. Estranhei, levantaram-se, que é isto? Na quarta classe também aconteceu uma coisa importante: o professor faz-me uma pergunta, um problema de matemática; olhei e muito calmamente disse: “Não se pode fazer”. Na assistência, estavam a minha mãe e a minha professora. Geladas. De súbito, o professor começou a corar. Realmente, o problema era mal dado… Eu não tinha medo nenhum. Depois, estudei no Colégio Brotero, e lá fui ganhando medo e o nervoso. Como me competia!

 

O tempo começou a contar de maneira diferente a partir do momento em que ganhou medo e nervoso. A infância passou a ser outra.

O tempo que está para trás, como correu bem…

 

É sem sombra, sem mancha.

Sim, sim.

 

Até aos oito, nove anos, não sentiu medo? Das coisas em geral, e não apenas das aulas e do professor.

É possível que alguma vez me tenha pegado com vizinhos, mas não me lembro. As crianças eram muito protegidas, a vida era num círculo restrito. A ida para o colégio não foi fácil. Eu não estava habituado ao convívio com pessoas que não eram da relação da minha família. Depois adaptei-me – incluindo o medo.

 

A mesa de jantar onde tudo se passava era parecida com esta onde estamos, e que é onde trabalha?

Era mais larga, menos comprida.

 

É fácil imaginar que se reproduzia ali a imagem da Última Ceia. Todos à mesa. A partilhar. 

Mas era, era mesmo! Ao lado, havia um quartinho onde estava um divã, uma escrivaninha e, coisa importante, o rádio. O meu pai era um apaixonado pela ópera e transmitiu-me esse gosto. O rádio, ouvia-se muito mal, muitos ruídos e tal, mas ouvíamos. Ouvíamos o Fernando Pessa na BBC. Seguíamos com muito interesse e receio a guerra. Havia exercícios que fazíamos: um que divertiu muito os meninos, que não estavam conscientes dos perigos, foi colar fitas nos vidros e janelas.

 

Porquê?

Para resistirem, se houvesse bombardeamentos. Fazia-se uma quadrícula com fitas adesivas, que foram distribuídas. Havia exercícios de simulação de um ataque; aviões, navios e submarinos andavam ali muito perto. Foram distribuídas lanternas aos homens que tinham idade de fazer guerra. Uma lanterna que tinha um foco vermelho, um foco verde e um foco branco.

 

Tem uma memória muito vívida disso.

Aquilo era motivo de divertimento, se o pai emprestava a lanterna. Também me lembro do dia da vitória, em que muita gente foi para a rua, celebrar o fim da guerra! Mas houve pessoas que se zangaram, discussões acaloradas; e gente que estava convencida de que a Alemanha ia ganhar a guerra e que isso seria óptimo. Aquilo dividia-se mais ou menos assim: 50% anglófilos e 50% germanófilos.

 

As imagens das câmaras de gás, dos seis milhões de judeus e dos 20 milhões de russos não apareceram logo…

Não se sabia. Recebíamos uma revista inglesa que era mandada pela propaganda inglesa, que documentava com fotografias as frentes de combate. Já mais tarde, havia distribuição de intensa propaganda americana. Mandavam chocolates e brinquedos. Outra coisa forte, em relação à família, foi a presença do Brasil.

 

O seu pai falava muito do Brasil, onde viveu até aos 12 anos?

Falava bastante. Contava-nos histórias do Belém do Pará.

 

Eram histórias de aventura, de liberdade, de exotismo?

Histórias que davam o ambiente. Falava com muita paixão do Brasil. Falava, por exemplo, dos pássaros pretos – não me lembro de como se chamam – que faziam a limpeza de Belém do Pará.

 

Urubus?

Sim! Uns pássaros feios. Falava do teatro de ópera, em Manaus. A vida cultural era riquíssima. Contaram-me na Colômbia, (nas duas vezes que fui lá, para seminários na Escola de Arquitectura de Bogotá), que se fazia a viagem a partir de Bogotá, que é a 4000 metros [de altitude], para chegar a uma cidadezinha junto a um rio, afluente do Amazonas. À medida que se vai descendo, é impressionante o aumento de dimensão das folhas das árvores; são enormes quando se chega à cidade. Contaram-me que o Caruso ia de barco até essa cidade e depois ia até Bogotá de burro! Imagine que super-homens eram estes! E chegavam lá e cantavam!

 

As coisas que o seu pai contava pareciam-se com essas? E alguma vez fez essa viagem?

Fiz, de carro. O meu bisavô, que era fotógrafo profissional, tinha um estúdio em Belém e na Goiânia, onde tinha um sócio inglês. Estive lá há pouco tempo. O estúdio, a casa propriamente, já não existe. Ele deslocava-se entre o Pará e a Goiânia e esteve na Exposição de Chicago [1893]. Descobriu-se a existência de um álbum da cidade com fotografias do meu bisavô. Reeditaram-no há uns anos. Organizaram uma exposição com as fotografias do bisavô e a mim pediram-me para fazer desenhos dos mesmos sítios, hoje.

 

Foi emocionante fazer isso, indo ao encontro do seu passado, da sua genealogia?

Não fiquei em estado de comoção convulsiva, mas sim, foi emocionante.

 

Esse encontro com o passado, procura-o? Mesmo em relação ao Caruso: se faz uma viagem dessas, pensa que está a refazer a viagem de alguém que admira?

Bem gostava, mas não tenho nem tempo nem energia para ir de burro do [clima] tropical até à montanha! [risos]

 

Herdou do seu pai o gosto pela ópera. A última vez que Caruso se apresentou em público foi em Sorrento, no jardim do Hotel Excelsior.

Não sabia. Já fiquei várias nesse hotel, em frente ao mar, com o Vesúvio por perto. Uma maravilha. Estou a fazer um trabalho em Nápoles, juntamente com o Souto Moura. Vou lá para semana. E vou cantar! [risos] Nesse hotel, passou tudo: o Humphrey Bogart, reis…

 

E o Siza.

[gargalhada]. Não me parece que o carisma seja o mesmo. O Humphrey Bogart, fumando sempre. Recentemente vi num hotel em Londres o Breakfast at Tiffany’s; no filme, todos fumavam, e no hotel era proibido! Uma nuvem de fumo que quase invadia o espaço, mas que ficava no ecrã. Tornou-se um filme sádico, para um fumador.

 

Porque é que fuma tanto?

Comecei a fumar bastante tarde. Aos 20 anos ou coisa assim. Ninguém falava dos malefícios do tabaco. Era natural o menino, quando começava a crescer, a ganhar buço, fumar. Às escondidas dos pais. As mulheres não fumavam. Nos anos 40 começaram a vir os refugiados da guerra. Alguns ficaram cá, a maioria seguiu para os Estados Unidos. Ficou cá, por exemplo, a Ilse Losa. A Ilse Losa ia ao café: aquilo era um escândalo! Criaram-se modas; começaram a usar-se calças (o que era inadmissível), e o chamado cabelo à refugiada (cortado curto).

 

Começou a fumar com quem?

Todas as pessoas das minhas relações fumavam, e eu também comecei, Maria vai com as outras. 

 

O cigarro, nos momentos em que está com outros e não pode desenhar, é uma muleta e uma barreira?

Há um problema do uso das mãos ligado a isto. Uma pessoa habitua-se a ter as mãos ocupadas, a empunhar o cigarro. Mas o mais importante é que [fumar] é bom!

 

Fecha as pálpebras muitas vezes. Li que o António Damásio lhe disse que esse tique deriva da consumo do tabaco.

O Damásio nem hesitou: “Isso é da nicotina”! Mas eu tenho ideia que não é… O meu filho assistiu a um programa na televisão sobre isto. Nos Estados Unidos, um grupo consistente de médicos estudava o fenómeno há anos e não tinha chegado a conclusão nenhuma. Aparentemente é um nervo, louco, que, quando lhe apetece, dá ordem à pálpebra para apertar. Não é a pálpebra que cai, é um espasmo. Às vezes pode durar meia hora, e é fatigante.

 

Alguma vez teve medo de cegar?  

Não. Não. Desde miúdo que sou míope. A descoberta da miopia é outro episódio que não me esquece. Tínhamos uma relação grande com o cinema porque a minha bisavó era proprietária de uma casa onde havia um cinema. A família tinha direito a uma fila, e íamos muitas vezes. (“Os Tambores de Fu Manchu” foi um dos filmes da minha infância). Um dia, esse meu tio apercebeu-se de que eu não estava a entender o filme; talvez por não me rir em determinadas cenas. “Então, não leste as legendas?”. “Não, a esta distância já não se lê”. Chegou a casa e disse ao meu pai: “O miúdo tem problemas de visão”. Tinha oito anos ou coisa assim. Passei a usar óculos.

 

[Levanta-se e vai à outra sala buscar água; quando vê a fotógrafa à espera, diz-lhe: “Ui, isto ainda vai na infância…”]

 

“Ui” usa-se muito no Porto… Estávamos na descoberta da sua miopia.

