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Anabela Mota Ribeiro

Sangue do Meu Sangue

26.02.23

Cenas da vida no bairro Padre Cruz: paredes verde alface, espaço exíguo, um filho que dorme no sofá, uma natureza morta emoldurada. Objectos baratos, vozearia que chega das casas contíguas, vizinhas que vão alegremente de soutien ao quintal. Uma pobreza que não é sórdida; talvez só inestética. Noções particulares do que é o pudor ou a privacidade.

Ali vive uma mulher, cozinheira, com os dois filhos e a irmã, cabeleireira de bairro (daquelas que andam sempre com uma mola no cabelo). A filha estuda enfermagem e trabalha como caixa de supermercado. O filho é um pequeno delinquente (daqueles que oferecem à mãe um fio e uma medalha com o dinheiro de uma golpaça). Uma família como as outras. Poderiam comer spaghetti com molho de tomate, quando os encontramos pela primeira vez; mas não comem. Poderiam usar palavras como “abnegação”, porque é isso que fazem – entregam-se abnegadamente – o tempo todo; mas o palavreado é outro.  

“A família é um lugar muito estranho, é”, começa por dizer João Canijo. “Não há nenhuma família que não seja psicótica. A estranheza advém da incomunicação. Que é geral, mas que na família se torna mais estranha. Mas a ideia não era essa. A Electra, de que fiz uma versão literal no filme Mal Nascida, é uma história sobre a falta de amor. Ou sobre a incapacidade de demonstrar amor. O filme seguinte teria de ser sobre o amor incondicional.”

O centro de Sangue do meu sangue, o filme de que se fala neste Outono, é uma família que permitia a Canijo responder à questão: como é que um amor incondicional sobrevive em condições difíceis? “As pessoas que têm vidas difíceis passam o tempo a lutar pela sobrevivência. Não têm tempo para elaborar sobre os seus sentimentos.” Tudo está mais à flor da pele. Tudo é mais irreflectido. Nos antípodas da personagem de Beatriz Batarda, uma senhora elegante, destroçada emocionalmente, e que, mesmo assim, se dirige nestes termos à empregada: “Tamara, passe-me o azeite e o vinagre, se faz favor”. João Canijo, nascido numa família bem, do Porto, nunca quis fazer um filme que se passasse num meio de ricos. “Os pobres são muito mais interessantes do que os ricos. Se calhar porque estão mais próximo da Humanidade. Se calhar porque não têm tempo para reflectir sobre a existência. Vivem, simplesmente.”

Apresentemos a família Fialho. Márcia é interpretada por Rita Blanco. O retrato pintado pela própria: “Prática. Não sofre dos medos urbanos, de insegurança. Está ali para tratar dos filhos que teve. É discreta. Não tem nenhum acto heróico. Mas sabe muito bem quando actuar. Não é amarga porque as pessoas que têm capacidade para dar dificilmente caem na amargura. Sofrem, mas não amargam. Viver com amor é muito compensador.” Márcia é uma mulher que diz à filha, como se fosse tudo a mesma conversa: “Também tens que ir à tua vida, assim é que está certo…. Não sei que sopa é que hei-de fazer amanhã.”

Cláudia Filipa, nome de uma balada de subúrbio, é a filha com quem a mãe tem uma relação de profunda intimidade. Dormem na mesma cama. “Elas fazem aquilo que os psicólogos dizem que não se deve fazer. A mãe é a melhor amiga dela. O ídolo, a confidente. Ela não quer ser como a mãe. Quer ter mais dinheiro, mais oportunidades. Quer ter uma vida burguesa. Mas sabe que a mãe sofreu muito para a ter, sem a presença de um homem. Se tivesse havido um pai…”, define Cleia Almeida.

O pai que ela nunca conheceu. Que reencontra no início da idade adulta. Sem saber que é o pai. Como nos melodramas. Como na tragédia grega; embora este filme de Canijo não tenha a estrutura de uma tragédia grega, nem se aproxime de personagens de Eurípedes. Apesar dos temas, do incesto, da vingança.

O nó do problema é o pai. “Porque é que eles se apaixonaram? Ela não é mais bonita ou mais inteligente do que qualquer outra aluna… Partimos daquilo a que podíamos chamar a força do sangue. A atracção física é inexplicável.” 

A relação incestuosa que Cláudia mantém com o pai é o excurso usado por João Canijo para falar do amor incondicional da mãe pela filha. Márcia, uma personagem “muito leve apesar do peso da vida que tem”, diz a actriz, descobre que o homem por quem a filha está apaixonada é o último dos homens. E uma noite, em desespero, vai ao seu encontro. Enquadra-os uma luz bruxuleante, um silêncio que o bairro Padre Cruz não conhece. Márcia profere a sentença: a relação que aquele homem, que um dia ela conheceu intimamente, mantém com a filha é impossível.

Mas à filha, a mãe omite a razão da impossibilidade. “Quando ela descobre que a filha anda enrolada com o pai, porque é que não conta? Demorei 15 dias a perceber isto. Um gajo não chega lá”, diz o realizador. Mas uma gaja, Rita Blanco, aquela mãe que ama incondicionalmente, Márcia, chega. Porque só existe o que os nossos olhos vêem. Para Rita, a resposta é muito clara. “Se ela nunca souber, não há incesto. Apaixonou-se por um homem, correu mal, adeus. E não foi uma tragédia”. A tragédia é a de saber. “Assim ela pôde sobreviver. A outra dor, a mãe temia que a destruísse como mulher. Que destruísse as possibilidades que ela ainda tinha de ser feliz”.

Outro núcleo, a mesma família. Uma tia e um sobrinho. A tia diz a um homem que é a encarnação do Mal: “Tenho muita pena dos bacanos que têm de pagar para conseguir dar uma foda.” (Na vida como ela é, no bairro Padre Cruz, recorre-se ao vernáculo para dizer coisas banais como o céu estar carregado). Anabela Moreira interpreta esta tia, voluptuosa, que se sacrifica para salvar o sobrinho (a barreira do incesto não é transposta, apesar de uma quase promiscuidade carnal entre os dois).

Quando vemos Ivete pela primeira vez, à mesa, ela não faz declarações sobre o amor sacrificial. Veste uma combinação transparente, tem uma toalha enrolada na cabeça, bebe chá rooibos. “Não casou, não teve filhos. Sente-se a mais numa casa que é dela e da irmã. Sente que é invisível”. A actriz tem cadernos que escreveu em nome de Ivete que falam da frustração que a personagem sente. Do Vazio. Da contradição. Do falhanço. Diários que a ajudaram a compor aquela mulher que passou há pouco dos 30, envelhecida, sem futuro.

A relação umbilical de mãe e filha exclui-a. Os homens olham-na com luxúria. Resta-lhe Joca, o sobrinho, interpretado por Rafael Morais. Porque é que se sacrifica? “Há um agir pelo outro. Mas não é só pelo outro. Não é um acto completamente altruísta. É um acto que está relacionado com o nosso ego. Ivete não consegue imaginar o que seria não corresponder à ideia que tem do que é o amor.”

O final do filme coincide com a sua submissão a um homem que é o big boss da zona, um quase diabo, o bacano que pergunta “quanto levas?”. Uma cena de uma violência inexcedível. Física, emocional, sexual. Não é a nudez que incomoda Anabela Moreira. A facada em Ivete é a frase que diz que está velha, que tem o peito descaído. “Obviamente não foi real. Mas a cena foi tão vivida que o Nuno Lopes me abraçou, no final, e pediu desculpa.”

Às gajas – provocamos – custa ver esta cena final… “Diz que custa.” Risos. Na filmografia de Canijo as mulheres são as heroínas de noites escuras, mas são também as crucificadas. “Porque na vida fodem-se sempre. São mais disponíveis, são mais vulneráveis. Talvez por isso. Mas o filme era para acabar bem.” Rita Blanco declara: “Batalhei muito para que o fim fosse feliz”.

Um dos núcleos da história acaba bem. O outro, nem por isso.

Nuno Lopes engordou dez, quinze quilos para compor este traficante que se sentiu demasiado tempo um dejecto da sociedade. Inesperadamente, trata as filhas com carinho. “O Nuno Lopes e a Anabela Moreira são os actores portugueses que conheço com maior disponibilidade de entrega. São capazes de fazer tudo pelos papéis, à americana. A Anabela engordou 25 quilos para o Mal Nascida. Isto pode parecer uma coisa histérica, mas não é. Exprime uma disponibilidade para fazer as coisas. E é rara”, diz João Canijo.  

Descrição sumária daquele a quem Nuno Lopes dá corpo: Cabelo rente, um casaco de cabedal, um olhar de pedra. “A obsessão da minha personagem é o dinheiro. A única maneira que tem de não se sentir renegado é sair ou ser o dono do subúrbio. O seu tom fundamental é o de vingança em relação ao passado.”

É uma personagem masculina forte. Uma excepção na galeria de Canijo. “A gaja, em geral, é melhor actriz do que o gajo é actor. Depois de anos a pensar nisto cheguei à conclusão de que é biológico. Porque ela é receptiva, e portanto está disponível. Ele é competitivo, agressivo. São elas que me dão aquelas personagens. São raríssimos os actores que me dão o mesmo que elas.”

Em Sangue do meu sangue Canijo teve condições (leia-se: de produção) para usar uma metodologia invulgar. O documentário Trabalho de actriz, trabalho de actor resume o modo como tudo se passou. Foram dois anos de criação. “O argumento foi sendo escrito. Evidentemente não foi escrito pelos actores… Manipulei-os o mais possível. A densidade psicológica é toda deles. O processo era simples: eu filmava tudo o que diziam nas discussões e improvisações. Sempre com a noção de que tinham total liberdade. E tinham. Como é que eu os dirijo? Não dirijo! Isso era quando era novo. Não tem graça nenhuma, dirigir actores. Como é que os manipulo? Seleccionando entre aquilo que eles dão. Como um maestro, sou eu que tenho a noção do conjunto. Nem podia ser de outra maneira. Senão seria uma coisa caótica.”

Nuno Lopes, que trabalha pela primeira vez com o realizador neste filme, dá um exemplo de como as coisas se passavam: “O guião tinha indicações gerais. “Ele bate nela”. A proposta era construir connosco as personagens e criar o diálogo baseado nessa discussão. Quando chegávamos à mesa de ensaios, o João perguntava: “Mas porque é que bate? Porque odeia?, porque gosta?”. John Cassavetes ou Mike Leigh, cineastas que Canijo admira especialmente, experimentaram processos semelhantes no passado. “O João parte de um pressuposto, que é raro num realizador: o de que os actores são inteligentes. A ideia que vigora é a do actor-marioneta. Mas nas sessões de trabalho ele pedia: “Quando me falares da tua personagem, fala-me também de ti”. Quando chegámos à rodagem, com este trabalho de ensaio e de participação no guião, as palavras que digo no filme são as palavras que inventei”.

João Canijo frequentou o bairro Padre Cruz. Uma imersão num Portugal profundo, que lhe aparece em todo o lado, que percorre filmes como Noite Escura (inspirado no caso Mea Culpa, passado em Amarante), mas que ali estava circunscrito. Frequentou um bairro onde há facadas, pedradas, pessoas acossadas, pessoas desconfiadas, pessoas extenuadas. “Durante dois meses, fui todos os dias. Ao fim da tarde, porque era quando as pessoas regressavam a casa do trabalho. O bairro foi-me fácil. É onde vive a minha mulher a dias. Entrevistava pessoas, falava com elas. O foco principal do que diziam era a dificuldade em sobreviver. O resto vinha por acréscimo. Ao falarem, naturalmente percebiam-se as suas relações familiares.”

Cleia trabalhou num supermercado, Anabela pintou unhas num cabeleireiro. Pretendia-se que o espectador visse a Cláudia Filipa e não a actriz Cleia Almeida a fazer de Cláudia Filipa. O que temos em Sangue do meu sangue? Um cinema que se imiscui na vida de verdade, que traduz uma vida que não é arrumada, que tem a televisão sempre ligada, irritantemente, que tem cenas e conversas a acontecerem em simultâneo. Para qual olhamos? Qual seguimos? Com qual nos identificamos? E que fazer quando tudo arde? Colapsamos ou seguimos em frente, numa aparente normalidade?

A família é um lugar estranho. Nela se passam coisas assombrosas, histórias de amor incondicional. Visíveis. Desde que não viremos a cara. Rita Blanco, que desafiou o velho cúmplice, João Canijo, a tratar este tema, respondeu deste modo quando lhe perguntámos o que é o amor incondicional: “É só desejarmos o bem do outro e não querermos nada em troca.”

 

Publicado originalmente na revista Máxima

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rita Blanco

26.02.23

Rita Blanco, a propósito de Alice, a filha: «Não estou disposta a que ela fique demasiado lesada por isto. Não posso pô-la numa pessoa qualquer. A única hipótese era ela ficar com uma pessoa suficientemente próxima para que as minhas ausências pudessem ser suportáveis. Eu vou para ao teatro e a minha mãe fica aqui sempre com ela».

Rita Balco, a propósito da mãe: «Ela tem sido um apoio fundamental. Além do pai [da Alice], que também apoia. A minha mãe e o meu padrasto, de quem gosto imenso, têm sido incansáveis e têm sido fundamentais para a minha vida como actriz. Porque a vida de actriz tem uns horários complicados, e teria que desistir um bocadinho...».

A Alice, a mãe, a Alice, o João Canijo, a Alice, a família por perto, «tudo em bom». A qualidade do afecto, o pai que era publicitário e a enchia de mundo, o padrasto que lhe dava Xenofonte a ler como quem dá bolachas ao lanche, a mãe que lhe ensinou que ser de esquerda é não suportar o sofrimento dos outros. A admiração pelos grandes autores, um telefonema a Rohmer a dizer-lhe que queria trabalhar com ele; o realizador a duvidar, a duvidar que ela fosse portuguesa; o francês era exacto, explicava-lhe ela, porque tinha frequentado o Liceu Francês, em Lisboa. As séries e a pulverização na Sic, a fazer de má da fita e a ganhar dinheiro como já não se ganha.

A Alice, a fazer parecer tudo isto um guião antigo.

Confesso: senti-me uma intrusa. Eu cheguei numa manhã de dia de semana, a única em meses que mãe e filha tinham para se mimar, sorrir, dizer coisas, apreciar desenhos, beber o leite todo, pôr o banho a correr. Ainda sugeri voltar noutro dia. Aquele quadro morno, banhado pela luz que vinha do Tejo, comoveu-me. Mas ainda bem que fiquei. Ainda bem que assisti à felicidade das duas e a posso reportar. A Rita, a Rita Blanco, é a mesma Rita, e é outra, depois do nascimento da filha. (Que anda pelos cinco ou seis anos).

Rita Blanco é actriz, e quer que gostem dela pelo trabalho dela. Para o resto estão lá os amigos e a família e a Alice.

 

 

Podemos assumir que a tua filha está a assistir a esta entrevista?

Podemos.

 

 Há coisas de que falas à frente dela e outras de que não falas à frente dela?

Perante a Alice não me escondo, nem me esquivo. Nunca. Há coisas que são importantes ela saber e outras que não, em conformidade com a idade dela e com aquilo que é importante para ela. A única coisa que é minha e que não partilho com mais ninguém é a minha vida íntima.


O que é que delimita o território da intimidade? São os afectos, a sexualidade?

É a sexualidade, e os afectos até um certo ponto. A Alice pode saber quais são os meus afectos, se eu assim o decidir, mas não tem que participar. Não quero ser amiga dela, quero ser mãe dela. Às vezes, tenho muita pena de vivermos só as duas. Tira-lhe a possibilidade de ter de me partilhar com outras pessoas. A única maneira de contrabalançar isso é tirar-lhe um bocadinho de um espaço que pertence só a mim – para ela perceber que há zonas onde não pode entrar. Isso ajudá-la-á, mais tarde, a ter o seu espaço não invasível.

 

A Alice representa uma mudança radical na tua vida. Quando se conhece um bocadinho a tua história, percebe-se a existência do espelho, de uma existência frente ao espelho; percebe-se a força da relação com a tua mãe...

Continua a ser. Estou a ver que não evoluí nada! Saio daqui e vou para o psiquiatra! Felizmente, há aqui um no andar de baixo, vou já! Ficas-me com a miúda, não ficas?

 

Fico. Há a relação com o teu irmão... E a leitura. Estas eram as coisas estrurantes para ti.

O meu pai também é muito importante nesta história.

 

O que é que mudou?

Não mudou nada. Apareceu cá mais este «bicho», que perturba isto tudo. Não sei como é que são as outras mães, mas há uma altura em que ficas baralhado... Pensavas, até ter um filho, que sabias o que era amar, e depois... «Cuidado, afinal amar é isto». Começas a questionar tudo. Podes ficar um bocadinho agarrada àquilo e pensar que não precisas de mais nada na vida. Isso é péssimo para eles, é violentíssimo para eles. Claro que depois reequilibras a coisa. Depois uma pessoa cura-se.

 

Tu foste o centro da vida dos teus pais. Dizes que é péssimo em que sentido?

Fui o centro da vida dos meus pais, mas tive a sorte de ter irmãos. A Alice também tem irmãos, só que não vivem com ela, e portanto ela é o centro das atenções desta casa. Eu fui uma mimada do pior, apesar de ter um irmão. Tenho várias tias, que não têm filhos, que são quase segundas mães. Aquilo estava tudo centrado em mim. O meu irmão só nasceu quando eu tinha seis anos. Estou sempre cheia medo que ela também fique mimada demais.

 

Mas qual é a crise de se ser mimado demais?

O ser mimado demais impede-nos de evoluir mais rapidamente.

 

Amaste o teu irmão desde o princípio?

Acho que sim. Adorava o meu irmão.

 

Nunca tiveste ciumite?

Não. Pelo contrário. Quando gosto muito, muito, muito deixo de ter ciúmes. Só me aconteceu com o meu irmão e com a minha filha. Gosto tanto deles que quero imenso que sejam amados por toda a gente. Então, não há hipótese de rivalidade. Isso é que é o amor supremo: não teres nenhum sentimento de posse para com o outro, nem de rivalidade. O ciúme não é um sentimento, não tem direito a ser um sentimento, é pouco interessante.

 

Está bem que não é nobre. Mas que é muito estruturante, lá isso é.

O ciúme é muito destruidor.

 

No fundo, é a incerteza.

Mas não tenho incerteza nenhuma em relação ao meu amor por ela e ao amor dela por mim! Nem em relação ao meu irmão. Os meus amores com homens é outra coisa. Aí, faz parte o ciúme, aí sim senhora, sou do piorio. Com ela é demasiado importante, é demasiado grave para se falhar. Com os filhos, temos só obrigações e deveres.

 

Ao mesmo tempo, é o mais redentor dos amores. Sendo a máxima obrigação, é também a mais libertadora.

Há a culpa. A história repete-se um bocadinho. Tinha imensos sentimentos de culpa perante o meu irmão, achava que nunca era suficientemente boa irmã. E também tenho a certeza de que não sou suficientemente boa mãe. Passo a vida a tentar ser menos má mãe e a culpabilizar-me por isso.

 

Lembro-me de nos encontrarmos num jantar com o Pedro Almodovar, que estava a promover o «Tudo sobre a minha mãe». Era a primeira vez que saías depois de a Alice nascer, e sofrias imenso por estares longe dela. Era uma coisa comoventíssima.

Lembro-me desse jantar, odiei estar no jantar.

 

O teu sentimento era: «Estou a traí-la». A miúda já devia ter meio ano, pelo menos.

Devia ter mais, porque já não lhe dava de mamar, e dei de mamar até aos nove meses. Ela «bebia» de três horas e meia em três horas e meia. Estava a trabalhar, ela ia comigo para o estúdio. Estávamos sempre juntas. É o que está certo! Para que é que se tem filhos? Não estou a criticar os outros, mas para mim é o que está certo.

 

Nesse jantar não pensaste naquela primeiro encontro com o Antonio Banderas, em que ele te disse: «És mesmo uma actriz para o Pedro [Almodovar], tenho que te apresentar ao Pedro».

Estávamos fora do contexto, os dois. Estávamos na Suíça, em Genève.

 

Com o Almodovar à tua frente, não recuperaste essa velha conversa com o Banderas?

Não. De todo.

 

É como se fosse uma outra vida?

É.

 

Então conta lá a conversa com o Banderas. Coincidiram num meeting internacional, eram considerados as grandes esperanças do cinema europeu.

Nós chegamos ali, a Genève, um frio do caraças, eu e ele muito mediterrânicos, os outros todos nórdicos, as actrizes todas loiras. O único com quem tinha alguma coisa a ver era com o Antonio Banderas, que não conhecia de lado nenhum. Ele estava com a mulher, que não era a Melanie Griffith, mas a Anna. Era um homem giro, simpático, inteligente, parecíamos achar as mesmas coisas sobre o que era ser actor. Não percebíamos nada daquilo, não é? Ainda hoje não percebo. Fizemos logo uma ligação, prontos para a converseta. Ele espanhol, eu portuguesa com raízes espanholas, e falávamos os dois a mesma língua.

