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Anabela Mota Ribeiro

Annie, Susana, Natalia, Tatiana: Read(S)

14.01.24

Esta manhã acordei e comecei um livro novo da Annie Ernaux. Gosto de reservar a primeira hora do dia para ler o que me apetece ler, aquilo que não está ligado ao meu trabalho, ainda que alimente e apareça sedimentado no meu trabalho.

Annie Ernaux é uma escritora francesa que nasceu na Normandia em 1940. Nas suas notas biográficas, sumárias, explica-se que cresceu numa família humilde. Os pais tinham um café. Ela fez o que se pode chamar de migração de classe por via dos estudos. Foi a primeira pessoa da família a frequentar o ensino superior. Em alguns dos seus livros, além desta geografia, e da evocação desse tempo, que é o da Segunda Guerra Mundial e do pós-Segunda Guerra, em que a escritora nasceu e cresceu, revela-se uma geografia mais circunscrita e um contexto histórico mais preciso. Tudo se passa entre as paredes do pequeno negócio dos pais, tudo se passa na relação com o que está fora, com as outras classes sociais, com um horizonte de futuro que não coincide com o dos pais e que é alterado pela instrução daquela filha única. No cerne dos livros: o desnível, o desencontro, a incomunicação que se estabelece entre a autora e a família. Sobretudo, no âmago do texto está aquilo que domina a nossa vida — a de todos — e de que é muito difícil falar: a vergonha, o medo, o desamparo, a solidão, o desejo.

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Estou a ler La Honte em francês (sou ainda de uma geração que aprendia francês na escola). A primeira frase diz assim: “O meu pai quis matar a minha mãe num domingo de Junho, no começo da tarde”. E depois: “Eu tinha ido à missa do meio dia menos um quarto, como habitualmente. Devia trazer bolos da pastelaria instalada na cidade comercial, um conjunto de edifícios provisórios edificados depois da Guerra...”. E prossegue, escrevendo com uma faca. A imagem da escrita como uma faca, e não só com uma faca, é da própria Annie Ernaux. Título de um livro de entrevistas: L´écriture comme un couteau.

Foi a minha amiga Susana Moreira Marques, que considero uma das melhores escritoras de língua portuguesa, que me deu o meu primeiro livro da Annie Ernaux. As duas escrevem num tom e num estilo que agora se denomina: auto-ficção. O substracto biográfico está em cada página, na experiência do quotidiano, que é a do sujeito, a da banalidade. É uma pulsão difícil de resumir numa palavra, mas que não é seguramente narcísica ou essencialmente narcísica. Tem que ver com a escrita como uma dobra, uma faculdade de nos vermos de fora, tornarmo-nos personagem de ficção, fingirmos uma dor que deveras sentimos. Estarmos no palco e na plateia, sermos singulares e universais.

Esta alusão a Fernando Pessoa e ao seu famoso poema Autopsicografia (parêntesis para recordar os primeiros versos: o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente) resulta de ter lido a magnífica Biografia de Pessoa de Richard Zenith. Li como quem estuda as 1185 páginas deste projecto que demorou uma vida a ser feito. E, na vida de Pessoa, impressionou-me saber que os famosos heterónimos apareceram, com outra constituição, outra consistência, outro recorte, outro nome, nos anos de formação do poeta. O primeiro chamava-se Chevalier de Pas. Pessoa tinha cinco ou seis anos. Era um amigo imaginário. Pas, em francês, significa não e também passo. Os investigadores dividem-se quanto ao significado deste Pas. Um cavaleiro que anda ou um cavaleiro que diz, e através de quem se diz, não? O que nos interessa é a construção de uma persona imaginária. E um hábito do jovem Fernando: escrever cartas a si mesmo.

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Escrever cartas a si mesmo! Quem aqui já escreveu cartas a si mesmo? Não é escrever um diário. É escrever cartas, pô-las no correio, com selo, fantasiar uma surpresa quando se recebe e lê o conteúdo. Bem sei que isto é um tempo, e que agora não se escrevem cartas nem mandam telegramas. A troca epistolar faz-se num ápice, na superfície árida do ecrã. Ganhamos velocidade, imagem, instantaneidade. Também perdemos algumas coisas, como por exemplo a caligrafia, a rasura do texto, a hesitação plasmada na página.

Eu já escrevi cartas a mim mesma quando tinha treze anos. Não as tenho porque deito tudo fora, mas imagino que falasse das inquietações existenciais que nos afligem quando deixamos a infância e nos interrogamos: afinal, porque é que nasci?, qual é o meu lugar no mundo?, qual é o sentido de nascer para viver já morrendo um pouco? Afinal, quem é que eu sou? Essa interpelação que fazemos, e que é filosófica, é o caderno sobre o qual os escritores escrevem. Escrevemos cartas, diários, poemas, romances, ensaios: escrevemos para perguntar, manusear uma faca, com a perícia e o risco de uma faca, cortamo-nos e suturamos as feridas no gesto da imaginação e da memória. Escrever é isso. Ler também é isso. Indissociáveis como duas mãos.

Ainda que possamos ler sem escrever, não podemos escrever sem ler. E ler sem escrever desencadeia, de qualquer modo, uma conversa íntima. Não ficamos os mesmos quando, no silêncio e na intimidade da leitura, nos projectamos no que lemos. O diálogo pode assumir a forma da rejeição, mas ler é estar em relação. Para começar, connosco próprios.  

A Susana Moreira Marques escreveu, nos seus dois livros, sobre morte e maternidade. Gosto especialmente do segundo: Quanto tempo tem um dia – experiências de maternidade.

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Escrevi, durante a pandemia, um diário. Na verdade, um livro de auto-ficção que talvez seja publicado, talvez não. O que importa é que o escrevi. Foi uma âncora, um processo catártico, páginas de perplexidade, incómodo, também de algum amparo. 

A Annie Ernaux ajudou-me no segundo confinamento, como a Natalia Ginzburg me salvou no primeiro confinamento. Foram períodos de imenso sofrimento, foi uma experiência que ainda não sabemos dizer, que esfacelou as nossas vidas e cuja reconstrução vai demorar. Estamos nos escombros, ou, noutra imagem, naufragados. Fernando Pessoa escreveu, muito jovem, numa carta: “Sinto-me tão sozinho como um navio naufragado no mar”.

Natalia Ginzburg é uma escritora italiana que viveu entre 1916 e 1991. Eu tinha a sua obra magistral Léxico Familiar, que havia comprado no Brasil, sem ler. Encontrei-me com ela nos primeiros dias em que estivemos fechados em casa. Uma outra amiga escritora, judia como Natalia Ginzburg, a Tatiana Salem Levy, fez chegar a minha casa um outro livro, para saciar a minha necessidade de continuar a ler a escritora italiana. Nesse tempo, tudo estava fechado. Mas um amigo comum sobreviveu fazendo comida para fora, e foi com a comida dele que chegou até mim As Pequenas Virtudes. A força simbólica desta dupla entrega: alimento.

Por esse tempo, Tatiana partilhou comigo o seu livro Vista Chinesa, que só sairia meses mais tarde no Brasil, passado o sufoco maior da pandemia. Tenho bem presente o momento em que o li, porque foi a véspera da morte de uma querida amiga, a cientista Maria de Sousa. O romance é sobre uma violação, um estupro, eu não sabia que aquele corpo violentado não era o da Tatiana, mas o da amiga da Tatiana, a Joana. Era um corpo muito concreto e imaterial, porque, no corpo da Joana, estava o corpo da Tatiana, o corpo de todas nós, mulheres. Mas eu não sabia.

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Quando reli o livro, em papel, na sua edição portuguesa, um ano mais tarde, era outra, a vida era outra, a experiência de leitura foi naturalmente outra.

Ficou inseparável de Vista Chinesa o momento em que me debrucei sobre ele. A dor pela morte da Maria, a Tatiana, a Natalia Ginzburg. Formam uma constelação.   

Pequenas Virtudes faz-se de pequenos textos que não são bem contos, e que não importa arrumar numa categoria. São textos breves onde está a vida toda. Assim como a frase de arranque da Annie Ernaux nos dá a vida de uma menina de 12 anos, um texto como Os Sapatos Rotos dá-nos a importância metafórica de ter pés enxutos e quentes na infância, sapatos sólidos e sãos na família. São a estrutura que permite enfrentar os dias em que os sapatos ficam moles, informes, molhados pela chuva, destruídos pelo tempo da guerra.

Felizmente já estão traduzidos e editados em Portugal alguns livros das duas autoras de que tenho falado. O que comecei esta manhã, comprei-o em Paris, onde estive há dias. Fui a convite do Camões falar do Ensaio sobre a Cegueira de Saramago. Não esquecer: o prémio Nobel português comprou os primeiros livros aos 19 anos, com dinheiro emprestado. Fez-se, enquanto leitor e escritor, nas bibliotecas. 

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Tive a sorte de encontrar em França o último livro de Annie Ernaux, Le Jeune Homme, acabado de sair, e de esse livro ter uma relação com um outro livro dela, que li numa tradução brasileira, O Acontecimento. Sobre um aborto. Nas últimas páginas, sistematiza: “Eliminei a única culpa que senti a respeito desse acontecimento — que ele tenha acontecido comigo e que eu não tenha feito nada dele. Como um dom recebido e desperdiçado. [...] As coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros”.  

A mesma ideia (e intenção ou propósito) é enunciada na epígrafe de Le Jeune Homme: “Se eu não escrevo, as coisas não chegaram ao seu termo...”.

Nestes livros, como em todos, fala-se da escrita como processo de maturação de um tempo, uma memória, uma identidade. Aquilo de que se fala aconteceu há muito, muito tempo. Porém, os rios comunicantes continuam a rumorejar.

Uma vez, ouvi a Tatiana Salem Levy, numa oficina, dizer a um grupo de jovens: vocês já viveram algo que é indispensável à escrita: uma infância. Dito de outro modo: vocês já têm um léxico familiar. Esse idioma que vem com a nossa biografia, o nosso modo de sentir e procurar, é sintetizado assim por Natalia Ginzburg: “Essas frases são o nosso latim, o vocabulário de nossos tempos idos é como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive em seus textos, salvos da fúria das águas, da corrupção do tempo. Essas frases são o fundamento da nossa unidade familiar, que subsistirá enquanto estivermos no mundo”.

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Partilhei convosco vozes, idiomas, amizades com as quais a minha vida se faz. Annie Ernaux e Natalia Ginzburg, Susana Moreira Marques e Tatiana Salem Levy, fiz a evocação de Fernando Pessoa e de José Saramago. Lê-los é uma interpelação, um espanto, um questionamento — e um impulso para a escrita. Incitam-me a escutar as minhas frases lapidares de um domingo de Junho, a linguagem que saiu incólume, ou até robustecida, e que é a do meu lugar de origem, o que ajuda a compreender, a não compreender, a estar, como estamos na vida, em curso.

 

Texto lido no ReadS, a 31 Maio 2022. 

O ReadS é um concurso de leitura e escrita para alunos do ensino superior promovido pelo Plano Nacional de Leitura. Laureana Barbosa, aluna de Línguas e Estudos Editoriais da Universidade de Aveiro, venceu a segunda edição com um texto a partir d' O Ano da Morte de Ricardo Reis, de Saramago. Começa assim: "O silêncio supera as raízes familiares". Parabéns a todos! Informação sobre o concurso em www.pnl2027.gov.pt

 

 

    

  

 

Manuel João Vieira

09.01.24

Isto não é uma entrevista a Manuel João Vieira, isto é uma entrevista aos heterónimos de Manuel João Vieira. O músico, o candidato presidencial, o artista plástico. Uma destas tardes, apareceram todos lá por casa (do Manuel João, em Campo de Ourique). Ele é muitos.

Nada fica de fora. Sócrates e as escutas, Manuela Ferreira Leite por falar em leite. A pedofilia. Do que gostam os católicos. Educação sexual forçada na terceira idade. Palavras como “singelo” e móveis antropomórficos. Maio de 68 que afinal é Maio de 78.

Beckett não é chamado ao barulho. Apesar do absurdo. Mas Agnès Varda, sim, e Bocage.  

Há uma radiografia do país feita por Elvis Ramalho, Lello Minsk, Candidato Vieira e Orgasmo Carlos. Há uma biografia sumária do homem por detrás dos personagens, Manuel João. 

O que é fazer uma entrevista a um heterónimo? É seguir o fio. E provocar. Jogar no escuro.

Aqui e ali há pequenas incongruências (uma vez diz-se que Elvis Ramalho é o irmão mais novo dos irmãos Catita, outra que é Lello Minsk). E responde como um músico azeiteiro faria (“O papá catita era alguém muito severo”), ou um artista (Aquilo que faço é ao mesmo tempo auto-referencial e irradiante”).

A entrevista foi feita à tarde, depois de Manuel João dormir a sesta. Estado: absolutamente sóbrio. Com queixas de uma ressaca da véspera. A casa é a casa de um artista.

Bem vindo ao admirável mundo de Manuel João Vieira!

 

… O que interessa realmente nas entrevistas é identificarmo-nos com aquele que é entrevistado; saber por exemplo que é uma pessoa normal como nós. Muitas entrevistas tendem a ser como aquelas que se fazem aos ciclistas quando chegam à meta, ou aos futebolistas, esperanças para o futuro. Existe uma organização implícita.

 

Um enunciado?

Sim. As respostas também fazem parte de um pacto, e as coisas funcionam segundo esse código, e se funcionarem assim são entrevistas sérias.

 

Sérias porque ninguém fica defraudado?

Sérias porque é aquilo que é suposto fazer-se. Tudo corre como num filme de Hollywood: há um princípio, um meio e um fim, que é feliz.

 

Quem vamos começar por entrevistar para furar o enunciado?

Tenho comigo o Orgasmo Carlos, um génio da arte contemporânea, segundo ele próprio. Tenho o Candidato Vieira, que está a fazer uma travessia no deserto. Tenho dois cantores, um que canta nos Ena Pá 2000 e noutras bandas, o Lello Minsk; e um cantor da canção portuguesa, o Elvis Ramalho.

 

Vamos começar pelo autor da frase: “Se há coisa que me faz mal é a água mineral”.

Isso foi uma tradução que fiz para uma canção que se cantava nos Irmãos Catita. Posso falar imediatamente como Elvis Ramalho… No fundo sou um amante da canção latina como as que havia antigamente. Em Portugal tivemos aquele acidente que foi o Salazarismo, mas havia muita canção latina, lembro-me disso. E também era muito latino o facto de nos agarrarmos às canções anglo-saxónicas. Os Conchas, o Concerto Académico, todos esses, pegavam em músicas, tanto italianas como inglesas. A única coisa que me distingue do meu irmão, Lello Minsk, é o facto de me interessar por canções ainda mais foleiras do que ele. Já não o vejo há uns anos. Para mim, o importante é o sentimento, e vivo numa espécie de museu do lixo sentimental, rodeado das minhas próprias fotografias.