A única coisa que me incomodou é que eu gostava muito de hóquei em patins – isto aos 16 anos. Formámos o Hóquei Clube de Matosinhos. Houve um jogo no Infante Sagres, e, grande emoção, sou convidado para jogar! Juniores. Fiz quatro ou cinco jogos com grande sucesso. Metia golos e tudo. O médico que me acompanhava, sabendo que eu jogava, disse ao meu pai que era perigosíssimo. Proibiu-me de jogar. No domingo seguinte, contrariando as ordens, lá fui. Apareceu a equipa, fulano de tal, fulano de tal, e NN! O meu pai, que desconfiava, chamou-me: “Com que então NN? Livra-te de tornares a fazer isto”.

 

Quem é que era a figura mais solar e inspiradora na sua vida? O seu pai, o seu irmão, o seu tio?

Todos me marcaram, mas era o meu pai. Era uma pessoa encantadora, tolerante. A vida familiar era muito boa. Durante uns quatro anos, fizemos férias em Espanha. O meu pai nunca teve a carta. Alugava um carro grande, e lá ia a família toda. O meu pai, a minha mãe, e nós; em geral, ia também o tio, esse tio. Andaluzia, Galiza, Costa Brava. Uma das razões [por que íamos] era porque as férias em Espanha eram baratíssimas. Uma peseta valia 50 centavos. Fazíamos férias óptimas, em hotéis bons.

 

Alugavam um carro com motorista, ficavam em hotéis bons, mas na vida de todos os dias, eram poupados. Ainda não percebi bem o estatuto financeiro da família.

O dinheiro era contado! Mesmo nas férias.

 

Nesses anos, viu pintura nos grandes museus. O que é que o impressionou?

Vi sobretudo, e muito cedo, museus em Espanha. O Prado em Madrid, o Museu de Arte Antiga em Barcelona. O que me impressionou mais foi Greco e Ticiano. Era mais difícil ver um Picasso ou um Matisse. Não me lembro de ver Picasso num museu espanhol. Eu ia mergulhando mais e mais no desenho. Os presentes: para mim, era sempre um livrinho da colecção Le Maître, com todos os pintores; no Natal era um, nos anos outro. Ainda tenho esses livros. Reproduções péssimas, a preto e branco.

 

Olhando para o seu percurso e para a tendência para o desenho, seria fácil pensar em si como um pintor.

Quis ser escultor. Muito cedo fiz coisas em barro. Mas o meu pai achava que ir para escultura seria uma desgraça. Ligava-se ainda a vida do escultor à boémia, à miséria. Persuadiu-me a não ir. O meu pai não era pessoa com quem apetecesse alguém zangar-se. De maneira que o meu plano foi ir para as Belas Artes, onde havia o curso de arquitectura. (Já era um curso mais ou menos aceite). E depois, sub-repticiamente, sem conflito, mudar.

 

Mas não mudou. O que é que o fez ficar?

Apanhei um período da Escola de Belas Artes interessantíssimo. Tinha que ver com uma relativa abertura a que Portugal foi obrigado. Já não havia Hitler nem Mussolini… Sobretudo, entrou como professor e depois como director o Mestre Carlos Ramos. Criou uma equipa de gente muito nova, de grande qualidade e com um interesse grande pela modernidade. Era também professor um dos membros portugueses do CIAM [Congresso Internacional de Arquitectura Moderna], o Fernando Távora. Ia às reuniões do CIAM e trazia informação à “família”. Trouxe a contemporaneidade. Começaram a aparecer revistas do Japão, de Inglaterra.

 

As suas notas biográficas falam de um primeiro interesse pela arquitectura: quando viu Gaudì.

Numa dessas viagens [com o meu pai] vi as obras do Gaudì. Mas o meu desinteresse era tão grande que a primeira crítica que me fez o Mestre Carlos Ramos, que andava pelos estiradores a ver o trabalho, foi: “Você, vê-se que não tem nenhuma informação sobre arquitectura. Tem que comprar umas revistas e adquirir informação”. E, de facto, fui, sempre com o meu pai, comprar quatro “Architecture Aujourd’hui”, que era a única revista que chegava. Apanhei por sorte dois números monográficos. Um sobre o Gropius, director da Bauhaus, que conhecia porque o Carlos Ramos era bauhausiano). Mas o outro não: era o Alvar Aalto. Entusiasmou-me muitíssimo. Era uma coisa fresca, nova em relação aos modelos anteriores, óptimos também, cuja figura dominante era o Corbusier.

 

Insisto na pergunta: por que é que não quis ser pintor se desenhar lhe era tão essencial? E porque é que acha que foi mais tocado por ter visto uma obra do Gaudì do que um quadro do El Greco?

O meu pai preparava as viagens, arranjava uns livros. “Vamos ver isto e isto”. E quando vi imagens do Gaudì, alto: “Isto interessa-me. Parece escultura”. Visitei quase todas as obras em Barcelona e apercebi-me que aquilo que para mim era escultura era feito com portas, punhos de porta, rodapés… Aquilo tinha tudo o que tinha a minha casa. Simplesmente era a cantar. Tudo relacionado. Tive um baque pela arquitectura. Mas passou. Passou porque estava interessado na escultura e na pintura.

 

Confrontou-se com aquilo para que tinha talento? Com as suas limitações?

Não me punha o problema de ter talento ou não. Gostava de – era tudo. Em arquitectura era um aluno fraquinho. Julgo que isso se devia à carência de informação. E, no fundo, no fundo, à contrariedade por não ter seguido para a escultura e ter ficado na arquitectura. Eu tinha notas muito fraquinhas e achava que era muito fraquinho. 

 

Como é que se inverteu isso?

Já no quarto ano, o Fernando Távora foi meu professor. Foi ele que me reconheceu qualidades. E demorava-se na crítica. Mais tarde convidou-me para trabalhar com ele. O ego subiu um bocado, porque pelo Fernando Távora havia uma admiração enorme! Que diabo, se ele me chama…

 

Em casa, e de si para si, havia a pressão da excelência? De ter de ter medalhas. De ser extraordinário.

Não nesse sentido. Mas havia uma exigência. Era uma questão de educação. O meu irmão mais velho foi um aluno brilhante, o mais novo (o engenheiro) foi óptimo, eu próprio, no liceu, fui muito bom, a minha irmã também; a outra irmã era boa aluna, mas sentiu aquela vocação… Foi um grande drama na família.

 

Que relação tinham em casa com a religião?

A minha mãe e as minhas tias eram quase de missa diária. E no entanto, quando a minha irmã decidiu isso e o anunciou à família, caiu Tróia! Falaram-me para a convencer a não ir para freira! 

 

Tinha ascendente sobre ela?

Tínhamos uma relação muito boa. “Mas como é que vou fazer uma coisa dessas? Isso é um problema dela, se quer ir – e quer”. Cá por dentro pensava: “Como é que estas pessoas tão religiosas não aceitam que ela vá?”. Alguém que ia para freira era como uma pessoa que ia para longe, que ia desaparecer.

 

Na sua arquitectura podemos encontrar sinais de espiritualidade e mesmo religiosidade? Há uma relação entre isso e essa casa onde as mulheres eram praticamente de missa diária?

Quando fiz a igreja no Marco de Canavezes, foi muito difícil ser-me entregue esse trabalho. A hierarquia dizia que eu era ateu e que não podia fazer uma igreja. Fez-se porque o padre Nuno Higino se empenhou nisso a fundo. Julgo que ter-se sabido, a dada altura, que tenho uma irmã freira deve ter ajudado…

 

Não importava nada a sua consagração internacional. Importou a circunstância de ter uma irmã freira…

[gargalhada] Quando foi a inauguração, lembro-me de jornalistas me perguntarem: “Você é um homem ateu e faz uma igreja?”. “Mas quem lhe disse que sou ateu? Nunca disse a ninguém se sou se não sou. Nem digo!” E agora digo-lhe o mesmo a si! Bom, há qualquer coisa que se pode chamar de religiosidade em toda a arquitectura. Religiosidade no sentido de atmosfera, conforto, ligação com tudo. A arquitectura tem isso, independentemente se ser uma igreja. Não esquecer que uma casa é um abrigo, um lugar de intimidade e recolhimento. A uma igreja chama-se a casa de deus. É inerente à arquitectura essa componente de silêncio, de protecção, de comunidade.

 

Comunidade numa igreja ou numa casa.

Sim. A família é uma comunidade que se vai reduzindo cada vez mais. Já há muita gente a viver sozinha. Eu, por exemplo. Para mim, projectar uma igreja não foi diferente de projectar uma casa. Tem as suas exigências próprias e a sua atmosfera.

 

Subjacente à minha perguntava estava o seguinte: como é que a sua personalidade e vivências aparecem naquilo que projecta?

Seguramente que aparece, quer um seja arquitecto ou médico. Mas não é um consciente fio condutor. É qualquer coisa que se projecta de nós, mas não é um propósito.