 

Li que és fluente em italiano, espanhol...

Não sou nada fluente em espanhol.

 

Em francês sim, por causa da escola.

Sim. E o italiano também, por causa do Instituto Italiano. Mas não falo fluentemente nada. Falo razoavelmente francês.

 

O teu pai falava português?

Português. A minha avó é que era galega. A verdade é que a malta deu-se muito bem, já só queríamos estar juntos, e com a mulher dele. Não havia nada de outras coisas... Fui-me soltando e ele dizia: «Tu és mesmo... pareces uma actriz do Almodovar». Ele disse isto como podia ter dito: gosto imenso de tomar chá contigo. E eu: «Muito obrigada, muito obrigada». E pronto, morre aí o assunto.

 

Tu eras uma rapariga ambiciosa. Não agarraste a ideia de ter uma carreira internacional e ser actriz do Almodovar?

A certa altura pensei que era bom ter uma carreira internacional; mas a minha ambição, como sou muito mimada, limitou-me sempre muito.

 

Como assim?

Eu achava que sim, mas que tinham que me vir buscar. Tenho acesso a muitos realizadores, facilmente, através do Paulo Branco, do Pedro Borges, e nunca quis. Há muitos actores que são assim: só querem que trabalhem com eles se forem desejados. A ideia de ir ter com alguém, fazer-me ao piso, dá-me vómitos, morro de vergonha! Era incapaz.

 

Estar a afinfar-se é uma coisa, outra coisa é o exercício de humildade que permite dizer: «Gostava muito de trabalhar consigo».

Já me aconteceu uma vez, com um realizador...

 

Telefonaste ao Eric Rohmer.

Ele, coitado, nem acreditou.

 

Mas como é que conseguiste o número de telefone do Rohmer?

Em Paris conheço muita gente.

 

Como é que ganhaste coragem para pegar no telefone?

Não foi preciso coragem: cheguei e telefonei. Fui para Paris... Fui parva, devia era ter ficado em Portugal.

 

Foste para Paris para telefonar ao Rohmer?

Fui. Nunca me passou pela cabeça que ele achasse que eu vivia lá e que não acreditasse que era portuguesa de gema e que tinha ido lá de propósito para falar com ele. Mas era nova, e não pensava. Mais tarde comecei a perceber que uma carreira internacional pode fazer sentido ou não. Poderás tu dizer-me: «Dizes que não faz sentido porque não a tiveste». Mas eu tive oportunidades!, fiz alguns trabalhos com realizadores não portugueses. Devo dizer-te que o que gosto mesmo é de representar em português. Faz-me imensa impressão falar noutra língua.

 

Porquê?

Não é pela dificuldade imediata da língua; é porque falar noutra língua já é uma representação, e limita as subtilezas. O Banderas é um excepcional actor em espanhol e não é um excepcional actor em inglês.

 

Tem que ver com a ressonância, com a música daquela língua no teu mapa afectivo?

É, tem a ver com as subtilezas que se conseguem enfiar nas palavras, nos sons, em letras. Numa língua em que não se tem passado, as coisas já não são as mesmas, perde-se um percurso. Como é que hei-de explicar isto? Eu sou portuguesa, posso falar sobre ser portuguesa, sobre as coisas que são relativas à minha cultura, ao meu estar aqui. Falar em português, fazer coisas com realizadores portugueses que falam da mesma coisa que eu, podia ser limitativo. Mas, quanto mais se limita uma coisa, às vezes, mais se torna [a coisa] universal. Isto é um percurso, gosto deste percurso e quero este percurso. Tenho um privilégio muito grande em trabalhar com o João Canijo. Tive a sorte de me acontecer aquilo que acontece poucas vezes: uma actriz e um realizador, que até tiveram uma vida passada em comum, não importa...

 

Não?

Tem importância porque o nosso percurso foi feito em conjunto. Eu estava envolvida nos guiões dele, ele estava envolvido na minha representação e nós conseguimos fazer uma história que só tem fim quando acabarmos. Com as devidas distâncias, não estou a comparar-me, nem a mim nem ao João, comparo é a sorte e o privilégio: a Gena Rowlands e o [John] Cassavetes, a Liv Ullmann e o [Ingmar] Bergman. Eu já não tenho que perguntar coisas ao João e ele já não tem que me dizer nada, basta olharmos um para o outro e sabemos o que é que cada um quer do outro.

 

Se não houvesse em todos estes casos uma relação pessoal a misturar-se com a relação profissional, será que a evolução seria a mesma?

Não. Não estou a dizer que era melhor ou pior, era outra. O que é importante é o percurso de trabalho, é disso que estamos a falar.

 

O que estou justamente a perguntar é se o percurso de trabalho seria o mesmo se não houvesse uma relação emocional tão fundante.

Não sei. Não tenho outra experiência, só tenho esta. Hoje em dia é uma relação só de trabalho, de amizade, de amor – do nosso amor passado. O amor nunca acaba entre as pessoas.

 

É a capacidade de amar que não acaba?

Isso é outra coisa. Mas o amor já ficou lá marcado, vai-nos guiar no resto da vida. É impossível acabar os amores, não é? Pode acabar a possibilidade de as pessoas estarem juntas. Não ando aqui com imensa vontade de voltar atrás, pelo contrário... Agora amo muito, estou tão feliz que até ferve!

 

Gostava de voltar atrás. Não tens a facilidade, não queres, o que seja, falar com realizadores e dizer: «Quero trabalhar consigo». Foi por não ter corrido bem com o Rohmer que a seguir te fechaste?

Não. Aquilo foi uma necessidade vital. Eu via os filmes e achava mesmo que precisava de fazer um filme com ele. Só importa trabalhar com uma pessoa se a compreendermos e acharmos que podemos ser compreendidos por ela. Adorava que o Coppola me telefonasse, morria! Já não podia ir trabalhar porque tinha falecido! Mas será que tinha alguma a ver com o Coppola? Será que nos íamos entender? Não faz sentido nenhum. Com o Rohmer percebi que havia muitas...

 

Como se processava a identificação?

O que ele pedia aos actores, para mim, era muito compreensível. Eu achava..., na minha estupidez, que eventualmente tinha alguma coisa que lhe podia dar! Já fiz vários filmes com realizadores que são uma chatice. É uma chatice porque não tens afinidade, e o gozo de fazer cinema é perceber o que ele quer e fazer exactamente aquilo. Filmar por filmar não tem graça. Decidi sempre pelo trabalho com o João Canijo. E decidi bem.

 

O modo como seduzes, e tu és muito sedutora, não é nada convencional. Seduzes uma plateia porque tens graça, és inteligente, crias um efeito surpresa.

Achas isso tudo ou leste nalgum sítio?

 

Acho isto tudo! Acho que provocas, e fazes uma triagem, como quem: «É mais fácil não gostar de mim... Aqueles que, mesmo assim, gostam, é porque valem mesmo a pena».

Os meus amigos todos dizem isso, mas não é verdade. Se calhar sou um bocado agressiva. Eu acho que não sou.

 

Porque é que usas esse tom de enfant terrible, porque é que dizes tudo o que te passa na cabeça?

Achas que sou?

 

Depois da maternidade, estás mais suave. Mas todo o teu percurso é nesse sentido.

É armação. Provavelmente é uma defesa. Sou muito tímida, como a maior parte das pessoas. Sou igual às outras pessoas. A exposição é difícil de assumir e de aguentar. Tenho medo da exposição. É assustador, desagradável, invasor.

 

O que é que é assustador? É pensar que a outra pessoa pode não gostar de ti?

Eu trabalho. Estamos expostos constantemente, não é só quando está o público. É-se exposto perante os colegas, o encenador, quando se ensaia, tem que se mostrar o que se vale. Acredito que um actor tem que ser generoso, está sempre ali a entregar pontos, a expor os sentimentos, a mostrar muita coisa que na vida normal parece grotesca, exagerada e ridícula. Não é fácil.

 

É estar em carne viva.

É, constantemente. Aquilo já é duro. Depois, faz-se um trabalho para o público, é evidente que isso nos expõe perante o público.

 

Mas a tua forma de defesa é quase agressiva! Nos múltiplos projectos em que participaste, sobretudo na Sic, fazias o papel da má da fita.

Não era uma defesa suficientemente estudada, porque senão não tinha o efeito negativo que muitas vezes teve, e tem. Mas tenho algum prazer nisso, ganhei prazer nisso. Já que me era duro e não conseguia reagir de outra forma, aprendi a retirar prazer disso. Quero lá saber que não gostem de mim! Eu gosto de mim e tenho imensos amigos que gostam de mim. Quem quer gosta, que não quer... Não se pode andar a agradar a toda a gente.

 

Mas isso é mesmo assim ou convenceste-te de que era assim? Até onde é que te importa que as pessoas gostem de ti?

Claro que quero que as pessoas, o público, gostem de mim, do meu trabalho. O gostarem de mim pessoalmente... O que quero mesmo é que as pessoas gostem do trabalho que faço. Não quero muita gente à minha volta, tenho os meus amigos, de quem gosto muito. Tenho muita sorte, a vida corre bem, correu-me sempre bem. Gosto muito de gostar das pessoas, mas não se pode gostar todos os dias, a toda a hora, de toda a gente. Também tem a ver com a minha profissão: preciso das pessoas, de analisar, de olhar, para depois poder deitar pessoas cá para fora. Pessoas é bom.

 

Essa desimportância que se dá aos outros...

Ao mesmo tempo, dou muita importância! Mas não no particular, não posso entregar-me a toda a gente, senão morro. Eu sou assim, tenho mau feitio à partida.

 

Não percebo onde é que isso radica. Foste muito mimada, tiveste uma mãe muito próxima, um pai irreverente...

Muito pai, também. Tive a minha família toda muito à volta, o meu avô, a minha avó, tudo em bom. 

 

E depois dás em rapariga que fala sozinha para o espelho, que é provocadora e que tem mau feitio... Consegues perceber?

Há pessoas que gostam de mim. Eu sei que é muito mau estar a dizer isto, mas sinto na rua que há pessoas que gostam de mim.

 

Há uma franja de público que acha graça ao lado histriónico, independentemente do teu trabalho como actriz. Se calhar nem foram ver o «Ganhar a vida» (João Canijo).

Já fiz muita coisa séria sem ser o «Ganhar a vida»! Peças de teatro, muito. Teatro, dramático, bom. Não estou a dizer que era boa, mas bom teatro.

 

Pronto, pronto. Fixo-me no «Ganhar a vida» porque é intensamente dramático, feito à tua medida, onde estás no teu melhor.

Estou melhor neste [«Noite escura»]. Muito mais difícil, o papel, mais subtil. Este papel não é para brilhar, o outro era para brilhar. O próximo é para brilhar outra vez.

 

Tiveste ciúmes da Beatriz Batarda, que brilha no «Noite escura»?

Tive. Mas bons, ciúmes bons.

 

Significa que não dás pancada?

Não, não. Eu preciso dos outros para trabalhar e gostei de trabalhar com ela. Era importantíssimo que ela fosse boa, para eu poder ser boa e para o filme funcionar. Quando trabalho com o João Canijo, o que quero mais é que os outros sejam muito bons, para servirem bem o João. Mas penso: «Ela brilha mais do que eu»... Só posso confessar porque são [ciúmes] bons. Não deixo de gostar dela por causa disso, pelo contrário. E admiro o trabalho dela. Só consigo gostar mesmo das pessoas quando as admiro.

 

Admirar é uma coisa, amar é outra.

Para mim, começa pela admiração. Só consigo gostar de pessoas que admiro.

 

Mas, por exemplo, o teu pai: tinhas admiração por ele?

Tinha imensa admiração pelo meu pai.

 

Tinha lido numa entrevista que o lado bizarro dele...

Incomodava-me, era adolescente, o que é que achas? Mas não deixava de o admirar. O meu pai era um homem especial. E era muito inteligente, coisa que também aprecio.

 

O que é que aprendeste com ele?

Generosidade, que é fundamental. Mais ainda que a inteligência. Pelo menos deu-me isso. Se aprendi ou não, veremos no fim.

 

Ponto de situação: tínhamos uma rapariga cheia de grandes planos que foi percebendo que há coisas mais importantes do que o sucesso. É assim?

Sabes que no nosso tempo, (ainda no outro dia falava disso com o Miguel Guilherme), o sucesso não existia. Para já, as pessoas não faziam televisão, não ficavam famosas em meia-hora, ficavam conhecidas em 15 anos. O sucesso não era uma coisa que nos batesse à porta, não era parte integrante da vida de um actor. O que era mesmo importante era fazer bons trabalhos. Éramos até um bocadinho arrogantes...

 

Mea culpa?

Eu era muito arrogante. Fui chamada arrogante muitas vezes e com alguma razão. Trabalhava só com os melhores, os melhores textos. Eventualmente perdi a oportunidade de conhecer algumas pessoas que, na minha arrogância, achava que não eram boas, e que, se calhar, eram muito boas. Mas, por outro lado, também me fez ser muito exigente, particularmente comigo. Foi a minha maneira de estar e não vou agora desfazê-la toda.

 

Os produtos menos bons que foste fazendo, sobretudo para televisão, foram os sapos que tiveste que engolir – se pensarmos nessa arrogância inicial?

Não engoli muitos, se queres que te diga. Tive o privilégio de ter uma relação muito próxima com o [Emídio] Rangel e de discutir com ele o que é que ia fazer. Eu não era da casa, fazia o que queria. Porque era actriz, tinha os filmes e as peças cá fora. Também fiz algumas coisas que me divertiram imenso. Nomeadamente a «Má Língua», em que levei pancada de manhã, de tarde e de noite, inclusive na rua, e fez-me bem.

 

Mas para uma rapariga que telefona ao Rohmer, sonha com o Antonioni, trabalha intensamente com o Canijo...

E com outros realizadores. Por exemplo, gosto imenso de trabalhar com o João Botelho. Tenho afinidades com o João Botelho, percebo o que ele me diz, e tento chegar o mais próximo disso. Esse é que é o trabalho do actor: chegar mais próximo de uma coisa que nos é pedida e ainda conseguirmos dar-lhe um toquezinho que é só nosso. Isso é que é o gozo de ser actor.

 

Estava a perguntar se fizeste televisão para ganhar dinheiro.

Fiz. Imenso.

 

Tiveste uma vida burguesa, se posso dizer. E depois expuseste-te a uma carreira incerta, passaste por dificuldades...

Não posso dizer isso. Vivi com menos dinheiro, com mais dinheiro, mas viver com dificuldades é outra coisa. Houve uma altura em que, para não aceitar trabalhos que não queria, fui trabalhar para um restaurante. Mas isso é uma opção.

 

Isso foi quando?

Houve alturas em que a gente não tinha mesmo dinheiro.

 

Estás a falar da fase em que vivias com o João?

Sim. Sei que tenho sempre a minha família e o João tinha a família dele. Nós achávamos que não devíamos ter essa protecção. Fui viver com o João quando comecei o Conservatório, não fazia sentido nenhum estar a dizer à minha mãe: «Agora estou fora de casa, mas pague-me lá o curso e pague-me tudo». Trabalhava à noite no Teatro Nacional como figurante e durante o dia ia para o Conservatório. Mas isso faz parte da vida.

 

No restaurante fizeste o quê?

Era empregada de mesa, no Casa Nostra. Mas também não foi muito tempo.

 

Divertias as pessoas, de papelinho na mão, a anotar os pedidos?

Não sei se as fazia rir, mas até me diverti. Divertia-me imenso com o Fernando, que era o gerente do restaurante. Também fui porque conhecia a Paola [a dona] do cinema e ela disse-me: «Queres ir trabalhar para o meu restaurante?». Não fui pedir emprego a um restaurante. Por acaso, sempre tive trabalho e há relativamente pouco tempo tive seis meses sem trabalho. De repente tens uma filha e não podes brincar como brincavas antes. Não posso dizer: agora não trabalho, vou para um restaurante, vou fazer um curso. Passei a ter uma razoabilidade que nunca tive que ter. 

 

E as cenas que representavas ao espelho quando eras pequena, em que te vestias e despias? A maior parte das pessoas não percebe como és vaidosa e como gostas de coisas bonitas.

Pois não, não percebem. O que é estranhíssimo. Dizem-me sempre: «Ai, tu não te vestes, andas sempre muito maltrapilha», e tenho sempre umas roupas muito boas.

 

Vejo-te muitas vezes com sapatos e camisolas Miu Miu...

Eu tanto gosto de comprar uns sapatos como me estou nas tintas para os sapatos, e isso é que é bom. Relativizar é fundamental. Gosto de mudar de roupa quando represento, ainda por cima são outras pessoas que tratam. Quando vou trabalhar, se pudesse punha sempre a mesma roupa para não ter que pensar. Não consigo escolher roupa todos os dias, estar bem todos os dias, é uma canseira. Gosto de usar roupas que têm um ar velho, óptimas, às vezes caríssimas. Sai mais caro comprar uma camisola com um ar velho do que uma nova. Um ar velho e um ar pingão, isso é lindo. Tenho a mania dos anéis. Uso sempre um anel aqui e mais o brinco.

 

Esse anel é porquê?

Foi o meu pai que me deu. É um buda, está de pernas para baixo para correr bem a vida.

 

E o brinco?

Era da minha avó, só uso um, só tenho um furo.

 

E isso é superstição?

Não. Quando era mais nova, a minha família, toda muito progressista, claro que não me furaram as orelhas! Na adolescência quis furar as orelhas, as minhas amigas tinham as orelhas todas furadas. Eu furei e doeu-me horrores, infectou-me logo e disse: «Mãe, tire-me, tire-me!, que isto está a doer muito». Tirou-me, fechou, fiquei só com um, só uso um brinco. Se assim foi é porque era para ser assim.

 

Ainda não explicaste porque é que representavas ao espelho, cenas de filmes em que eras trocada, em inglês...

Não era bem trocada... O que é que se via nos filmes? O conflito. Dizer-me que já não gosta de mim. É mais giro fazer a sofredora, e eu estava nessa fase. Quando estava a fazer a cama, para me entreter, dizia: «I don’t care. Ok.Ok.». Era ela a mostrar que se estava a cagar para ser deixada.

 

O que nunca é propriamente verdade...

Exactamente. Mas a possibilidade de viveres outras vidas é porreirinha. Olha que eu, à força de muita personagem e muito livro que li, tenho a impressão que, se for abandonada, aguento-me. Toda a gente se aguenta.

 

Também dizias que a vida da Bovary e outras que lias nos livros eram mais interessantes que a tua.

Era porque ainda não tinha vivido uma data de coisas. A minha é muito melhor.

 

A Bovary não tinha uma vida nada interessante. Pelo contrário: morria de tédio. Por isso é que se pôs a ter amantes.

O prazer de vivermos outras vidas através dos livros chama-se o prazer da leitura. Claro que gosto da minha vida.

 

Porque é que, de modo geral, as pessoas são mais infelizes do que felizes?

A vida é mesmo assim, temos que passar pelas fases todas. Houve uma altura em que me aconteceu achar que estava a viver a vida a despachar, não me estavam a acontecer coisas. Eu sabia lá que ia ter momentos de tanta felicidade. Claro que há muitas chatices, o mundo não está fácil.

 

És mais feliz que infeliz?

Na minha vida sem o mundo, sim. Tenho muitos momentos de felicidade. E outros momentos de muita infelicidade – também faz parte de ser feliz. Eu preciso desse contraste, para saber quando é que sou feliz, senão é uma grande maçada. Mas o mundo não é feliz. E isso começa a ser pesado para a nossa felicidade pessoal.

 

Sentes-te mais presa à vida por causa da Alice?

Sempre me senti muito presa à vida.

 

Mas um filho é um comprometimento último, de que uma pessoa não pode abdicar.

Tive uma educação entre o conservador e o muito liberal, uma educação de uma família (uma mãe, um pai e um padrasto, o Nuno) de esquerda. Nunca fui alheada do mundo, nunca. Estou a lembrar-me de uma frase do Zé Mário Branco de que gosto – pode ser primária, pode ser o que quiseres: «Ser de esquerda é não suportar o sofrimento dos outros». Fui educada assim.

 

Pronto...

Não tens aí nada para escrever, não disse nada com interesse.

 

Tens essa impressão?

A única coisa com interesse que posso dizer é que gosto muito da Alice. E amo muito, tenho a sorte de amar. Não só a Alice. Amo os meus amigos e amo o meu namorado.

 

Quanto lês uma entrevista, o que é que te interessa? A intensidade da pessoa, a verdade que está ali inscrita? Imagina que estás a ler esta entrevista...

Vou morrer de terror, só digo parvoíces. Leio e digo que sou patética, e todos os meus amigos me telefonam a dizer: «Rita, mais uma vez foste ridícula. Por que é que dizes tantas parvoíces? Por que é que és tão incoerente? Por que é que és tão desinteressante?».

 

Mas achas isso tudo?