 

Narcisista, portanto.

Sim. Tenho fotografias minhas dos anos 70, em que ainda não pintava o cabelo, com um bigodinho. A minha vida, ao contrário da do Lello Minsk, tem sido uma bebedeira mais de martinis. Ele prefere o bagaço e o whisky, bebidas mais duras. Somos pessoas bastante transparentes. Como irmão dele, acho que é uma pessoa sem qualquer tipo de substância. É volátil como espuma do mar. É diferente de mim. Sou uma pessoa com mais carácter, um bocado mais de consistência.

 

Você, Elvis Ramalho?

Sem dúvida. Pelo menos foi o que me disseram. Estou a escrever as minhas memórias, mas não me lembro de nada. Quando começar a lembrar-me de qualquer coisa vou escrever. E tenho outro problema: não sei se estou vivo ou se estou morto, e se estou a sonhar ou se estou acordado.

 

Tiveram pai e mãe?

O Lello lembra-se disso. Sou o irmão mais novo, não me lembro. Vivíamos no Algarve. Somos familiares dos tipos do atum. O Atum Catita era uma parte da família que se dedicava à indústria conserveira; fez algum dinheiro, mas nunca deu um chavo à parte pobre da família, que éramos nós. Emigrámos muito cedo para Lourenço Marques para fazer fortuna, e conseguimos ter um lugar modesto dentro do meio vagamente analfabeto e mundano de Lourenço Marques. Depois voltámos para cá como artistas coloniais, mas nunca chegámos a ter qualquer sucesso.

 

Quando é que nasceram?

Quem é que se lembra de quando nasceu?

 

Há os álbuns do bebé, que ajudam a situar.

O papá Catita era alguém muito severo. Quando éramos muito novos, quatro anos de idade, dividíamos uma sardinha de uma lata entre 10 irmãos, e quando alguém tirava um bocado a outro, espetávamos um garfo na mão! É preciso dizer que houve fome em Portugal – há muita gente que não se lembra disso. Cresci e nasci para a música. Para mim, o mundo da canção e da música é mais importante do que a realidade. Na realidade vivo quando estou em palco (isto também se diz neste tipo de entrevista). O sentimento de entrega aos meus fãs seria o sentimento que normalmente um casal, que vive num filme de publicidade, tem um pelo outro. Imagine-se uma família num filme de publicidade, um pai, uma mãe, os filhos…

 

Um pai sem barriga, uma mãe com um pernão…

A característica em comum é a de serem todos lindíssimos, e estão todos numa casa que parece um catálogo da Moviflor. Para isso prefiro a vida de palco, e gosto de imaginar que vivemos num mundo maravilhoso. Ontem vi um filme da Agnès Varda, um documentário dos anos 60 sobre aquela região de Cannes e Nice; o meu mundo é assim: vivo nos anos 60, quando as cores da moda eram o azul e o amarelo.

 

Ficou aí cristalizado, no sol e no mar.

Sem dúvida, fiquei. E tenho muita sorte de não ter ficado cristalizado na Idade Média, como muita gente que anda por aí. Nesse aspecto considero-me mais avançado. Tenho o problema de achar que os móveis me ameaçam, que são antropomórficos, agressivos e cruéis, e vivo rodeado de móveis… De resto, sou uma pessoa normal.

 

Porque é que essa pessoa só existe no palco, ou só se sente bem no palco?

Existo também fora do palco, em fotografias, sobretudo dos concertos. Se for a minha casa, ela está habitada por imensas fotografias, referências, os meus discos de ouro, o meu toucador, as perucas, os bigodes falsos… Só eu é que não estou lá. Mas o que é uma pessoa senão os vestígios que deixa neste mundo?

 

Pergunta profunda. Qual é a resposta?

Quem sou eu para responder. Sou fundamentalmente uma pessoa muito modesta, de origens muito humildes, e apenas quero entreter as pessoas.

 

Lorpa: é acusado disso?

Há quem me diga que sou simples. Nunca me interessei pela complexidade. Gosto de coisas singelas. Acho o mundo um sítio maravilhoso, as crianças são maravilhosas, as mulheres são maravilhosas, Portugal é um sítio maravilhoso. Tenho a sorte e o privilégio de viver num dos sítios mais bonitos do mundo. E permita-me que lhe diga que a menina é muito bonita.

 

Um palavrãozito, nas suas canções, existe?

Sabe o que é? Tenho pessoas que me escrevem as letras, e às vezes sou obrigado a cantar aquilo. Não quer dizer que simpatize com esse tipo de utilização da língua portuguesa, embora entenda que exista essa tradição, desde a poesia medieval galaico-portuguesa, passando pelo Barbosa du Bocage. 

 

Quem é que escreve as letras?

As letras são do meu irmão, Lello Minsk. Eu sou só um cantor romântico. Já lhe disse que a menina é muito bonita? O Lello Mickey, acho-o repugnante!, é uma pessoa sem sentido moral, um bêbedo convulsivo. Tudo o que de mau aconteceu ao mundo, a partir de Maio de 1978, é de certa maneira encarnado nesse… Chama-lhe pessoa; não sei se é uma pessoa.

 

Antes de falarmos do Lello Minsk…

Ele é Minsk, mas às vezes gosta que lhe chamem Lello Mickey.

 

A idade mental dele não é a do Rato Mickey, ou é?

Não sei se o Rato Mickey tem uma idade mental. A idade mental do Rato Mickey é a idade mental de quem lê o Rato Mickey. E preferia não falar do meu irmão, se não se importa.

 

Têm uma relação assim tão atribulada? Temos aqui um Caim e um Abel?

Vivo num mundo maravilhoso e não me interessam as pessoas que vivem fora desse mundo. Pus uma cruz em cima delas. Ou as pessoas são maravilhosas e está tudo bem, ou se não são maravilhosas, com licença, tenho mais que fazer. Já tenho uma certa idade, já tive os meus sarilhos e neste momento gosto de cantar em bailes de debutantes e coisas assim.

 

Nunca fica com vontade de espreitar por baixo das saias das meninas?

Com certeza que também já fui jovem, e para dizer a verdade a beleza da mulher portuguesa é uma coisa que não pára de me confundir.

 

E uma trafulhice, nunca lhe passou pela cabeça?

Essas pessoas que pensam em trafulhices deviam emigrar para outros países. Acredito que as pessoas de bem devem entender-se e que o povo português é essencialmente gente trabalhadora e honesta.

 

Não reagiu quando o provoquei, querendo saber se estes dois irmãos tiveram uma contenda séria. Se se odeiam como Abel e Caim.

É um exemplo bíblico muito limitado, mas é um símbolo daquilo que existe de pior no ser humano, que é a luta fratricida. Quase todas as lutas são fratricidas, menos aquelas que não o são. Nunca entrei pela via da guerra. Sou diplomático a resolver as questões. O meu irmão: não falo com ele nem hei-de lutar com ele; quando muito contrato um tipo para lhe dar uma tareia.

 

Assim não suja as mãos.

Não, lavo as mãos, mesmo, como Pôncio. Ele é mais novo. Quando éramos novos talvez eu lhe tenha dado carolos a mais e arrependo-me de o ter feito. Mas agora é um pouco tarde. Ele nunca ultrapassou o facto de a mamã gostar mais de mim. Sempre foi um rebelde e eu sempre fui o atinado.

 

Você nunca ultrapassou o facto de ele se divertir mais.

Não sei se ele se diverte mais. Para começar acho que ele se droga e devia fazer uma desintoxicação.

 

Que tipo de substâncias tóxicas é que ele ingere?

Sei lá!, droga.

 

Mas drogas há muitas. Até as mães tomam drogas em forma de comprimidos para dormir e calmantes.

Parece que sim, ouvi dizer. Tínhamos na nossa família uma senhora que tomava comprimidos, mas eram receitados pelo médico.

 

Cante-me uma música que seja a preferida do Elvis Ramalho.

Uma original? ”Portugal, terra maravilhosa” [canta], “Portugal, terra maravilhosa, terra do bagaço e da sardinha, de Guimarães, de Vila Viçosa, do Patilhas e do Ventoinha. Portugal, terra de cães vadios, terra de meus pais e meus avós, courela de primos e de tios, de marrecos e de Bijagós”.

 

É um bocado palerma, desculpe-me o insulto.

É, mas sabe que a palermice é muito saudável e põe as pessoas mais alegres. O grande defeito do mundo contemporâneo é que as pessoas são demasiado sérias, demasiado negras. Essa negritude, não no sentido africanista do termo, é como a anedota do sonho que tem um pontinho vermelho do lado esquerdo. Conhece?

 

Qual é a canção mais odiosa do seu irmão, Lello Minsk?

São todas más. Oh, meu Deus, prefiro nem cantar. Há uma que detesto que se chama “Canção conjugal”.

 

Como é?

Já não me lembro. E há outra: “Ó cona, a quanto obrigas”, que acho lamentável. Manifesta uma revolta da parte dele, talvez tenha tido falta de carinho. Ele nunca foi um bebé muito bonito, sabe? Ao contrário da minha pessoa. Não é para me gabar, mas ganhei o concurso de Bebé Nestlé, em 1952.

 

A canção.

“Ó cona, a quanto obrigas, fazes sangue às raparigas” – veja lá. E depois tem um refrão: “Cona, tu és a nossa mãe, cona, de ti a vida vem, estrela peregrina, perfumada e purpurina, amas analfabeto e doutor, patrão, tropa ou ardina, tu és a nossa sina, ó fértil divindade do amor”. Um disparate total, um tarado.

 

A dita, nunca o obrigou a nada? Como é que lhe chama?

Nunca a trato pelo nome. Acredito que a mulher portuguesa, aquilo que traz de mais secreto e mais belo em si, não é susceptível de ser expresso com uma palavra. Essa palavra é de ouro e morre na boca de quem a pronuncia.

 

Você andou na escola, e teve boas notas a português.

Estive num orfanato.

 

Num orfanato? O que é que aconteceu aos seus pais?

Ai não lhe disse? Morreram muito novos. A minha mãe morreu com 15 anos.

 

E teve-o com 13?

Começou a ter filhos com 11. Desconfio que alguns dos meus irmãos são meios-irmãos, senão não era possível haver tantos. Olhe, não sei, prefiro não pensar nisso. Quando começo a ver que as coisas são um bocado complicadas, prefiro não pensar.

 

Quem é que está a pedalar na bosta há 26 anos?

O meu irmão. Ele é que fez um concerto com esse nome. Devido ao tipo de vida que leva também não vai demorar muito tempo a bater a bota. Tem menos dez anos do que eu e parece dez anos mais velho.

 

Tem um bocadinho de inveja do seu irmão, não?

Nada, nada, zero, tenho pena.

 

Imagine que isto era uma daquelas peças de teatro foleiras, em que estamos a falar de uma pessoa e ela bate à porta… Essa pessoa é o Lello Minsk.

Posso ir à casa de banho e chamo-o, ele está ali na sala de espera. (De qualquer maneira tenho mesmo de ir à casa de banho). Não se importa?

 

[Levanta-se e sai]

 

O Lello faz-se acompanhar da stripper Nelita Bate-me Uma, da Domadora de Sardinhas Menstruadas, da Barracuda Transmontana. É verdade?

Não sei onde é que foi buscar essa informação, mas há aí uma confusão qualquer, é tudo completamente falso. Como diz Bibi, não deve ser a minha pessoa.

 

Quem é Bibi?

Bibi é um homem que está preso no escândalo da Casa Pia. A primeira coisa que ouvi o homem dizer na televisão foi isso; gostei dessa frase. Toco com os Ena Pá 2000. Sim, temos de vez em quando algumas raparigas, dançarinas exóticas, que se envolvem no nosso número. Temos um número bastante interessante, sexo, drogas e rock and roll.

 

Vamos hierarquizar: do que é que gosta mais?

Nem só de drogas vive o homem! Há também o sexo e o rock and roll. É indiferente, é conforme. Também gosto de comer, tipo feijoada e chili com carne, e grandes costeletas de vaca.

 

Abrimos esta caixa?

Qual caixa? Não vivo dentro de caixas.

 

Lello Minsk, também chamado de Lello Marmelo. Marmelo é por causa da marmelada?

Eu, Lello, gosto de dar a mim próprio vários nomes, porquê? Porque me chateia ter só um. É só isso, mais nada. Marmelo é apenas porque rima com Lello.

 

Pensei que fosse o gosto pela marmelada.

Não gosto especialmente de marmelada, também gosto de geleia.

 

Não estou a falar dessa, claro.

Sou muito estúpido. Minsk era o grito do amor em Campo de Ourique, em 1977 ou 1979. Era o grito que se dava quando se via uma tipa muita boa. E é difícil. O Minsk tem de ser gritado a 50 oitavas acima do Ré de porco, que é bastante grave como sabe.

[exemplifica] É um grito mais de leitão. Porque é que não me faz perguntas simples?

 

Do que é que quer falar?

Sinto-me bem com a minha vida, gosto daquilo que faço. De resto não tenho grande coisa a dizer. Sou uma pessoa bastante vazia.

 

As pessoas pensam que é um malcriadão, um bebedolas que diz palavrões.

Sou apenas um personagem grosseiro, obsceno, algo aviltante. Tenho orgulho em ser um bruto “cervejudo”. Bebo cerveja, bebo tudo. Criámos os Ena Pá 2000 de uma maneira muito esquisita. A Virgem Maria apareceu a todos os membros, não me lembro quando, a dizer que tínhamos de formar um grupo de rock. Acordámos ao mesmo tempo, como se tivéssemos estado num transe hipnótico profundo, dirigimo-nos para a frente da Igreja do Santo Condestável, aqui em Campo de Ourique, com as guitarras, e começámos a fazer música.

 

De adoração à Nossa Senhora, de agradecimento pelo chamamento?

De adoração, não. Esta não é a principal profissão de Nossa Senhora. Ela tem a profissão de ser Nossa Senhora. Mas além disso também é uma pessoa que gosta de música, e como tal “interviu”.

 

“Interviu”? Você dá mostras de ler Camilo Pessanha e diz “interviu”?

“Interview” é uma revista muito boa. Não sei se ainda existe. Intervir, “interviu”?

 

Interveio.

Interveio-se, pronto, é isso mesmo.

 

Nossa Senhora interveio.

Interveio-se. “Interviu-se”.

 

Os católicos, nunca lhe cospem em cima, nunca lhe atiram pedras por dizer essas coisas sobre Nossa Senhora?