 

Vamos a um exemplo: este facto marcante na sua vida, de a sala de jantar coincidir com a sala de estar e esse ser o espaço onde tudo acontecia; se olhar para a sua obra, consegue perceber um traço disto, uma projecção disto?

Não, não consigo. Mas admito que exista. Se vivi isso, muita coisa ficou e aparece sem que eu tenha consciência. No exercício da arquitectura há muita coisa que vem do subconsciente. Coisas que fazem parte de nós e que conduzem uma pesquisa em determinado sentido. A nossa mente é um armazém de tanto mais capacidade quanto mais for usado. No caso de um arquitecto, a formação baseia-se no aumento da informação, no aumento do que se vê, se estuda.

 

E o que se vê são cidades, filmes, quadros, pessoas…

Literatura, música, tudo! A literatura está tão ligada à música, à escultura e à pintura, ao ballet… No meu tempo, começava-se pela fixação numa pessoa e numa obra. Depois começa-se a conhecer mais isto e mais aquilo, a alargar. A certa altura já não estamos a copiar isto ou aquilo; temos tanta informação que ela já faz parte de nós. Vem quando é preciso. Vem porque faz parte.

 

Se fala de inconsciente, pergunto-lhe pelos seus sonhos. É capaz de desenhar sonhos?

Acontece-me sonhar com o problema em que estou embrenhado e com a solução; a maior parte das vezes são disparates, mas às vezes trazem uma ponta de solução. Lembro-me de um sonho em technicolor fantástico. Tem que ver com essa… como se chama a água do mar que invade a terra?, esse desastre tremendo?

 

Tsunami.

Exactamente. Eu estava em Vila do Conde, na rua à saída da ponte antiga. Olho para trás e não era o rio que estava lá, era o mar. O mar ergueu-se, e começou toda a gente a correr, amigos e amigas a subir a rampa. De repente apareceu um autocarro amarelo, que se atravessa na rua. E fica-se ali empancado, em terror.

 

Estava completamente encalacrado: entre a onda do mar e o autocarro amarelo.

Pode ter que ver com um espectáculo a que antes tinha assistido: um navio que encalhou no Castelo do Queijo e que se incendiou. Eu ia a passar de carro na avenida da Boavista e vi as chamas. Foi angustiante. Nessa altura somos auxiliados: acordamos. Julgo que me impressionou o sonho, formalmente, pela cor.

 

Vi desenhos seus. Em dois deles, auto-retratos, estava a cavalo e parecia o Dom Quixote. Num estava com uma espécie de punhal, no outro a mão fingia que segurava uma arma que não existia. Num deles o corpo estava nu, e havia nele uma certa sensualidade e impetuosidade.

Lembro-me desse desenho. É que tenho um amigo que anda muito bem a cavalo, e eu sou uma desgraça. Às vezes recebo piadas… Uma das reacções a essas piadas foi o desenho, eu e o cavalo, em glória!

 

O desenho como sublimação? Gostava de ter uma maior destreza física? Olhando para si, para a sua figura, não é uma criatura eminentemente física.

Não sou. Ainda joguei durante um tempo ténis (não havia perigo). Fiz ginástica. Depois parei com tudo. A prática do arquitecto não é muito saudável. Passamos uma parte da vida debruçados num desenho.

 

Noutro desenho aparece implicado no que se vê. Vê-se a cena que desenha e a sua mão a desenhar aquela cena.

Uma vez o arquitecto Távora falou-me de um desenho do paladium em que aparece a mão. “Você copiou isto?”. “Não, nem conhecia o desenho”. Mas se calhar vi-o. O desenhar, para um amador como eu, descontrai. Descontrai do trabalho do arquitecto, que é de grande concentração e exigência. O Alvar Aalto, que pintava, dizia que no desenvolvimento de um projecto, às vezes, havia um bloqueio; estava encravado. Deixava tudo e ia para casa pintar ou desenhar, sem pensar naquele problema. Às vezes, no que estava a fazer, vinha a ponta da meada da solução. Portanto, há uma conquista de espontaneidade e intuição que complementa o trabalho racional.

 

É uma pessoa intuitiva?

Inventiva, de certeza que não. No meu trabalho conta pouco a preocupação de inventar qualquer coisa nova. Está mais ligado à história das coisas. Por exemplo, se desenho uma cadeira gosto que uma cadeira pareça uma cadeira.

 

Gosta da familiaridade das formas, é isso?

Se desenho uma retrete, gosto que pareça uma retrete. Há retretes quadradas, cúbicas; acho que não é natural, não é a forma do corpo.

 

Porque é que sendo tão sensível ao que é familiar é tão desligado da casa onde vive? Não viveu nunca casa projectada por si.

Devo ser um péssimo cliente! 

 

Viveu a vida quase toda num apartamento da Rua da Alegria, que era a casa onde viveu com a sua mulher e os seus filhos.

Vivi lá para aí 40 anos. Só recentemente mudei. Porque mudei o escritório para aqui, onde estou com vários amigos. Achei que tinha de arranjar uma casa perto. Surgiu esta possibilidade, uma casa feita pelo Souto Moura, e comprei-a.

 

Souto Moura, de quem é amigo íntimo, vive no mesmo prédio. Como na sua infância, os próximos vivem todos perto uns dos outros.

Não é bem a mesma coisa. Às vezes passa uma semana que não o vejo!

 

Atendendo à sua vida pensei que ia dizer que se passava um mês sem o ver.

Não, isso não.

 

O que é que sentiu quando saiu da casa da Rua da Alegria?

Um enorme incómodo. Mudar de casa é uma das coisas terríficas da existência. Vamos acumulando coisas, a maior parte das quais não serve para nada. É muito difícil na hora de mudar, que é a oportunidade de dispensar todas as coisas inúteis, a gente desprender-se. Há coisas que tenho no armazém [do escritório], que não me interessa nada ter. Mas não consigo dar ou deitar fora. Há um agarramento grande. Há uma longa história que é difícil abandonar. É muito doloroso. Talvez por isso nunca fiz uma casa para mim. E também por dificuldades económicas. Até aos anos 80, a vida era difícil, era controladíssima.

 

Está a dizer que também fez as contas que se faziam na casa dos seus pais?

Ah, claro. Depois comecei a ter mais trabalho, e trabalho fora, e agora não me posso queixar de ter dificuldades económicas. Vivo confortavelmente. 

 

A sua vida parece uma fuga para a frente. Por causa da velocidade a que vive, viaja, projecta, faz conferências, visita obras, recebe prémios. O que é que o faz correr? E porque é que está sempre a correr?

É difícil escapar a tantas solicitações. Tento limitar o mais possível workshops, conferências. Mas há muitos casos em que não é possível dizer não. Mas toda essa actividade: acabo por gostar!

 

Há lendas a seu respeito: como a de ser um misantropo. Que vive a trabalhar e para trabalhar. Como se só existisse a sua obra.

Aqui, salvo as saídas, convivo todos os dias com 26 pessoas. Se fosse misantropo ser-me-ia insuportável a vida que levo. E tenho amigos, família. À noite fico em casa; televisão, copo de uísque. Outras vezes, estou com amigos.

 

Também dizem que é triste.

Muito riso pouco siso! [risos]

 

E dizem que o ícone consumiu a sua vida particular. Que já só é o grande arquitecto Siza.

Ou o horrível arquitecto Siza! – há quem diga.

 

Isso incomoda-o?

Não me incomoda profundamente, mas incomoda-me que essas lendas criem dificuldades. Como que deito árvores abaixo, que faço tudo branco, ou cinzento. Pode haver projectos que não se desenvolvem porque há campanhas contra. Juízos de valor: nem me incomoda nem deixa de incomodar.

 

Em algum momento foi inseguro?

Sou muitas vezes inseguro. Ainda sou. O arranque de um trabalho…, há sempre uma componente de medo.

 

Que medo? Medo que não seja uma coisa extraordinária?

Não. Medo de não fazer aquilo para que sou chamado – que é fazer bem. A insegurança é em grande medida o motor do pensamento, da pesquisa. Não encaro a insegurança como uma fraqueza, mas com um sentido de responsabilidade. Estar completamente seguro? Só quem estiver na ilusão e inconsciência.

 

Contaram-me que um dia, visitando uma obra, começou a matutar e disse: “Isto não está bem”. O seu interlocutor ficou atrapalhado e pegou nos papéis para saber se tinham executado mal. Mas concluiu que o que estava a dizer era que tinha pensado mal, antevisto mal. Ora, isto surpreende porque olhando para as suas obras, parece que já nascem perfeitas, acabadas. Gostava de saber como lida com o seu erro.

Procurando corrigi-lo – o que nem sempre é possível. O desenvolvimento seja do que for passa pela detecção de erros. O que leva ao aperfeiçoamento. 

 

Olhamos para o seu currículo e é uma sucessão assombrosa de prémios e obras. A sua cronologia pessoal é engolida por isso. Que cicatriz é que acha que deixa? Quando falarem no Siza Vieira daqui a 50 anos, que é que pensa que dirão?