Na vida real não acho, nas entrevistas é que só digo parvoíces. Tudo o que te digo hoje, amanhã acho outra coisa. «Porque é que estão a falar de mim?». Se há alguma coisa que pode ter interesse para as pessoas é o meu trabalho – é a frase do costume dos actores, mas é verdade. O que é que as pessoas querem saber de nós? Zero. Imagina o que é veres no jornal escarrapachado as parvoíces que dizes com os amigos, que não interessam a ninguém e retiradas do contexto pequenino... Estás a perceber? É sempre mau.

 

Lês uma entrevista de uma pessoa qualquer e o que é que te pode prender?

As pessoas serem interessantes. Ouvir a Paula Rego comove-me logo. De vez em quando gosto de ouvir umas pessoas a falarem. Mas elas estão a falar sobre o seu trabalho, não é sobre si próprias. Eu tenho vergonha de mim a falar sobre mim própria. Não tenho nada de interessante para dizer às pessoas. Também se eu disser isto, cai arrogante. Tudo o que possa dizer vira-se contra mim!

 

Há, por fim, alguma coisa mais que queiras dizer?

Gosto muito do meu namorado!

 

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2005

Anabela Moreira e Sónia Nunes

26.02.23

As pessoas normais não têm nada de especial? Têm. Simone de Beauvoir ficaria escandalizada com o machismo das Caxinas? Talvez. (A resposta não é categórica se olharmos para os seus amores com Jean Paul Sartre.) Que há nas Caxinas, microcosmos ao lado de Vila do Conde? Mulheres que fazem dos seus homens os reis da casa. Mestres e mestras.

A mestra Sónia Nunes é a heroína do novo filme de João Canijo, É o Amor, onde faz de si própria. A actriz Anabela Moreira faz de actriz que vai fazer um estágio nas Caxinas.

Não é provável que Sónia tenha lido Beauvoir. Nem é preciso. Ela sabe o que é ser mulher. E é feliz nessa coisa chamada amor.

O que há para saber sobre a Sónia? Que tem 38 anos, que casou aos 20 com o Zé, que tem três filhos, que é mestra. Que ama, que é feliz, que tem o brilho e a força vulcânica das pessoas genuínas.

João Canijo escolheu-a como protagonista do seu novo filme, É o Amor, e propôs a Anabela Moreira que fosse viver a vida de Sónia por um mês. Nas Caxinas. Com o mar ao fundo e a música do brasileiro Zezé di Camargo a tocar na carrinha. O filme é a versão longa da curta metragem Obrigação, apresentada o ano passado no Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde.  

Quando nos lerem, a Sónia já terá vindo a Lisboa, para assistir à projecção do filme. Mas quando nos encontrámos para a entrevista, na sua casa, esse momento ainda não tinha acontecido e Lisboa era um nome. Não havia um especial entusiasmo pela vinda à capital. A excitação era o filme, o filme, o filme, a vida como ela é. Em É o Amor, pela primeira vez, pôde ver-se de fora. Viu-se a ser Sónia. Anabela foi a agente.

A actriz já foi “estupidamente romântica”, como Sónia. Se tivesse nascido nas Caxinas, provavelmente ainda seria assim. Vive em Lisboa.

 

 

 

 

Quem é que quer começar por falar do amor?

Anabela – A Sónia. Ela percebe mais do amor do que eu.

 

Diz no filme É o Amor: “A Sónia é mais interessante do que eu. Eu sou mais angustiada”. Isto resume, numa linha, o perfil destas mulheres? Uma mais esperançada em relação à vida, a outra mais fechada e pesada.

Anabela – A Sónia existe na vida real exactamente como está no filme. Eu, não. O João Canijo quis filmar a história de uma actriz que vai fazer um estágio. O estágio não se resume a aprender as rotinas. É um processo esquizofrénico: como é que é estar naquela vida?

 

Como é que é estar na cabeça da Sónia?

Anabela – Acabei por encontrar na Sónia a imagem de uma pessoa que já fui. Aquela que não analisava tanto. Como actriz, penso no processo. A Sónia não tem de pensar: ela está a viver. Uma das barreiras que tive, durante o estágio: conseguir acreditar, como a Sónia acredita, que o amor pode ser eterno. Deve ser como acreditar em Deus. É um refúgio maravilhoso. Mas ou se acredita ou não se acredita.

 

A Sónia fez o exercício ao contrário? Pensou como é que seria ter a vida da Anabela?

Sónia – Não conseguia. A Anabela é uma pessoa muito sofrida em relação ao amor. Eu sinto-me feliz. Ainda no outro dia me romperam as lágrimas ao pensar assim: “Meu Deus, não tenho mais nada que te pedir. Só que agradecer.”

Anabela – Era suposto que o meu personagem tivesse aqueles dilemas [amorosos e existenciais]. O João escreveu aquele guião. No filme, eu não sou completamente eu.

Sónia – Ela queria tudo igual. Os casaquinhos de malha [que eu usava], tudo.

Anabela – Há uma cena, na lota, em que estou super-séria. Como ela.

 

E usam ambas os casaquinhos de malha. A Sónia já se tinha visto de fora?

Sónia – No trabalho, mudo. Elas [as colegas de trabalho] dizem que sou muito boa pessoa. Mas regras são regras.

Anabela – Ficou chocada quando se viu.

Sónia – Quando vi o filme, disse: “Pá, sou tão mandona! Não é minha intenção ser assim, desculpai-me”. Na carrinha [no percurso entre Caxinas e Aveiro] já é outro ambiente.

 

Na carrinha há conversas sobre o amor. Falemos da história de amor da Sónia e do Zé, que domina o filme.

Anabela – As pessoas que viram o filme comentaram: “Ela ama daquela maneira?”. Na Sónia encontrei uma pessoa que corresponde às esperanças que eu tinha aos 12 anos. “Ele vai gostar de mim? Vai gostar de mim para sempre? Vou ser feliz?”.

 

Quando é que acreditou que podia ser feliz para sempre?

Sónia – Demorou muito. Conheci o meu marido quando tinha 16 anos.

 

Como é que ele era fisicamente?

Sónia – Muito bonito, mesmo. Nessa altura, o barco da família dele tinha ido ao fundo. Trabalhava no armazém. Eu ia para o peixe com o barco do meu pai. Ia fazer obrigação.

 

O que é “fazer obrigação”?

Sónia – Fazer obrigação é: os homens vão para o mar. E nós, [mulheres], vamos buscar o peixe ao cais, botamo-lo em lota. A nossa obrigação é fazer render o peixe, vender o peixe. 

Eu fazia obrigação. O Zé passava por lá.

Eu achava-o super-lindo. Babava-me quando passava. Via-o no cais, com as mangas arregaçadas, tipo Rambo, está a ver? E sentia-me feiinha. Pediu-me namoro, começámos a namorar.

 

Ainda é do tempo em que se pedia namoro? (Quantos anos tem?

Sónia – Tenho 38.

 

E a Anabela?

Anabela – Já não posso dizer. [riso])

 

Todos se conheciam, então. Os seus pais já faziam o que hoje faz. Com o seu marido, a mesma coisa.

Anabela – O pai dela era considerado o melhor mestre das Caxinas.

Sónia – O meu pai era muito bom pescador. O meu sogro, também. O meu marido também é. Pediu para namorar, à antiga. No dia 15 de Dezembro. Estava tudo muito bem até que houve uma interrupção. Porquê? Porque tive de lhe contar umas certas coisas. De..., do..., do meu ex-namorado. O meu marido não aceitava esse tipo de coisa.

Anabela – Dizes no filme: “Coisas de homens”.

Sónia – Coisas de macho man. “Namorei com tantas, fiz-me a tantas, e agora tenho uma mulher...”

Anabela – Que já teve outro namorado.

 

Estamos a falar de já não ser virgem?

Sónia – Exacto. Vamos ser completamente abertas: quando lhe contei que não era virgem...

Anabela – Ela não quis contar isto no filme! Vou matar-te!

Sónia – O Zé não me deixou contar isto abertamente no filme. Não queria ir ao cinema e ver tudo exposto. “Quem sabe, sabe, quem não sabe, não sabe.”     

 

Pode contar mais detalhadamente como é que foi educada? Qual era (é) o papel de uma mulher nas Caxinas?

Sónia – A minha mãe sempre me disse que a gente tinha de casar com um homem com quem perdesse a virgindade. Para começar direitinho: tive um namorado que trabalhava no barco do meu pai. Quando a mãe dele ficou viúva, quis que fosse para fora, para governar mais a vida, uma vez que era o ganha-pão da casa.

Pediu-me, para ficar seguro (senão, eu ia namorar com outros...), que lhe desse uma prova de amor. Foi com 15 anos que isto aconteceu. Como eu gostava dele, e achava que ia ser o meu marido, que ia ser o pai dos meus filhos, dei-lhe a prova. Entreguei-me a ele. Conclusão: passados três meses de isto [relação sexual] ter acontecido, recebi a notícia de que morreu afogado.

Entretanto conheci o Zé. “Eu devo estar parva! O outro morreu-me há três meses e eu já estou apaixonada por outro... Ai Senhor.”

 

Interessou-se logo por ele?

Sónia – Acho que foi amor à primeira vista. Quando o vi, adorei-o logo. O Zé atrás de mim. E eu não queria dar parte de fraca, queria fazer-me difícil. 

 

Interrompo o relato para perguntar à Anabela: acredita no amor à primeira vista? Alguma vez viveu uma coisa parecida com este sentimento fulminante?

Anabela – Não. Mas acredito que exista. Tenho um lado cínico em relação a mim própria. No caso da Sónia, se calhar [ela sente o que sente] porque o marido está constantemente a partir.

Há na relação deles, e nas Caxinas, uma coisa muito presente: a morte. Toda a gente aqui já perdeu alguém. O ir embora e o regressar... É um misto de sensações que permite esta intensidade.

 

O homem está sempre a  partir sob ameaça. Concorda que as relações são mais intensas por isto?

Sónia – Se vivesse com o meu marido todos os dias em casa, se calhar não era tão intenso. No domingo à noite ele vai para o mar. Chega à sexta-feira. Só estamos dois diinhas juntos. É tão pouco... Aproveitamos para nos mimarmos. Sou sincera: adoro o meu marido. Mas aqueles calafrios na barriga, os pés a tremer quando passava por ele, já não sinto. Agora é diferente. Sinto que é o meu braço direito, o meu apoio. Admiro-o.

Anabela – Eu sempre tive relações longas. [Volta-se para Sónia] Nunca te disse isto. Uma de quatro anos, outra de sete e outra de nove.  Só tive três pessoas. Quando se está todos os dias com uma pessoa, desleixamo-nos, estamos de qualquer forma e feitio. A Sónia, ao fim de semana..., devias contar. As mulheres das Caxinas preparam-se para eles.

 

Conte. Fale da preparação.

Sónia – Digo que vivo em função dele. Ao fim de semana, penso em limpar a casa toda, pôr tudo bonito, uns lençóis novos. Tenho necessidade de lhe dizer que sou uma mulher limpa, asseada. Para que, ao chegar a casa, se sinta bem. Que se sinta orgulhoso de mim, como eu me sinto dele. Os nossos filhos: sou mais eu que os educo. Quero que diga: “A minha mulher dá-lhes uma boa educação”. Não é dizer “sim, sim, sim” aos filhos – embora hoje seja difícil dizer não. Acabamos por lhes facilitar a vida.

As nossas coisinhas são devidas aos filhos. “Estás a deixar o Zé Pedro [filho mais velho, de 17 anos] sair muito. A Sofia [filha do meio, 14 anos] tirou muitas negas” – lá está, são os namoradinhos desta idade. “O Francisco [filho mais novo, de quase quatro anos] está um mimalho, um birrento.”

 

É uma mãe e uma mulher (uma esposa e amante...

Sónia – É mesmo assim que me sinto. Esposa quando se deve ser esposa. E no quarto, vale tudo. [riso])

 

É uma mãe e mulher diferente do que foi a sua mãe?

Sónia – Eu imito a minha mãe. Não vejo isso, mas as pessoas dizem-me: “És igualzinha à tua mãe”. Na maneira de falar, no peixe, na vida. Muito trabalhadeira. A minha mãe também teve três filhos.

 

A relação que tem o seu pai é muito diferente?

Sónia – É. O meu pai também andava no mar durante a semana e eu dava-me mais com a minha mãe. Dantes dizia-se assim: “De quem gostas mais? Do pai!” O pai nunca estava em casa. Quando vinha, era Deus. A nossa mãe cascava-nos [batia-nos]. Eu não casco, mas chamo à atenção. Eles até gostam mais do pai.

Nós, mulheres, chegamos a uma altura em que percebemos as mães e damos o devido valor à mãe – que não dávamos quando éramos crianças. Claro que amo muito o meu pai, mas a minha mãe é o meu ídolo.

 

Teve com a sua mãe uma relação de intimidade, contava-lhe as suas coisas?

Sónia – Não. Tanto é que namorei oito meses com o Zé e resolvi, antes de acontecer alguma coisa com ele, contar-lhe a verdade. A minha mãe não sabia.

Foi depois [dessa revelação] que a minha relação com o meu marido começou a ter altos e baixos. Estivemos quatro meses separados, muito sofridos. Reatámos e namorámos dois anos. Depois foi para a tropa e estivemos zangados oito meses. Quer dizer: ele queria ver se me esquecia, e não conseguia.

 

Não conseguia lidar com o ciúme?

Sónia – Não conseguia casar com uma mulher que não fosse virgem. Há 20 e tal anos, isto era muito importante. E era um segredo meu. Quando lhe contei, toda a gente ficou a saber. A minha mãe... Tive de dizer porque é que acabei – melhor: porque é que ele acabou comigo.

 

Sentia, e esse era o sentimento da comunidade, que uma mulher ficava desonrada, se não chegava virgem ao casamento?

Sónia – Nesse tempo, sim. Eu sentia que aquele era um problema muito grave. Quando veio da tropa fizemos as pazes. Disse-lhe que só acreditava que era para valer se casássemos. “Está bem. Vamos ao padre.” Estava a subir as escadas do padre e nem acreditava que íamos marcar o casamento! [riso]

 

Coincidência: toca a sino neste instante, na igreja ao lado da sua casa.

Sónia – Vou explicar como é que me pediu em casamento. Fomos para a senhora da Saúde, tirou um ramo de flores da mala do carro com um cartão a perguntar: “Queres casar comigo?”.

 

O que é que aprendeu sobre o amor olhando a sua mãe? Tendemos a esquecer que o primeiro exemplo que temos do que é o amor e um casamento é o que temos em casa, com os nossos pais ou com os cônjuges dos nossos pais.

Anabela – A minha mãe, que tem 63 anos, poderia ter este discurso que ouvimos na Sónia. Na aldeia dela, no interior de Portugal, em Serpins, perto de Coimbra, se uma mulher fosse vista a dar um beijo num rapaz pressupunha-se que tinham tido sexo. Portanto este é um discurso que eu reconheço. A minha mãe só teve um namorado, o meu pai. Estão juntos até hoje.

O meu pai é apaixonado pela minha mãe. Ainda hoje a abraça. Mais ele a ela do que ela a ele. Independentemente do que possa ter feito, tenho a certeza de que a ama. Tenho à minha beira (como se diz no norte) este exemplo. O meu primeiro namorado: andávamos de mão dada. (Nem o contabilizo. Foram três, tirando esse.) O meu pai sentou-se à mesa, muito sério, a perguntar se era para casar. Tinha 16 anos.

 

Onde? Qual era a geografia e o contexto?

Anabela – Em Lisboa. Nasci em Lisboa mas tive uma educação parecida com a da Sónia. Conservadora. Falar sobre sexo? [para Sónia] Tu, quando casaste, ias grávida. Casar de barriga... Toda a minha vida foi controlada para evitar [casar de barriga]. Isto é uma forma de controlar a sexualidade da mulher.

 

Usemos as palavras que se usavam: uma mulher era uma puta ou não era uma puta se tivesse sexo antes do casamento.

Anabela – E nenhum homem queria ter uma puta. Era a mulher que tinha uma capacidade de sacrifício e não se entregava a outro. Era a maior prova de que, no casamento, era ele o pai [dos filhos que viessem a ter]. (Estudar Psicologia deu-me um bocado cabo da cabeça.

 

Completou o curso?

Anabela – Cheguei ao quarto ano e desisti. Sempre quis ser actriz. Na minha família ninguém achou graça. Estudei Psicologia porque achei que podia perceber melhor quem eu era, quem é que os outros eram, e os personagens.) Eu tinha 21 anos e não podia sair de casa. Uma vez cheguei às nove e meia da noite e foi um drama. Tenho a capacidade de chegar às Caxinas e imprimir rapidamente o que a Sónia me está a transmitir porque vivi tão fechada dentro de mim...

 

Qual foi o seu primeiro grande gesto de rebeldia?

Anabela – Vivíamos numa vivenda. Abria o portão e ia ter com o meu vizinho, o Miguel. Não ia fazer nada de especial. Andávamos de bicicleta. A minha irmã gémea, que é também actriz, a Margarida, ficava na janela a olhar para mim e a abanar a cabeça. Com ar de censura. Nunca gostei de me sentir presa. Andei num colégio de freiras, [em regime de] externato. Estava fechada em casa e no colégio.

 

Nunca pensou fazer uma vida fora das Caxinas, do mar? As suas irmãs são, uma cabeleireira, a outra esteticista.

Sónia – Aparecem as duas no filme. A Livinha e a Vânia.

Anabela – Uma está a lavar-me a cabeça. (Posso fumar aqui?

Sónia – Podes. Traz o cinzeiro.) O meu mundo é este. O meu pai sempre teve barco. Chamava-se Três Sorrisos. Desde os 15 anos que ando no peixe com a minha mãe.

 

Porque é que quis ir para o peixe?

Sónia – Porque adorava o que a minha mãe fazia. Quando a minha mãe teve a Vânia, que faz dez anos de diferença da Livinha (o nome dela é Maria do Alívio), teve bronquite. Com a doença, fui eu para o peixe com a minha tia Isabel. Depois conheci o meu marido, que era pescador e trabalhava no barco do pai. O meu sonho era comprar a Marta Sofia...

 

De onde vem o nome?

Sónia – A minha sogra mandou três nomes para baixo [Lisboa, para registar]. A Direcção Geral das Pescas mandou dizer que tinha sido aprovado Marta Sofia (que é o nome da minha cunhada).

 

Porque é que perseguia o sonho de comprar o Marta Sofia?

Sónia – Gostava de ser mestra. Pelos cinco anos de casamento, ficámos sócios dos meus sogros. Trabalhávamos tanto, nós dois... Não gastávamos dinheirinho nenhum. Ao fim de semana lavava cabelos na minha irmã, botava tintas. Vendia ouro. Andava nestas coisas para angariar dinheiro.

 

E agora vive numa casa imensa. 

Sónia – Conseguimos, graças a Deus. Com muitos sacrifícios. De há dez aninhos para está, estou muito bem. 

 

Explique melhor porque é que gosta de ser mestra. É um trabalho duro. E representa lidar continuamente com a possibilidade da perda.

Sónia – De Inverno, só quando o barco está atracado ao cais é que a gente dorme em sossego. Vou para a cama a pensar: “Ai o meu menino está no mar. Ai Senhor, trazei-o sempre a salvamento.”

 

“Senhor, trazei-o sempre a salvamento” é um pedaço de uma oração?

Sónia – Sim. Quero ter pensamentos positivos, mas há sempre receios. O nosso barco, em dias de temporal, é uma casquinha de noz no mar. Rezo a Nossa Senhora, especialmente.      

 

Nossa Senhora de Fátima ou Nossa Senhora dos Navegantes?

Sónia – Nossa Senhora de Fátima. Foi a Nossa Senhora de Fátima que me deu o meu marido. Pedia: “Concedei-me a graça de casar com este homem. Se me concederes, vou a Fátima a pé.” No primeiro ano de casada, fui. Agradecer o marido. Custou muito, mas foi uma experiência lindíssima. Ele foi lá buscar-me..., nós dois amarrados...

Na Páscoa, o Senhor vem às casas. Disse ao meu filho [mais novo]: “Vem o Senhor a casa, temos de ter tudo limpinho”. Respondeu: “Pede antes para vir a Maria”. Vê-me sempre a rezar a Nossa Senhora... E tem a imagem de Jesus com o sangue [a escorrer]. Tem medo.

 

Nunca teve vergonha do avental? Há um momento no filme em que uma das mulheres que trabalham consigo fala disso. A mãe ia buscá-la à escola de avental e ela envergonhava-se. A mãe respondia: “É o avental que te dá de comer”.  

Sónia – A mãe da Cassilda era uma senhora mais de idade. Ia de avental à escola. A minha mãe nunca foi assim. Acho que as pessoas de Lisboa têm uma imagem [errada] da peixeira. Que falam mal [dizem palavrões], discutem alto, vivem mal. Se vir aqui nas Caxinas, há muitas mestras (o [João] Canijo escolheu-me a mim, mas há muitas) que não são assim.