Sim e não. Falo sempre da Nossa Senhora com algum respeito. O que os surfistas chamam “respect”. Os católicos são normalmente as pessoas mais obscenas e que mais simpatizam com este tipo de linguagem.

 

Às escondidas.

Sim, às escondidas ou quando bebem um copo. Existem dois tipos de pessoas: as que existem de dia e as que existem à noite. As que existem à noite são o contrário das que existem de dia. Vamos lá ver se explico isto. Há um filme do Chaplin em que há um bêbedo milionário que ajuda o Charlot; bebem copos e divertem-se à grande, mas no outro dia de manhã, quando está sóbrio, não o reconhece. As pessoas são assim. E também não se reconhecem a si próprias quando estão bêbedas. Inclusivamente há conflitos interiores dentro das pessoas. Nós estamos a tentar espremer isso tudo como se fosse uma almôndega. A nossa sociedade precisa de nós.

 

“Nós”, Ena Pá 2000?

Sim, sim, falo em nome do grupo, até porque os outros estão fechados num armário e normalmente só se abre esse armário quando há um concerto.

 

Estão fechados na caixa?

Sim, uma caixa muito grande em forma de armário. Mas é um armário com televisão, com várias coisas interessantes lá dentro.

 

É o maestro desse grupo?

Tento organizar aquilo, mas nem sempre consigo.

 

Você é sempre quem manda?

Não sei. Lá por organizar não quer dizer que mande. Por exemplo, temos um Primeiro-Ministro, não é? Ele tenta organizar, mas será que é ele que manda?

 

Quem é que manda?

Segundo o Jerónimo de Sousa, é o poder económico. Se perguntar a outros políticos, dirão outra coisa qualquer.

 

O João Pereira Coutinho, o colunista, também diz que manda quem tiver o livro de cheques.

É a mesma coisa, nisso estão todos de acordo.

 

Sendo que o João Pereira Coutinho é de direita, e o camarada Jerónimo…

É de direita também. São todos de direita. Ou são todos republicanos, ainda não percebi.

 

Eu ainda não percebi se os Irmãos Catita se dão bem com os Ena Pá 2000.

Nós já mandámos esses todos para o hospital. Quem está nos Irmãos Catita é o Elvis. Tenho agora um grupo chamado 4444, de rock sinfónico.

 

Já convidaram o José Cid e o Tozé Brito para o grupo?

Não, foleirada não queremos, obrigado. Somos um grupo dos anos 70, mas não somos foleiros. O José Cid fez umas coisas boas quando fez rock sinfónico, mas depois começou a fazer música comercial, e o Tozé Brito também.

 

O José Cid é melhor do que o Elton John.

Ai é, porquê?

 

Porque o José Cid o disse. E porque eu acho que toda a gente é melhor do que o Elton John.

Se você o diz, quem sou eu? Preferia não falar de colegas, embora colegas sejam as putas. Somos todos umas putas, a verdade é essa.

 

Quando precisa, vai às putas? Tem uma mulher, várias mulheres? Como é que resolve essa parte?

Todos nós, portugueses, vamos às putas de vez em quando. Por alguma razão elas existem. É mais uma daquelas coisas que tentamos pôr debaixo da cama mas que aparecem, sobretudo com uns copitos. E é uma maneira fácil de resolver os problemas conjugais. É mais barato, moralmente, arranjar uma prostituta do que uma amante. Uma amante tem direitos. Ao passo que uma profissional…

 

Dá menos trabalho, custa menos dinheiro?

De maneira que as profissionais existem para alguma coisa e infelizmente não são dignificadas como deviam ser. Acho que também devia haver Mães profissionais, assim como há prostitutas. Há uma agência na Alemanha que tem pessoas que fazem de conta que são Mães para homens de negócios. Prostitutas sentimentais, não sexuais. São amas-de-leite, no fundo.

 

Só que em vez de dar leite, dão sentimentos.

Também podem dar leite, mas é mais caro.

 

Viu esta notícia nesse jornal?

Sim, fui eu que a fiz. Tenho um pequeno fanzine, feito em fotocópias. Chama-se “O escarro ilustrado”. A minha ideia é que vivemos num país livre e temos que experimentar até que ponto é que é livre.

 

Nunca apanhou pela frente Manuela Ferreira Leite, que diz que a liberdade de expressão está ameaçada neste país?

Portanto, continuamos a falar em leite... Ela tem razão, ou então não tem, ou tem mais ou menos. Isto é, não compreendo porque razão algum governante, neste tipo de estado democrático em que vivemos, se há-de chatear minimamente com qualquer afirmação, por mais irresponsável e atrasada mental que seja, da parte da imprensa ou da televisão.

 

Tem políticos na audiência dos seus concertos. Eles abordam-no? Outros políticos que não o Candidato Vieira.

Não directamente. Mas já fiz algumas campanhas para o “Dr.” António Guterres, tocámos em alguns comícios do partido socialista, aqui há 10 anos. Também já toquei para o Dr. Alberto João Jardim. Tenho imenso respeito pelo Candidato Vieira. Sei que representa interesses obscuros, mas quem é que não representa interesses obscuros? No fundo, será que a menina não representa os seus interesses obscuros de vez em quando? Se não representa talvez devesse representar. O que é que nós representamos? O que é representar?

 

Não tem filhos, Lello?

Tive oito, mas morreram todos.

 

Que pena. Morreram de quê?

Foram atropelados por um camião escolar. Eram gémeos. É verdade, sémen dos meus testículos. Adeus. Por outro lado fiquei aliviado, era uma certa carga que tinha. Oito gémeos, mesmo com amas-de-leite, é complicado. E a mãe morreu com eles, também estava a atravessar a rua.

 

Ficou livre?

Fiquei livre de quê? O que é a liberdade? O que é a liberdade, diria o meu irmão, sem repressão? Nada. O que é a repressão sem liberdade? Nada.

 

Isso já é palavreado do Candidato Vieira. Aprendeu com ele?

Antes de mais nada, Anabela, gostaria de lhe desejar uma boa tarde e dizer que gosto muito de si e respeito muito o seu trabalho. Não sou um homem, sou um político, sou uma máquina de fazer propaganda, e sou sobretudo uma pessoa que acredita.

 

Acredita em quê?

Acredito em si, Anabela, assim como acredito em todos os portugueses e portuguesas. Acredito que vocês são capazes de fazer deste país um país melhor. Vocês, com a minha ajuda, com a minha modesta contribuição.

 

Conte-me o que é que o faz ter tanta confiança em si e achar que as pessoas podem votar em si.

Porque vivemos num país livre, em primeiro lugar. Dois, porque sou o melhor candidato. Três, porque os portugueses têm uma confiança muito grande em mim. Sabem do que sou capaz, sabem que neste momento sou a única alternativa à política tradicional. Sabem que tanto em Portugal como ao nível da política internacional vivemos num estado de absurdo, e apenas um discurso mais absurdo, ou aparentemente absurdo, poderá salvar a nação. Tudo pela nação, nada contra a nação, eu sou a nação, eu sou Portugal. A minha vocação é dar às pessoas o que elas querem. Sou um servidor público, não quero nada para mim.

 

O que acaba de dizer é o maior pacote de lugares comuns que ouvi nos últimos tempos.

Fico muito agradecido. Não sei se leu o meu programa. O meu programa é muito simples, tem 320 pontos essenciais, e cada um desses pontos tem 10 pontos acessórios, o que multiplica por 10 as possibilidades. Tem este livro? Vou-lhe dar este livro? Cada português devia ter um livro destes em sua casa.

 

Estava mais magro na capa do livro Vieira, Só Desisto Se For Eleito.

É Photoshop. O dente a mais também é Photoshop.

 

“Quero uma democracia toda aberta”?

É a chamada inclusão.

 

“A sua vida vai mudar este livro. Dedico este livro a todos os portugueses de alma e coração e a todas as portuguesas aquele abraço”.

No fundo sou também um ser humano, também tenho sentimentos.

 

O que é isto na página 36, “Pamela, a secretária traidora”?

Ela é capaz de me ter traído. Este livro tem um pouco de tudo. Esta é a parte mais importante, são as ideias. Essas, são umas crónicas que escrevi para uns jornais de Economia. Isto é o meu “Visionário programa político e social para um Portugal de sonho”.

 

Aquele onde Elvis Ramalho acha que vive.

“A arte em Portugal deve estar sempre 20 anos atrasada” – é uma máxima. “O burro deve ser um animal sagrado para o português, como o Burro de Barcelos”. Tive várias ideias originais, biotecnologias, história, futebol, sexo.

 

O que é que o Candidato Vieira tem a dizer sobre o sexo?

Temos uma educação sexual forçada para a terceira idade.

 

Porquê, acha que é preciso?

O sexo visa o prazer e o prazer é soberano. Temos uma conferência na universidade do Pico que vai falar sobre isso. Vamos promover as variedades de sexo regional. Cada localidade portuguesa, assim como tem o seu traje folclórico, também tem o seu estilo sexual. Temos o “ Broche ó da Guarda”, “Broche à Nacional nº 1”, “Minete à transmontana”, “Sexo com leitões”, na Bairrada, “Sexo castiço”, “Sexo em coro alentejano”. Se calhar vamos abolir as provas orais, este ano.

 

Essas coisas ocorrem-lhe quando está sob o efeito do ópio?

Só bebo água do Luso. Quer um copo de água? Neste momento o que me está a custar é não me candidatar às próximas presidenciais. Não vejo que estejam reunidas as condições e a minha fé na democracia está a vacilar. Não sei se um levantamento militar, um pronunciamento militar, não seria mais favorável à nossa saúde económica, e mesmo à nossa saúde sexual.

 

Não me diga que tenho um protofascista à minha frente… 

Digamos que todos os meios são legítimos para alcançar o poder. Se a democracia está de tal forma viciada e não podemos atingir o poder pela via democrática, devemos tentar outras formas. Devemos levar a bom cabo as nossas ambições.

 

Quais são as suas ambições?

Quero ser presidente absoluto de Portugal. Vou só beber um bocado de água.

 

Tem preocupação em relação às conversas que tem ao telemóvel? Acha que um dia as suas conversas mais íntimas podem aparecer transcritas nos jornais?

Já foram. O facto é que estou sob escuta. As pessoas utilizam aquilo que ouvem nas minhas conversas telefónicas para as atribuir a outros políticos, que me copiam sem qualquer tipo de pudor. Estou a ser roubado e vou falar com a SPA para saber se as escutas telefónicas também podem ser objecto de protecção.

 

Relate uma conversa que tenha sido apropriada por algum político.

Todas. Principalmente algumas. Tudo aquilo que neste momento tem vindo a lume sobre o Primeiro-Ministro, sei que não é sobre ele, porque as escutas foram feitas à minha pessoa e apropriadas pelo Primeiro-Ministro e pelas pessoas que rodeiam o Primeiro-Ministro. Mesmo o caso do Freeport não envolve o Primeiro-Ministro, envolve-me a mim. Eu é que sou a pessoa corrupta! Aliás, fiz tudo: corrompi-me a mim próprio, paguei-me a mim próprio. As pessoas precisam de movimentações. Os deslizes judiciários, ilegais, estão a ser utilizados para distrair o povo.

 

Distrair de quê?

Da realidade. A realidade é que só há uma força neste momento que pode melhorar as condições de vida neste país, que é o Vieira e o “Vieirismo” puro e duro. Tenho ideias muito boas para Portugal. Por exemplo, mudar o nome da capital para “Vieirópolis”. O Santana queria fazer o mesmo com “Santanópolis”, ou quase o fez, na Figueira da Foz.

 

Gosta de fazer campanhas eleitorais, não desiste. Porque é que faz isso?

O meu sangue bombeia a uma maior velocidade quando estou na estrada, em comício, é verdade.

 

Isso é porque é adorado.

Não gosto de dizer isto, mas sou idolatrado pelas multidões. Gostaria aqui de dizer também: as eleições nunca foram legítimas (ninguém sabe isto), e os resultados, a percentagem ridícula que me deram, é manifestamente falsa. Fui roubado!

 

Quantas pessoas oficialmente votaram em si?

Oficialmente, nenhuma. Mas sei de fonte segura que dois milhões de portugueses votaram em mim.

 

Se não votaram, gostariam de votar.

Aí está. Porque não um sistema de voto mais simples para os portugueses? Um sistema de voto em que basta uma pessoa pensar para que o voto… O voto pela internet tem de ser imediatamente utilizado. Temos de acabar com os formalismos legais, com toda a papelada que é necessária para legitimar um candidato. 7500 assinaturas é ridículo, porque pressupõe que existe um aparelho, um secretariado. Essa burocracia está ao serviço dos partidos, nitidamente. O homem das salsichas Nobre conseguiu-o, com certeza.

 

O homem das salsichas Nobre?

O senhor António Nobre é um exemplo.

 

É Fernando.

Esse mesmo, o Manuel Nobre. Acho muito bem que o Nóbrega tenha conseguido. As pessoas têm de compreender que chegaram ao fim de um ciclo, ao fundo do poço, e que já não há água. Só eu lhes posso dar a chuva. Isto é um ano um bocado especial em termos de pluviosidade, os políticos nunca falam disto, mas está a chover muito.

 

Vi-o num programa de televisão a meter-se com um papagaio; pensou em matá-lo e fazer com ele um arrozinho de papagaio.

Isso é totalmente infundado e falso. É uma afirmação sem pés nem cabeça. Receitas brasileiras, não tenho nada a ver com isso. Com todo o respeito, não estamos a falar dos problemas reais do país. Os portugueses precisam de amor-próprio e de dinheiro. E de satisfação sexual e sentimental nas suas vidas. Isso tudo dá saúde, lá está. A alegria de viver dá saúde. Temos de descobrir os “Brasis”, mas esses “Brasis”, essas terras, estão dentro de nós próprios, e nós podemos encontrá-las. Somos uma nação riquíssima, somos conquistadores. Temos de começar por nos conquistar a nós próprios.

 

Por falar em Brasis, falemos do Orgasmo Carlos, que imagino que conheça.

Orgasmo Carlos é uma pessoa que tem evidentes afinidades com Portugal.

 

É afilhado do Roberto Carlos?

Não, é filho do Roberto e do Erasmo Carlos. É um artista contemporâneo dos PALOP. Tanto é um artista africano, como português, como macaense. É um artista cuja obra universal exprime a sua profunda lusitanidade. E é um homem que tendo feito exposições nos principais museus e galerias da Terra e Marte, escolheu Portugal para viver – o que é, para nós portugueses, muito lisonjeiro.

 

Como é que ele agora se junta à conversa?

Ó Orgasmo, podias fazer o favor de cá chegar?