Se calhar já nem se fala de Siza Vieira. Não nos podemos preocupar com isso. Para mim o que conta na obra de um arquitecto é a arquitectura que faz. Os prémios são muito agradáveis se vêm; mas são circunstâncias. O prémio depende de um júri, que pode ser maioritariamente de certa tendência ou de outra. Enche a pessoa de satisfação, orgulho e tal, mas não é um facto extraordinário.

 

Acha que pode não ficar na história da arquitectura?

A história da arquitectura não depende dos prémios. Pode haver transformação de conceitos que tornam irrelevantes esses prémios.

 

Mas passados 50 anos, continua a falar do Gropius e do Alvar Aalto. Não acha provável que daqui a 50 anos as pessoas vão ao Marco ver a sua igreja como se vai a Viena ver as obras do Otto Wagner?

Uma das questões que se levanta é: como estará a igreja do Marco daqui a 50 anos? Toda a obra do Alvar Aalvo está, na Finlândia, impecável. Eu tenho obras que estão irreconhecíveis. Depende do meio em que viveu e como evoluiu. Há obras enormes que desapareceram. Uma obra celebrada, como era o hotel no Japão do Frank Lloyd Wright, foi demolido!

 

Estou também a perguntar como lida com a ideia da morte, com o que fica de si depois dela.

O grande poeta Gomes Ferreira: perguntaram-lhe sobre a relação com a morte. “Não me importo nada. Mas na horinha vai ser uma grande vergonha.” O que está implícito é que na horinha vai ter medo… O que me incomoda é a ideia de ficar imobilizado, de ser uma carga para alguém, num estado lamentável. Agora há esse debate sobre a eutanásia: eu preferiria, se estivesse numa vida vegetal, que não fossem utilizados meios para prolongar uma situação que, já não é de agonia: é de inconsciência.

 

A questão é: o que é para si existir?

É existir em consciência. Senão, não é. Agora morrer?, morremos todos. Você está aí, fresca, no máximo da forma, mas também vai morrer… É desagradável, mas não há outra possibilidade. Não há outro futuro.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Abril de 2009

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

Em Budapeste, c/ Chico Buarque

01.11.22

Vanda perguntara-lhe dias antes: «Budapeste?, e o que tem para fazer em Budapeste? Era difícil responder. Olhar o Danúbio?, tomar licores?, ouvir poetas?». Vanda preferiu Londres, e José Costa, que na minha imaginação tem os olhos aquosos de Chico Buarque, meteu-se num avião para ver que Budapeste é amarela, o Danúbio é de chumbo e não azul, beber Tokaj com foie gras de ganso, ouvir poetas de palavras impenetráveis. Há um momento em que José Costa se interroga: «O que estaria fazendo a Vanda àquela hora em Londres?». Eu adapto a interrogação: «O que estaria fazendo Chico Buarque, àquela hora, no Rio de Janeiro, ou num outro lugar que não posso saber qual é?».

Estou em Budapeste e, como Chico Buarque, não sei dizer em húngaro obrigada, ou bom dia, ou deixe-me entrar nos banhos mesmo que as seis já tenham passado. Chico, ao que consta, nunca esteve em Budapeste, mas escreveu um romance de histórias caleidoscópicas que cruzam o mapa sensorial do Rio de Janeiro e de Budapeste. Antes de o ler, eu imaginei que o livro falasse da cidade como uma Paris do centro-Europa, que percorresse as avenidas principais, que olhasse de perto a vida de todos os dias. Procurava o ângulo de Chico, poeta do “cotidiano”, na cidade. Mas este é um livro onde nos dizem que se aprende uma língua e um sentimento em simultâneo, ou que se desaprende uma língua quando se extingue um sentimento. Mais do que Budapeste, é a língua húngara que serve de suporte a esta ideia. 

Se Chico tivesse estado em Budapeste, perceberia como os banhos, as dezenas de piscinas termais, de águas cálidas e cheiro levemente sulfuroso, denotam a influência turca. Os mais famosos são os Gellért. Mas não se fala dos banhos no livro.

Eu frequento os Gellért porque fico nesse hotel e não tenho tempo para experimentar as diferentes temperaturas da cidade. A edição que leio é a brasileira, comprada na livraria Argumento, uma que dizem que Chico frequenta, e que eu frequentei quando estive no Rio. De que é que serviria ver Chico na Argumento? Isso não me faria aceder ao pensamento de Chico, à imaginação de Chico... Mesmo que ele falasse comigo, você se importa de chegar para lá?, isso não faria com que eu conhecesse os caminhos íntimos e silenciosos das suas palavras. E contudo, inventaria um Chico para mim, como ele inventou Budapeste.

Como se lê neste romance babélico, os outros são razoavelmente opacos para nós. Para não dizer completamente. Como a língua húngara, que é imperscrutável. Budapeste é o lugar-metáfora escolhido pelo autor brasileiro para falar desse mistério.

A capa do meu livro é cor de mostarda, como a capa de «O Ginógrafo», um livro que aparece dentro do livro, assinado por José Costa, o protagonista, ghost-writter de profissão. Uma história dentro de uma história, uma sobreposição de enredos e palavras. Como as matrioskas que se encontram no mercado: umas dentro das outras, cada vez mais miúdas, e minuciosas, até, imaginariamente, se reduzirem a um ponto só.

Entro no banho com o livro-mostarda nas mãos. Procuro uma das bordas, sento-me, sinto a água pelos ombros. Estico os braços e tapo a cara com «Budapeste». A minha expressão passa a ser tão impermeável quanto a língua húngara, (é um mau adjectivo porque “escrevo” do banho...). Avanço na leitura: «Houve um tempo em que, se tivesse de optar entre duas cegueiras, escolheria ser cego ao esplendor do mar, às montanhas, ao pôr do sol no Rio de Janeiro, para ter olhos de ler o que há de belo, em letras negras sobre fundo branco. Ia ao cinema, mulheres extraordinárias se exibiam na tela, o filme era falado em língua conhecida, e eu não conseguia despregar os olhos das legendas».

A tarde corre devagar, não consigo despregar os olhos das palavras. O banho não me faz sentido sem o livro-mostarda. «Pouco importava que todos os húngaros me olhassem com aquele olho de peixe», que incompreendessem o meu gesto. Conversam entre si, descem as pálpebras, depositam o olhar no vazio, amolecem até ficarem com a pele engelhada, como as folhas do livro depois do banho.

No segundo dia troco a piscina da esquerda pela da direita, invade-me um imenso torpor. A primeira tem uma água morna, 36 graus; a outra, tem mais dois graus que fazem com que o suor escorra pelas têmporas e pelo pescoço. A minha imaginação faz-me ouvir as gymnopédies de Eric Satie, que iriam bem com o espaço. Sinto-me “catatónica, com a perna bamba”, como numa canção do tempo em que Chico era apenas um poeta cantor. A melancolia contagia o ar e entranha-se nas narinas. A melancolia tem cheiro: um cheio de vapor de água e conversas que ecoam no tecto.

À entrada, o empregado avisara: homens de um lado, mulheres do outro, e é normal que fiquem nus (daí a separação). «Eu queria protestar, mas nem sequer sabia dizer não em húngaro». Eu não queria ver os corpos nus de pessoas que não conheço!, não queria entrar no balneário e ver uma menina de peito ao léu a secar o cabelo, não queria ver uma senhora parecida com a minha avó com a carne pendente, outra muito farta e branca, tão branca, a passear-se sobre o chão de mosaicos.

Ocorre-me pela primeira vez que talvez tenha sido por isso que Chico recusou aquilo que é inevitável em Budapeste: o postal turístico das pessoas que jogam xadrez nos banhos públicos, com o tabuleiro a vaguear entre elas. Porque há um lado inaceitavelmente impúdico no modo como estão em público. (Mesmo quando estão nas piscinas “mistas”, que, no Gellért, funcionam como um corredor central. Mas estas piscinas são para nadar, e, já agora, sempre na mesma direcção).

Num outro ponto do livro, Chico fala do par atracado contra um álamo. Também o autor do guia Lonely Planet fala dessa fama que precede os húngaros: de serem especialmente soltos na manifestação da líbido, de não conhecerem o significado da palavra decoro quando expressam em público o seu sentimento e desejo.         

«Custei a aprender que para conhecer uma cidade, melhor que percorrê-la em ônibus de dois andares é se fechar num aposento dentro dela». Chico acreditará nisto e mostrou que é tão válida, ou mais, a cidade inventada dentro de um aposento, como aquela que é vista num autocarro de dois andares. Porém, eu fiz a viagem no autocarro de dois andares e gostei de percorrer as bissetrizes da cidade. Se eu conhecesse Chico, contar-lhe-ia que Budapeste tem uma identidade múltipla que não coincide com a imagem antiga de uma cidade «cortada por um rio, o Danúbio».