Anabela – Elas cuidam-se mais do que nós. Os maridos vêm e estão impecáveis.

 

A Sónia tira as luvas e tem sempre as unhas impecáveis.

Anabela – Uma vez vi a Paula ou a Cassilda [que trabalham com Sónia] a trabalhar sem luvas e decidi experimentar. Fiquei com as mãos todas cortadas. 

Anabela – Depende do peixe. Se for polvo, não tem mal. Bem, o polvo suja as unhas...

Anabela – Elas, se não for o gelinho [aplicação de gel], não conseguem ter unhas de jeito.

Sónia – As minhas irmãs fazem questão que esteja sempre bem. Não era para mostrar para o filme. Aliás, eu não fiz um filme. Simplesmente mostrei quem sou. Só não gostava muito quando me diziam: “Conta aquela história...”. Contava dez vezes.

Anabela – Nunca repetiste dez vezes. Só foi preciso repetir [por razões técnicas]. Filmámos numa semana. O João viu as gravações que fiz durante um mês [com uma pequena câmara]. Pediu-me que, em determinadas cenas, levasse a Sónia a contar novamente uma coisa.

Sónia – Repetir-me duas ou três vezes..., não saía com o mesmo entusiasmo.

Anabela – Com uma câmara à frente, as pessoas ficam nervosas.

 

Havia muitas mestras, disse. Sentiu-se escolhida?

Sónia – Senti. Primeiro não queria. Depois o meu marido disse: “Faz. Vais ver que te sais bem”. Foi na Páscoa de há um ano. Estava tudo em arrumações.

Anabela – Fenómeno estranho no casting: a maioria das mestras, quando estavam com os maridos ao lado, não tinha hipótese de falar. Eles calcavam-nas. E elas estavam sobretudo preocupadas com a imagem que queriam dar de Caxinas. A Sónia, não.

Sónia – Ela disse: “Vou gravar a conversa, mas não te preocupes”. Disse que o segredo de ser esposa é ser compreensiva. É, quando ele chega do mar, acarinhá-lo (“’Mor, deixa lá, não apanhaste peixe hoje, apanhas amanhã”). Nada de estar com beiço.

Anabela – Esta a ver esta generosidade? Fala da vida dela como se fosse um livro aberto. Naturalmente teve dificuldade em fazê-lo para a câmara.

 

A Sónia faz do marido o centro da sua vida. Ela não fala das carências dela, das dificuldade. Conforta as dele.

Anabela – Todas as outras mulheres que entrevistei têm essa atitude. Se eu não tivesse feito um estágio de um mês, vivendo com a Sónia, o João Canijo faria um filme sobre Caxinas apanhando o cliché. 

 

No filme fazem uma caminhada junto à praia. A Anabela sugere que tomem um sumo de laranja na esplanada e a Sónia recusa, porque o marido está no mar.

Sónia – Disse-lhe: “Estás perdida? ´Tadinho, está no mar. Não vou estar eu feita baronesa a passear.” Posso ir ao Norte Shopping, dar uns passeios com os meus filhos, saio com as minhas irmãs à segunda feira, quando têm folga. Não é que não possa fazer coisas. Eu é que não me sinto bem comigo própria.

 

Porque é que não se sente bem?

Sónia – Imagino que o rapazinho está a trabalhar.

 

O rapazinho que idade tem, já agora?

Sónia – O rapazinho tem 40 anos. A minha obrigação é estar em casa com os nossos filhos. Disse à Anabela: “Já viste o que é, passam aqui os meus sogros e vêem-me de perna alçada a tomar um sumo de laranja?” Não fica bem a uma mulher.

Anabela – A minha mãe diz exactamente a mesma coisa.

 

Não se permite ter uma vida boa, confortável, quando ele está a passar por uma provação?

Sónia – Eu tenho uma vida muito boa. O meu marido, o que ganha, entrega-me. Eu é que faço a gestão da casa.

 

Outro cliché de Caxinas: que as mulheres é que controlam o dinheiro.

Sónia – Somos nós que comandamos a casa. Orgulho-me de vender bem o peixe. Ele liga-me, sei a pesca. Ligo para um comprador, para outro. Quem der mais 50 cêntimos, mais um euro... Em 500 quilos, são 500 euros. “Zé, fizemos tanto. Esta marézinha rendeu muito”.

Anabela – Elas permitem que eles sejam os machos de antigamente.

Sónia – Já não é tanto.

Anabela – Mas ela é que o serve. Também são só dois dias por semana, e não custa nada, não é?

Sónia – Se forem quatro ou cinco, são servidos da mesma forma. O tempo não tem deixado os pescadores andar toda a semana no mar. Desde Outubro. Dão duas ou três marés por semana e vêm embora. E tenho sempre uma sobremesinha, um bilhetinho, um elogio.

Anabela – São os reis da casa.

Sónia – Tínhamos uma casa, mudámos de casa. Ele só quis entrar nesta quando tinha tudo pronto. Não escolheu nada. Móveis, televisões. Sou um bocadinho gananciosa. Tenho uma coisa e quero ter outra.

 

Porque é que é assim?

Sónia – A minha mãe ensinou-me a ser assim. O meu marido quer ter o dinheiro todo para comprar uma casa. Acanha-se. Eu, tendo metade, já quero a casa. A minha mãe diz: “Anda, que a mãe ajuda. Bota-te.” 

 

Seria possível ter um rei em casa? Ter o motor da sua vida fora de si?

Anabela – Hum. Os maridos, antigamente, devolviam as mulheres à casa dos pais quando elas não sabiam cozinhar. “Ensine-a, que ela vem mal ensinada.” Tenho aversão a cozinhar, coser, a tudo o que é associado ao papel da mulher. Somos escravas disso! “Porque é que sou eu que tenho de cozinhar, coser? Não tens cinco dedos nas mãos?”

Sónia – Sabes porquê? Porque tu não amas. Quando tu amas, fazes isso tudo com gosto, com satisfação.

Anabela – Mas eu já amei. Ele é que cozinhava. Cozinhava muito melhor do que eu.

É isto que Caxinas tem de bonito e ela não percebe porque não se vê de fora.

(Sónia – Nunca saí das Caxinas. Só fui ao Algarve duas vezes. E a Benidorm. Quando estou de férias, estou cheia de saudades das Caxinas. Faz-me falta aquele sistema de vida: vou para o peixe, venho do peixe.)

Anabela – Caxinas é uma comunidade fechada sobre si própria, apesar de ter o porto perto. O chão onde põem os pés é consistente. A dúvida não se instala. A Sónia é feliz a vender peixe. Entrevistei uma que era muito deprimida, porque o marido não era bom mestre. A Sónia teve estas sortes todas.

Sónia – O meu marido entrega-me o peixe e confia em mim. Detesto quando diz: “Não rendeu nada, a maré, ‘nina”.

 

Em resumo, o barco vem todos os dias a terra, e todos os dias a Sónia tem de vender o que ele pescou.

Sónia – Vem se tiver peixe. Pelo menos quatro vezes [por semana] a Aveiro, vamos. Se as pesquinhas forem boas, vamos todos os dias. Ele telefona. Vem dar-me um beijinho à lota e bota-se a descansar, para sair outra vez às oito, nove da noite.

 

Descansa em casa?

Sónia – Não. Descansa no barco.

 

Tem medo que alguma coisa corra mal? Parece tão confiante...

Sónia – [voz muito séria] Tenho. O meu maior medo é perder o meu marido. [voz embargada] Nem quero pensar nisso. Pensamento sempre positivo! À entrada e à saída da barra, liga-me sempre. Benze-se. “Até amanhã se Deus quiser.” No mar não tem rede nem rádios. A gente já viu aqui grandes naufrágios. Aparece um corpo – tudo a correr para a praia. Passado um dia ou dois, aparece outro. O enterro: as mestras aos gritos. Nas capelas: os camaradas. A gente vive aquilo. Mesmo horrível.

Anabela – A morte está muito presente nas Caxinas. Nos cafés há sempre fotografias de pessoas que morreram.

Sónia – Caxinas é falada quando há naufrágios.

 

Outro tipo de medo: que ele se apaixone por outra. Tem? Que a Sónia se apaixone por outro?

Sónia – Eu, não. Acho que vou ser sempre feliz. Mas tenho medo que ele se apaixone por outra ou que me deixe. Na minha família houve um caso. A minha irmã era casada há 15 anos, eram super-felizes, e de repente ele arranjou outra, e deixou-a ficar. O meu maior desejo, neste momento, é ver a minha irmã feliz. Somos as três muito unidas, não somos, Anabela?

 

Não identificou, à cabeça, medos relacionados com os seus filhos.

Sónia – Drogas e isso: tenho medo.  

 

E da ruína?

Sónia – Não. Dantes vendíamos o polvo a cinco euros o quilo. Agora vendemos a dois euros. Em Espanha está tudo um caos. (Espanha, normalmente, é que nos levanta o peixe.) Tenho medo que ninguém nos levante o peixe. Mas o meu maior medo é o que possa acontecer ao meu marido.

 

Alguma vez foi ao mar com ele? Para ver como é.

Sónia – Nunca. As mulheres só vão de uma barra para a outra. Para andar um bocadinho de barco. Mesmo assim, nunca quis. O meu filho tem quase 18 anos e está a tirar a carta de mestre, mas não quero que vá para o mar. Pai chega! Os pés, lá, não são seguros. Ai.

Anabela – Tudo o que depende dela – não tem medo. O mar – não pode controlar. Do que tem medo é da morte.

 

Pressupõe uma grande confiança nela própria. Com quem é que aprendeu a ser assim?

Sónia – É de mim. A minha mãe sempre viu o lado positivo das coisas. Apesar dos acidentes. O nosso barco já foi à praia, já teve atrasos. Nem quero saber o que as outras pessoas dizem. Conto com o apoio do meu marido. Não me pode ver triste.

Este ano, nos meus anos, estava feita chorona. Não sei o que se passou comigo. Mandou-me flores. Nem achei as flores bonitas. Parecia mais uma coroa que se dá aos mortos. Se digo: “Estou gorda” – esse tipo de coisa da mulher – responde: “Estás tão linda!” Se ele morresse, não tinha ninguém que me quisesse. Ele bota-me sempre no auge.

 

Anabela, falemos dos seus medos. No filme, a olhar para uma pequena câmara, como quem anota num diário, fala das suas inseguranças. Mostra-se vulnerável.

Anabela – Aquilo não é exactamente o que sinto. Mas quisemos, [o João Canijo e eu], trabalhar a questão da segurança, da confiança em mim própria. No fundo, não somos tão diferentes assim, a Sónia e eu. O meu maior medo é a morte. Não minha, mas das pessoas que amo. Nem tenho grande medo de falhar como actriz – é inevitável que aconteça.

 

As questões resumem-se a: sou amada, não sou amada; sou competente, não sou competente; sou reconhecida, não sou reconhecida. No filme, vendo continuamente o valor da Sónia, interroga-se: “O que é que eu valho?”

Anabela – Para me tornar na Sónia, no filme, para me tornar numa “mulher de rasgo”, que era o nome que a Sónia propunha...

Sónia – É o Amor é por causa da música do Zezé di Camargo. Nas gravações das comunhões dos meus filhos, baptizados, uso o É o Amor. [canta] A Anabela achou isso tão fofinho que também quis pôr no filme.

Anabela – Esta é uma história amor. O amor do João Canijo que estava aqui sem ganhar um tostão. Por amor a nós, ao filme, à profissão. A história de uma actriz que tem trabalhado no duro, a tratar de vacas, porcos [Mal Nascida], a trabalhar numa casa de alterne [Noite Escura], a viver no bairro Padre Cruz, a trabalhar num cabeleireiro [Sangue do meu Sangue]. É o amor desta mulher pelo homem e pelos filhos, pela profissão.

Sónia – Eu achava mais bonito [o título] Mulheres de Rasgo. Nós de avental. Rasgo quer dizer habilidade. Sem medo. Mas em inglês não dava.

 

Falaram sobre o amor de maneira aberta. Não falaram de sexo. E pouco de tristeza.

Anabela – Não estava à espera que ela fosse contar o que sofre com a separação da irmã. É uma anormalidade, aqui. De sexo, fala abertamente. As mulheres, em Caxinas, deitam-se com os maridos domingo à tarde. Para que eles vão de barriga cheia.

Sónia – Ao domingo não passeamos. Ao domingo, o meu dia é: levantamo-nos, vamos tomar o pequeno-almoço à padaria, depois vamos à missa (às vezes com filhos, outras vezes sem); almoçamos fora. Três horas, três e meia, cama! Sinto-me na obrigação de o satisfazer. E ele a mim!, pelo amor de Deus. Mas mesmo que não me apeteça...  Às vezes não apetece. Nem gosto muito dessas coisas.

Anabela – Ela não é muito sexual.

Sónia – Tenho de ser. Isso é muito importante no casal.

 

Está a dizer isso porque uma mulher honesta não gosta “dessas coisas”?

Sónia – Não é por aí. Mas às vezes não me apetece. Ele vai para o mar, coitadinho. Tenho de fazer o meu papel.

 

Nunca falou de sexo com a sua mãe?

Anabela – Não.

 

E do amor, fala com ela?

Anabela – Também não. Falamos de todas as banalidades possíveis e imaginárias. Não forço conversas que sei que vão mexer com ela. Se calhar sou um bocado solitária.

 

Dêem-me uma definição de amor. A primeira que vos ocorrer.

Anabela – Não consigo encontrar. Na poesia é quase sempre sofrimento. Na vida, não tem de ser sofrimento, não é? Ela sabe explicar porque é mais resolvida do que eu.

Sónia – Amor é respeito mútuo. Coração a palpitar. Corar quando se vê a pessoa que se ama. Sacrifícios, sem dúvida. Agradar-lhe em tudo, ou em quase tudo. É fazer o melhor possível.

Anabela – Gostava que alguém me dissesse o que é.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013

 

 

 

 

Leonor Silveira

26.02.23

Leonor, a musa de Oliveira. De certa maneira, os seus olhos ainda são os de Ema, a Bovary do Douro imortalizada no filme Vale Abraão. Está neles intacta a frescura e o mistério. “Eu sei que o tempo passa, mas como é um bom tempo, ele constrói-me. Não me magoa; ou, se magoa, magoa construtivamente. A pergunta que sempre me fazem: diga lá como é trabalhar com Manoel de Oliveira? É muito bom.” Já são mais os anos com Oliveira do que os anos anteriores a Oliveira. Leonor cresceu. Os franceses fizeram dela chevalier.

 

Ainda pensa naquela que era antes do encontro com Manoel? É como se estivesse predestinada uma vida até esse encontro, e depois tudo tivesse ficado alterado.

Penso nessa que era antes no campo pessoal. Na infância, na adolescência. Nada tem que ver com a actriz. Quando me perguntam alguma coisa sobre mim, como actriz, já só existe a que sou depois daquele encontro maravilhoso. Não estou a destituir o brilho e o tesouro que era a minha vida até então. Segundo Oliveira me explica, venho parar às mãos dele sem vícios – era possível moldar-me. Havia um absoluto desconhecimento do que era necessário num plateau de cinema, na construção de um personagem. Tudo aquilo foi feito com o que a natureza me deu. O instinto. O agarrar-me a determinados momentos, sensações, cheiros, que me pareceram úteis para dar ao Manoel qualquer coisa que ele me pedia. Isso ainda me acompanha. São instrumentos que ainda uso.

 

Se não fosse o encontro com Oliveira, o que é que a sua vida seria?

Gostava de ser médica. O meu pai é médico, aprendi a reconhecer a nobreza da profissão. Mas aos 17 anos há sempre um lado nebuloso… O que é que vai ser da nossa vida? O momento era: liceu francês, depois bachaloreat… A seguir logo veríamos. A entrega, de momento, era exclusivamente para aquilo. Não tenho uma resposta concreta para a sua pergunta – o que é que queria fazer. Não tinha naquela altura nem tenho agora. A vida tem sido muito generosa em dar-me várias experiências. Eu entrego-me de alma e coração, com as minhas capacidades, o melhor que posso. Continuo neste barco, devagarinho, desbravando caminho.

 

Ao mesmo tempo, depois deste encontro que muda tudo, não decidiu que seria actriz, apenas actriz. É uma actriz de Oliveira. São pontuais os trabalhos com outros autores.

No princípio, eu não optei porque não tinha a certeza. E os anos foram passando. Fui sempre acompanhada por uma curiosidade, um querer saber mais. Queria estar num lado que me permitisse ver sob outros filtros. Isso construiu completamente o meu trajecto. Não há uma falta de coragem de me assumir como actriz. Se eu pudesse continuar a ter a honra de receber convites para fazer filmes, e pudesse fazer outras coisas…

 

João Botelho dizia recentemente que não trabalha com outros realizadores porque Oliveira é muito ciumento…

Trabalhei com poucos realizadores, é verdade, mas foi por acaso. Houve momentos em que me foi proposto um papel e eu não pude. O João [Botelho] é um deles. O João Canijo é outro. A Teresa Villaverde é outra. Mas não houve uma recusa da minha parte. Quanto aos ciúmes do Manoel de Oliveira, [riso] penso que é o João a meter-se com ele!

 

(Há pouco referiu-se à sua prima Beatriz Batarda como “a minha irmã Beatriz”. Gosta dela como uma irmã, foi um lapso?

Gosto dela como de uma irmã. Aliás, consideramo-nos irmãs. Existe ela, o [meu irmão] Lourenço e eu. Sou a mais velha, ela é a mais nova. São duas irmãs: a minha mãe e a minha tia. Fomos criados como irmãos. Quando falamos uma com a outra, tratamo-nos por “mana”.)

 

Voltemos à relação com Oliveira. É uma relação onde se cresce e se é formado. Mas inevitavelmente esteve exposta à usura das relações longas. Como com os nossos pais: emulação, rebeldia, fusão?

Passou pela infantilidade; o rir, o levar descomposturas monstruosas – “A menina não percebe o que está a fazer, é preciso ter respeito”. A disciplina do Manoel em plateau não dá direito sequer a um sorriso fora de tempo. No princípio não me atemorizava, depois sim. Comecei a tomar consciência do processo criativo do Manoel. Da infantilidade, passei para um amadurecimento e uma consciência do que estava a presenciar, a que é que pertencia. Para que é que eu servia, porque é que estava ali. A entrega, afinal, é mesmo total, tem mesmo de ser completa. Confiança cega, absoluta da parte de todos nós, actores. Um respeito imenso.

Depois passou-se para uma fase mais intempestiva, de alguma convulsão. Provavelmente teve também que ver com a minha idade, com o meu crescer. Percebo agora que tudo isso são fases para chegar a um ponto em que o entendo pelo olhar, sei exactamente o que me vai pedir, e ele aceita que eu saiba isso. É uma simbiose muito especial. É a minha escola, é a minha casa no cinema.

 

E é o seu corpo que aparece nos vários momentos da cinematografia de Oliveira. É o seu amadurecimento como mulher que ali é exposto. Como é que se olha, por exemplo, na célebre imagem do Vale Abraão, com o canário por trás? Ou a menina que apareceu n’ Os Canibais?

No fim de um filme há um, dois sentimentos que ficam, traduzíveis em vários adjectivos. Quando vejo um cartaz de um filme, uma fotografia minha, do que me lembro é do sentimento que ficou da rodagem. À medida que os anos vão passando, e por mais pequenas que sejam as participações nos filmes, o sentimento, a maneira como adjectivo, já não é tão violento. N’O Princípio da Incerteza (que é um papel médio), no Angélica (que é um pequeno papel): os meus adjectivos traduzem uma maior serenidade. Nesses eu não fui “violentada”, bem ou mal, [como no Vale Abraão, n’ O Convento]. Aqueles filmes são menos invasivos.  Ao espelho, vejo um amadurecimento desta criatura…

 

O que é que era tão invasivo?

O colocarem-me. O posicionar-me. O perceber o universo onde estava a entrar. Não é gratuito. Não é fácil. Não é um chá das cinco. A seriedade do trabalho, que contraria o: que fácil que é ser actriz, que giro que é! Capas de revistas, outdoors. Não é nada disso. Tudo aquilo que Oliveira representa, a nível nacional, europeu, mundial. E de repente, on te prends, e “faz favor, participe nisto”… Perceber que isto não é uma sorte, é uma honra.

 

Evitou sempre o fogo-de-artifício. Não sucumbiu ao deslumbramento da passadeira vermelha. Alguma vez foi sequer uma tentação?

Como dizer?, eu não gosto disso. Faço tudo aquilo que achar que é correcto e bom para os projectos nos quais participo. Caso contrário, acho que não há mais-valia nenhuma. A não ser para construir um grande castelo de areia, evidenciando-me noutros aspectos da minha vida – no domínio pessoal. Mostrar-me, apresentar-me assim, não.

 

Mesmo que não se faça essa deriva, é fácil no cinema ter fascínio pelo glamour, pelos vestidos compridos, por um lado de princesa.