 

E nisto…

Em primeiro lugar queria pedir desculpa por estar atrasado. Estou a ser seguido na rua. Não é só o Candidato Vieira. Há pessoas que me querem liquidar – pelo menos duas. Existe uma máfia na Art World que quer acabar comigo, talvez por ser o maior artista vivo da actualidade. Vivo, por enquanto. Não sei se saio daqui e sou morto em dois ou três minutos. Estão a apertar o cerco. Ainda bem que estou a falar consigo, porque pode ser a minha última conversa. Não sei se viu as minhas exposições.

 

Não vi as suas exposições. Mas vi as exposições de pessoas que julgo que aprecia, o Manuel João Vieira, o Pedro Proença, o Fernando Brito, o Xana.

Não tem nada a ver. São artistas portugueses da década de 80. Faz parte, marcou uma época, mas estão ultrapassadas. Hoje em dia existem coisas mais importantes. Não digo que a arte deva ser pedagógica, embora a minha arte seja, e seja de certa maneira “explicadista”. A minha obra não se limita ao “explicadismo”. Aquilo que faço é ao mesmo tempo auto-referencial e irradiante. Os raios de comunicação que partem desse sol central, que é a arte de Orgasmo Carlos, espalham-se um pouco em todas as direcções. Não como os tentáculos de um polvo, mas como os raios de um sol que contagia e inebria.

 

Como um orgasmo.

Um orgasmo é um momento.

 

Mas irradia.

Sem dúvida, é uma explosão. E vai tocar em vários pontos importantes. Já ouviu falar no orgasmo permanente? Gostava de ouvir falar? A noção de orgasmo permanente está na base das obras do Orgasmo Carlos; isto é, de mim próprio. E peço imensa desculpa, não consigo deixar de falar de mim próprio na terceira pessoa. Ajuda-me, porque não caibo em mim próprio. Recomendaria aos jovens artistas que olhassem para lá do seu mundo. Hoje em dia qualquer pessoa que pendura um cordel num armazém é um artista plástico. A vanguarda chegou a um extremo, chegou à fronteira do deserto. A vanguarda nunca acaba e a arte nunca deixa, como Saturno, de devorar os seus próprios filhos, e produzir nova arte. O canibalismo é arte, assim como o excremento é arte.

 

Gilbert & George fazem arte com o seu excremento.

Sim, e com algumas tecnologias um pouco mais modernas. O excremento é uma metáfora do corpo humano e do funcionamento do mundo da arte e da transmissão do conhecimento simbólico. Quando falo em irradiação, falo a todos os níveis. Quando, a partir do século XIX, se substituiu a religião oficial pela arte e pela literatura, (estamos a falar de uma elite), houve qualquer coisa que fracassou. Ainda existe um grande vazio na vida das pessoas a partir do momento em que Deus deixa de existir. Não é possível preencher esse vazio com obras de arte de nenhum artista, a não ser com as obras do Orgasmo Carlos. Não por ele ser um artista particularmente xamanista.

 

Particularmente o quê?

“Xamanistíco”. Ele é um xamã lusófono.

 

Xamã com “x”?

Com “sch”.

 

O que é um “schamã”?

É diferente de xamã com “x”. Eu diria mesmo que Orgasmo Carlos, em vez de “sch”, ou com “x”, será um “chamã”. Mesmo tipo “chamon”, porque é português e porque é lusófono. Toda a gente sabe que devemos ir às nossas raízes, porque são elas que nos permitem ser simultaneamente originais…

 

Estou um pouco embrulhada.

…e transcendermos essa originalidade e sermos universais.

 

Tem um discípulo que é um urso.

O Ricardo Rocha. É um jovem talentoso que encontrei nas montanhas, perto da Serra da Estrela. Estava preso a uma árvore e vivia mais ou menos de subterfúgios, pedia esmola. Eu estava a precisar de qualquer coisa de novo. Fui a Basel e não tinha nada. Não tinha um trabalho com profundidade suficiente e que ao mesmo tempo influenciasse as pessoas. Esse urso salvou uma parte da minha carreira. Nas nossas performances eu tocava realejo e o urso recitava de cor todos os textos de Marx. Isso tornou-se uma obra lendária no mundo da arte conceptual. Foi a partir daí que consegui reorganizar a minha carreira. Antes disso pintava velhos pescadores com cachimbo e mulheres nuas com vasos de flores.

 

Na parte das mulheres nuas com vasos de flores, m bocadinho como o Boticcelli?

Não, não, era mesmo muito mau aquilo que fazia.

 

O urso já participou naquela filmagem que fizeram no cemitério, em que havia uma stripper no lugar do morto? (Isto aconteceu.)

Esse filme é importante. Fala-nos da ressurreição, da morte, da vida e do amor. O script é simples: o herói vai ao cemitério colocar uma flor na campa dos pais, os pais ressuscitam, começam imediatamente a fazer amor, ele vai atrás deles, com o urso – aliás, o urso estava à espera na carrinha funerária. Os mortos vão para a carrinha funerária e vão circulando pela cidade de Lisboa enquanto fazem amor, no lugar do morto. Por acaso, o camião deita imenso fumo e essa parte é engraçada. (Depois vamos até à Gulbenkian, a uma exposição de arte moderna.

 

Não vos reconheceram e prenderam-vos.

Não, simplesmente ficaram inanes, e nós continuámos a desempenhar o nosso papel e a nossa performance até ao fim, e saímos sem qualquer problema). Foi um filme relativamente barato.

 

Concorreram ao subsídio?

Isso está viciado. Preferimos fazer as coisas por nós próprios, sem contar com ninguém. Conto com os fundos da Orgasmo Carlos Foundation, ou se quiser, da Colecção Orgasmo Carlos Foundation.

 

O Orgasmos Carlos é um pintor que se considera o maior do mundo, mas é também a cara de uma cooperativa de pessoas?

Não sei do que está a falar. O Orgasmo Carlos tem, é certo, como os anões do Pai Natal, ajudantes. Hoje em dia é raro o artista, o criador de obras de arte contemporânea, que utilize a sua mão nas suas obras; utilizam-se assistentes. O artista é uma espécie de general que fala com os coronéis e os tenentes para desencadear as operações militares.

 

O Orgasmo Carlos alguma vez fez alguma coisa com o urso?

Fez várias performances, e além disso há a história de vida do Orgasmo Carlos. A história, estamos a trabalhar nisso, os meus escritores estão a escrever. Tem uma estrutura parecida com “Assim falava Zaratustra”. Só que tem homens e ursos.

 

Não há relações bestiais?

Quase nenhuma. Mas o urso é pedófilo e de vez em quando anda com um ursinho de peluche mais pequeno que ele. O urso tem dois metros, anda com um ursinho para aí com 50 centímetros. Além de que ele é castanho-escuro e o outro é cinzento claro, quase azul. Eles viviam comigo numa vivenda no Algarve e cansei-me de ver aquilo à minha frente. “Meu amigo, se é para isso que estás aqui, se é esse o teu tipo de vida…”. Dei-lhe tudo, ensinei-lhe tudo, e ele começou a dar entrevistas e a falar da sua obra como se não tivesse havido qualquer influência da minha pessoa no seu trabalho.

 

Que relação existe entre estas pessoas com quem tenho vindo a falar e o Manuel João Vieira?

Nada. São exercícios de matemática, de xadrez, de álgebra, exercícios de natação.

 

Eles aparecem ao longo do dia do Manuel João Vieira, quando está a fazer uma torrada ou quando vai à fisioterapia?

Um dia é um holocausto, uma torrada é uma torrada. Eles desaparecem, aparecem. Às vezes tenho baratas em casa, não as tenho visto ultimamente. As baratas, as formigas, aparecem e desaparecem; essas pessoas também.

 

Os seus vizinhos, quando o encontram na rua, estão à espera de encontrar o Manuel João Vieira?

Não tenho vizinhos, vivo num hospital psiquiátrico há 20 anos. Estou a tentar sair daqui.

 

Agora estou a falar com quem?

Não sei.

 

Se quiser falar com o Manuel João Vieira, posso?

Olá Anabela, sou eu, está boa? Não tenho assim grande coisa para dizer, sou uma pessoa normal, vivo aqui neste sítio.

 

É verdade que não tem grande graça enquanto Manuel João Vieira?

É, lamento.

 

Dados biográficos do Manuel João Vieira.

Nasci em 1962, frequentei o Liceu Pedro Nunes e a Escola de Belas Artes, e outros sítios. Sou sócio minoritário de um espaço nocturno [Maxime]. A única coisa que gosto mesmo de fazer é pintar, desenhar. Sou um tipo de Campo de Ourique como outro qualquer, estou cá há 44 anos. Gosto de beber uns copos ao fim-de-semana, como toda a gente, e toco ao mesmo tempo. Como uns amigos que se encontram numa garagem para ensaiar. A única diferença é que gosto de ensaiar ao vivo porque sempre ganho algum, é mais prático.

 

Nas Belas Artes encontrou um grupo de amigos e formaram os Homeostéticos. Seria outro se não tivesse encontrado aquelas pessoas?

Talvez esse seja um ponto de viragem. Na verdade queria fazer banda desenhada, e estive a trabalhar nisso até entrar nas Belas Artes. O meu pai, sendo pintor [João Vieira], encorajou-me e tentou explicar-me as vantagens da arte com “A” grande. Mas eu estava obstinado em relação à banda desenhada. Depois houve uma transição entre a banda desenhada e a pintura, que aconteceu naturalmente e com a influência desse grupo. Foi bastante interessante, mas já foi há muito tempo.

 

Quando se vê o documentário do Bruno de Almeida sobre os Homeostéticos, o que se percebe é que se divertiram à grande.

Sim, mas tínhamos idade para isso. Uma pessoa pode divertir-se em qualquer idade. O Pai Natal também se diverte, o Pai Natal tem umas amiguinhas…

 

Publicado originalmente no Público. 

Uma Nêspera no Cu

09.01.24

Pertence ao grupo de um milhão e duzentas mil pessoas que ouviram Uma Nêspera no Cu? Se sim, sabe que o podcast de Bruno Nogueira, Filipe Melo e Nuno Markl é um exercício de liberdade a que também se pode chamar uma grande maluqueira. Se não, é melhor saber desde já que no programa (disponível apenas na Internet), como na entrevista, eles estão sem filtro. Dizem palavrão do piorio – como se não tivessem um microfone à frente. Podemos teorizar e pensar nos limites do humor, ou mesmo no para que serve o humor. Mas isso resulta numa certa conversa de chacha que ilude o facto de eles gostarem de transgredir. E nós de transgredir com eles. Deve ser por isso que dois meses de Nêspera foi suficiente para criar um fenómeno.

 

Se há ocasião em que a palavra “destravado” se justifica, é esta. Os humoristas Bruno Nogueira e Nuno Markl e o pianista Filipe Melo não têm travão. Dizem as coisas que as pessoas não devem dizer e que, na prática, todas dizem mais ou menos. Esta entrevista, como o programa Uma Nêspera no Cu, passa-se num mundo onde a estupidez tem lugar. Um mundo onde é proibido proibir e os limites são quase nenhuns ou nenhuns mesmo. Um mundo onde se volta à criança que folheia uma revista pornográfica (que sacou, quiçá, na mesinha de cabeceira dos pais) e descobre que não é a única a fazê-lo.

Eles são amigos, trabalham episodicamente juntos. O espectáculo que os juntou, Deixem o Pimba em Paz, de Bruno Nogueira, volta ao Teatro São Luiz, em Lisboa, de 3 a 12 de Julho, de fato de gala e Orquestra Metropolitana. Os arranjos são de Filipe Melo e de Mário Laginha. Depois de lerem a entrevista vão poder imaginar as coisas que dizem na carrinha, nos camarins, a maluqueira que não pretende salvar o mundo mas que os diverte.

Última advertência: nas próximas páginas dizem-se coisas impensáveis. É melhor ir a outro balcão se não for gostar de gelado de nêspera.

 

 

Vamos começar com um dilema? Como fazem no vosso programa. O meu é: não poder rir nunca mais na vida ou viver para todo o sempre, não com uma nêspera, mas com uma nespereira no cu.

Nuno Markl – Espera: mas com as raízes metidas dentro? A folhagem cá fora? Isso é decisivo.

 

A folhagem para fora.

Bruno – Raiz por dentro? Nunca mais rir. Escolho nunca mais rir! Porque as raízes vão a sítios que ninguém imagina.

Markl – O não poder rir: era uma coisa biológica, ou vias uma coisa que faz rir e tinhas de [faz o som de engolir o riso]?

Bruno – Markl, não estás a perceber: a alternativa era teres uma nespereira no cu.

Markl – Tens razão. Eu não queria uma nespereira no cu.

Bruno – Mas o Filipe queria.

Filipe Melo – Estou a pensar que é possível viver sem rir. Olha o nosso presidente da República... E se ríssemos por acidente, nascia uma nespereira? Temos unanimidade: ninguém se ria mais.

Markl – Imagina, estás no cinema, a ver um filme que é cómico, começas-te a rir e nasce-te uma nespereira... E as pessoas: “Sai da frente”!

 

Cómicos?, pessoas que vivem do humor, que se fizeram no humor, escolhem não rir mais? Como é que podem passar sem rir?

Bruno – É difícil, mas a outra hipótese é viver com uma nespereira no cu. Uma nêspera, já é o que é. Ele [Filipe] é da música. Aguentava melhor do que nós.

Filipe – Ou não.

 

Estamos no mês das nêsperas. As nespereiras estão carregadas. Supunham que eu ia trazer uma nêspera (ou da família da nêspera) para começar a entrevista?

Markl – Não. Mas isto faz de ti uma séria candidata a estar no Uma Nêspera do Cu. No programa, já percebemos que sempre que uma das opções é meter alguma coisa no rabo, tentamos evitar essa.

 

Isso é uma piada homofóbica?

Todos – Não!

Bruno – Tenho muito respeito.

Markl – Eu, supositórios, já meti. Em que é que estão a pensar? Um supositório age mais depressa do que um comprimido (para certas coisas).

Filipe – Alka Seltzer, usas?

Markl – Já não uso supositórios há uns 20 anos. Ou 30.

 

Os dilemas de que toda a gente foge e que estão relacionados com ter alguma coisa no rabo: porquê?

Bruno – O título do programa surge de um dilema que envolvia, justamente, meter uma nêspera no cu. Há outros que envolvem inserir um pau de incenso. Nós fazemos isto em bolha. Não tínhamos noção da dimensão que ia ter. A única ideia era divertirmo-nos. Às vezes visamos pessoas, nos dilemas, com quem, depois, nos cruzamos. E é um bocadinho desagradável.

 

Já se cruzaram com a Júlia Pinheiro ou a Teresa Guilherme, com quem se metem num dos dilemas?