Aterrei em Budapeste induzida por frases que aprendi na escola: de um lado Buda, do outro Peste, dois mundos distintos, e o rio como fronteira. Mas a diversidade de faces de Budapeste é surpreendente. «Atravessei a ponte pênsil em ritmo de jogging, (...) admirei rapidamente as fachadas neo-clássicas, os balcões art nouveau, na terceira esquina respirei tabaco, chocolate, cebola». Eu comi foie gras no Gundel, goulash num restaurante de esquina — o que é que Kriska, a musa do romance, serve ao jantar? Chico fala apenas de queijos e Tokaj postos numa cesta, para uma tarde de namoro na ilha Margit. E a referência aos queijos, sendo francesa e certa, não condiz exactamente com o que se vê nas montras e no mercado.

No mercado compra-se paprika, salame, cebolas, alhos, toalhas de uma renda copiada da espuma do mar, às vezes com cores, e túnicas folclóricas com bordados.

Surpreendeu-me que as empregadas do café Gerbeaud, jóia da coroa, forrada a veludos e dourados, usassem uma saia aciganada e umas sandálias que naquele contexto resultam imbecis. (As sandálias são ainda mais despropositadas que o uso de “imbecil” aplicado a sandálias.) Estavam entre o ortopédico e o mendicante, e reconheço-as de imagens campónias da vizinha Áustria.

A côrte austríaca legou um estilo pomposo, uma pastelaria decorativa, sandálias saloias e edifícios secessionistas, preciosidades que remontam ao início do século XX, de uma modernidade explosiva. O grupo da Secessão, que integrava Klimt, Otto Wagner ou Adolf Loos, impôs um estilo que alastrou a outros pontos do império. Custa a crer que até há menos de cem anos, o mapa geográfico e político unia as duas cidades. Mas em ambas os vestígios desse tempo são ainda claros.

Nesse passeio em autocarro de dois andares, reconheço também o quarteirão judeu, imensamente livre, a influência cigana no velho que toca “Lili Marlene” ou “Dr. Jivago”. O velho arrasta-se pelas esplanadas, com o violino e chapéu estendido. Traz-me à memória a composição do grupo que animava o Gundel, com violino, cello, sopros. E há marcas do comunismo nos edifícios. Daí a dois dias seriam as comemorações dos 50 anos da Revolução Húngara, a cidade estava cheia de bandeiras. Nessa manhã, ao pequeno almoço, encontrei Teresa e o seu amigo mais antigo, emigrantes nos Estados Unidos desde os anos 60, que voltavam para celebrar aquela vitória-derrota: ambos participaram na manifestação de 1956.

No outro lado do rio fica Buda e o hotel Plaza de Zsose Kósta — ou Kósta Zsose, porque em húngaro o nome de família precede o nome próprio. No meu hotel, sito na rua Bartók Bela, dizem-me que não existe tal hotel, apesar de todas as cidades terem um hotel Plaza (escreve Chico). Buarque Chico: a maneira mais fácil de distinguir um lado do outro é que em Buda há colinas e o palácio real, e em Peste uma planura sem fim. Kriska, a amada de Kósta, vive em Peste, e dá peripatéticas aulas de húngaro: dá nome a coisas como «rua, patins, noite, arco bizantino, rio». Na gaveta de Vanda, a mulher brasileira de José Costa há «grampos, tachinhas, elásticos, uma lima de unhas, uma tampa de caneta e um porta joias contendo um dente de leite». Para que serve esta enunciação? Para nada, a não ser apresentar fragmentos destas personagens e das suas vidas. A partir destes pedaços de terra, podemos construir um reino.  

Gosto de reconhecer palavras antigas de Chico no livro que ele escreveu em 2003 e que eu leio em Budapeste, agora. Palavras como “caçoar” («te vi pelo salão, a caçoar de mim»), “tinhosa” ou “estrambótica” que já ninguém usa, ou declarações de amor como: «As melhores palavras que sei emanaram de ti, devem a ti seu vigor e sua beleza. Será somente teu o meu verbo, dedicar-te-ei meus dias e minhas noites». Persigo Chico e a sua escrita caligráfica. Na esperança de descobrir a última boneca da sucessão de matrioskas: a chave do seu vocabulário, a decifração do seu enigma. Orson Welles chamou a isto Rosebud em Citizen Kane.

Regresso ao hotel e atravesso a ponte guardada por leões sem língua. «Por sorte me restavam os sonhos, e em sonhos eu estava sempre numa ponte do Danúbio, às horas mortas, a fitar suas águas cor de chumbo. E soltava os pés do chão, e balançava de barriga sobre o parapeito, feliz da vida por saber que poderia, a qualquer momento, dar à minha história um desfecho que ninguém previra». É tentador sentir que somos autores da nossa narrativa... Que podemos pular, e ninguém o pode prever, adivinhar as palavras daquele ínfimo instante. Chico Buarque, o ginógrafo (aquele que escreve sobre o corpo de uma mulher), decide não pular e termina ambos os livros («Budapeste» e «O Ginógrafo») com a mesma frase: «E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa».

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias

Gonçalo Ribeiro Telles

01.11.22

É um monárquico que viveu sob o signo da República. “Eu não me importo nada de servir a República. Tenho bilhete de identidade, servi, fui deputado”.

É um arquitecto paisagista que fala de jardins como se falasse do paraíso. “Na Bíblia, quando se fala do jardim, é um lugar concreto, circunscrito. Os hebreus não andavam à procura do jardim, andavam à procura do Éden, o vale fértil onde estava o jardim. Depois vem a casa do Homem. A certa altura a casa do Homem é tão grande que começa a ser necessário o jardim público, o parque, a ligação de parques e de jardins, os espaços verdes. Não chega, porque 84% da população mundial vai viver para as cidades, que ficam desmesuradas, ou então são todas torres, o que é desumano. Temos de criar um Éden para esta cidade, e temos que criar dentro do Éden o paraíso, que é o jardim”. Um idealista? Um realista. Empenhou-me em fazer um mundo mais próximo daquele onde gostaria de viver. 

É um homem de outro tempo. Do tempo em que se brincava na Avenida da Liberdade. A cidade era outra. “Eu tinha uma tia que morava numa casa que hoje é um hotel de luxo, na Rua de Santa Marta. Essa tia não tinha filhos e tinha um sobrinho, que era o meu avô; vendeu o palácio e fez uma casa na Avenida da Liberdade (que já foi abaixo). A minha avó, por sua vez, vinha de uma casa de São Paulo, ao Cais do Sodré; depois de casar, ocupou a casa na Avenida da Liberdade. Trouxe com ela o irmão coxo, que [se instalou] nas águas-furtadas. Vivia sozinho com uma criada, o marido da criada, que era carteiro, e os livros. O resto da família vivia por andares, no prédio; eu vivia no 3º”. Visitava-o muito.

Gonçalo Ribeiro Telles é um contador de histórias. Passei uma tarde com ele a ouvir histórias. É esta a sua história.

 

Para o entender, devemos começar por falar do seu tio-avô, Joaquim Cardoso Gonçalves?

Como é que você sabe do meu tio Joaquim? É uma pessoa fundamental na minha vida. Era irmão da minha avó. Uma particularidade: tinha tido uma paralisia infantil e ficou aleijado de um braço e de uma perna. Era uma pessoa com muitas preocupações, e a preocupação menor era ser aleijado. Dedicou uma parte importante da vida aos deficientes. O grande amigo dele era o António Sérgio. Tinha o curso correspondente à Economia actual, o curso superior de Comércio; trabalhou na Junta de Comércio Público, a antiga Caixa Geral dos Depósitos. Mas tinha outra vida, que interessava mais do que esta: era intelectual e dedicou-se a escrever sobre iluminuras. Fez trabalhos muito interessantes sobre os Livros de Horas.

 

O que são Livros de Horas?

São os calendários do Renascimento e da Idade Média, onde cada folha do mês representa uma cena: a cena que mais marca esse mês. Os das casas reais eram iluminados por grandes artistas. Para um miúdo como eu, era fascinante ver essas gravuras.

 

Cervantes também era maneta, e escreveu o Quixote. A vida do seu tio-avô foi menos marcada pela deficiência do que poderia ter sido. O que quer dizer muito da têmpera deste homem… Um homem é muito mais do que o corpo que o transporta.

Ah, com certeza. [Levanta-se e vai buscar um livro] Talvez isto lhe dê uma visão [do trabalho que desenvolveu]. É o principal estudo que ele fez. Mostro-lhe para que perceba qual era a atmosfera.

 

Porque é que se interessava pelas iluminuras?

Porque tinham bonecos [risos]. E porque o meu tio me explicava o que é que representavam. O meu tio fez uma descoberta sobre o Apocalipse de Lorvão, e comparou os cavaleiros (do Apocalipse do Lorvão) com os cavaleiros da gravura do Dürer. A Peste vem com a foice da morte, a Guerra vem com um espadalhão, a Fome vem com um tipo muito esquelético; o quarto vem com uma balança.

 

A Justiça? Como pode ser?