Tive momentos de princesa, inesquecíveis. Jantar em casa do rei de Marrocos com o próprio é inesquecível. Fui como júri [do festival de cinema de Marraquexe, 2003]. Mas são experiências. Depois disso volto para a minha casa, que tenho que tratar, para os meus filhos, o meu quotidiano, os meus amigos. E isso é que é a verdade. O resto são bombons. Não tem lógica arrastar esses momentos. Subir, descer passadeiras vermelhas: estamos com a nossa equipa, vemos o filme. Quando aplaudem, choro sempre. É sempre uma emoção extraordinária.

 

Chora? Parece inesperado em si. A sua imagem é a de uma mulher controlada, que não se abandona ao sentimento. Em público, pelo menos.

Emociono-me muito, muito. Sou muito emotiva. Não tenho medo de chorar, não tenho vergonha de chorar. Não gosto de parar para pensar nas ideias que as pessoas têm de mim. Tenho tanto medo disso… Gosto de saber que algumas pessoas gostam de mim. Porque é que hei-de ter vergonha de dizer as coisas? Adorava o meu avô materno, tinha uma imensa paixão por ele. Lembro-me perfeitamente de ele estar quase a ir embora… “Vou dizer-lhe tudo o que tenho para dizer, e peço desculpa por não ter dito antes”. Desde então, não me coíbo de dizer a verdade. Não perco a oportunidade de poder dizer qualquer coisa de bom. Já basta quando estamos fechados sobre nós próprios, numa tensão permanente, com máscara. Se somos verdadeiros, estamos mais à mercê de mentalidades canalhas.

 

Mas acabou por escolher a exposição e vulnerabilidade ao fechamento.

Claro.

 

Paralelamente à vida de actriz, há a vida de todos os dias de quem se licencia em Relações Internacionais, trabalha no ICA, é casada e tem dois filhos. Parecem mundos estanques.

São, não têm nada que ver um com o outro. O de mãe está acima de todos. No dia em que não puder fazê-lo, tudo pára. Mas isto é o normal, qualquer mãe entende, não precisa de legenda por baixo. Não há intercâmbio de personagens. Se sou actriz, distancio-me por completo do meu trabalho administrativo. E isso não impede o reconhecimento e a amizade dos interlocutores de cada um dos lados. 

 

Porque é que foi tão fundamental separá-los?

Porque eles correspondem a dois momentos do mesmo ciclo. Estou [enquanto vice-presidente do ICA] na parte do financiamento, para depois chegar à lógica da criação, como actriz. Ou eles estão separados ou então há uma promiscuidade que me envenena. Tem que haver rectidão.

 

Quando recebeu a distinção na embaixada de França em Lisboa, Manoel estava na primeira linha. Não deixa de ser curioso que tudo tenha começado no liceu francês. Foi lá que foi a audição na qual ele a descobriu.

O percurso que faço com Manoel nunca larga França. Tudo foi uma feliz coincidência neste encontro. O facto de eu falar francês (a família da minha mãe é francesa). Manoel gostar de França e de França adoptar a cinematografia do Manoel como adopta. O ser produzido pelo Paulo Branco, que é produtor também em França. Oliveira ser levado a Cannes sistematicamente. A partir de certa altura vou eu a Cannes, já sozinha, graças a este percurso. E tudo começa no liceu francês.

 

Recebeu a Ordem das Artes e das Letras do governo francês no grau chevalier. Uma pergunta-cliché: o que é que sentiu quando recebeu a distinção?

Dizer que não ficamos satisfeitos pessoalmente, seria mentira. Foi um reconhecimento que faz favor!, um pouco inesperado. Fico muito orgulhosa e contente de saber que o meu trabalho é reconhecido por França e que isso reverte tudo a favor da nossa cinematografia. Pode parecer um lugar-comum, mas não é. Trabalhando todos os dias onde trabalho, vendo o terrível que é conseguir fazer cinema, posso dizer sem falsas modéstias que é bom que o nosso cinema tenha um momento [como este]. Através de mim ou de outra pessoa.

 

 

 Publicado originalmente na revista Máxima em 2011

 

Beatriz Batarda

26.02.23

Ela insiste que não pensou alguma vez que pudesse ser actriz. Até perceber que já era. No teatro da Cornucópia, no cinema de Manoel de Oliveira. Tinha resvalado dos vinte anos há pouco, era vagamente conhecida no meio. No Conservatório de Lisboa não seria suficiente anónima para falhar todas as vezes necessárias. Cortou com a vida de menina de boas famílias (sim, é filha do pintor Eduardo Batarda), e instalou-se em Londres, em 97 para estudar representação. É uma nómada.

Betariz Batarda tem 29 anos. É uma actriz fabulosa. Brevemente vai surgir nos ecrãs portugueses como Ana, uma flor perturbada no novo filme de José Álvaro de Morais. Filmado entre Manteigas e a Dinamarca, «Quaresma» foi apresentado no último Festival de Cannes. Os elogios a Beatriz foram consensuais.

 

Formou-se na prestigiada Guildhall School of Music and Drama, onde se distinguiu como a melhor aluna do curso. Ter conquistado a medalha de ouro numa escola de onde sairam nomes como o Ewan McGregor ou os irmãos Fiennes inflacionou as suas perspectivas de carreira?

O que aconteceu, e que nunca pensei que acontecesse, foi despertar o interesse de agentes. Não me agradava a ideia de ficar em Inglaterra a fazer papéis completamente secundários ou irrelevantes, sempre de estrangeira. Um americano não toparia, você não toparia, mas um inglês topa que não sou inglesa. Tenho a sorte de poder fazer várias nacionalidades, o meu sotaque não é definível. Isso permite-me fazer de francesa, espanhola, brasileira, italiana, russa, sérvia, portuguesa… Percebi uma coisa: os papéis que me interessam, vou fazê-los em Portugal. Porque é difícil representar noutra língua.

 

Fale-me dessa barreira.

A palavra mãe e a palavra mother. É diferente dizer uma e outra. Trata-se de ressonância, de não haver emoção, de não haver passado nas palavras.

 

Mudou-se para Londres há 6 anos. Não começa a ter um depósito de emoções para as palavras inglesas?

Absolutamente. Saí de Portugal com 23 anos, com muitos preconceitos em relação a certas palavras, como por exemplo «amo-te». Quando se tem 15 anos, «amo-te» não é uma coisa que se diga ao namorado. Diz-se «gosto muito de ti», «adoro-te». «I love you» tem um duplo sentido, é mais abrangente, é gostar muito daquela pessoa, e é o amor intenso também. «Amo-te» é mais específico e determinante. Em todo o caso já fiz as pazes com a palavra «amo-te»...

 

A ressonância emocional resulta de uma vivência da língua. As suas emoções ligadas ao inglês estão sobretudo ligadas à escola. Funcionaram como uma família?

Sim, com todas as tensões que as famílias também têm. Guerras de poder, rivalidades, paixões. As figuras-mãe, as figuras-pai, tudo isso. A maioria dos alunos (éramos vinte) estavam a viver fora de casa pela primeira vez, no primeiro ano ficámos todos na Residencial de Estudantes. É como os escuteiros ou a tropa: cria-se uma ligação inquebrável. Partilhámos dor, partilhámos alegrias. Ninguém da minha família partilhou aquilo comigo, homem nenhum com quem eu viva sabe o que foi aquilo. Foi um marco muito grande na vida de qualquer uma daquelas pessoas.

 

Porque é que foi estudar teatro?

Sou muitas vezes tida como uma pessoa desequilibrada, de flutuações. Fui muito inconstante. Nunca sabia o que queria, o que não queria. Tinha uma dificuldade horrorosa em tomar decisões. Fazia as coisas até à última, furiosa, dramática, de ficar destruída, de rastos. O meu avô materno preocupava-se muito com esta minha forma de estar, e eu dizia-lhe: «As pessoas não se medem pela quantidade de vezes que caem, mas pela rapidez com que se levantam».

 

O que é que a faz reerguer-se?

Sou uma mulher orgulhosa, infelizmente. O que me provoca é o orgulho. O que me fez estudar teatro? Quando tinha 20 anos e me estreei fiquei muito picada com o comentário de um crítico que me descreveu como de uma inépcia total, dizia que não me ouviam a partir da 3ª fila... E tinha toda a razão. Como sou uma menina mimada, filha única, reagi assim: «Ai é? Vou provar, vou fazer!». Reajo quando as pessoas não gostam de mim, quando acham que não estive bem.

 

Mas esse ímpeto furioso pode levá-la onde? Dê-me uma história exemplificativa.

No fim do curso há um último exercício na Noite dos Agentes. Vêm só agentes e directores de elenco (casting directors), que trabalham com encenadores. São peças de 2 minutos, e naqueles 2 minutos é preciso agarrar o agente, é a safa. É o actor que escolhe a peça, a personagem que quer fazer, a imagem com que quer aparecer. Fiz um monólogo, «Alice in Wonderlessland», de um contemporâneo do Pirandello. Era a história de uma jovem casada, com uma vida muito certinha, que começa a ter uma espécie de diálogo interno acerca do que seria libertar-se.

 

Que empatia estabeleceu consigo esse texto? O que a fez escolhê-lo?

Eu era uma pessoa com uma vida organizada, que contrariou a maré. Não só o facto de ter uma família burguesa, instalada, mas também o ter uma carreira que estava a crescer em Portugal e que interrompi e contrariei. No final do espectáculo, cantávamos todos uma canção. Eu cortei o cabelo. Comprei um fato de homem, que mandei apertar às costureiras do teatro, e uns grandes saltos altos. Entrava em cena, trau, trau, trau, o cabelo muito curto, todo espetado com cera. Não me sentia masculina, sentia-me muito feminina e poderosa. «Ai é? Então tomem-me lá!». É pegar o touro pelos cornos, é não ter medo. Quer dizer, eu estava borrada de medo, do desconhecido, do que aquilo era, do que aquilo poderia dar!

 

Que faces o medo pode assumir?

O abismo. O não haver retorno. É difícil para mim tomar decisões porque tenho muito medo de não poder voltar atrás. Aquilo podia ser um sucesso do caraças, ou podia destruir completamente a minha auto-confiança.

 

O risco tem o tamanho do medo? Perante o medo arrisca tudo.

Exactamente. Tenho tendência para, quando confrontada com o medo, fazer a escolha mais arriscada. Em vez de jogar pelo seguro. Quando estou bem, quando estou estável, jogo pelo seguro.

 

Se o actor não for, ele mesmo, uma pessoa sólida não incorre no risco de ficar desestruturado com as invasões permanentes dos vários personagens que interpreta?

Ainda não descobri como é que isso funciona. É muito giro os actores dizerem: «Eu fico a personagem». Ficam a ser assim umas pessoas especiais que mudam de personalidade. Mas se fosse mesmo assim, tinham de estar internados, porque isso é uma espécie de acting out que pode degenerar em esquizofrenia.

 

Fala dessas coisas com a sua mãe, que é psicóloga?

Falo, falo. Dantes falava muito. Quando tinha muitas perguntas. Depois aprendi a procurar eu. Uma grande percentagem dos actores têm borderline personality. Um deles é o Daniel Day-Lewis, que é um dos meus preferidos, e que já foi internado várias vezes. Ele é fabuloso porque é maluco. Patológico. Antes do «Gangs of New York», esteve valentes anos sem representar.

 

Contava-se que estava como sapateiro na Toscânia.

Cerâmica, olaria, carpintaria, uma coisa dessas. É um desses casos em que os actores ficam possuídos. Como num diálogo de Platão. Sócrates tenta provar a Íon, (um actor vaidoso que se dizia muito especial), que o poder não é dele, que o poder é das musas inspiradoras.

 

Como é que compõe uma personagem? É possuída pelas musas?

Sou duplamente vaidosa. A vaidade dir-me-ia: «Não, sou eu que crio tudo». Mas a dupla vaidade, que é o self conscious sobre isso, diz-me: «Não posso ser vaidosa, tenho de parecer boa pessoa e dizer que são as musas». Recolhe de ambas. Eu não sou uma actriz nata. Não acredito que tenha nascido para ser actriz. Fiz-me e estou a fazer-me. Limito cada vez mais a possibilidade de sair desta profissão. Invisto cada vez mais. Até não ser capaz de fazer mais nada. E depois não há retorno.

 

Insisto na composição da personagem.

Quando estudo um texto tentar abstrair-me da personagem e perceber a história. O segundo passo é perceber qual é a função da personagem naquela história. Porque é que ela existe? O que é que ela vai fazer? As personagens que tenho tendência a fazer (são também as que gosto de fazer) são as perturbadoras. A existência delas é muito palpável: mudam, provocam, transformam.

 

São um agente provocador.

Sim. É importante retirar informação escrita no texto sobre a personagem. O que é que ela diz de si própria? O que é que diz dos outros? O que é que os outros dizem dela? Quando é bem escrito, isto define uma personalidade. Depois começa a dar-me gozo pensar na fisicalidade daquela pessoa. Que tipo de tensões tem? Para isso preciso de saber de que tem medo, o que anseia. É descontraída ou desistente? Passiva ou activa? Agressiva ou tímida? Essas coisas estão na fisicalidade das pessoas.

 

Gosta de imaginar a fisicalidade. Mas em si mesma há uma recusa mais ou menos evidente da feminilidade.

Pois. Não sei responder. Irrita-me a mulher-objecto. Cresci num contexto em que o que é valorizado é o espírito. Mas depois sou incrivelmente vaidosa e sofro horrores se engordo ou emagreço! Estou sempre consciente da minha forma, mas é completamente disfarçado. A profissão exige o corpo perfeito, a beleza perfeita; «Ai é? Então vou contrariar». A energia de reacção é adolescente, é essa. É uma defesa também... Não fui uma criança bonita, não fui uma adolescente bonita. Sou uma mulher muito normal.

 

Quando se vê nos filmes acha-se bonita?

Não.

 

É uma sensação de irreconhecimento?

Às vezes é. A Ana [personagem que interpreta em «Quaresma»]... Falo na Ana como se a Ana existisse de facto. Foi a única personagem em que isso aconteceu. A maneira como foi filmada é tão poética, é tão profundamente frágil... Comoveu-me. E aí pensei: «Que bonito, que olhar...». Mas isso só depois de ver o filme 3 vezes! Antes, desvio a cara, abro a boca, estou a bater-me toda, aos murros.

 

Recentemente usou aparelho nos dentes. Foi uma contingência profissional?

Gostei de ter os dentes tortos nos últimos anos. Criou uma personagem simpática, que não é perfeita, que cultiva mais o lado da emoção. Os directores de fotografia passam a vida a resmungar, têm de fazer uma luz especial porque a menina parece que fica desdentada.

 

Em Inglaterra falaram-lhe disso?

Muito. E cá também. Quis endireitar os dentes. Muita gente à volta se fartou de dizer que era uma palermice, que eu tinha uma beleza comum e que era precisamente a minha dentadura desajeitada que me dava graça... A personagem do filme do João Canijo, («Noite Escura»), passou a ser a Carla Boca-de-Aço!; a história passa-se numa casa de alterne, portanto o nome tem uma série de conotações sexuais, de mutilação, etc. Mas depois não aguentei. Era um aparelho fixo em cima e em baixo, que me cortava a boca toda. Quando acabou o filme, tirei-o. Isso e as extensões no cabelo, para me descartar da personagem.

 

Fez parte do elenco fixo da «Família Forsyte», que passou durante meses na televisão inglesa. Foi suficiente para passar na rua e ser reconhecida?

Não. Mas isso nunca me acontece. No outro dia fui jantar com uns amigos de uns amigos; tinham visto o «Peixe Lua», «A Caixa», e não me reconheceram. Ninguém se lembra. A vaidade fica um bocadinho ofendida, verdade seja dita. Tanto trabalhinho para nada! Ninguém sabe quem eu sou! Tem uma belíssima vantagem, que é nunca ter o estatuto de estrela – que eu não quero absolutamente!

 

Nunca sonhou com isso?

Não. Sou filha de uma psicóloga, esquece-se! O que gosto na representação é a mudança, é a transformação, é viver na pele de outra pessoa, é pensar num ritmo diferente, é ter uma lógica de vida diferente da minha. O que me dá gozo é a psicologia da coisa. Por isso nunca me daria bem num cinema conceptual ou num teatro conceptual.

 

A produção de uma série como a «Família Forsyte» tem uma dimensão considerável. Trabalhou num esquema substancialmente diferente do que existe em Portugal.

Em Portugal e mesmo em Inglaterra. Aquilo foi uma experiência, uma espreitadela num mundo a que não pertenço. Posso fazer parte, posso entrar e sair, mas não sou daquele grupo.

 

Porquê?

Não tem a ver com aceitação. Tem a ver com a maneira de estar. É uma outra forma de encarar a vida. Joga-se muito alto. É um preço muito alto. E não tenho estaleca. Eu preciso de acalmar, de ir ali a casa da minha avó, de comer sardinhas na Trafaria...

 

Precisa de conviver de perto com a realidade portuguesa, é isso?

Vir a Portugal fazer filmes devolve-me a auto-confiança que eles me tiram. Sinto-me completamente em casa, domino a cultura, o ambiente, conheço as pessoas. Estou mais do que nunca nómada. A minha vida é indefinida, não é catalogável. As pessoas não percebem se vivo aqui, se vivo em Londres.

 

E então?

Eu vivo nos dois sítios. Não faz sentido esse tipo de raciocínio. Encenadores ou realizadores cá: «Ah, não a vamos convidar que ela está em Londres». Estou em Londres, estou a duas horas de Lisboa! Vou a Londres fazer uma audição se surge uma coisa interessante para fazer. Meto-me num avião e vou. Sai caro, mas é um investimento. É o que pago para não me sentir limitada. Não quero encontrar-me numa situação de ter de trabalhar para sobreviver. Ou seja, em que não tenha escolha.

 

Seria terrível para si fazer televisão em Portugal?

Fazer qualquer coisa porque não tenho escolha, seja televisão, teatro, o que for, é terrível. É uma coisa que já tive de fazer em Londres. Estranhamente, em Londres estou disposta a fazer. Porque tenho outras mais-valias. Tenho a possibilidade de crescer, de aprender, da abertura, do ambiente, da diversidade.

 

Porque é que fez o anúncio da Coca-Cola Light?

Tem-me criado inúmeros problemas esse anúncio, devo dizer. Fi-lo em Inglaterra, há dois anos. Lá não tenho rede de trapezista, estou por mim. A gente tem mesmo de pagar a conta... E é puxada. Estou saturada da desumanidade dos preços em Londres. Raramente faço audições para anúncios. Fico sempre com a auto-estima muito por baixo... As pessoas que estão sentadas para fazer os anúncios são modelos, lindas de morrer, com uns olhos rasgados, 1,90m. Fiquei confiante quando soube que era para a Coca Cola. É uma história contada em 30 segundos, bem filmada e bem iluminada.

 

Os problemas de que fala traduzem o preconceito que há em relação à publicidade?

Em Portugal tenho tido o luxo de defender um rótulo de actriz séria. Permite-me escolher aquilo em que acredito verdadeiramente. Fazer anúncios não compactua com o rótulo de actriz séria... A não ser que seja o Harvey Keitel a fazer um anúncio para o Barckleys. Estas são as regras do jogo. Ou se pertence ao grupo das novelas ou ao grupo do teatro, ou ao grupo do cinema; mas a que grupo do cinema? Faço filmes com o Manoel de Oliveira e o Zé Álvaro de Morais ou faço filmes com o Luís Filipe Rocha e o Joaquim Leitão? Admiro-os a todos e não gosto dessa rotulação. Uma vez o Jorge Silva Melo disse que a melhor escola de actores era a televisão. Fazer uma novela seria uma experiência interessante, mas sei que não posso brincar.

 

Demoraria anos a recuperar a imagem?

Pois. É por isso que o anúncio provoca alguma reacção: estou a representar o papel da menina perfeita e depois, nas costas, faço igual aos outros...

 

 

Publicado originalmente na Revista Elle

 

 

 

 

José Medeiros Ferreira

22.02.23

José Medeiros Ferreira é historiador e político. Considera-se, ou gostaria de ser, um daqueles “seres erráticos”, que percorrem o mundo, de que fala Teixeira de Pascoaes no livro sobre S. Paulo. O livro O Longo Curso reúne uma série de estudos em sua homenagem.

Medeiros Ferreira crê que ficará para a história como o ministro dos Negócios Estrangeiros que laborou no processo de adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Estudou Filosofia em Lisboa, licenciou-se em Ciências Sociais em Genebra, doutorou-se em História na Universidade Nova. Foi dirigente associativo e opositor a Salazar. Esteve exilado na Suíça entre 1968 e 1974. Teve uma intensa carreira política. É um açoriano de quem sempre se esperou tudo. Nasceu em 1942.

A entrevista decorreu na casa onde vive com Maria Emília Brederode Santos, sua companheira de sempre. Olhemos em volta: livros a comer o espaço, xícaras elegantes sobre a mesa, um amarelo intenso no pátio do fundo, onde brincam os netos. E dois sofás, onde nos sentámos. No final, bebeu-se um Porto, assinou o livro que lhe é dedicado e outro sobre Os Açores na Política Internacional.