Markl – Já me cruzei com a Teresa Guilherme. Não toquei no assunto. Fiquei com a sensação de que ela não tinha ouvido.

Bruno – Penso que agora vai ouvir...

Markl – É interessante ver as reacções das pessoas. O Guilherme Leite teve grande fair play. O Fernando Pereira: nós achávamos que tinha tido grande fair play.

 

Convém esclarecer qual era o dilema que envolvia Fernando Pereira, o imitador.

Filipe – Esgalhar uma ao Fernando Pereira (tinhas direito a estar com um fato e uma máscara de ski). Contacto meio astronauta. Ou... Qual era a outra?

Markl – Não sei. O Fernando Pereira escreveu um texto engraçado no Facebook, que partilhámos. Mas estive com ele no 5 para a Meia-Noite, fui agradecer-lhe o fair play que tinha tido perante o nosso dilema e ele, sempre a sorrir, disse: “Gosto muito do trabalho dos humoristas, e respeito. Vocês têm um grande poder. Entristece-me quando o usam para a estupidez”.

Bruno – Respondeste bem.

Markl – “Ó Fernando, a estupidez às vezes também é precisa.” Acredito mesmo nisto.

 

Acreditas mesmo que a estupidez também é precisa?

Markl – Acho que sim.

Filipe – Senão não existia o Lord of the Voices, o espectáculo [de Fernando Pereira].

Markl – Filipe Melo o disse. Há muita gente que gosta de ouvir a Nêspera e comenta: “Aquilo é só cocó e xixi, rabo e não sei o quê. Podiam meter alguma crítica social”. O que eu respondo: “Não, não. O que é giro na Nêspera é ser infantil, estúpido, e sacar esse lado às pessoas”. Tipo ao [António] Zambujo e ao Rodrigo Guedes de Carvalho.

 

Como é que a Nêspera surgiu? A sementinha, é qual?

Filipe – Eu não tenho a pressão de vir do humor, não é?

 

És um respeitado pianista.

Filipe – Não propriamente respeitado. Sou um pianista. Na verdade, sou um erro de casting. Mas está tudo bem. A razão pela qual estou aqui é esta: nós estivemos a fazer um espectáculo, que foi uma ideia do Bruno, chamado Deixem o Pimba em Paz. O Nuno Markl tinha no espectáculo um número de strip-tease. Vinha connosco para a estrada no papel de striper.

Markl – Vamos deixar isto assim, sem mais explicações.

 

Eu vi. E não eras o George Clooney.

Markl – Não.

Filipe – As nossas conversas de carrinha eram dilemas destes. Foi o Nuno Markl que disse: “Isto daria um óptimo podcast”.

 

Explica aos info-excluídos o que é um podcast.

Bruno – Um podcast é uma emissão áudio de um programa que só é emitido na Internet. Descarregas e ouves na Internet.

Filipe – Tenho a impressão que nenhum de nós acreditava que isto dava um óptimo podcast. Estávamos cépticos.

Bruno – O “preferias isto ou aquilo”, tem décadas. É daqueles jogos que toda a gente joga. Não tem autoria, que se conheça, e ainda que alguns colegas nossos se tentem apropriar dela. Isto não tinha nada de original. E funcionava na carrinha. No nosso microcosmos. Depois o Markl insistiu e experimentámos. Correu bem. Acho que tem a ver com isso: não tem um objectivo. Não pretende salvar o mundo ou mudar o país. É desprendido de tudo.

 

É divertir o pagode?

Bruno – É para nos divertir a nós, acima de tudo.

Filipe – Sobretudo no meio em que o Bruno e o Markl se movimentam, o humor e a exposição mediática estão muito ligados a dinheiro. Nós, com este podcast, não ganhamos um tostão. Isso deu-nos uma liberdade... Eu sempre tive essa liberdade, mas eles, talvez por estarem mais ligados ao mainstream, não podem utilizar palavras ou expressões como arraial de cona. [gargalhada geral] Ou comedor de esmegma.

 

Onde é que foram descobrir essas expressões?

Bruno – Foi num almoço. Isto que o Filipe disse é muito importante. Nós não temos nenhuma marca associada.

Markl – Há uma sede de gozo.

Bruno – É-nos cedido o estúdio muito gentilmente pela TSF. A liberdade é total porque não temos de prestar contas a ninguém.

Markl – Houve algumas empresas que consideraram a possibilidade de patrocinar isto. E desistiram.

Bruno – Só pelo título.

Markl – Se algum dia tivermos um patrocínio, a nossa preocupação é pagar aquele que de nós tem mais trabalho, o João Pombeiro que faz as animações. Dá um trabalho imenso. Há uma versão só áudio no iTunes. As animações [visíveis na versão do Youtube] deram um certo carisma aos episódios.

Filipe – Os estudos e os interesses do João Pombeiro têm muito a ver com as artes plásticas. Embora pareçam umas animações absurdas, são feitas por uma pessoa que tem um cuidado extremo com aquilo, com o pormenor.

 

Não responderam: o comedor vem de onde?

Bruno – Comedor de esmegma. Tínhamos recebido algumas queixas no Facebook por causa do tipo de linguagem que usamos. Então decidimos fazer um aviso antes do episódio seguinte a dizer que não utilizaríamos termos tais como...

Markl – Foi uma lista! O processo de criação dessa lista foi fascinante. Enquanto almoçávamos num restaurante japonês, na Expo.

 

Fino.

Bruno – Finíssimo.

Markl – Estamos a comer sushi e a sugerir coisas porquíssimas.

 

São, para reproduzir as vossas palavras, reles, doentios, e usam palavreado do feio. Usam-no normalmente?

Markl – Sou bastante regrado a dizer palavrões. O que faz com que as pessoas fiquem muito surpreendidas. “Não sabia que o Markl dizia...”. Mas eles são porcos, não é?

Bruno – Eu uso muito. Alivia-me bastante.

Markl – O Filipe consegue conter-se até ao momento em que diz uma caralhada desumana. Mas és um tipo pacato.

Filipe – Na minha auto-análise, diria que digo muitos palavrões. O Bruno claramente ganha, na liberdade de utilização.

Bruno – É muito raro usar em trabalho. Na vida pessoal, dá-me prazer.

 

Vamos lá ver: toda a gente (ou quase) diz palavrões? Homens e mulheres, de todas as idades, de todas as classes sociais. Temos a ideia de que há palavras que não se dizem. Ensinamos às crianças que não se dizem asneiras. Logo, palavrão é asneira.

Bruno – Acho que toda a gente diz.

Markl – Há sempre uma altura em que sai qualquer coisa. Nem que seja quando uma pessoa se queima numa torradeira. Uma vez disse: “Foda-se” em frente ao meu filho. Logo a seguir: “Ah, atenção, isto não se diz”. Nesse mesmo dia, ele ia a deitar-se, deu uma cabeçada na cama e disse: “Foda-se”. Fez um cálculo: “Se há dor envolvida, pode-se dizer isto”.

Bruno – O palavrão não tem de ser só associado a situações de tensão. Na alegria também deve existir o palavrão. Conheces o texto do [Miguel] Esteves Cardoso sobre os palavrões? Há palavras que ditas com o termo técnico – por exemplo, pénis – são bem mais ofensivas do que...

Markl – Caralho.

Bruno – Portanto, eu uso em ambiente controlado.

Markl – Uma vez, numa estação de serviço, estavam a ouvir O Homem que Mordeu o Cão. A rir e a dizer: “Grande cabrão”. É muito português: insultarem as pessoas que as fazem rir. Talvez porque intrinsecamente sejamos um povo que está sempre triste. Então, quando há alguém que faz piadas, diz-se: “Filho de uma grande puta”. É quase um elogio.

 

Do que é que se gosta? Da transgressão? De alguém dizer o que aquele que está a ouvir não ousa dizer?

Bruno – O segredo da Nêspera é só este: é completamente livre. Sente-se, nos projectos que o Markl faz, que eu faço, que, por muito livres que sejamos, como estamos a trabalhar para um canal [de televisão] ou estação de rádio, há sempre uma barreira. Numa época em que está tudo muito formatado, em que é tudo muito previsível, o facto de se estar à beira de um abismo [é estimulante]. A mim, dá-me vontade de fazer.

Markl – Há as pessoas que ouvem porque se riem e gostam genuinamente. Há as pessoas que ouvem para se irritarem e porque têm o lado voyeurista do: “Deixa ouvir estes gajos que dizem coisas horríveis que não podem dizer em mais lado nenhum”.

 

Têm programas formatados na TSF (Tubo de Ensaio) e Rádio Comercial (O Homem que Mordeu o Cão). Estão sempre nos primeiros lugares do top dos mais ouvidos. Foram suplantados pela Nêspera.

Markl – [com tom de locutor sensacionalista] Também no Brasil!

 

Já lá vamos, ao Brasil. A pergunta: temeram que os vossos formatos de sucesso, confirmados pelo público, patrocinados pelas empresas, pudessem ser beliscados por este arraial de maluqueira?

Markl – Tu, Bruno, no Tubo de Ensaio, és mais terrorista do que eu. Eu tenho crianças a ouvir, que gostam muito do que faço. Também faço dobragens de desenhos animados [riso]. Há um lado explosivo... Pensei que se calhar ia perder trabalho. Ao mesmo tempo sentia que era uma coisa que valia a pena fazer.

Filipe – Um episódio real: no outro dia, a minha namorada estava num bar e falavam da Nêspera na mesa do lado. Diziam que era feito pelo Bruno Nogueira, pelo Nuno Markl e por aquele gajo que ninguém sabe quem é. Isto é uma grande vantagem: não tenho absolutamente nada a perder. Os meus amigos são humoristas ou estão dedicados ao humor. O Nuno Markl vejo-o mais como o grande defensor de todos os nerds. Um dia disse-lhe, quando estava verdadeiramente alcoolizado, não ele mas eu, que me surpreendia como é que tinha ascendido a uma posição de tanta exposição e continuava a ser um verdadeiro nerd. O Bruno, sendo um humorista, sendo alguém que me faz rir imenso, mesmo quando está fora do ar – é uma pessoa que tem graça natural...

Markl – É verdade.

Filipe – O que quero dizer: como tenho muitos amigos dedicados ao humor, tenho pensado, temos falado sobre o limite do humor.

 

Qual é o seu limite?

Filipe – O humor deixa de fazer sentido quando ofende alguém que não está a pedi-las. Ouço o Tubo de Ensaio. Vejo as coisas que o Markl mete no Facebook. É um nível de cascanço... Mas, se pensarmos bem, é sempre alguém que está a pedi-las. Nesse aspecto, o humor acaba por ser uma forma de fazer justiça. Passo a tempo a pensar nestas coisas, no limite.

 

É o intelectual do grupo? Também pensam nos limites do humor?

Bruno – É o intelectual, é. Olha a barba.

 

Cofia o bigode, como um personagem de um romance do século XIX.

Bruno – Põe cera.

Filipe – Não ponho cera.

Markl – A discussão sobre os limites do humor dá pano para mangas. Nunca se chega a uma conclusão. Se tem graça, realmente, é de fazer.

Filipe – E quando destróis alguém que não está a pedi-las?

Markl – Não é a minha corrente de comédia.

 

Mas o Bruno é o humorista que usa o bastão. Foi assim que apareceu, num espectáculo no teatro São Luiz, de bastão. Continua a fazer um humor demolidor.

Markl – O Bruno é um justiceiro.

Bruno – Em relação ao Tubo de Ensaio, [que faço] com o [João] Quadros [co-autor dos textos]: muitas vezes terei errado. Muitas vezes apontei ao alvo errado. Mas o que aquelas pessoas [visadas no programa] fizeram, e que deu origem ao Tubo de Ensaio, não é menos grave do que aquilo que ali dizemos. E em 90% dos casos, são ilibadas, o caso prescreve. Não sei se passamos tanto o limite ou não. Reconheço que esticamos um bocadinho a corda. Que fazemos uma coisa arriscada. Não direi que é justiceira. Nem é esse o nosso objectivo. Mas é por sermos um país conservador que isto é visto assim.  

Queria dizer outra coisa sobre os limites do humor... ah... já não me lembro.

 

A vossa mãezinha fala-vos dos limites? Ocorreu-me a mãe do Herman José que lhe dizia: “És um bom artista. Não havia necessidade”. A frase foi depois adaptada pelo próprio Herman no Diácono Remédios, como se sabe.

Markl – Não, não. A minha mãe adora ouvir a Nêspera. Faz likes na Nêspera.

Bruno – Ternurento. Os meus pais, também. O meu pai, curiosamente... Muito do meu humor vem do meu pai. Que é do norte, de Penafiel. Em relação à Nêspera disse: “Aquilo às vezes é um bocado forte, hã...”. Uma pessoa que já me ouviu a dizer de tudo!

 

Dizes de tudo à frente dos teus pais?

Bruno – Sim. Tenho imenso respeito, mas isso não interfere com a liberdade que sinto.

Filipe – A minha mãe gosta imenso. Tenho a impressão que a utilização da internet para o meu pai tem mais a ver com os forwards de fraude nas bombas de gasolina.

 

Que é isso?

Markl – São aqueles forwards que avisam: atenção há seringas infectadas nos bancos dos cinemas. O teu pai é um grande propagador disso.

Filipe – Sim, e de power points da natureza. Mas a minha mãe gosta da Nêspera. Nunca disserta muito sobre o assunto, mas sei que ouve.

Markl – Há o orgulho das mães, nisto.

 

Há mesmo? Não sentem embaraço quando vão ao café com as amigas?

Markl – Não. Conseguimos, neste curto espaço de tempo em que durou a primeira série de Uma Nêspera no Cu, criar uma espécie de mainstream do cu. Tornou-se estranhamente aceitável e não muito censurável que três pessoas e um convidado estejam ali a expelir aquele vernáculo.

Filipe – Não podem dizer: aquilo não tem graça. O nosso objectivo não é ter graça. Onde quero chegar: não há muito por onde atacar. Juntamo-nos para nos divertir-nos, e não obrigamos ninguém a ouvir, não é?

 

Há uns efeitos colaterais. Os visados da Nêspera. Já falámos de alguns.

Markl – As pessoas não levam tão a mal quanto isso. Ou então fomos nós que ainda não fomos suficientemente brutos.

Bruno – O Ricky Gervais diz que podes fazer comédia que vem de um sítio bom ou de um sítio mau. Aqui, verdadeiramente, vem de um sítio bom. Sim, há pessoas pelas quais não nutrimos assim tanta simpatia. Mas, regra geral, já envolvi pessoas em dilemas que... Nós também nos envolvemos.

Filipe – [Em tom de troça, para Markl] Ele é o Nilton, não é?

 

Nilton é apresentador, como Markl, do 5 para a Meia-Noite.