Toda a gente julgou que era a Justiça; o meu tio disse que era a Injustiça. Como é que a Justiça vinha como um cavaleiro da maldade, a cavalgar ao lado da Fome, da Peste e da Guerra? O que vem é a injustiça social. Porque era com uma balança que se pagava o salário dos trabalhadores; as moedas não se contavam, pesavam-se. A balança desequilibrada é a injustiça social, é o dinheiro mal pago ou roubado ao trabalhador.

 

O que é que há em comum entre todas as gravuras?

A cidade ao fundo.

 

Ou seja, uma relação entre o campo e a cidade, a natureza e o espaço construído.

Há uma identidade, uma coisa não vive sem a outra. A cidade extravasou por todo o lado. Onde é que está agora – como estava nas iluminuras – a actividade agrícola? Isso é uma das causas desta crise.

 

O desequilíbrio?

Sim. Destruiu-se uma unidade que havia. Nas iluminuras, a cidade está sempre presente na actividade agrícola. Na Catedral de Siena, nos frescos que estão à entrada, há uma representação de uma cidade: dentro de umas muralhas, as portas estão abertas e há uma comunicação permanente entre o campo e a cidade, com gente a entrar, a sair, e o campo organizado; do outro lado, está a mesma cidade com as portas fechadas e cá fora não há nada. Na primeira está o título “O Bom Governo”, na segunda está “O Mau Governo”.

 

Tudo o que teve peso na sua vida estava enunciado aí. A sua vida fez-se nessa oposição, nesse diálogo.

Eu tinha duas possibilidades: ou ia para Arquitectura ou para Agronomia. Eu desenhava bem, e ainda desenho – dizem. Mas para entrar em Arquitectura, tinha de desenhar a cabeça de um romano, o Vitélio. O Vitélio era muito gordo…, não tinha graça nenhuma. “Então vou para Agronomia”. Aí dá-se um golpe de sorte: no dia em que entrei para Agronomia, vinha da Alemanha montar o curso de Arquitectura Paisagística o [Francisco] Caldeira Cabral. Juntei as duas coisas.

 

Tem à sua volta, nesta sala, os Livros de Horas onde aprendeu com o seu tio-avô, os soldadinhos com que brincou, os frescos nas paredes. São amostras do passado. Conte mais deste mundo que era o seu.

As pessoas do campo que eu tinha, como o meu pai e os meus tios, eram juristas que depois abandonavam a profissão e ficavam nas terras como proprietários. Ou então eram oficiais do exército. O meu pai era oficial do exército e era veterinário; foi quem comprou os garranos em Trás-os-Montes para servirem na tropa, como depois serviram as mulas. Este lado marcou-me muito. A visão que eu tinha da cidade era a Avenida da Liberdade, onde brincava à tarde com outros meninos e meninas, principalmente no Verão. Os táxis estavam parados no meio da faixa de rodagem, todos enfileirados por ali fora. Uma figura principal, que gostava muito de ver, era o polícia sinaleiro. Por outro lado, tinha uma influência muito grande, da parte da minha mãe e do meu tio-avô, do mar. Isto é uma confusão tremenda...

 

Entre a terra e o mar.

Está aqui o barómetro [enorme, preso na parede]. Herdei-o de um tio, o chamado Capitão Menino. Foi um fulano que saiu de casa com 16 ou 17 anos para ir navegar. O barómetro é do Brigue Florinda.

 

Florinda era quem?

Era uma das minhas tias. O barco tinha de ter o mesmo nome.

 

Como é que se chamava a sua mãe?

Gertrudes Guilhermina, um nome horrível, não se pode arranjar pior! É uma figura importantíssima. Era filha única, e como filha única vivia bem.

 

Provinha do mesmo estrato social do seu pai?

A mesma coisa. Era inteligente, gostava de ir ao São Carlos. Não lia muito, mas ouvia o meu tio, e estava naquele ambiente. Não se abria com facilidade. Era capaz de gostar muito de uma criança porque tinha uns olhos bonitos ou porque era magrinha.

 

Parece, a partir dessa descrição, uma personagem de um romance de Agustina. Espirituosa e com um carácter caprichoso.

Sim, sim. Quando as cozinheiras tinham umas grandes cabeleiras elas pedia-lhes para lhes cortar o cabelo, só porque achava graça. E aqui na rua havia uma loja de hortaliças, onde viviam uns miúdos, coitados, que tinham pouco; ela adorava vê-los na cama. Achava aquilo um quadro espantoso. E depois auxiliava-os.

 

Auxiliava-os, a esses e outros, por via do catolicismo?

Ela não se organizava com ninguém, era independente. Essas da Agustina também devem ser… Com um mundo próprio, e pouca gente lá entrava. Não tinha grandes amigas. A minha mãe gostava das pessoas humildes. Talvez fosse para ela um drama ainda viver numa sociedade em que uns eram humildes e outros não.

 

Era afectuosa?

Para mim era muito afectuosa. Gostava mais de rapazes, dos sobrinhos, do que das raparigas. Achava-as impertinentes. Coisa espantosa: na família do meu pai, a primeira menina que nasceu, ao fim de 70 anos, foi uma filha minha.  

 

Uma casa de varões.

Só havia uma tia. Vivíamos na Rua das Pretas e o meu pai, volta e meia, saía a cavalo e subia a Avenida [da Liberdade] com um impedido atrás, também a cavalo.

 

O seu pai era uma encarnação destes soldadinhos com que brincava e que agora tem em exposição?

Não. Era um militar sui generis. Dedicava-se mais à veterinária e aos cavalos do que à tropa. Acabou por sair tenente, nem a capitão chegou.

 

Era suposto que fosse jurista, veterinário, proprietário?

Para proprietário, ninguém me educou!, felizmente. Em relação ao que queria fazer, sempre tinha um objectivo: polícia sinaleiro, oficial de marinha por causa do barómetro, depois agrónomo por causa de Coruche, depois intelectual e arqueólogo como o meu tio-avô. Quis ser tudo ao mesmo tempo, ou antes, numa catapulta sucessiva. Até que caí, já com 22 ou 23 anos na arquitectura da paisagem.

 

A arquitectura paisagística é um dos eixos essenciais da sua vida. O outro é a causa cívica, seja no Centro Nacional de Cultura, seja, já em democracia, como ministro – para citar apenas dois exemplos. A política também estava em sua casa?

O meu tio-avô era um “liberalão” de todo o tamanho, a minha mãe não era uma “liberalona”, mas não podia com o Salazar. Quando as primas todas assinavam aqueles papéis a favor do Salazar, recusava-se a assinar. Quando chegaram lá com o papel das Mães Agradecidas, não assinou.

 

E o seu pai?

O meu pai acabou muito cedo em termos de poder físico e intelectual, com aquilo que é hoje conhecido como Alzheimer, ou coisa parecida. Fechou-se muito cedo. Mas era monárquico, como toda a família. Não era salazarista, e não era tão acintoso como a minha mãe. A minha avó, quando já não estava assim muito bem do miolo [risos], ainda esperava que chegasse o Paiva Couceiro com os monárquicos do norte no dia tantos, às tantas horas; se não chegavam, ficava muito triste.

 

Eles falavam, por exemplo, da morte de D. Carlos?

A minha família de Coruche, do lado do meu pai, era toda D. Carlos. A família da minha mãe tinha uma costela miguelista. Os miguelistas tinham duas facções, os absolutistas e os realistas. Não podiam uns com os outros. A família da minha mãe era realista e a do meu pai era monárquica, mas liberal. Isto hoje não tem interesse nenhum…

 

Na altura, entusiasmava-os muito essas discussões, essas disputas?

Sim. Em casa discutia-se muito.

 

Se Portugal tivesse entrado na Segunda Guerra, uma vez que nasceu em 1922, podia ter sido mobilizado. Era um mancebo entre 39 e 45.

Ah, lá ia eu.

 

O que queria perguntar é se esse fantasma pairou sobre a sua família e sobre a sua vida?

Não. Você, agora, é que está a levantá-lo. O meu pai é que esteve mobilizado, em 1918, para ir para a Primeira Guerra. Não foi porque a guerra acabou. Eu nasci em 22. Eles já tinham tido uma criança que morreu, depois vim eu e depois o meu irmão.

 

A coragem, a tenacidade e a frontalidade são coisas que se notam em toda a sua intervenção pública. Gostava de perceber de onde vêm.

Eu tive medos terríveis.

 

Em que situações teve medos terríveis?

Por exemplo, vou comemorar, com todos os que ainda são vivos e que assinaram aquele papel da Igreja do Rato, a ida à Assembleia da República. Entrámos dois, eu e outro, não me lembro quem foi o outro. Queríamos entregar aquilo à pessoa mais importante da Assembleia. Percorremos os corredores todos, um empregado mandava-nos para o outro, e para o outro. Até que estávamos outra vez na rua e tínhamos ainda a carta na mão... Então, resolvemos deixá-la ficar na recepção.

 

Era medo de quê? Ir preso?

Bem, ir preso não era muito brilhante, naquela altura...