Pensa que o país o aproveitou pouco.

 

Continua a sonhar que perde os sapatos?

Agora menos. Sobretudo desde que vi The Big Fish [de Tim Burton]. No filme, as pessoas estavam presas numa aldeia porque os sapatos estavam [dependurados] numa espécie de corda da roupa. Nunca consultei um especialista para decantar o que poderia significar este sonho. Pode ter a ver com o exílio.

 

Pode ter que ver com a sua natureza insular, que é marcante?

Também. A nota mais saliente é que foi uma coisa repetitiva, durante uns anos.

 

Comecemos pelo exílio, por Genebra, pela pessoa que era então.

Exilei-me depois de me ter dado uma moratória para continuar em Portugal. Fui expulso de todas as universidades portuguesas em 1965. A expulsão foi bastante grave para o meu futuro. Percebi logo que tinha as pernas cortadas. Tinha 23 anos, tudo era possível. Sou muito formalista e recorri da pena através do Salgado Zenha, do Jorge Sampaio, do Jorge Santos e do Vasconcelos Abreu (tudo advogados meus amigos, graciosos). O meu curso era o de Filosofia, que escolhi no liceu de Ponta Delgada.

 

Era Antero que o inspirava?

Sempre tive uma tendência para a abstracção e especulação. O exemplo máximo e próximo do Antero de Quental pode ter ajudado. Em 1965 houve um movimento de solidariedade europeu de estudantes expulsos e presos. Tive oportunidade de ter bolsas de estudo, uma delas para Inglaterra. Lembro-me de ter dito: “Ainda não quero sair de Portugal”. Resisti, de certa maneira.

 

É um pouco paradoxal.

Seria lógico ter saído em 1965, mas os outros aspectos da vida não me corriam mal e fui-me deixando ficar. Ainda passei duas longas temporadas nos Açores, muito férteis em termos de leituras e de reflexão sobre a vida futura. Entre 1965 e 1968 arquitecto um plano para Portugal, que depois foi aperfeiçoado nos seis anos em que estive na Suíça. O exílio é uma decisão muito dilemática.

 

Sentia-se proscrito? Com essa sentença: “expulso”.

Proscrito, sem dúvida. E certamente acossado. Em Genebra, fui o primeiro a pedir o estatuto de refugiado político. O Eurico Figueiredo, o António Barreto, o Carlos Almeida, a Ana Benavente, as pessoas que estiveram nessas primeiras noitadas: todos ficaram espantados com a minha decisão de apresentar o pedido. Achavam que as autoridades políticas tinham relações diplomáticas com Portugal ao nível da EFTA, que não estariam viradas para aí.

 

Foi por ser um formalista que pediu o estatuto?

Foi por ser um formalista, quando um formalismo é politicamente relevante. Com o estatuto de refugiado político quis demonstrar que um país como a Suíça reconhecia que em Portugal havia uma ditadura que perseguia fisicamente os seus opositores.

 

Tinha esperança que o pedido fosse aceite? Deveras?

Deveras. Eu tinha sido dirigente estudantil, preso pela PIDE, tinha sido candidato a deputado à Oposição Democrática, em 1965. Tinha manifestado o meu repúdio à guerra colonial. Se a Suíça não me desse o estatuto de refugiado político, não daria a mais nenhum português. O estatuto foi-me concedido três meses depois. Isto são paradigmas de qualidade democrática e de qualidade de uma terra de refúgio, como era a Suíça. Matriculei-me na universidade de Genève, pretendia recomeçar os meus estudos.

 

Não tinha completado cá a licenciatura?

Não, embora tivesse praticamente o 4º ano de Filosofia. Preferi fazer a licenciatura em História, moderna e contemporânea. Recebi um convite para me apresentar no office d’entrée da universidade de Genève, do Jean François Bergier, que se tornou mundialmente famoso. Fez aquilo que Mário Soares fez em Portugal por causa do ouro nazi. Foi meu professor de Economia Social. “Estivemos a consultar o seu dossiê, se quiser pode pedir uma bolsa de estudo”. Não foram as autoridades governamentais suíças que me atribuíram uma bolsa de estudo, foram as autoridades universitárias. Considero isto de extrema delicadeza.

 

Como é que faria se não fosse a bolsa de estudo?

O que os outros portugueses fizeram. O António Barreto, que tinha chegado em 1963, fez trabalhos vários. Quando cheguei já era funcionário das Nações Unidas. Eu não sabia o que me ia acontecer, nem sabia qual era o meu destino.

 

A Suíça: foi porque tinha interesses e contactos lá?

O meu primeiro ponto de apoio foi Paris, onde fiquei alguns dias. Claro que isso não pôde ficar na minha guia de marcha, porque a Suíça só me daria o estatuto de refugiado político no caso de ter ido directamente para a Suíça. O Eurico Figueiredo mandou-me um telegrama dizendo: “Vem para Genève, estamos à tua espera, tens cama”.

 

A Maria Emília já existia na sua vida nessa altura?

Já. Foi ter comigo à Suíça logo no ano seguinte. Conseguiu ser professora de português numa escola de tradução, muito reputada, que tinha sido criada pelos antigos intérpretes e tradutores do processo de Nuremberga.

 

O fim da guerra tinha sido há 20 anos, tudo era fresco.

Mas tínhamos a noção de que a guerra tinha acabado há séculos. A partir de 1969 ficámos juntos em Genève. Até hoje.

 

O exílio, na nossa conversa, chegou por via do sonho dos sapatos, da angústia de os perder.

Só começo a sonhar com os sapatos com 50 anos. Expulsarem-me de todas as universidades foi tirarem-me os sapatos – para voltar à imagem. Um indivíduo fica sem sapatos três anos e depois, se calhar, já não os sabe calçar. Tinha achado a expulsão muito mais violenta do que a prisão pela PIDE, embora esta também tivesse sido violenta.

 

Porque é que foi tão violenta a expulsão, mais do que a prisão?

Não sei dizer. A desproporção é enorme. As acusações são porque falei numa reunião, não autorizada, de estudantes, e usei um tom jocoso. Tudo isto cifrado em três anos de expulsão de todas as universidades do país. As autoridades académicas nunca fizeram qualquer gesto de reparação, o que também dá a ideia da fragilidade intelectual das elites que se perpetuaram depois do 25 de Abril.

 

Essa palavra que, imagino, tenha ouvido repetidamente dentro de si: “jocoso”.

É uma acusação que vem no processo. Já não sei quem é que a fez. Há uma fotografia – “pela expressão facial percebe-se bem o tom jocoso”.

 

Como é que era a fotografia?

Estou a rir-me. Sempre tive uma certa alegria de viver, mesmo a falar de coisas sérias mantenho um certo humor. Nunca mais pensei muito nisto, para dizer a verdade. De vez em quando posso ler o processo.

 

Quando regressou a Portugal, era assistente de duas faculdades em Genève.

Quando cheguei a Portugal, 1974/75, fui convidado para três ou quatro faculdades, e para várias cadeiras e licenciaturas, embora o programa que me apresentaram fosse sempre o mesmo – a história da luta de classes. Disse a todas que não. Se tivesse dito que sim tinha feito uma carreira universitária fulgurante. Mas vinha com a ideia de dar prioridade à actividade política, e foi isso que fiz até 1980. Em Genève tinha um doutoramento em curso, o nosso filho tinha acabado de nascer. Mas aquilo que me tinha feito ir obrigava-me moralmente a regressar ao país.

 

Estávamos a falar das razões por que a expulsão o marcou tanto. Acusaram-no de ser PC. Era verdade?

Não. Nem mentira [riso]. Nunca tive reuniões de célula, nunca paguei quotas, nunca fui membro do Partido Comunista, mas tinha contactos clandestinos. Quando fui preso praticamente não os tinha. Prenderam-me porque tinha sido eleito secretário-geral das reuniões entre associações no ano a seguir à crise, quando sucedi a Jorge Sampaio nessa função. Não conseguiram provar nada contra mim do ponto de vista político.

 

Quanto tempo esteve preso?

De Novembro a Janeiro. Saí em Janeiro porque em fins de Dezembro de 1962 há uma remodelação governamental e a pasta de educação muda de mãos. Inocêncio Galvão Teles terá colocado como condição ao Dr. Salazar, para assumir a pasta, que os estudantes presos fossem libertados. Gostava de começar o seu ministério da estaca zero, do ponto de vista da repressão. Percebi que devia ter havido qualquer coisa. Fui interrogado durante três dias e três noites e depois fui lançado para o Aljube, de onde nunca mais me chamaram. Estive no isolamento um mês, e depois numa cela fantástica.

 

O que é uma cela fantástica?

É pelas pessoas que lá estavam. O pintor Nikias Skapinakis, o padre Joaquim Pinto de Andrade. Imagine o que significa colocar um jovem anti-salazarista na mesma cela que o padre acusado de nacionalismo angolano, e de ser um dos responsáveis pela sublevação em Luanda...

 

Conspiravam noite e dia?

Conspirávamos neste aspecto: entretínhamo-nos muito do ponto de vista cultural, cada um contava um filme, um romance, havia pessoas mais ligadas ao Partido Comunista. Umas seis no total, na cela. Era no 4º andar do Aljube, que dava para o lado da Sé. Quando estive no isolamento, dava para um beco.

 

Como se entretém a cabeça um mês numa cela, sem falar com ninguém?

E não havia aquelas comodidades de ter rádio ou televisão. Às sete e meia da manhã já estava de pé. Não deixavam entrar praticamente nada. Não podia ler jornais. Mas podia receber cigarros. Fazia um horário para fumar o meu cigarro; fumava às nove, às dez, às 11, ao meio-dia, e fazia uma interrupção para o almoço; de tarde, às duas e meia, três e meia, quatro e meia. Mudava o horário: começava às nove e meia, dez e meia. Durou um mês.

A primeira pessoa que me telefona, em português, com o 25 de Abril, é o Joaquim Pinto de Andrade. Muito comovente. Está a ver os laços que isto cria.

 

Os cigarros eram um recurso, como outro qualquer, para se entreter.

E a música. Não se pode tirar a música da cabeça de ninguém. Ouvia uma menina que cantava ali no pátio, umas coisinhas populares; também me servia de entretenimento.

 

Como é que as pessoas não quebram na cadeia? Estar um mês numa situação de isolamento é duro.

Não é uma questão de bravura, é uma questão de raciocínio. Fazemos um cálculo: “Sou um estudante conhecido, a violência sobre mim terá que ter um limite porque quando for solto posso denunciá-la”. Ameaçaram-me. Se não falasse, atiravam-me de um avião, deitavam-me ao mar no Golfo da Guiné

 

Animava-o também a ideia de que aqueles que estavam cá fora, e por que era um aluno conhecido, esperavam de si um comportamento heróico?

Não diria heróico. Senti-me sempre representante da insubordinação estudantil. Nunca quis trair a minha geração. Embora não goste do termo “geração”. E saí do país, em grande parte, em representação dessa geração. Para mim foi uma forma ética de estar. Estudava filosofia; o imperativo categórico de Kant, fazia isso de uma forma individualizada. “E tudo o que fizeres, faz como se fosse uma lei universal”.

 

Quem era a figura cá fora que servia de referência?, o seu pai?

O meu pai era referência para a minha educação. Na cadeia já ninguém me servia de referência. Era eu próprio.

 

Quando é que se fez autónomo?

Quando vim para Lisboa, 18 anos. Não me sinto superior a ninguém, mas nunca senti ninguém em cima de mim. Há pessoas que admiro, mas não há ninguém de quem possa dizer que exerceu uma autoridade moral sobre mim. Os meus pais, claro, deram-me uma educação de grande empenhamento, valores clássicos e tradicionais, uma educação para a responsabilidade.

 

Nasceu em 1942. Fale-me desse rapaz de Ponta Delgada.

Talvez isto também tenha a ver com os sapatos. Sabia sempre que não ia ficar em Ponta Delgada. O meu pai sempre quis que estudássemos. Fui o mais novo em várias situações. Desde logo em casa; era o filho mais novo, e com uma grande diferença do meu irmão mais velho, dez anos.

 

O seu pai tinha estudos? Como é que percebeu da importância fundamental dos estudos?

Não, tinha o 2º ano do liceu. Talvez por isso – achou que devia dar aos filhos aquilo que não teve. Estive em Vila Franca do Campo, fiz lá os estudos primários.

 

Nem sequer era Ponta Delgada, mais recôndito ainda.

O meu pai era guarda-fiscal. Era o comandante de metade da ilha, tudo o que ficasse para além da Lagoa, o meu pai é que comandava. Vila Franca do Campo era uma vila piscatória, lindíssima, onde a principal actividade da guarda-fiscal era cobrar impostos aos pescadores. Na escola estava com os filhos desses pescadores, que muitas vezes tinham dificuldades de leitura. Desde cedo era uma espécie de ajudante do professor primário. Isso marcou-me muito. Tive a sorte de ter uma professora de Filosofia que tinha vindo do continente, que permitia a discussão de cinema nas aulas. Fez-me crescer bastante.

 

A sua mãe, abria também as portas para o conhecimento?

À maneira dela. Era muito religiosa. Curiosamente, tudo o que eram milagres, dava-me a entender que não acreditava. Nunca me falou de a água ser vinho, de os peixes se multiplicarem ou da passagem de Jesus pela Terra. A palavra do Senhor, como se dizia, tinha-a na ponta da língua, os exemplos e as dúvidas. Tinha um certo pensamento sobre a linguagem, muito dela, muito reflexivo.

 

“No princípio era o verbo”. A palavra é verdadeiramente fundadora de um mundo.

Gosto imenso de pensar sobre as palavras. Sou um fiel adepto daquela frase do Karl Kraus: “Quanto mais vejo uma palavra de perto, mais ela me responde de longe”.

 

Um panfletário, Karl Krauss.

Exactamente. Mas quem diz isso da palavra, está tudo dito sobre a reflexão. Eu escrevia num jornal, que ainda existe, o Correio dos Açores, cujo director era amigo do meu pai, o Dr. Gaspar Read Henriques. Fazia crítica de cinema, como se faz aos 16, 17 anos, e ele publicava-me na primeira página.

 

Que filmes eram? Chegava tudo a Ponta Delgada?

Chegava tudo com um ano de atraso. O meu pai assinava os jornais do continente, A Bola, o Diário de Notícias. Iam de barco, era mais barato. No princípio dos anos 50, havia duas carreiras regulares de Lisboa para São Miguel: o Carvalho Araújo e o Lima, de 15 em 15 dias. Eram barcos que tinham sido confiscados aos alemães no tempo da Primeira Guerra Mundial.

 

Apesar do atraso, a verdade é que eram pontes para o mundo e quebravam a insularidade.

Sabia muito bem que o meu horizonte insular não esgotava o mundo.  

 

Quando é que saiu pela primeira vez?

Para as outras ilhas, aos 12 anos de idade. Aos 18 para Lisboa.

 

O dinheiro nunca foi uma limitação?

O dinheiro era a grande limitação. O meu pai é que geria as finanças e tinha um critério de qualidade de vida: o da instrução dos filhos. Vou dar um exemplo, pôs-nos, a mim e ao meu irmão Luís, em aulas de dança. Eu tinha dez anos. Pôs os filhos nas aulas de dança para se saberem comportar em sociedade. Não havia pré-primária, e arranjou uma explicadora para termos as primeiras letras a partir dos cinco anos. A D. Maximiana, lembro-me muito bem dela. Um dia, uns oito anos depois, fomos fazer-lhe uma visita, a senhora estava caída no chão, sozinha em casa. Como as coisas são. O meu pai, quando me viu na actividade política, ficou muito preocupado. O Dr. Gaspar Read Henriques dizia-lhe: “Ó Ferreira, não mandes o teu filho para Lisboa, manda para Coimbra, sempre é mais sossegado”. Quando fui para Filosofia o meu pai disse-me: “Ao menos vai para Direito”. Mas não me proibiu.

 

O que é que queria, mudar o mundo?

Se pudesse, naquela altura era o mínimo [riso].

 

E a política era a sua ferramenta.

Lembro-me de aos dez anos de idade, ou menos, recortar do jornal fotografias dos dirigentes mundiais. Reunião dos quatro grandes em Paris, 1950, e colava as fotografias da reunião. Até aos 15 anos só quis futebol, cinema. A partir dos 15 anos, tornei-me mais empenhado na actividade cultural e política. E quando saio de São Miguel já tenho as minhas ideias alinhavadas. Se não houvesse a ditadura talvez não me tivesse empenhado tão cedo na actividade política.

 

E então teria sido o quê?

Gostava de ter sido crítico literário.

 

Todos os jovens querem ser escritores, não querem ser críticos. Porquê?

Porque tem a ver com julgamento.

 

Porque é que se permite o julgamento?

Isso, não sei explicar.

 

É de uma confiança enorme em si e no seu juízo.

Tenho alguma confiança em mim. Ter-me-ia dado prazer ser banqueiro público, dentro daquele conceito segundo o qual “o crédito é a espiritualização do capitalismo”!

 

Quem é que lhe passou a confiança, como é que a fez?

Fui-me sempre testando. Alguns amigos puxaram-me para a Biblioteca de Ponta Delgada. Tinha uma senhora que tinha sido governanta do antigo homem forte da república em São Miguel, o Dr. Augusto Arruda. Gostava de mim, não sei porquê, e mesmo aqueles livros mais discutíveis, proibidos, passava-mos. Li imenso. Tudo somado, chego a Lisboa com uma grande confiança.

 

Quando é que começou a sonhar em ser primeiro-ministro?

Primeiro-ministro, não sonho.

 

Não é possível, com esse percurso ascensional e esse desejo de mudar o mundo, que não tenha querido ser primeiro-ministro.

O que de facto um dia disse em Genebra, meio a brincar, meio a sério, foi que seria ministro dos Negócios Estrangeiros, o António Barreto, ministro da Agricultura, o Eurico Figueiredo, secretário-geral do Partido Socialista, e o Carlos Almeida, reitor da Universidade Clássica de Lisboa. Nos meus tempos de megalomania podia ter tido a ideia de um destino político. Nos meus tempos normais tenho a ideia da actividade política, do serviço público. Acho-me capaz de desempenhar qualquer cargo político, mas a ambição de ser primeiro-ministro nunca a tive. Ter influência, sim.

Mário Soares, quando pedi a demissão de ministro dos negócios estrangeiros, em Outubro de 1977, ficou convencido de que haveria um conluio com Ramalho Eanes para este me nomear para tal cargo – o que não era verdade e sempre neguei.

 

Porque é que delineou para si, com plausibilidade, esse destino de ministro dos Negócios Estrangeiros?

Sempre pensei que se tinha de tirar Portugal do pântano onde a ditadura o tinha colocado.

 

Falou de um plano que tinha gizado para Portugal; que plano era esse?

Escrevi uma tese para o congresso de Aveiro em 1973, está publicada pelas Edições Seara Nova, no qual digo que vão ser as Forças Armadas a derrubar a ditadura, e que têm de trilhar simultaneamente três objectivos: descolonizar, democratizar e desenvolver.

 

Os três “D”.

Fui elaborando esse plano. Não propriamente o de serem as Forças Armadas; isso só aparece quando percebo que a guerra está a durar demais e que as Forças Armadas estão a dar de si. Tinha uma ideia para o país, lá isso tinha, que plasmei nessa tese para o congresso de 1973. Em Genève, tive tempo, e a liberdade intelectual e de espírito, para trabalhar todas essas ideias feitas na oposição sobre o modo de derrubar a ditadura.

 

Queria fazer a descolonização, e por essa razão queria ser ministro dos Negócios Estrangeiros.

Queria fazer a descolonização, está escrito na tese de Aveiro, e queria criar um espaço de solidariedade entre os países europeus e africanos. E queria que Portugal entrasse na Comunidade Europeia. Ajudei a pedir a adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Costumo dizer que devo ao Mário Soares ser secretário de Estado, e a mim próprio ser ministro dos negócios estrangeiros.

 

Porquê?

Ele indicou-me como secretário de Estado no VI Governo provisório. E depois nomeou-me ministro. Fui secretário de Estado durante nove meses, sendo ministro dos Negócios Estrangeiros o Melo Antunes. Tinha sido um grande amigo meu. Não nos demos bem nessa altura, ele estava muito virado para o terceiro mundismo e para os intelectuais que se queriam sentar em cima de baionetas.

 

Foi sempre claro para si, mesmo na altura da revolução, em que os ânimos estavam muito quentes, que o seu caminho era o do PS?

Tinha-me afeiçoado no exílio às liberdades públicas. É um bem inestimável, não há outro maior. Senti a desilusão de muitos dos meus amigos, quando viram que eu não estava a fim de acentuar o lado radical da revolução.

 

Quem eram esses amigos esquerdistas revolucionários?

Não queria dizer. Os meus amigos políticos, os que me visitaram em Genebra: vamos simbolizá-los no Jorge Sampaio.