Markl – Dizerem isso, é um clássico. Nós começamos por nos sovar de uma forma agressiva uns aos outros. Sobretudo o Bruno. O Bruno é um grande bully que eu tenho. Vou para casa a pensar: “Devia ter respondido melhor. Tenho 43 anos e ele tem para aí 20”.

 

Tens quantos anos, afinal?

Bruno – Tenho 33. A idade do próprio. Fazemos isso porque há confiança e amizade entre nós. Ah, já sei o que é que ia dizer em relação aos limites do humor: ninguém pergunta quais são os limites da música, os limites das novelas. Lembro-me de um primeiro episódio de uma novela da TVI. O Pedro Granger estava numa cadeira de rodas, era homossexual e morria numa explosão. Não vi ninguém dizer que aquilo era contra os homossexuais, contra os deficientes motores... Na novela, como há o rótulo da ficção, pode-se fazer tudo. No outro dia, uma mulher tentava atropelar o pai. Que é que importa? Se fazes isso no humor, acham que estás a incentivar as pessoas a atropelar, a matar homossexuais que andam em cadeiras de rodas...

Markl – A discussão sobre os limites do humor não é muito fértil. Na cabeça das pessoas há uma associação entre comédia e maldade.

 

O humor já é o lugar da subversão. Tiveram necessidade de transgredir ainda mais, como se também o humor estivesse a ficar aprisionado ou formatado.

Markl – Sim, mas isto não foi uma decisão muito cerebral. Estou num formato e muito feliz nele, mas tenho cuidado. Não há qualquer pressão por parte da Rádio Comercial, não dizem: “Não fales sobre isto, sobre aquilo”. Sou eu próprio que penso numa família que me diz: “Gostamos muito d’ O Homem que Mordeu o Cão”, e na notícia sobre uma máquina de venda automática de vibradores...

 

Começas a ver o teu filho do outro lado, a ouvir sobre a máquina de venda automática?

Markl – Não sei se isto não é um macaquinho no meu sótão.

 

Miúdo pequeno, assistias a este palavreado? A Nêspera parece um grupo de miúdos que se diverte porque apanhou uma revista pornográfica...

Bruno – A ideia é essa.

Markl – Chegámos a esta idade a pensar: “Vamos lá outra vez abrir a Gina”.

 

A saudosa Gina?

Markl – Não é saudosa porque ainda há. E continua a ser muito cara.

 

Bruno, pensas nas crianças a assistir? Esse é o grande travão?

Bruno – Tenho esta vantagem em relação ao Markl. Pura e simplesmente não visualizo o lado de lá. Só tento divertir-me. Depois, como numa gelataria, há vários sabores. Não queres um, não és obrigado a comer. A Nêspera nem é um acto de rebeldia: é só um acto de liberdade. Podemos controlar do princípio ao fim aquilo que faríamos se não estivesse lá nenhum microfone.

Filipe – É também um exercício de criatividade. Semanalmente pensamos nos dilemas. Inventámos jogos – como o famoso Azar do Caralho.

 

Que jogo é esse?

Filipe – Foi um jogo inventado, mais uma vez, pela mente perversa e doente do Bruno Nogueira, quando estávamos nos camarins do Deixem o Pimba em Paz. Consiste em escolher um contacto aleatório do teu telefone. Tens de ligar a essa pessoa num prazo de 20 segundos e utilizar uma palavra dada.

 

Palavras inócuas, imagino.

Markl – O grande desafio está em arranjar palavras que não sejam javardice pura.

Filipe – Por exemplo, expectoração.

Markl – O Bruno teve de usar “berimbau” [instrumento musical].

Bruno – Faz-se assim: dás-me o teu telemóvel e eu faço um scroll na tua lista de contactos. Dizes stop, eu paro.

Filipe – Caso não ligues, tens de pagar uma coima.

 

Eu ligo e digo simplesmente “berimbau”?

Markl – Não, não. Tens de manter uma conversa normal.

Bruno – Ah, vamos jogar, vá lá! Dá-nos o teu telemóvel. Anabela, Anabela.

 

Continuando.

Markl – Imagina. Sai-te o Jardim Gonçalves. Tens de ligar do teu telemóvel. Ele atende: “Então, Anabela, como está?”

Bruno – E tu: “Estou com um bocado de expectoração”.

Markl – Disseste expectoração? Pumba, já ganhaste. Mas não podes desligar logo.

Bruno – Nem podes ligar de novo a explicar que aquilo era um jogo. O nosso próximo passo é fazer o Azar do Caralho by night. À meia-noite, fazer o mesmo jogo. E aí pareces um psicopata ou um tarado sexual.

Markl – Se receberes um telefonema nosso à meia-noite, já sabes.

Bruno – A reacção é estranha. Cerca de 90% das pessoas que te calham, são pessoas com quem não falas regularmente. Na tua lista tens oito ou nove pessoas com quem falas regularmente e a quem podes ligar a qualquer hora.

 

Qual é o número mais precioso da vossa lista de contactos? E o mais poderoso? O Cavaco?

Markl – Não tenho telefones de ninguém super poderoso. Não tenho mesmo. Tenho assim de algumas super vedetas. Ricardo Araújo Pereira. Bruno Nogueira.

Filipe – Nilton. [risos]

Bruno – O meu número mais precioso é o de casa. O mais poderoso, não sei.

Markl – O mais poderoso? Nuno Artur Silva, que é administrador da RTP.

Filipe – Eu tenho o número de telefone do Marante.

Bruno – Eu tenho do Nel Monteiro. Para além do número do Marante. Anabela, queres jogar ao Azar do Caralho?

 

Falem-me agora da criança que foram e que apanhou umas revistas pornográficas.

Markl – Tenho memórias vívidas de folhear a Gina, na Escola Secundária de Benfica. Havia um que comprava. Não havia Internet e íamos para umas arcadas comentar.

Bruno – Porque é que ias com um amigo teu?

Markl – Íamos – em grupo – para umas arcadas. Para não estarmos na escola. Folheávamos e dizíamos: “Eh, pá, olha para ela”. Virávamos a página. “Ehhh, olha o que está a acontecer aqui”.

Bruno – Enquanto faziam isso, tinham erecções, ou não?

Filipe – Havia esgalhanço?

Markl – Entre amigos? Não!

Filipe – Negas aqui e agora que houve esgalhanço colectivo? A minha mãe era presidente do conselho directivo quando tu andavas na Secundária de Benfica. Portanto isso passou-se sob o reinado dela.

Bruno – Eu lembro-me, eu lembro-me... [riso] Não sei porque é que vou contar isto. Eu passava as férias grandes na aldeia, em Mogofores. Terra do José Cid. A malta ia para becos esgalhá-la. Um aqui, um ali. Era a mesma coisa que ir a um bairro de drogados e, em vez de se estarem a injectar, estavam a...

 

Quando perguntei pela criança, não pensava que íamos dar a este sítio. Vamos tentar pôr alguma ordem nisto. Vocês não perdem nada com a Nêspera, mas eu tenho muito a perder.

Markl – Chegámos todos a um momento das nossas carreiras em que podemos fazer isto. As consequências não serão muito nefastas. Sim, vai haver alguém a dizer: “Isto não é para mim”. Senhoras. Mas isto deu-me uma certa aura punk.

 

A Nêspera é uma brincadeira de rapazes?

Markl – Tivemos, entre os convidados, a Rita Blanco.

 

Foi a única mulher. Há esse preconceito: fica mal (e a expressão é esta) a uma mulher dizer Uma Nêspera no Cu.

Filipe – Ainda existe?

Bruno – Por muito que queiramos ter mais mulheres, há esse lado. A própria convidada não se sente confortável para usar determinada linguagem. Mas há sempre maneira de contornar isso. Como? Não tens de usar palavrões.

Filipe – O conteúdo é muito infantil. Talvez por isso as pessoas achem graça e se identifiquem. E tem continuidade. Acaba o podcast e as pessoas estão no seu local de trabalho, começam a desenvolver os seus próprios dilemas. Fizemos com que todas as segundas-feiras se falasse daquilo.

 

O pior dilema de todos, para mim, foi o do gatinho. De um lado, havia um gatinho, ao qual tínhamos de nos afeiçoar, e por fim matar numa pedreira. Do outro, um tipo que tem a suástica desenhada na testa e que vai para a Cova da Moura.

Filipe – Para mim, também é o pior.

Markl – Eu sacrifiquei-me pelo gato.  

 

Este dilema, ao contrário de quase todos os outros, não tem palavrões, não tem que ver com sexo. É de longe o mais violento.

Markl – É sangrento e mau. Roça o evil.

Bruno – Gosto mais quando é um dilema elaborado e perverso. Dá-me mais quentinho aqui no estômago. Especialmente sabendo que eles adoram gatos.

Markl – A Rita Blanco também é defensora dos animais.

Bruno – Como eu sou. Mas a Rita tem animais. O Filipe tem dois gatos com Sida.

Markl – Têm a sida dos gatos. Mas está controlado.

Bruno – Não passa de gato para humano. Mas neste caso passou de humano para gato. [gargalhada] Eu tenho um cão. Gosto deste tipo de dilema. Os palavrões: só se servirem um propósito.

Markl – Quando vamos para a badalhoquice, a ideia é que, mesmo na badalhoquice, haja alguma imaginação.

 

Para não ser, simplesmente, um arraial de palavrão.

Markl – Sim. O Carlos Vaz Marques propôs duas opções. O efeito era o mesmo: em ambas acabávamos a levar no cu. A grande escolha era entre um humano e um máquina sofisticada. Este dilema podia ser só porco, e contado de forma resumida as pessoas ficam a pensar: “O Carlos Vaz Marques? Enlouqueceu. Um jornalista respeitado”. Mas teve tanta graça. É poética a maneira como descreve a máquina, o funcionamento. A imaginação... Isto faz da Nêspera uma jam session de disparate puro.  

 

Há uma certa recorrência nesse tema...

Markl – Por mais que se diga, acho que o cu é uma parte muito engraçada do corpo humano.

Bruno – [Em tom filosófico] Penso que sim. Se isto for uma psicanálise, somos capazes de descobrir coisas interessantíssimas. O título já puxa a dilemas que vão para esse lado.

 

De onde vem o título?

Markl – Brainstormamos muito por SMS. Lembro-me de chegar um SMS do Bruno que propunha: “E se fosse Uma Nêspera no Cu?”

Filipe – A produtora do espectáculo Deixem o Pimba em Paz estava a tentar arranjar algum tipo de apoio para esta ideia. Ao Bruno, dava-lhe gozo especial pensar que ela ia a uma reunião e que tinha que dizer que o título era Uma Nêspera no Cu.

 

Porquê nêspera?

Bruno – Porque gosto da palavra.

 

Sabem como se diz nêspera no Porto? Magnório.

Bruno – Um magnório no cu!

Markl – Podíamos fazer a versão nortenha disto só com convidados do Porto. Não sei explicar, mas é mais engraçado chamar-se assim, e não Um Ananás no Cu ou mesmo Um Pêssego no Cu.

 

Fizeram oito programas, após o que interromperam para pensar o futuro do programa (escreveram isto no Facebook). Estes programas foram ouvidos por quantas pessoas?

Bruno – Um milhão e duzentas mil. Não estávamos à espera. Na verdade, estávamos à espera de deitar isto cá para fora. O caroço.

Markl – Estar em primeiro lugar no iTunes do Brasil é bizarro.

Bruno – Agora não sei se estamos. Mas estivemos. Alguém falou disto. De repente, no Twitter comecei a ter uma série de seguidores brasileiros. Aos milhares por dia. Até que percebi que um tipo...

Markl – Anticast.

Bruno – ... que tem um podcast no Brasil (que está sempre no top), partilhou.

Filipe – Os brasileiros acham graça ao sotaque.

 

Já que falámos em Brasil, trago a Porta dos Fundos, cujo projecto começou por só existir na net. Há algumas semelhanças. É por não terem nenhum patrocínio, é por não estarem ligados a uma rádio ou televisão que podem fazer tudo o que quiserem. Sem compromisso. Inspirou-vos?

Bruno – Neste caso específico, não. Até porque a ideia inicial era ser só um podcast. Em qualquer caso, é incrível o poder que a Internet tem. Trata-se sempre de liberdade. Trata-se de saber, enquanto espectador, que aqueles artistas não estão condicionados.

Markl – A Nêspera representa a ideia de estarmos numa plataforma em que vale tudo. Se há sítio onde se pode experimentar e ter liberdade absoluta é o podcast. É quase como as rádios piratas nos anos 80.

Filipe – Verdade, boa comparação.

Markl – Eu estive numa rádio pirata nos anos 80.

Bruno – Com amigos?

Markl – Sim, fazíamos masturbação colectiva. [riso]

 

Quando é que volta a Nêspera?

Bruno – Em Setembro. Se calhar vamos profissionalizar um bocadinho a coisa.

Filipe – E o espectáculo ao vivo? É um plano que temos.

Markl – O ideal seria reiniciar isto com um espectáculo ao vivo. Uma coisa bonita, com quarteto de cordas. O Filipe tem bons contactos ao nível do quarteto de cordas.

 

E terminarmos com um dilema? Saído agora.

Bruno – Eh pá.

Markl – Não consigo. Demoro muito tempo a pensar.

(Alguma conversa fiada pelo meio)

Filipe – Já tenho um bom. Vocês são pais. A primeira opção: estão a fazer amor com a Alcione...

Markl – Onde é que ele vai buscar a Alcione?

Filipe – Ela abre os vossos braços, uma cena dominatrix, e vomita-vos em cima. A outra opção: vão ter de deixar durante dois dias os vossos filhos ao cuidado da Alcione.

Markl – Mas estamos com a Alcione todos os dias?

Filipe – Um dia, só. Mas vomita-vos na boca.

Markl – Na boca? Há bocado não disseste que era na boca.

Bruno – Na boca? Isto é uma entrevista! Eu escolho a primeira. Nunca deixaria a minha filha com a Alcione.

Markl – Eu também.

 

Amor de pai.

Markl – Tens de ter algum heroísmo pelos teus filhos.

Filipe – Fui muito hardcore?

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015

 

Ricardo Araújo Pereira

09.01.24

Quem é que ainda diz “eh pá” linha sim, linha não? E “gajo”, gajo para aqui, gajo para acolá? Quem é que diz que as suas filhas são o seu Jesus Cristo – mesmo assim, podia fazer troça se uma delas fosse coxa. Manquinha. E que chora lágrimas de sangue pelo seu Benfica? E que, sendo um palerma, conhece o Génesis? Quem é ele? «Eu faço um programa de televisão, escrevo textos de comédia e interpreto-os, não estou num concurso de popularidade». Mesmo assim, é muitíssimo popular. Ele é também o jovem bem sucedido, que mora numa casa com piscina, que tem um carro de alta cilindrada à porta, casamento religioso, duas filhas e uma estabilidade burguesa de que todos precisamos. Para a seguir subverter as regras.