 

Mas esse não é um gesto de medo, e esse gesto é de afrontamento.

É medo, medinhos, de fugir. Às vezes também fujo. Todos temos uma costela de cobarde – terrível. Quem é que faz de juiz das situações? Eu estava metido no barulho. Tinha medo de ir preso por aquilo que se contava dos presos. Também tinha medo do que pensava a família.

 

O que pensaria a família aristocrática de um filho revolucionário…

Não era fácil, não tendo uma estirpe de revolucionário. Tinha receio da família numerosa, onde havia todos os leques possíveis e imaginários; não era da minha mãe. Portanto, não era medo, era a chatice. Houve uma época em que, para os comunistas, era um furioso tipo contrário a eles, e para os contrários a eles eu era um furioso comunista! [riso]  

 

Como é que tresmalhou, se posso dizer assim, e se meteu com os revolucionários?

Desde pequenino, desde muito pequeno, o meu tio tinha um espírito muito liberal. Quando fui para a universidade, apanhei logo o grupo que deu origem ao Centro Nacional de Cultura.

 

Com quem é que se dava, quem eram os seus amigos e os seus interlocutores?

O [Francisco] Sousa Tavares, o mentor daquela gente, o Fernando Amado, do teatro, o Afonso Botelho, também muito amigo e que escreveu umas coisas, o Gastão Cunha Ferreira, o Henrique Ruas, o João Camossa, que deu em anarquista. (Conhece a história? Morreu há relativamente pouco tempo. Vivia andrajosamente na rua).

 

O que havia em comum nesse grupo?

Foi um grupo de monárquicos extraviados da causa monárquica, que tinham apanhado uma lambuzadela do António Sardinha e daquela gente do liberalismo lusitano. Não aceitavam a causa monárquica porque era muito conservadora, porque estava feita com o Salazar. Isso é que deu origem ao CNC e às primeiras listas de monárquicos independentes, que foram escondidas pela imprensa porque não convinha ao Salazar aparecer gente com esse cariz na oposição. E deu origem a que o Congresso Democrático de Aveiro fosse Democrático. Era para ser Congresso Republicano, mas para esta gente poder entrar, mudou.

 

Foi ao Congresso?

Não consegui lá chegar por cobardia minha. Podia ter ido a correr mais depressa para Aveiro e não fui. Não fui por causa da família. Mas não tive medo porque mandei a papelada toda. Podia ter sido preso na mesma.

 

É uma geração. Foi um tempo. De transição.

A oposição era republicana, jacobina, e alguma parte ainda é. Vivia ainda toda a problemática da Primeira República. Aqueles que eram monárquicos, mas que não queriam nada com o Estado Novo, consideravam a Segunda República uma Primeira República. Ou se confundiam com esse jacobinismo, o que não queriam nem podiam, ou eram atirados para a zona de apoio ao Estado Novo. Assim nasceu todo este grupo de que estou a falar, que mete católicos, contra a situação. Daí a entrega dessa carta dos monárquicos e da Igreja do Rato.

 

Quando vai entregar essa carta, teme a reacção da família?

Não, a carta não, nem o conteúdo da carta. O que havia era as ausências perigosas que eu fazia…

 

O que é isso das “ausência perigosas”?

Ir para onde não devia ir! Estivemos metidos em muitas revoluções anteriores ao 25 de Abril. Mas isso é uma coisa que não se conta.

 

Porque é que não se pode contar?

Tem que ser com mais gente. Tenho medo de já ter transformado a realidade a que assisti, e em que estive, num imaginário meu. Coisas em que pensei na época e que nunca realizei, hoje aparecem como se tivessem existido. Não quero isso de maneira nenhuma! Já vi dois ou três casos em que isso sucedeu e não quero que suceda comigo. Não quero morrer a dizer: “Afinal, não foi bem aquilo que disse”. E afinal, disse porque o que era da memória estava transformado em imaginário.

 

Quando é que percebeu isso? Que é um modo de perguntar quando é que começou a envelhecer.

Exactamente. Lá para os 78, 79.

 

Aconteceu alguma coisa de especial?

Não. Mas sente-se perfeitamente. Começamos a não saber: “Mas isso teria sido assim mesmo ou fui eu que imaginei?, como é que isto surge?”. Há coisas que perdem a racionalidade, e a gente começa a duvidar se existiram.

 

Receou que se abatesse sobre si a doença que se abateu sobre o seu pai, e ficar com períodos de ausência?

Tenho medo. É preciso muito cuidado com a memória – não esteja eu já a viver noutra [dimensão]. Acho que todas as pessoas passam por isso.

 

Isso aconteceu há quase 10 anos, tem agora 87. Está óptimo.

Ainda estou bom, ainda posso dizer-lhe isto! A primeira condição para não estar bem era dizer-lhe tudo com imagens.

 

Vamos voltar aos anos da oposição, nomeadamente a 1958. Decide apoiar a candidatura de Humberto Delgado. Nessa altura, o CNC funcionava como uma plataforma de liberdade, uma congregação de gente desigual que não se encaixava em nenhuma das suas casas de origem.

Era um espaço de liberdade, de encontro. Havia gente católica da Igreja do Rato, o Tareco [Francisco Sousa Tavares], o Nuno Vaz Pinto, a Sophia de Mello Breyner, o Alçada Baptista.

 

O Alçada, quando dirigia o Tempo e o Modo, publicou-lhe um artigo que ficou famoso: “O homem perante a paisagem”.

O artigo é muito bera! Já escrevi muito melhor sobre a paisagem. O Delgado: lembro-me de ir com um grupo a casa dele e convidá-lo para ir connosco. E ele disse-nos que não, porque já estava comprometido com uma gente do Porto! Isto antes de se ter candidatado. Mas tinha muito respeito por nós, e para o mostrar tinha lá um quadro a óleo comprado em Londres, na Feira da Ladra: o da Dona Catarina de Bragança!

 

Essa veia monárquica, era uma coisa inflamada e central na sua vida, ou era só um dos seus aspectos?

Era central. Por duas coisas: a minha família, o meu pai, o meu avô, sofreram bastante. A República chateou muita gente. Não lhes roubaram nada mas tratavam-nos mal e com pouca consideração. Aquilo foi um sarilho de liberdade, só visto e percebido. Portanto, venho com essa leitura: de horror. Conhece a Ilustração Portuguesa?, sabe o que fizeram aos padres jesuítas?

 

Não. Mas a sua cara transfigurou-se ao falar disso.

Raparam-lhes a cabeça! Mediram-nos de alto a baixo, os homens de bata, do Hospital Júlio de Matos, para saber porque é que eles eram jesuítas! Consideravam uma anormalidade ser jesuíta. Está a ver a lata que hoje era precisa para chegar ao pé de um padre, metê-lo num hospital e medi-lo para ver por que é padre… A irracionalidade tinha chegado a este ponto. Eu vivia muito isso e contra isso.

 

Deu-se com jesuítas?

Sim, o padre Eugénio Jalhay, que era arqueólogo. O meu tio, como tinha interesse pela arqueologia, tratava muito com o padre Jalhay.

 

Ou seja, foi educado num mundo em que se odiavam os excessos da Primeira República.

Eu vivia muito contra esse pecado da Primeira República. Não a aceitava porque tinha conhecido familiarmente tudo o que tinha sucedido.

 

Que relação tem, e foi tendo, com a religião e com o catolicismo? É convicto?

Pretendo ser, porque ninguém é o que é. Tive uma grande influência familiar e do padre Jalhay. Talvez a pessoa menos religiosa fosse o meu tio. Fui apoiante do bispo do Porto. Escrevi um livrinho sobre a reforma agrária que lhe é dedicado, [a propósito da] pastoral sobre “A Miséria Imerecida do Nosso Mundo Rural”. Ele depois foi corrido pelo Salazar.

 

Estava a dizer que pretendia ser profundamente católico.

E por isso fui presidente da Juventude Agrária Católica antes do 25 de Abril. Tive lá umas coisas engraçadas e outras em que nos estendemos ao comprido. Havia a Juventude Agrária, para os tipos do campo, e havia a Juventude Universitária, [de onde saiu] o Nuno Portas, o Teotónio Pereira e parte do grupo da Capela do Rato. Há outra coisa: andei a ter lições e a procurar saber filosofia. Achei que era necessário.

 

Que questões é que o inquietavam?

Tudo.

 

Quem somos, o que fazemos, o problema do Homem?

Porque é que somos, porque estamos aqui.

 

Apoiava-se na religião para responder a isso, ou, pelo menos, para se sentir mais amparado?

Não há ninguém com quem isto não dê na religião. Tem de dar. A pessoa não tem é certezas. Agora, procuras, tem de as fazer. Todos fazem.

 

E dúvidas, teve muitas? E crises?

Toda a gente tem crises, toda a gente tem dúvidas, todos os dias. O conhecimento absorve sempre a dúvida. Como é que há certeza sem haver dúvida? Claro, quando uma pessoa se sente completamente esclarecida, o melhor é ir-se embora, é a altura de partir…

 

Foi um homem sempre muito gregário; a partir de que momento é que se sentiu autónomo, até em relação ao seu tio e aquela forma de tutoria?