 

O Jorge Sampaio não era um esquerdista radical.

Estamos a falar de 1974/75. O Sampaio, o Vítor Wengorovius, disseram-nos, a mim e ao António Barreto, que era muito difícil fazer connosco uma revista polémica, porque estávamos muito ligados ao Partido Socialista. Disse-lhes a célebre frase: “Com as baionetas podemos fazer tudo, menos sentarmo-nos em cima delas”. Esta frase não é minha, mas adoptei-a. Não se pode construir um regime político com as baionetas desembainhadas. Os nossos percursos ficaram sempre cruzados e nunca mais se entenderam. Faz parte da vida política.

 

Não se tinha deixado domesticar por Salazar, ou pela ameaça, mas deixou-se domesticar pelas liberdades públicas.

Sim. É o maior bem político de uma sociedade.

 

No pós-revolução, a sua sintonia política era com Mário Soares?

A minha sintonia com Mário Soares foi-se construindo, não é uma coisa espontânea. Dirigente estudantil, ele ouve falar de mim, e pede à Maria Antónia Fiadeiro para arranjar um encontro. Em 1965 fez muita questão que eu fosse candidato a deputado. Percebi que ele seria o sucessor do Humberto Delgado na liderança da Oposição Democrática. Faz uma leitura extraordinária do programa [eleitoral], empenhada e forte. A televisão estava lá, mas não passou a leitura de Mário Soares no Telejornal, passou umas declarações de Raul Rêgo. Defendeu-se nesse programa o fim da guerra e a autodeterminação para as colónias. Sempre que alguém se aproxima, a dizer que a descolonização foi mal feita, e que o Mário Soares tem responsabilidade, digo: “Ele apresentou ao país, dez anos antes, um plano para descolonizar”. Fiquei a gostar dele pessoalmente, e até politicamente.

 

Olhou-o como um grande estratega?

Sempre foi um homem extremamente intuitivo. Talvez a única pessoa mais intuitiva que eu em termos políticos. Sabe muito bem seleccionar o que é essencial do que é acidental. Acho que posso dizer isto agora: o Mário Soares, no contexto de 1965, teve vários contactos comigo. Perguntou-me assim: “Você dá mesmo importância a esta coisa da contestação da guerra do Vietname?”. Disse-lhe que sim. “Ó homem, isto não é nada connosco, é entre os americanos e o Vietname. Interessa-nos o apoio norte-americano para a nossa política”. Era uma pessoa muito prática. Isto foi para mim a revelação de como é que se reúnem meios para fazer política.

 

Percebeu que é preciso fazer concessões.

Embora preferindo que fossem os outros a fazer. Aproximámo-nos quando ele está no exílio em Paris, e mando-lhe a minha tese. “A sua tese é muito boa, pode até ser verdadeira, mas eu sou sobretudo um homem de partido. O que interessa é aprofundar a criação do Partido Socialista”. Estou convencido que não queria que o grupo de Genebra fosse fundador do Partido Socialista.

 

Lamentou não ter estado na Alemanha, na fundação do PS?

Hoje posso dizer que sim. O PS é um partido que já não se distingue em quase nada. Falta algum sentido referencial. O Mário Soares ainda é dos poucos fundadores que mantêm uma presença na imprensa, a dizer como é que as coisas devem ser. Os fundadores banalizaram-se, ou são cooptados.

O Mário Soares tinha uma negociação paralela com o [Sottomayor] Cardia, o António Reis, e dava-se por satisfeito com isso. Queria era fundar o Partido Socialista naquela altura, e arranjou um quórum razoável para o efeito.

 

Porque é que acha que não o quis, porque é que acha que foi preterido?

Nem era preterido. O Mário Soares achava que a negociação estava a ser difícil, e não teve tempo. A negociação ficou inconclusiva, coisa que lhe permite dizer nas memórias que nos tinha procurado e que não quisemos estar no partido dele. Não é verdade, ele não fez uma negociação seguida connosco. São águas passadas. Estive firmemente com o Partido Socialista de 1974 a 78, depois saí. Apresentei um manifesto renovador, com o António Barreto, em 1979. Propomos uma grande revisão constitucional, seguida de um referendo, para consolidar o regime, isto já em crítica com Mário Soares. Depois vou ajudar a fundar o PRD, em 1985, porque estou insatisfeito com um Partido Socialista domesticado.

 

Nunca mais deixou de o ser, na sua opinião?

Piorou, depois. O PS é um partido gestionário. Ainda é o melhorzito. Tentei fazer o manifesto reformador, com o António Barreto, ao qual faltou gestão política. O General Eanes abdicou de fazer essa gestão política, na segunda eleição. O princípio da realidade e a comparação levaram-me a regressar ao PS quando o Jorge Sampaio era secretário-geral. As voltas que o mundo dá. Quando voltei ao PS percebi que não era o regresso do filho pródigo porque já não havia pai.

 

Já não reconhecia Mário Soares como pai?

Mário Soares já não estava lá. Estava na presidência. Escrevi que Jorge Sampaio podia ser Presidente da República mesmo sem ser primeiro-ministro. Disse ao próprio, que não acreditou.

 

Como é que percebe estas coisas com antecedência?

É a tal intuição.

 

E em relação a si? Viu, decidiu, não quis, não foi escolhido? Porque é que não teve um papel mais preponderante na vida política? Porque é que não foi presidente da Câmara de Lisboa, Presidente da República?

Porque não gosto da carreira, gosto da actividade política. E gosto da actividade universitária. Dou mais importância à minha existência do que à minha actividade. Entrei na actividade política muito cedo, por causa da ditadura. Tenho bons anos à minha frente para fazer outras coisas, e estou a fazê-las. Estou satisfeito. Sinto que o país está em crise e sou um homem para momentos de crise.

 

O que é que isso quer dizer?

Durante muito tempo, quando Portugal entrou na comunidade europeia, houve muitos protagonistas; raramente o meu nome era referido. Todos diziam que era uma grande ingratidão, e eu dizia: “Esperem, quando as coisas começarem a correr mal hão-de lembrar-se de que fui eu o responsável pelo pedido de adesão”. Ultimamente tem vindo de novo à baila que fui o ministro da adesão. Os últimos anos em Portugal são a imitação de como se faz política, nada é substancial, é tudo superficial. Quando as sociedades precisam a sério de sair de dificuldades, precisam de outro tipo de gente. Estou mais vocacionado para esses momentos, faz parte do meu temperamento.

 

Alguma vez, em todo este percurso, sentiu que deixou de ser de esquerda?

Não. Há duas opções: a pessoa retira-se para um exílio interior e não se compromete com o princípio da realidade; ou percebe que têm de se fazer compromissos. Acontece muito aos homens de esquerda: como têm às vezes uma visão virginal da vida política, ou tiveram na sua juventude, quando fazem o primeiro compromisso deixam de ter uma referência, sentem que a sua vida política passou a ser meramente táctica. Há sempre a fixidez da estrela do norte. Ser de esquerda muda. Hoje em dia não é defender as nacionalizações.

 

Um autor como Raymond Aron era considerado de direita pela sua geração. No pólo oposto havia quase uma idolatria em relação a Jean-Paul Sartre. A maneira como os lia na juventude e a maneira como os lê hoje, mudou significativamente?

Dentro do princípio de que as liberdades públicas são o essencial, Aron teve uma atitude que me parece mais pertinente hoje em dia. Tive simpatias de esquerda pelo general De Gaulle, escrevi um artigo em 1969 para a Seara Nova sobre a demissão do dito, e cheguei a integrar no Parlamento Europeu o grupo do qual os gaullistas eram membros. Não sou do estilo de ter referências de autoridades exteriores a mim. Não há nenhum julgamento exterior que não ache que não possa eu próprio alcançar, elaborar. Jean-Paul Sartre: nunca me senti preenchido por ele. Havia os dilemas morais, mas em termos políticos nunca foi um guia. Identifico-me mais com a inquietação do Albert Camus, mais ambivalente.

 

Filho da lavadeira. Importa a classe social de onde se provém?

Não. Sinto muito a frase da marquesa de Merteuil, no [Ligações Perigosas do] Laclos; ela diz uma coisa ao Valmont que é a base de tudo em relação às pessoas: “Je suis mon ouvrage”. Desde que a pessoa tenha capacidade cultural, é o principal. No Albert Camus é a sua obra.

 

Os problemas de classe estão hoje mais esbatidos?

Contrariamente às aparências, não estão. Nunca tive como meta qualquer ascensão social. Nunca foi um problema que me suscitasse uma grande reflexão, fiz sempre as coisas naturalmente. Sempre gostei de andar, nunca me senti preso à minha origem.

 

Mário Soares contava que a PIDE tratava de maneira desigual os filhos de família, e os que eram das classes populares.

A PIDE tratou-me como um político. Às vezes, depois do 25 de Abril, [senti] uma coisita ou outra – “arrivista”…

 

Essa acusação tem alguma coisa que ver com o casamento com a Maria Emília Brederode Santos? Uma menina bem.

Penso que não. Entre nós nunca sentimos qualquer questão derivada desse percurso social distinto.

 

Ela mudou a sua vida?

A minha vida mudou. Quando vai ter comigo a Genebra é uma opção de vida. Quando regressamos juntos é outra opção. São opções que perpetuam uma relação de quase 40 anos. É extraordinário, não é?

 

No Júlio César, de Shakespeare, uma peça que cita frequentemente, qual é a personagem na qual se revê?

Li esse livro na Biblioteca de Ponta Delgada, com 16 anos. Foi talvez o melhor livro sobre o drama da actividade política. Vou dizer o Marco António. Por causa da frase de Júlio César sobre os seus amigos políticos: “Não temo António porque ele é alegre, bon vivant, dorme bem, está satisfeito com ele próprio”. Além do acto de fidelidade pos mortem ao Júlio César, muito bonito.

 

Quem é o seu Júlio César?

Não tenho [riso].

 

Não tem figuras tutelares, mesmo que as vamos perdendo pelo caminho? Nem uma plateia, ou uma necessidade de seduzir uma plateia?

Isso é diferente. Gosto de sentir uma sala comigo, quando estou a falar. E quando acontece é um intenso prazer.

 

Do que se trata no Júlio César é de poder, e poder é uma palavra central no seu percurso.

Mais influência do que poder. Sinto-me Pigmaleão. Sempre tive capacidade de influenciar pessoas, de maneira indirecta, de maneira socrática. Acho que é um dom. “Je suis mon ouvrage”. Pode ser uma ilusão, mas é o que sinto. Sempre tive pessoas que se aproximaram de mim para aprender. Depois, quando já sabiam até se afastaram. Há um caso ou outro.

 

E isso doeu?

Não. A princípio, há uma certa surpresa. Não gosto de ser surpreendido.

 

É uma forma de dizer que baixou a guarda, que não esteve tão alerta quanto devia.

Exactamente. O discípulo foi mais malicioso que o mestre. Em Lisboa, gostei muito das aulas do padre Manuel Antunes, mas não o considero o meu mestre. O Portugal em Transe, sobre o 25 de Abril, dediquei-o a um professor de História de Ponta Delgada, João Bernardo de Oliveira Rodrigues, mas não vou dizer que é o meu mestre.

 

Não tem ainda 70 anos e já fala do exílio interior e do tempo suplementar. Fala como alguém que se retirou.

Não, não. Falo como alguém que nasce todos os dias. Gosto muito das pessoas que sabem ressuscitar, no sentido vivencial da expressão. Não gostava muito do Saramago, nem como escritor nem como director do Diário de Notícias, no entanto tive por ele uma grande admiração, pela capacidade de refazer um destino.

O exílio interior tem a ver com gostar muito de lamber as minhas feridas. E não me sinto apoucado por isso.

 

Dá de si uma ideia muito aprumada, composta, e não a lamber as feridas.

Gosto dos homens que viveram seis meses de intensa vida política e depois nunca mais foram nada. Passos Manuel, Mouzinho da Silveira.

 

Há ruas com o nome deles. Aquilo que fizeram foi fundador.

Tenho esperança de que na Fajã de Cima me dediquem uma rua [riso]. Passos Manuel faz as reformas de instrução, e depois percebe que o seu tempo terminou. Na imagem do Oliveira Martins, passa os dias a alisar os cabelos da neta. A vida política é assim, a pessoa tem um momento, e se fizer o que tem a fazer, está feito. Apesar de tudo, o país aproveitou-me pouco.

 

Porque é que não o escolheram? É essa a pergunta subjacente.

Fui convidado pelo António Guterres para duas ou três coisas fora de Lisboa, nenhuma delas se realizou. Também não disse que as aceitava inteiramente. Porquê? Porque há muitos talentos. Basta ver os talentos que brotaram, o país só tem de estar reconhecido a eles. Dou-me por satisfeito. Nunca me ofereci para cargo nenhum. Houve aqui outra maneira de fazer política, mais superficial. A vida política deixou de ser atractiva para personalidades mais fortes.

 

Qual foi a sua obra? Qual é aquela pela qual vai ser lembrado?

Para o bem ou para o mal, a entrada de Portugal na União Europeia. E talvez a obra histórica que tenho vindo a elaborar. O Portugal em Transe. Já houve alguns trabalhos universitários sobre o meu pensamento. O livro que me é dedicado é uma coisa muito simpática e calou-me fundo.

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011

 

Maria Emília e Nuno Brederode Santos

22.02.23

Quem é que os fez empenhados politicamente? O pai, o país, um tempo? Maria Emília e Nuno Brederode Santos são irmãos. Viveram intensamente alguns dos momentos mais marcantes da história recente. As crises académicas dos anos 60, o 25 de Abril, e antes disso, no caso dela, a experiência do exílio, a utopia de um país que urgia fazer, que parecia pronto a ser feito – foi feito? –, as transformações dos anos 80, quando o dinheiro começou a chegar e Cavaco estava em São Bento. 

Maria Emília nasceu em 1942, formou-se primeiro em Letras, depois em Ciências da Educação (a sua área de estudo e trabalho). Nuno nasceu em 1944. Formou-se em Direito, escreveu crónicas que marcaram uma geração, no Expresso. A entrevista foi feita na casa de Nuno, num dos últimos dias de Verão deste ano. A cadela ladrava, irrequieta.

 

Quem é que vos fez combatentes, amantes da liberdade, empenhados civicamente?

Nuno – O meu pai [Nuno Rodrigues dos Santos].

Maria Emília – Também podíamos dizer Salazar.

N. – Não, a mim foi o meu pai. Segundo o livro de curso era: “Democrata-social republicano assanhado, na tribuna e no jornal deixa o seu verbo inflamar”. A minha mãe, embora herdasse alguns tiques de senhora fina, se a matéria fosse política aceitava essa orientação do meu pai e era republicana e liberal.

 

Porque é que falou de Salazar?

M.E. – Era uma blague. Mas é evidente que também contou. Se não vivêssemos em ditadura o ambiente não seria tão politizado. A minha mãe era uma mulher aberta e muito moderna para a época. Foi das primeiras mulheres a conduzir. Era uma casa muito aberta onde toda a gente entrava, toda a gente discutia. Em Campo de Ourique, na Rua Almeida e Sousa. Nascemos lá.

 

Muito mudou. Hoje já ninguém nasce em casa. E aquilo que era uma situação de excepção, a vossa mãe estudar na universidade, deixou de o ser. A sociedade atribuía papéis diferentes aos homens e às mulheres.  O Nuno era mais chamado a estas conversas políticas?

N. – Não. Tínhamos um número considerável de amigos comuns; se eu estava com esses amigos não fazia sentido que a minha irmã não pudesse estar. E tenho impressão de que tu tinhas limitações de horas, de entrar à noite.

M.E. – Quando entrei em Direito havia 14 raparigas, sentadinhas à frente, e 200 ou 300 rapazes. Ir ao café ou viajar, os meus pais incentivavam que fôssemos juntos. Não gostavam nada que fosse ao café sozinha.

 

E falavam de política?

N. – Falava-se mais do âmbito da política em que nós incorríamos. O movimento associativo, o movimento académico. Falar dos ministros, não, era tudo igual. Falava-se da política no pressuposto de que o que estava era para cair.

 

Ainda demorou uns anos.

M.E. – E de que maneira.

 

A candidatura de Humberto Delgado foi em 1958; foi ela que vos fez acreditar que o regime estava na iminência de cair?

N. – Quando foi do Humberto Delgado tive a impressão de que já nada voltaria a ser como era. O meu pai levou-me à chegada do Delgado a Santa Apolónia. Aquela multidão, como eu nunca tinha visto, causou-me grande impressão. As coisas oscilavam entre o pessimismo que era: “Isto está para durar e nunca há-de cair”, e o optimismo de que aquilo viria abaixo. Mas não era muito claro como é que viria abaixo. Um levantamento nacional do PC: era um caso difícil de acreditar.

 

Estava confinado à clandestinidade – no fundo é o que está a dizer.

N. – Sim. O derrube do governo pela tropa, que era quem tinha as armas, era pouco crível, apesar de ter sido o que aconteceu. O exército dava provas constantes de subserviência. O capitão típico desbarretava-se tão servilmente perante um general que não passava pela cabeça de ninguém que houvesse energia para fazer um MFA.

M.E. – A minha experiência é diferente a partir do José [Medeiros Ferreira, marido]. Trouxe a tese dele [de Genebra para Portugal] e todas as pessoas a quem a mostrei diziam que estava fora da realidade.

 

O essencial da tese dizia o quê?

M.E. – Que seriam as Forças Armadas a derrubar o regime. Foi essa tese que foi enviada ao Congresso de Aveiro. Eu não era tão militante como o meu irmão. Fazia-se porque era preciso fazer. Entre as duas crises académicas, de 1962 e de 1968, éramos muito poucochinhos. Éramos 300 ao todo, de todas as faculdades. Se fazíamos protestos era por solidariedade. Havia uma série de colegas nossos presos e tínhamos que ir para a rua manifestarmo-nos e tentar convencer os outros. Era por esse tipo de imperativo, mais do que propriamente para deitar o governo abaixo.

 

“Fazia-se porque era preciso fazer”? E hoje? As pessoas vão para a rua porque tem que ser?, solidarizam-se com outras porque tem que ser?

M.E. – Naquela altura vivia-se muito mais essa solidariedade. As coisas eram muito piores, havia repressão, pessoas maltratadas.

N. – Era pouca gente, mas, de facto, se não beneficiavam em nada do status quo, era natural que o combatessem. E não havia muitos meios para combater. Quem não era do PC e não tinha a clandestinidade só tinha a rua. O ensino era elitista, e os rapazes e raparigas que se manifestavam e que faziam greve davam um abanão formidável na burguesia.

 

Era daí que provinham.

N. – Exactamente. Era a sua classe de origem e isso era muito mais sentido pelas famílias. A polícia tinha problemas em reprimir uma manifestação [de estudantes] como se fosse uma manifestação operária. Claro que tanto os provocámos que acabaram por tratar das manifestações estudantis à chanfalhada.

 

Como é que foi a sua participação na crise de 1962? Tinha 16 para 17 anos. Interveio? Já estava na faculdade?

N. – Estava, entrei em Outubro de 1961. Era caloiro. Mas tinha uma tarimba importante que era a tertúlia do café Értilas. O Jorge Sampaio tinha acabado de ser presidente [da associação de estudantes], passou a secretário-geral da RIA. Depois fiz as coisas que se fizeram em 1962, que agora teria dificuldade em lembrar. Depois fiz a greve da fome.

 

E essa, uma pessoa não tem dificuldade em lembrar-se.

N. – Fiz sem dizer nada em casa. O meu pai foi lá. Havia [na cantina da cidade universitária] uma janela que dava para a rua – janela fechada, só o vidro –, e eu dei com o meu pai. O meu pai fez-me um sinal de encorajamento. Fiquei comovidíssimo, julguei que ele ia ralhar, que ia achar que com 16 anos não se têm estes arremedos.

 

Fale-me desse arremedo. Por que é que decidiu fazer greve da fome com os outros estudantes?

N. – Decidi fazer porque tinha 16 anos. Não percebia muito bem que se participasse naquela luta e não se fosse a todas as formas de luta. Aos 16 anos não se percebe porque é que não se vai até ao fim.

 

Crescer significa perceber que há um momento em que tem que se parar e que há impossíveis?

N. – Sim. Há um sentido do doseamento do esforço. Cada etapa pressupõe uma avaliação, e fazer contas.

 

Então, não disse nada em casa. Quantos dias fez greve da fome?

N. – Só estivemos lá três dias. Depois fomos levados em grupos pequenos para a PIDE. Uns ficavam presos e outros, como eu, eram postos em liberdade. Fui posto em liberdade na Cruz Quebrada (iam-nos pôr a uns sítios estranhíssimos). Estavam lá os meus pais, a minha irmã, o meu irmão, e foi tudo comer bifes para o Nicola [risos].

M.E. – Julgava que era em Caxias.

N. – Talvez fosse.

 

Nessa altura já conhecia o José? Na sua vida existe um antes e um depois do José.