Ricardo Araújo Pereira tem um registo inesperado. É um homem culto, criado em boas famílias (o pai é piloto, a mãe hospedeira), de educação esmerada. É de uma indubitável inteligência. Mas indubitável é uma daquelas palavras que ele usaria para fazer pouco de intelectuais de meia tijela. Digamos, então, de modo simples: ele é muito inteligente. E também: ele domina exemplarmente o português e conhece o significado íntimo das palavras. Acresce a isso um talento enorme para a representação.

Ele e os restantes Gatos põem o país a rir todos os domingos à noite. Ricardo diz assim a propósito do riso: «Quando uma pessoa se ri, pode não estar feliz, mas imita muito bem, parece mesmo que está, e pelo menos durante um centésimo de segundo está mesmo, não me lixem, está mesmo». Referia-se à avó. Foi a primeira pessoa que pôs a rir. Foi um acto de amor. Ela está naquilo que ele é hoje.

RAP 

Fotografia: Miguel Baltazar

 

Talvez começar por dizer que te conheço há muitos anos e que te entrevistei há três, quando estava a sair o primeiro DVD dos Gatos. Apanhei-te no começo da explosão; entretanto, foi uma deflagração absoluta!

Mudou muitíssima coisa. Estávamos a fazer um programa para um canal que tinha dez mil pessoas de audiência, de forma completamente amadora, tanto do ponto de vista da produção, como do nosso, que estávamos a fazê-lo nos intervalos do trabalho. Agora, estamos na estação pública, em horário nobre, a fazer um programa que tem um milhão e meio de espectadores e feito por uma produtora profissionalíssima. Em três anos isso aconteceu.

 

Podias prever isso?

Não, nunca. A gente farta-se de dizer isso. Sobretudo quando nos perguntam quais são os projectos para o futuro. É impossível estar a projectar quando há três anos seria ridículo ter feito estes planos.

 

Consegues perceber qual foi o elemento catalisador desta quase histeria que há à volta dos gatos? Têm um público tão transversal que vai dos miúdos de dez anos ao Jorge Coelho (julgo não cometer uma inconfidência se disser que ele é vosso fã...).

Não tenho nenhuma resposta para dar. Até porque aquilo que fazemos é aquilo que nos apetece. Quando saímos da SIC Radical tivemos propostas de vários canais. E a RTP foi provavelmente a única que disse: “Queremos contratar-vos para fazerem exactamente aquilo que estão a fazer”. Depois temos constatado, com muita felicidade, que isso agrada a algumas pessoas. Não escondo que é engraçado famílias virem ter connosco e dizerem: “É o único programa que vemos todos juntos”.

 

Esse tipo de unanimidade agrada-te? O Chico Buarque, a dada altura, não gostava de ser um artista consensual.

Eh, pá, isso é um artista, atenção. Eu tenho a certeza de que não somos unânimes. Estávamos a falar do efeito catalisador. Há um efeito que tem a ver connosco, porque outros produtos do canal não têm a mesma projecção. E há um efeito catalisador que tem a ver com as pessoas, que é o facto de porem aquilo na internet, de passarem uns para os outros. Esse fenómeno potenciou e continua a potenciar [a difusão do Gato Fedorento].

 

São razões exógenas ao fenómeno, mas fundamentais para o explicar.

São. Recebemos imensos e-mails a dizer: “No emprego, a primeira coisa que faço segunda-feira de manhã é falar com os meus amigos sobre o programa da véspera, e vamos ao Youtube e já lá estão os sketches do dia anterior”. É uma coisa divertida e que pode explicar a falta de produtividade do povo português: as pessoas estão entretidas a ver a internet em vez de trabalhar. Enquanto for para nos ver a nós, é simpático!

 

Têm uma máquina de promoção que trata disso? Quem é que disponibiliza os sketches no Youtube?

Há televisões nos Estados Unidos que põem, elas próprias, bocados de programas no Youtube para potenciar o marketing viral – aquela coisa que os gajos do marketing inventaram. A RTP não faz isso. São legiões de adolescentes, cheios de borbulhas, que no domingo de madrugada põem aquilo no Youtube. Enquanto isso pontenciar o nosso trabalho e a nossa exposição pública, adoramos essa gente. Quando percebermos que é uma forma de pirataria que nos prejudica as vendas, gostaríamos que fossem encarcerados.

 

Achas mesmo que não há unanimidade neste momento?

Um largo consenso, admito. É difícil haver um tipo com uma exposição pública continuada e um trabalho com repercurssão pública que não tenha um largo consenso.

 

É mais fácil ser polémico do que consensual. Estou a pensar em pessoas como o Vasco Pulido Valente ou o Pacheco Pereira.

Gosto dos dois. Toda a gente, não, mas um largo consenso de pessoas respeita-os, mesmo não concordando com eles. Aquilo é um negócio: se não encontrassem essa repercussão nas pessoas, não haveria procura para aquilo que escrevem.

 

Vou usar um palavrão para dizer qual é a minha impressão: vives numa espécie de ubiquidade permanente. Como se tu fosses este que é bem educado, que até banca o humilde, que quase pede desculpa por ter lido o Nietzsche – na entrevista à Judite de Sousa citaste o Nietzsche e o Freud; e fosses, ao mesmo tempo, aquele que toda a gente espera que sejas, ou seja, o Gato Fedorento, o elemento central daquele colectivo.

Eu não o elemento central daquele colectivo. Aquele colectivo é mesmo um colectivo. O Herman, (estávamos numa entrevista com a Maria João Avillez), fez uma pergunta que diz tudo: vocês ganham todos o mesmo? Claro que ganhamos todos o mesmo. É revelador da importância que todos temos no grupo.

 

No outro dia, eu perguntava a uma pessoa que vos conhece se vocês nunca se pegam... Porque um ocupa demasiado espaço, ou tem excessivo protagonismo. Nem em privado?

Nem em privado. Mas fartamo-nos de nos pegar: “Que estupidez, não faças isso assim, vamos fazer de outra maneira, eu não concordo nada com isto”. Pegamo-nos imenso até com coisas do dia-a-dia, como embirrar com a...

 

Com a namorada de não sei quem?

Exacto. Se esta vontade da imprensa escolher um líder tivesse recaído sobre um deles, se calhar eu levava isso a mal. Eles não levam nada a mal.

 

Por que é que levavas isso a mal? É o teu ego?

Pois, não ia achar graça. Tenho a sorte de eles serem óptimas pessoas e estarem-se borrifando para o assunto.

 

Portanto, é um acordo tácito: tu não és o líder, mas há uma figura que aparece, que está no pico da fama, e essa és tu.

Pois, mas não há nenhuma objecção a isso. É uma escolha da comunicação social e da imprensa, não nossa. Quando se trata de “vem cá o Gato Fedorento” e vou só eu, costumamos recusar. Se é “quero falar com o Ricardo”, à vontade. Estou a falar como o Jardel, já viste?  

 

A falar de ti na terceira pessoa! Já vais fazendo um desdobramento entre o personagem público Ricardo Araújo Pereira e o teu núcleo essencial?

Foi tudo muitíssimo rápido e eu não sabia, nenhum de nós sabia, como é que se lidava com a exposição pública. Receio que a falta de experiência me tenha empurrado para uma situação em que não tenho uma máscara pública. Quer dizer, tenho a máscara que toda a gente tem: em privado, em casa...

 

Damos arrotos.

Sim, é isso. E publicamente não o fazemos. Mas não tenho tido nenhum pudor em mascarar aquilo que penso. Isso tem-me trazido alguns dissabores, paradoxalmente. Às vezes as pessoas levam a mal que eu manifeste posições políticas.

 

Perdeste um pedaço da unanimidade quando fizeste campanha pelo Sim no referendo ao aborto?

Não faço ideia. O meu pai achou que sim. Do ponto de vista cívico não tenho feito nada, mas o problema do aborto era uma questão que me interessava e na qual gostaria de participar.

 

Os pais preocupam-se sempre com essas coisas. É por não gostarem que não gostem de nós.

Sim, mas não sei se isso deve nortear a minha conduta. Eu faço um programa de televisão, escrevo textos de comédia e interpreto-os, não estou num concurso de popularidade. Vale a pena ser pardo do ponto de vista político, ou outro, só para manter a afeição de pessoas que não toleram que eu pense de forma diferente?

 

Não estás para isso...

Acho que não faz sentido nenhum.

 

A tua participação cívica na campanha do aborto é uma réstia da tua militância comunista?

A militância comunista foi péssima.

 

É já uma coisa mitificada?

Sei que é. Há muitas coisas mitificadas entretanto. Uma coisa que ao princípio me fazia confusão, agora vai fazendo menos, é o facto de todas as semanas aparecer qualquer coisa na imprensa, que não é verdade, sobre mim. Coisas tão simples como: o JL fez 25 anos, e eu trabalhei lá...

 

Foi o teu primeiro trabalho, não foi?

Sim, assim que saí da Faculdade fui para lá. O JL fazia 25 anos e eu mandei um cesto, daqueles que se compram na internet, com flores, chocolates, uma garrafa de champanhe, com um cartão, para os meus camaradas de redacção.

 

“Os meus camaradas”?

Todos os jornalistas dizem camaradas, não me lixes!

 

Ah, é verdade, tudo menos “colegas”, porque colegas são as p....

Exacto. Um jornal descobriu que tinha mandado o cesto e publicou que eu gostava muito de champanhe! Podia ter posto que gostava muito de cestos, ou de fruta, ou de flores. As notícias vão para os arquivos e os jornalistas sempre que fazem uma coisa sobre mim, lêem aquilo e perguntam-me: “Gosta de champanhe?”. Neste momento, eu, que bebo champanhe como as pessoas bebem champanhe, nos aniversários, sou um gajo que gosta de champanhe francês!

 

Devassas à tua vida privada?

Imensas, pá, imensas coisas. No outro havia um fotógrafo a 20 metros do meu portão, dentro do carro, e outro para aí a 50, dentro de outro.

 

As tuas filhas e a tua mulher já começam a sentir uma afectação por serem as filhas e a mulher de?

Há uma tentativa de as dar a conhecer. Recusámos sempre, mas há coisas que não podemos evitar. Por exemplo, no aeroporto ou na rua.

 

Para as miúdas, no colégio, com os amiguinhos, o pai é aquele que aparece na televisão?

A minha filha mais velha percebe que os amigos e os educadores dizem: “Tu és a filha do Gato Fedorento”, mas ela ainda não percebe que isso, do ponto de vista social, é diferente do que acontece com os pais dos outros meninos.

 

Posso dizer que esta entrevista foi adiada porque nessa noite estavas a cuidar das tuas filhas?

Podes, à vontade.

 

Quando li a mensagem que me enviaste, pensei que as pessoas olham para ti como um ícone. E um ícone não tem filhos, nem tem noites mal dormidas porque as filhas estão com gripe.

Sem estar a expor a minha família, a minha mulher, as minhas filhas, nunca deixei de dizer que era casado e tinha filhos.

 

É certo que não tentaste esconder, mas as pessoas não querem ver essa parte. Porque corresponde a uma dimensão corriqueira.

É isso. É aquela coisa da pessoal fútil, casado e tributável... Uma coisa que o Pessoa diz: “Queriam-me fútil, casado e tributável”. Já sou as três coisas.

 

Tínhamos lá para trás a ubiquidade. Não é por acaso que agora trago a ubiquidade. Estás sempre entre estes dois desempenhos?

Acho curioso que digas “entre esses dois desempenhos”.

 

Refiro-me ao desempenho social e ao familiar.

Mas quando me dizes que são dois... Aquilo que tu dizes é bem observado. Há uma estratégia que é constante e que ao fim de um tempo começa a tornar-se aborrecida. Uma estratégia de auto-depreciação que fazemos enquanto grupo e individualmente também. É uma estratégia excelente de auto-defesa, para baixar as expectativas das pessoas...

 

Também para fazer um certo género... Cria-se uma ideia de: “Ai, sou palerma, ninguém me pode levar a sério”.

Tem esse lado positivo. Se tu te insultares a ti própria primeiro, os outros depois têm mais dificuldade em fazê-lo. Agora, quando tu dizes “bancar o humilde”... A imprensa está a tentar arranjar uma guerra entre nós e o Herman, acham que pode ser interessante do ponto de vista mediático; e se calhar é. Mas não há guerra nenhuma, nem nunca há-de haver.

 

Começaram por trabalhar com ele, na escrita dos textos, enquanto elementos das Produções Fictícias.

Trabalhámos com o Herman imenso tempo, tivemos esse privilégio, ele sempre nos tratou bem, não há razão nenhuma para andarmos armados em parvos a dizer: “Vamos à guerra das audiências”.

 

Pelos vistos, não precisam.

Não se trata disso, os programas são diferentes, o horário é diferente, os canais são diferentes. E não seriam as audiências a determinar se um programa é melhor do que outro ou não é. Dou sempre o exemplo do futebol: “Não vamos fazer concorrência ao Herman, só porque estamos a jogar à mesma hora. O Birgmingham não faz concorrência ao Chelsea”.

 

O Benfica e o Sporting?

Não, não, o Benfica e o Sporting é outra coisa.

 

“Lavo a boca para pronunciar a palavra Benfica?”, não é o que se diz em futebolês?

Houve gente que me censurou: “É falsa modéstia”. Comparar o maior humorista português de sempre, com a maior equipa do mundo, e quatro gajos que começaram há três anos, e há um ano tinham um produção amadora, é inaceitável. Esquisito acharem que é falsa modéstia. Para mim é uma coisa rigorosa.

 

Lamentas que as audiências do Herman neste novo programa sejam tão baixas? Sinceramente. É como se fosse uma injustiça?

Primeiro, não sei se são assim tão baixas. Segundo, não vejo justiça nem injustiça nas audiências. Não vejo que as audiências sejam prémio de qualidade, de competência. As audiências não significam nada a não ser “há muita gente a ver” ou “há pouca gente a ver”. Se calhar vai haver pouquíssima gente a ver o programa do António Barreto e tenho a certeza de que vai ser um belíssimo programa. Vai ter seguramente menos audiência que o nosso e vai ser seguramente melhor do que o nosso. O Herman tem 30 anos de carreira, duvido que esteja preocupado com a percentagem do share.


Pode estar preocupado com uma coisa, essa sim, significativa, que é envelhecer.

Mas isso não tem nada a ver com as audiências.