Foi na universidade. Mas não é uma coisa que diga: “Amanhã vou ser diferente”. Uma pessoa, a certa altura, descobre-se de outra maneira.

 

Quais foram as grandes questões políticas que discutiu? Que filosoficamente e na prática o ocuparam.

Liberdade, igualdade, fraternidade, mutualismo, solidariedade: tudo isso é uma coisa linda. Mas quando nos impingem a cidadania, a coisa complica-se… O que é o cidadão? Para mim, não é só ter direitos e deveres: é ter que servir. Foi aí que compreendi melhor o problema da monarquia. Porque o cidadão fica-se na Revolução Francesa, não vai ao serviço. Os ingleses têm a ideia do serviço, que nós perdemos. Têm o serviço do rei, da rainha – é indiscutível. É uma condição. Não é para estar, é para ser. Através de uma simbologia e de um veículo humano.

 

O veículo humano é o rei e a rainha?

É. Inventou-se agora uma palavra para substituir o serviço, mas falta-lhe a humanização: é solidariedade. O Cavaco todos os dias a atira para o ar! [riso]

 

Quando é que despertou para as questões ecológicas?

Houve um período em que fui muito a África, porque fiz grande parte da urbanização de Nova Lisboa. Tinha lá um amigo que me integrou nas visões ecológicas, para além da arquitectura paisagística: o Eduardo Cruz de Carvalho. Ele teve de sair do país e foi parar a Los Angeles. O seu conhecimento de África era espantoso; tudo o resto que se tinha, era um conhecimento cinematográfico, do Tarzan, dos escravos e dos pretos com um caldeirão. Ele foi caçado pela universidade de LA onde foi dar a disciplina de África, e de onde trouxe, para Portugal, a Ecologia.

 

Quando teve poder na política, além de ser Ministro de Estado, foi ministro de uma coisa chamada Qualidade de Vida. É uma designação bonita. Deu-se bem, gostou de ter poder?

Dei, dei. Porque achei que estava lá para servir qualquer coisa. Ainda bem que lá estive.

 

Foi Pinto Balsemão que o convidou?

Não, foi o Sá Carneiro. Mas não foi para ministro.

 

Como é que se conheceram?

Foi antes do 25 de Abril. Uma vez, quando eu funcionava neste grupo do Fernando Amaro e do Sousa Tavares, lembrei-me de conquistar o Sá Carneiro! Ele já estava na Assembleia Nacional e resolvi ter uma conversa muito séria no Grémio Literário. Fiquei amigo dele. Ele sabia perfeitamente como eu pensava. Foi por isso que o PPM entrou, mais tarde, na AD.

 

Por causa dessa relação entre os dois?

Mas não entrei eu para ministro! Fiquei de fora. Inteligentemente. O Sá Carneiro tinha toda a razão de só me deixar ir como deputado… Eu não era muito maleável em termos políticos, para além de certos limites. Fez bem porque tinha que avançar num sentido e eu era um trambolho ao lado. Eu já tinha sido Secretário de Estado e sub-Secretário de Estado.

 

Foi logo no primeiro governo provisório que foi sub-Secretário de Estado.

Foi o Nuno Portas, o Teotónio Pereira e essa gente que me chamou. Eu era considerado mais à esquerda do que eles! Por isso é que alguns Capitães do 25 de Abril me chamaram para o governo provisório. E quando vieram os governos constitucionais, não fiquei no governo com a AD, fiquei como deputado.

 

No rescaldo da revolução, foram os Capitães de Abril que o chamaram. Já não era um monárquico perigoso cujo campo não estava bem definido… Como é que era olhado?

Era olhado como uma pessoa que conhecia muito bem os problemas da Ecologia.  

 

Mais tarde, Balsemão vai buscá-lo.

E eu fui. Fui porque naquela altura era jogar tudo por tudo – sentia-se isso perfeitamente. Foi quando joguei a RAN [Reserva Agrícola Nacional], a REN [Reserva Ecológica Nacional] e os Planos Regionais de Ordenamento do Território, o Ordenamento do Território. Antes, não se tinha jogado [nada disto], nem se tinha jogado a conservação da natureza, os parques naturais, a defesa do solo vivo, etc. Em força, [a criação da] reserva agrícola e da reserva ecológica [avançaram] com o Balsemão.

 

Tudo isso que criou e implementou aprendeu com quem?

Com o Caldeira Cabral, com o Cruz de Carvalho. Outras áreas, mais específicas, aprendi com pessoas específicas. E com o café.

 

Com as conversas de café?

Exactamente, com os meus colegas do café.

 

Que cafés é que frequentavam?

Havia muita conversa de café onde essas coisas se debatiam muito. Eram conversas muito importantes que daí alargavam para o CNC. O Martinho do Rossio era mais virado para as agronomias e para os solos e a Brasileira do Chiado era mais para as Artes, para as Agronomias. Eu andava de um lado para o outro.

 

E tinha tempo para tudo.

Às cinco horas fechava a loja e abriam os cafés!

 

Ao mesmo tempo tinha a sua vida pessoal. Casou com que idade?

Casei tarde. Em 1952, com 29 anos. Porque é que casei tarde?

Não sei, tinha muito que fazer.

 

Olhando para o seu percurso, temos a ideia de que é um homem do espaço exterior, e não é só por causa da ligação à Ecologia ou aos jardins; é também por causa da intervenção cívica. Como se tudo se passasse no espaço social. Por isso queria saber que importância teve a construção de um espaço interior e da família.

Teve muita importância. É como nas iluminuras: a actividade agrícola está à volta da cidade. A minha vida interior é a cidade, tudo à volta é a paisagem.

 

O espaço interior é o da cidade, que é o espaço das ideias?

Das ideias, da família, até de coisas de que estou a fazer um esforço enorme para me libertar, que é dos objectos. Às vezes, o espaço interior também é um espaço de objectos. Os soldadinhos, o barómetro, muitos livros. Isso é o espaço interior em que as pessoas vivem. Por vezes, é terrível.

 

Porquê?

Porque é uma obsessão. Quando tiver a minha idade percebe que os objectos vão perdendo valor. Ou antes, vão adquirindo um valor imaginário. Suponha que um objecto me foi roubado: o objecto continua a existir nesse imaginário. É um penduricalho, é muito chato. Passam a ser fantasmas.

 

O que é que resiste? E o que é que na sua vida tem valor?

Os objectos só têm valor se tiverem uma história. O que não é objecto só tem valor se serviu para alguma coisa. Preciso de mandar a história passear! Só que ainda não fui capaz de mandar a história passear… O que é um objecto com história? Responder a isso já é uma coisa mais complicada. O que é a essência de um objecto com história?

 

E da sua intervenção pública?

Importam as que serviram. A REN, por exemplo. Vanglorio-me muito com isso, mas não quero andar a apregoar que fui eu: foi o Café Martinho e uma data de gente que meti a fazer estas coisas.

 

Profissionalmente, entre as coisas que fez e de que mais se orgulha, estão também os jardins da Gulbenkian? É uma obra em que se pensa imediatamente quando se pensa no seu trabalho enquanto arquitecto paisagista.

É uma obra minha e do António Viana Barreto. A parte de terraços e plataformas, que é muito importante, é mais dele do que minha. Depois há a parte exterior, que é pensada pelos dois e por quem fez a classificação do que lá estava antes de se construir a Fundação. Acho bem. Mas há outra de que gosto muito e que pouca gente conhece: a Capela de São Jerónimo, em Belém.

 

Tem alguma planta de que goste especialmente, com que sinta uma especial identificação?

Há uma planta que caracteriza o país em termos científicos; são os carvalhos; e nas zonas húmidas, os salgueiros. Mas planta emblemática, para mim, é a laranja. Se for a uma quinta no norte verifica que tem a mata com carvalho, tem a horta e o pomar de caroço. Se for a uma quinta no sul tem a horta, tem a mata, e uma coisa que não varia: as laranjas.

 

Mas isso é a planta do país. Queria perguntar se há alguma de que o senhor goste especialmente.

Não. Mas num texto que fiz para os Caminhos de Ferro, descrevo uma viagem que fazia com nove, dez anos a partir da estação do Rossio para a terra do meu pai, Coruche. Era uma viagem de quatro horas, actualmente são meia dúzia de quilómetros. Passava pelo vale do Tejo, parava num intercâmbio para o sul, aí apanhava outro comboio, atravessava o Tejo e entrava num montado de sobro. Faço a descrição do que é que me dizia esse montado de sobro. Primeiro, os braços dos sobreiros, depois, a profundidade e escuridão que se adivinhava quando se vinha de comboio. Ao mesmo tempo aparecia uma luzinha ao longe; era uma casa que existia e de que só se via a luz. Fiquei sempre com uma admiração ao montado de sobro.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Abril de 2009