M.E. – Entrei em Direito em 61, um bocadinho para fazer pirraça à família que achava que as meninas não deviam ir para Direito. Achava aquele raciocínio bastante sedutor, mas detestava. Tinha estado um ano na América, tinha o inglês feito, era muito fácil [mudar de curso]…

 

Por que é que tinha estado um ano na América?

M.E. – Tinha ido num intercâmbio de estudantes. Fui fazer lá o 7º. Depois fiz cá o 7º outra vez.

 

Foi a Maria Emília que quis ir ou foram os seus pais que a empurraram para ir?

M.E. – Fui eu. Eles foram muito simpáticos em deixar-me ir, mas devem ter hesitado imenso. Fui para a Califórnia. Mudei para Letras no ano da crise. Já não estava em Direito, mas ainda não me sentia de Letras. Assim como detestei a parte de cima da Faculdade de Direito, aquelas hierarquias, aqueles professores horrorosos que entravam com grandes carros, por uma porta diferente…

N. – Gostavas era da cave.

M.E. – A cave era uma maravilha. Entrava-se na cave e entrava-se noutro mundo – os subterrâneos da liberdade. Era onde toda a gente aparecia, discutia. Desde o Pedro Ramos de Almeida, que tinha estado preso não sei quantos anos como membro do Partido Comunista – tinha o cabelo todo branco, dizia-se que era das torturas, mas não devia ser –, até aos fulanos da extrema-direita. O José, conheci-o durante a crise mas só comecei a conhecer melhor a partir de 1963, 64.

 

Em 1968 ele exila-se na Suíça. Tê-lo encontrado puxou-a mais para a política?

M.E. – Não me puxou mais para a política. A minha maneira de estar na política é que é um bocadinho mais distanciada. Se não tivesse vivido em ditadura não sei se a política me teria ocupado tanto. Cultivava uma certa discrição, aparecia mas não falava. Foi o José que me convenceu de que era importante aparecer e falar. O facto de ser rapariga também contribuía para este distanciamento; esperava-se menos.

 

Esperava-se menos apesar de ser a única rapariga na família?

M.E. – Sim. Da parte dos meus pais havia um grande investimento na educação, na cultura e no conhecimento. O meu pai uma vez comentou: “O meu pai foi Governador Civil da Madeira, um republicano, com tantos sonhos e tanta intervenção política. Mas a minha mãe deve ter mudado mais o mundo através da educação do que ele”.

 

Concorda? A educação pode mudar mais o mundo que a política?

M.E. – A educação é essencial. Mas a educação é diferente conforme as políticas. As duas coisas têm que estar ligadas. A mim interessa-me mais a educação.

 

Quando foi para Direito sentia que esperavam que replicasse o percurso do seu pai?

N. – Tenho a impressão de que só o meu pai é que pensava assim.

M.E. – Há umas repetições que não podem ser só coincidências. O meu pai chegou a Coimbra e ao fim de um ano teve que fugir para Lisboa. Tu chegaste a Lisboa e ao fim de um ano foste expulso para Coimbra.

N. – O meu pai queria que eu viesse a advogar com ele, no escritório. E eu, até ao 3º ano de Direito mantive a ilusão de que ia ser diplomata.

M.E. – O pai também quis ser diplomata.

N. – Está bem. Eu pensava integrar um escritório, se possível com amigos, com especialidades. O meu pai pensava em termos mais do tempo dele. O advogado é um, tem um escritório e trata de tudo. Isso foi até objecto de correspondência entre nós quando eu estava em Moçambique, na tropa. Ele ficou um bocadinho magoado. Mas não me disse nada no meu regresso. Acabei por ter que ir para o escritório dele porque entretanto adoeceu. Fez uma traqueotomia, não podia ir a julgamentos, não podia falar com clientes. Depois fiz a minha vida profissional toda no IPE. Uma vida interessantíssima, não queria sair dali para nada.

 

Onde é que vos apanhou o 25 de Abril?

N. – Em Moçambique, onde estava na chefia do Serviço de Justiça, em Nampula. E onde só nos apercebemos do que se passava dois dias depois. Cortaram os telefones, cortaram todas as comunicações.

 

Quem cortou as comunicações?

N. – A partir daqui [de Lisboa]. Mas havia umas altas esferas que deviam saber o que se passava. Pessoalmente convenci-me, optimista como sempre, de que era um golpe do Kaúlza [de Arriaga] [risos]. Então agarrei nos milicianos, sobretudo naqueles com ficha na PIDE, levei-os para um bar, o Bagdade, e estive a teorizar metade da noite demonstrando que era óbvio que era um golpe de extrema-direita.

 

Não queria acreditar, era sobretudo isso?

N. – Não via qualquer indício de descontentamento militar em Moçambique. Depois convidaram-me para a coordenação do MFA local e vim a encontrar oficiais do quadro permanente que não suspeitava, nem de longe, que pudessem estar envolvidos numa coisa dessas. Voltei de Moçambique em Julho.

 

O 25 de Abril, onde é que a apanhou?

M.E. – Em Genebra. Retomando o tema de há pouco: há duas coisas em que há um antes e um depois do ponto de vista político. Uma é o José, a outra é o exílio. Em relação à guerra, era muito a favor de que não se fosse combater. Foi com agrado que acompanhei o José no exílio; antes disso aceitei um lugar na Universidade de Bristol, de 1968 a 1969. Foi em Genebra que recebemos a notícia do 25 de Abril. Contrariamente ao meu irmão, acreditei logo que era para bem.

 

É mais optimista?

M.E. – Sou mais confiante. As pessoas percebiam tão mal o que aquilo era que o Le Monde teve um artigo em que dizia que na Grândola, aquele som que se ouve do ceifar, eram as botas cardadas, que devia ser um movimento de extrema-direita. Comecei a ser muito mais desconfiada com a imprensa estrangeira a partir desse momento...

 

Quanto tempo demorou até regressarem e terem vontade de fazer um novo país?

M.E. – Estávamos os dois a trabalhar lá na universidade. O José veio cá logo no 1º de Maio. Eu tinha tido o nosso filho em Janeiro; vim logo que pude acabar o contrato.

 

O vosso pai, em 1975, era deputado à [Assembleia] Constituinte. Colou-se à social-democracia. O facto de serem os dois próximos do PS motivou algum conflito?

N. – Não houve conflito nenhum. O meu pai tinha sido dirigente da Acção Democrato-Social. A geração a que pertencia tinha uma posição muito mais social-democrata, uma posição menos socialista do que a geração seguinte, que era malta de 40 anos. Acho que foi espontâneo e natural que se organizassem separadamente. O Mário Soares com os quarentões, o meu pai com os sessentões. Mesmo durante a ditadura funcionavam separadamente. Inicialmente o Mário Soares foi secretário da Acção Democrato-Social, mas saiu.

 

E antes disso foi comunista. Nunca vos ocorreu militar no Partido Comunista e assumir essa forma de resistência?

N. – Não. Fui convidado duas ou três vezes, mas não. Via nisso um lado quase religioso que não me apetecia nada. E o próprio ideário comunista tinha que ser aceite até aos copos.

 

Até aos copos?

N. – A espada tem um copo. E um tipo não podia ter dúvidas. Era completamente contra o meu feitio.

M.E. – Também fui convidada algumas vezes, mas nunca quis.

 

O que representava Cunhal para os jovens que eram?

N. – Um mito. Um mito sem cara. Nunca lhe tinha visto a cara até 1974. Acho que o aspecto físico ajudava. Sobrancelhas pretas e cabelos brancos, pá, ajuda o mito em toda a parte. [risos]

M.E. – Eu lembro-me de falar no Cunhal sobretudo lá fora. Cá, não me lembro de o ter mitificado.

 

Voltemos a 1975, ao que queriam fazer com as vossas vidas e com o país, e nessa altura as duas estavam umbilicalmente ligadas.

N. – Isso é verdade. Eu estava num grupo de reflexão política pelo qual puxei muito, a Intervenção socialista, que se formou logo a seguir ao congresso fundacional do MES. No congresso fundacional do MES eu e os meus amigos saímos. A entrada para o PS foi em princípio de 1977.

 

Acreditava verdadeiramente que era possível fazer um país novo? Estou a perguntar ao pessimista.

N. – Não só acreditava como neste momento posso dar uma lição de optimismo. Acreditava e acredito que isso se fez. Este país, comparado com o que era em 1973, é um país novo. Com tudo o que nos irrita, com todos os dissabores e desilusões, é um país novo. Um país feito pela democracia. O que não há é utopias.

M.E. – O país mudou imenso. Mudou imenso socialmente. Mudou imenso na educação. Gosta de se dizer muito mal da escola pública, mas a população hoje é muitíssimo mais educada do que em 1973.

 

Qual é que era a taxa de analfabetismo em 1974?

M.E. – Pelo menos 30 por cento.

N. – Em 1961 era 42 por cento. Estou a basear-me na Autópsia do Ensino, o artigo que escrevi para O Quadrante, o jornal da Associação de Direito, que foi fechado.

M.E. – Também mudou o desenvolvimento local. Vai-se para qualquer lado… O que era antigamente ir a Bragança ou a Vila Real. Mudou a vida política. Por muito mau que seja e que nos queixemos, não tem comparação possível com o que era no tempo da ditadura.

 

Como é que reagem quando ouvem dizer que o que temos não é uma democracia efectiva?

M.E. – Eu dou logo um chá. [risos] Digo logo às pessoas que não sabem o que estão a dizer. Se são da minha idade recordo como isto era. Chegávamos à 4ª classe e o mundo dividia-se: havia os filhos da porteira, que quando muito iam para a escola comercial ou para a escola industrial, e os pouquinhos dos outros que iam para o liceu. A maior parte não ia para lado nenhum. 

 

Quando é que as utopias começaram a falhar? Recuo novamente ao pós-25 de Abril e a esse período em que acreditaram que era possível. Ambos disseram que estamos falhos de utopias.

N. – Há uma utopia de extrema-esquerda que foi a que vingou durante 1974, 1975, que ficou arrumada em 1975. Depois gerou-se uma utopia sucedânea dessa até à eleição de Sá Carneiro. Com Sá Carneiro vem uma visão do futuro – que já nem sei se se deve chamar utopia, mas é uma visão do futuro. A partir daí entrámos numa sucessão de PSD ou PS no poder, sempre tão rapidamente que não tem dado para grandes utopias. As utopias ficaram para trás e muito ligadas ao 25 de Abril.

 

Maria Emília, junto a esta pergunta das utopias uma sobre os líderes. As duas estão ligadas. Quando é que deixámos de ter figuras de referência, das que arrastam multidões consigo?

M.E. – Não sou muito de utopias. E também não sou muito de grandes líderes. Houve uma altura em que o bem comum, o serviço público, eram valores que eram desejados, respeitados. Passou-se para uma outra linha em que é cada um por si, salve-se quem puder. Não sei dizer quando, mas estamos metidos nesta segunda via, já há alguns anos que começou essa viragem.

 

Por falar em grandes líderes, vou directo a Cavaco, alvo de estimação do Nuno nas suas crónicas do Expresso. Que marca é que Cavaco, primeiro-ministro e presidente, deixa no país?

N. – A marca que deixa como primeiro-ministro é a de um grande vazio ideológico e a substituição da ideologia por características pessoais (pelo temperamento, pela formação que teve). É um homem que adormeceu ideologicamente o PSD. Teve acesso aos fundos comunitários, o que lhe permitiu fazer uma obra medida em asfalto que teve aspectos impressionantes.

 

A obra de Cavaco mede-se em asfalto?

N. – Não penso que tenha deixado outra coisa. E fez despertar alguma sobranceria social.

 

O que é que quer dizer com isso?

N. – Agora estou a falar a favor dele e contra mim. Fez despertar sobranceria social no sentido em que traz consigo uma falta de cultura…

 

Apesar do doutoramento em York?

N. – Sim! Muitas vezes eu criticava essa falta de cultura, e descobria que não era o melhor que havia em mim.

 

Está a dizer que olhava de cima para baixo para o rapaz que vinha de Boliqueime?

N. – Sim, exactamente.

 

Já volto ao Cavaco. Mas deixe-me questionar o que disse: como é que se tem um doutoramento em York e mesmo assim não se é culto?

M.E. – Não estou muito de acordo. É uma cultura económica que eu não tenho e que o senhor terá. Tenho pena que não seja uma pessoa mais culta, mas não reajo com essa sobranceria de que fala o meu irmão. Tenho sentimentos contraditórios em relação ao papel dele, mas aprecio que fosse “pró-desenvolvimentista”. Tenho pena que não tenha havido mais investimento numas coisas e menos noutras, e que não tenha sido mais bem aproveitado.

 

Nomeadamente na educação?

M.E. – Sim. Mas investiu-se na formação profissional e na educação de adultos. Criou-se foi uma mentalidade de viver de expedientes, com uma certa facilidade. O asfalto, ainda bem que há. Para poder ir para Vila Real ou Bragança, é preciso o asfalto.

 

Explique melhor o que é que quer dizer com viver do expediente e da facilidade.

M.E. – Estou a pensar no facto de não se ter investido num sector produtivo que assegurasse uma não-queda neste desastre.

 

E sobre a incultura de Cavaco, apesar do doutoramento, que tem a dizer?

M.E. – Isso é tão comum lá fora. As pessoas têm doutoramentos na sua área específica e não têm uma grande cultura geral. Cá, como éramos uma minoria educada, essa minoria tinha uma cultura literária, humanística.

 

É porque tinha esta cultura geral que aprendeu a escrever como escreve, e escrevia as suas famosas crónicas?

N. – Sei que escrevo muito com o ouvido. Mas quem é que me ensinou, em que contexto, não sei.

M.E. – Tens uma memória fabulosa, lembras-te sempre de exemplos. Os toureiros, quando ninguém falava nos toureiros. O Papalagui, quando ainda não estava traduzido. Aqueles animais que ias buscar...

 

O ornitorrinco.

M.E. – Como é que te lembras daquilo?

N. – O Cavaco: escrevi uma frase que me parece excessiva mas que ilustra bem a ideia: “Foi fácil tirar o homem de Boliqueime, mas agora ninguém consegue tirar Boliqueime do homem”. Quando falo em cultura são os conhecimentos fora do conhecimento profissional. Ninguém é culto por saber Direito, ninguém é culto por saber Economia, se forem, respectivamente, jurista e economista. O homem [Cavaco] pode saber de Economia mas não me parece que tenha conhecimentos fora disso.

 

Ornitorrinco foi talvez a sua crónica mais famosa naqueles 17 anos de crónicas para o Expresso.

N. – É a minha preferida. Tenho um ornitorrinco no quarto, mandei-o vir de Inglaterra.

 

Porquê a fixação no Cavaco, que o fez recorrer à imagem do ornitorrinco para falar dele, para o descrever?

N. – Uma das consequências da falta de cultura é a falta de articulação ideológica. Aquilo que uma pessoa pensa da matéria A não tem necessariamente a ver com o que pensa da matéria B e da matéria C. E isto foi muito marcante no tempo do Cavaco. Esvaziou ideologicamente o PSD e o PSD passou a ter respostas não articuladas para os diversos problemas. Isso sugeriu-me um bicharoco em vias de extinção. Põe ovos, dá de mamar, tem bico. Depois há o Cavaco presidente, completamente diferente do outro Cavaco.

 

Tem menos poder e menos dinheiro. Estas são as diferenças substanciais?

N. – E tem mais medo. Tem medo de cometer erros. Tem medo de ser entalado ou enxovalhado pelo parlamento, pelo Tribunal Constitucional, pelas vaias populares.

 

Porque é que tem tanto medo e não se está nas tintas como Soares?

N. – A Presidência é uma coisa que infunde algum respeito. Isto de um tipo ter a bomba atómica e não ter sequer uma pistola tem consequências chatas. Ninguém lhe vai perdoar se usar a bomba atómica sem razões para isso, e para o tiroteio do dia-a-dia não tem nada. Não tem uma pistolinha nem uma faca de mato. Isso tem-se notado nesta presidência. É uma presidência timorata. A nota dominante é encostar-se à maioria que o elegeu e não correr riscos.

 

Qual é a sua opinião?

M.E. – Estou de acordo. Quando fiz aquela defesa do “pró-desenvolvimentismo” de Cavaco, não gostava que ficasse só a nota positiva. Foi aí que começou o tal enriquecimento rápido e por meios dúbios. Em relação a Cavaco como presidente: para presidente não é preciso alguém que tenha uma grande intervenção mas que dê a segurança de que quando é necessário há essa intervenção. Não sei se essa imagem está a passar.

 

O que é que o vosso pai, que era do PSD dos primeiros tempos, pensaria desta social-democracia? Temos um presidente social-democrata e um primeiro-ministro social-democrata, vivemos em social-democracia.

M.E. – Não estou de acordo com esse pressuposto. Eles não se definem como sociais-democratas, definem-se como do PSD. Definem-se como ultra-liberais. O meu pai era profundamente social-democrata, não era de todo liberal. Era liberal na vida, nas ideias. Economicamente não era nada liberal. Ele não se identificaria com o que se está a passar.

N. – Há imensos quadros do PSD que são sociais-democratas e que estão em minoria lá dentro. Suponho que o meu pai se consideraria ligado a esses e não tanto à linha dominante.

 

E “esses” é o que resta do “sá carneirismo”? Não sei que relação o vosso pai tinha com Sá Carneiro.

N. –  Muito boa.

 

Seria com essa herança que estaria?

M.E. – Seria mais a herança dele próprio.

N. – Ele é muito mais antigo do que Sá Carneiro.

M.E. – O meu pai era um grande orador. Ainda foi deputado à Constituinte, presidente do Congresso e de não sei quantas coisas dentro do PSD. Apesar desse problema da voz. Até foi presidente interino.

M.E. – Quando foi aquela troika nacional, entre o Balsemão e o Mota Pinto, foi ele o presidente.

N. – Às vezes vejo na televisão aquela escadaria do PSD, tem lá os retratos de todos os presidentes, e ele aparece. Ele intervinha na conciliação de zangados. Começava a ter uma intervenção mais patriarcal do que de agente político.

 

Quando é que se desencantaram com o PS?

M.E. – Tu és do PS.

 

Continua militante?

N. – Continuo. Passo a vida a encantar-me e a desencantar-me, várias vezes ao dia. Cada vez que vejo um telejornal.

M.E. – Eu não sou do PS, nunca fui. Os meus encantos e desencantos não são tão marcados.

 

Mas pode-se dizer que o PS é a sua família política?

M.E. – É. A esquerda de uma maneira geral. Mas o PS é do que me sinto mais próxima, em quem voto mais frequentemente – embora não exclusivamente. O desencanto não é com o PS. É quase mais geracional, quando começa a dominar uma certa cultura de interesses. Isto parece moralista.

 

Estamos num fim de ciclo e num prenúncio de novo ciclo?

M.E. – Tem que ser.

 

Outra vez o “tem que ser”?

M.E. – Mas aqui com um sentido diferente. É quase um optimismo fundamental. Isto tem que ser diferente. Não podemos ir por este descalabro até à derrota final. Tem que ser: entre descalabro e descalabro até à vitória final.

 

O que é que está a ser destruído e posto em causa?

M.E. – Quase tudo. A educação está a ser muito ameaçada. Muita coisa está a ser destruída (a educação de adultos. Esta ideia do cheque-ensino...).

N. – Fim de ciclo é uma expressão forte. As grandes mudanças vêm com as mudanças geracionais. Que espécie de ruptura pode haver sem ser essa? Não vai haver golpe de Estado.

 

Não? Os militares estão acantonados e não há o perigo de fazerem uma revolução?

N. – Têm cultura suficiente para imaginar o que daria a revolução, com União Europeia e coisas desse tipo. Não estou à espera de rupturas, estou à espera de mudanças geracionais. Há gerações malditas que não conseguem realizar sonho nenhum. E esta não tem sido das mais felizes. Vamos ver se ainda melhora um bocadinho antes que venha a outra. Faço votos para que a outra seja boa.

 

Para terminar uma pergunta mais pessoal. Têm uma boa relação de irmãos? Falam muito? São bons amigos?

M.E. – Agora começas tu.

N. – Boa, muito boa. Temos o lastro dos 20 e tal anos de vida em comum. E temos a viagem à Suécia.

 

Quando é que a fizeram?

N. – Eu, com 15 anos, fui tomar conta da minha irmã para ela se portar bem. [risos]

M.E. – Foi no ano a seguir a ter estado nos Estados Unidos. Houve um encontro de estudantes na Suécia e os meus pais disseram que eu podia ir se um dos meus irmãos fosse comigo. Fomos de comboio. Passámos por Paris, fomos à Cinemateca, vimos o Chien Andalou, que era o máximo.

 

E a relação de irmãos?

M.E. – Temos um fundo de grande solidariedade. Mantemos um contacto semanal. Mais graças a mim do que a ele!

N. – Desminto estridentemente aquela coisa de “mais graças a mim do que a ele”.

M.E. – Prova, prova.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013 

 

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