 

Envelhecer pessoalmente e envelhecer artisticamente. Estar desfasado destes novos tempos em que segunda-feira de manhã aparecem no Youtube as coisas mais engraçadas da véspera.

Essa é uma pergunta insidiosa.

 

Não é.

Em relação ao Herman, só tenho coisas boas para dizer. Não creio que esteja desfasado da realidade, antes pelo contrário. Sei que tem esse problema com o envelhecimento, como toda a gente. É uma coisa horrorosa, a aproximação da morte assusta qualquer ser humano, e não só os seres humanos de origem alemã. Nós só sabemos o que é um humorista por causa do Herman. O Herman é vítima de si próprio.

 

Como assim?

A Judite de Sousa perguntou-me sobre a imparcialidade do humorista: essa questão só se põe em Portugal porque o Herman nunca manifestou posições políticas, nem de clubes de futebol. E tem todo o direito de não as manifestar. O Herman é vítima de si próprio por ser o paradigma, as pessoas esperam dele muitíssimo mais do que parece ser aceitável. A própria memória dele está a assombrá-lo.

 

Chega de Herman. A não ser para perguntar se os Gatos podem ser apenas um epifenómeno. Isto vem a propósito da longevidade da carreira do Herman. Há três anos tu irrelevavas o vosso sucesso, achavas tudo aquilo improvável.

Neste momento particular não é um epifenómeno. Mas nada nos garante que daqui a cinco anos não tenha sido afinal. Sabemos que daqui a 50 anos as pessoas vão saber quem era o Herman José, assim como hoje em dia sabemos quem é o Vasco Santana, o António Silva. Mas não fazemos ideia se daqui a 50 anos as pessoas se vão lembrar de nós. Quando cheguei às Produções Fictícias, estava a acabar de acontecer um fenónemo humorístico na SIC, protagonizado por uma pessoa que dava autógrafos na rua, era considerado pelas revistas e jornais o novo Herman; hoje em dia ninguém sabe quem é. Acontece muito.

 

Isso ainda vos pode acontecer?

Acredito que o nosso trabalho tem sido um pouco mais consistente, até porque tem sido mais duradouro. Mas nada impede que daqui a cinco anos já não seja nada. As nossas ambições não passam exclusivamente pela televisão. Para já, é quase garantido que em 2008 não estejamos a fazer nada, saiamos da televisão. Depois, é possível que façamos mais dois, três, cinco anos de televisão e arrumemos as botas completamente – há essa hipótese.

 

Continuas a sonhar escrever como o Mário de Carvalho?

Quando disse que queria ser escritor e jogador do Benfica tinha seis anos, depois percebi que não tinha talento nem para uma coisa nem para a outra.

 

O que é que te custou mais?

Foi sem dúvida jogar à bola.

 

Para o resto, pelos vistos, tens talento.

Não se trata disso. Uma pessoa que escreve um grande livro não levanta o Estádio da Luz, se marca um golo, levanta. É uma questão de prioridade.

 

Mas como Gato, também levantas o Estádio da Luz.

Isso foi a melhor coisa da carreira até agora. O Benfica convidou-nos para fazer uns sketchs no Estádio da Luz e os nosso consócios estavam ali. Sinto aquela gente como da minha família, ter a família a rir daquilo que estou a fazer...


Explica-me melhor essa comoção de ter as 65 mil pessoas da família ali... Estranho, é como se estivesses a fazer um número cómico dizendo isso.

Percebo que as pessoas achem graça e achem que é rídiculo. Estou a falar a sério.

 

Por que é que isto te toca? Por que é que é comovente?

Há pessoas que conseguem ser primárias e irracionais na política, na religião, com imenso sucesso. Eu resolvi guardar a irracionalidade e o primarismo todo para o clubismo, para o Benfica. E atenção que a palavra primária também tem um lado bonito, um lado de primeiras coisas. Não choro com nada na vida a não ser com o Benfica – isso é uma coisa ridícula.

 

A sério?

Choro, choro, choro.

 

Não choras com mais nada? Era a outra coisa que me impressionava.

Não. É mesmo uma coisa irracional, de um domínio extraordinariamente primitivo. Lembro-me de ir ao Benfica com o meu primo António, foi ele que me meteu o bicho. Eu tinha para aí seis anos e o meu primo tinha tiques esquisitos, tremia todo, coçava o colarinho, coçava a nuca, cuspia e fumava. E lembro-me de olhar para ele e pensar: “É isto que quero para mim, é isto mesmo”.

 

O transe.

É aquele. Percebo que é absurdo uma pessoa sofrer da maneira que eu sofro, com o coração a bater nas costas, porque onze milionários dão pontapés num objecto esférico cheio de ar, vestidos com camisolas cuja cor me agrada. É aquela história do Herberto Hélder, “se eu quisesse enlouquecia”... Se eu quisesse “desenlouquecia”, sabia fazer o caminho ao contrário.

 

Impunhas a racionalidade. Serias capaz?

Só que não quero! Gosto imenso daquele sofrimento. A proximidade que sinto das pessoas que estão no estádio..., aquele é o público que realmente me interessa. Sei que na televisão, se faço uma coisa sobre o Marcelo, há pessoas que vão ficar desagradadas. Mas, eh pá, são ossos do ofício. Agora, pensar que qualquer coisa que eu faça no Estádio da Luz vai desagradar aquela gente, isso sim, transtorna-me.

 

Tenho uma pergunta algo delicada, e é só pela intuição...

Força.

 

Passaste a vibrar ainda mais com o Benfica depois da morte da tua avó?

Não, não. Por que é que achaste que essas coisas estavam associadas?

 

Tenho a impressão que a pessoa que mais amavas e de quem eras mais íntimo era a tua avó. E ela, pela sua simplicidade, personificava também esse lado familiar e espontâneo do Benfica. Ocorreu-me que podias transferir um pouco para a família indiferenciada que é a massa benfiquista aquilo que vinha dali e que foi um dos sustentáculos da tua vida.

Não passa nenhum dia sem eu me lembrar da minha avó. No outro dia estava a constatar isso. Isso não tem nada a ver com o Benfica, às vezes até tem a ver com o meu trabalho. Aprendi a valorizar mais aquela herança. As pessoas perguntam-nos quais são as nossas influências.

 

E quais são?

Há sempre influências de dois tipos: as técnicas, (o Woody Allen, o Herman, o Seinfeld, o The Office), e aquilo que nos fez ser aquilo que somos. Ela fez de mim aquilo que eu sou, mesmo sem querer. A maneira como se relacionava comigo e como achei que me devia relacionar com ela, fez de mim aquilo que sou. Isto tudo que me acontece também é ela.

 

Consegues explicar melhor o que é que ela te fez? Que milagre foi esse?

Não é bem um milagre, as pessoas são feitas dessa massa. Aquela tábua rasa que são ao princípio e depois leva várias marteladas... Ela tinha tido uma vida bastante madrasta. Qualquer outra pessoa que fica viúva com 30 anos provavelmente passados cinco, dez, um, volta a casar e refaz a vida. Para ela, ficar viúva com 30 anos significava a vida terminar quando estava a começar. Para as mulheres do Alto Minho significa vestir-se de preto até ao final da vida.

 

Tinha um daqueles corações com as fotografias roxas dentro? São de ouro e usam-se presos ao peito.

Tinha, tinha. E portanto, ela tinha uma má relação com a vida. Lembro-me sempre dela com o sobrolho franzido.

 

Engraçado, imaginava-a mais suave, mais ternurenta.

Mas isso era. Não sei se o General Ramalho Eanes é ternurento, mas é certo que aparece sempre com um ar sisudo. Aquilo é uma noção trágica da existência, um fatalismo incrível.

 

A tua avó dizia asneiras? No Minho dizem-se muito. Estou a pensar de onde é que vem o teu lado asneirento...

Se estivesse fora de si, dizia. Eu conseguia colocá-la fora de si, tinha algum talento para isso. Também não era difícil.

 

Quando fazes o campónio pensas nas descrições dela?

Penso. O Professor Lindley Cintra dividiu muito bem os sotaques: do Pombal para cima troca-se os “bês pelos vês”, nesta zona fala-se “assim”, na outra já os “esses” são mais molhados. A minha família, que é toda do Alto Minho, borrifou-se no Lindley Cintra! Uns falam com os “esses” mais molhados, outros não falam de todo. Eu, quando é preciso fazer um desses, basta pensar: “Hoje vou fazer o tio Manuel”, “Este vai ser o Aniceto”.

 

Tens no teu armário uma galeria desses personagens.

Sim, pá. É a aldeia da minha avó, basicamente. E mesmo da família.

 

Não é abusivo dizer que, de certo modo, és humorista por causa da tua avó?

Por causa da minha avó. A primeira pessoa que tive vontade de fazer rir foi ela. Havia em mim um fascínio imenso em relação às pessoas que conseguiam fazer isso a outro. Quando uma pessoa se ri, pode não estar feliz, mas imita muito bem, parece mesmo que está, e pelo menos durante um centésimo de segundo está mesmo, não me lixem, está mesmo. Uma das razões pelas quais há um preconceito, até religioso, em relação ao riso, à dimensão física do riso...

 

É pela descompostura, porque se desmancham?

De facto, durante uns segundos, o corpo está abandonado a uma outra coisa. Não se conseguir controlar o corpo é logo péssimo. Também o facto de uma pessoa conseguir interagir com a outra fisicamente, sem lhe tocar, causa uns engulhos grandes.

 

Gostava de recuperar uma pergunta que fiz há três anos: o que é que é sagrado? A avó é sagrada, as filhas são sagradas, a mãe é sagrada?

Exacto.

 

Ou seja, com o quê é que não se faz humor? Nem toda a impiedade é consentida. Isso estraga uma vida.

Uma coisa é perguntares-me o que é que é sagrado, outra coisa é perguntares-me com o que é que se faz humor. Toda a gente tem os seus sagrados, para umas pessoas é Jesus Cristo, para mim são as minhas filhas. Isso significa que não se pode fazer humor com Jesus Cristo ou com as minhas filhas? Eu acho que não.

 

Vamos imaginar que a tua filha tinha... estou aqui a imaginar uma coisa horrível... Vamos imaginar que era manquinha, que coxeava... Provavelmente nunca mais ias fazer o número do manquinho.

Não diria que isso é assim. Faço pouco das minhas filhas todos os dias. Uma das coisas de que elas mais gostam é quando as imito.

 

Isso é porque são perfeitinhas. Imagina que ela era mesmo manquinha...

Não sei se não podia ser sublimada através do riso. E não sei se não seria bom para ela se defender disso, justamente. Toda a gente tem o seu manquejar, mesmo que não esteja à vista de todos. A maneira de dominar e de conseguir superá-los, os meus, sempre foi através do riso e do humor. É um mecanismo de defesa como qualquer outro.

 

Raramente fazes humor com o sexo, que é um tema fácil. Ainda por cima, fizeste toda a escolaridade com freiras, frades, jesuítas, a universidade na Católica. A repressão sexual associada aos religiosos, é disso que estou a falar.

Ao princípio estavas a dizer que vou à Judite de Sousa e sou aquilo que as pessoas estão à espera que eu seja, mas que também sou outra coisa.

 

Tu és mais culto, mais humilde, mais controlado do que o que as pessoas estariam à espera.

Admito que haja uma parte que se surpreenda por o palerma que vê na televisão a fazer aquelas figuras ridículas saber...

 

Quem é o Nietzsche, e que o tenha lido.

Pois, ou quais são os momentos do Génesis em que há riso e a forma como foram sendo interpretados. Não faço nenhum esforço para ser de uma maneira ou de outra. Sou o palerma que quando a câmara está apagada diz imensos palavrões, faz piadas do mais básico e escatológico e também gosta de saber o que é que o Nietzsche pensa. Um tipo pode ser um palhaço e um idiota e gostar de ler livros. Não é surpreendente. As pessoas são mais do que uma coisa. Provavelmente o público está à espera que se seja só uma coisa.

 

O vosso humor não recorre a palavrões.

É um acordo tácito, nem sequer chegámos a discuti-lo. É relativamente fácil o humor com palavrões.

 

Na minha entrevista anterior dizias “puta cara”. Dizias que aquilo que incomodava as pessoas, quando fizeste o anúncio do “Eles falam, falam, falam...”, não era teres sido puta, era teres sido uma “puta cara”. Teres ganho uma pipa de massa.

Uma parte das pessoas fica sempre incomodada com isso.

 

Agora és uma puta cara, cara, cara.

[risos] Agora ninguém me chateia por causa disso.

 

Estás no pico da onda. O sketch do Marcelo é inesquecível. Já te encontraste com ele?

Não, não. Aqueles foram os minutos mais perigosos de sempre da minha carreira. Nunca recebi tantas ameaças.

 

Mas tu recebes ameaças?!

Ora aí está. Por carta, por mail. A mim, à minha família, às miúdas, informações sobre o colégio onde andavam. Uma coisa bastante assustadora. Esse momento do aborto fez-me reconsiderar o sítio onde vivemos.

 

Eu estava centrada na tal unanimidade dos Gatos, não tinha ideia que pudesse ter havido uma reacção tão visceral.

Se eu fizer uma bomba, se assaltar um banco, se matar alguém, admito que as pessoas me ameacem matar a mim. Agora, fazer uma rábula humorística de dois minutos e ameaçarem-me da mesma coisa?

 

Foi um assassinato político... Estava a pensar se devia dizer isto, mas é o sentimento colectivo. Aquela rábula foi mortal para o Professor Marcelo.

É possível que tenha sido atendido como isso.

 

As freiras e os frades, os religiosos e o sexo. Acho que era a ponta que tinha ficado solta lá atrás. Para terminarmos, a “punchline” do sexo funciona sempre bem.

O sexo é como a sogra, é um tema humorístico clássico. Se não for abordado de uma forma especialmente sofisticada, faz dele um tema pouco interessante.

 

Casaste pela Igreja. O Tolentino de Mendonça foi o padre do teu casamento.

Sim, num casamento misto. Como é que hei-de dizer? Não é a Igreja do César das Neves [aquela em que me revejo]. É na Igreja do Padre Tolentino. Há uma figura do direito canónico que prevê que um tipo que não é baptizado, como é o meu caso, ou que tenha outra religião, case com uma católica.

 

E acabamos nisto?

Só se disseer uma coisa bombástica para terminar. Vamos tentar fazer cair o governo! O que é que achas? Por acaso, eu gostava. Se tivesse um leque de recursos mais vasto, se conseguisse imitar, por exemplo, o Sócrates, que é muito difícil...

 

Tu treinas?

Treino imenso.

 

Vamos ao exemplo que toda a gente conhece: o Marcelo. Demoraste muito tempo a chegar lá?

Imenso. Treino em casa. Vejo imensos vídeos, vejo o vídeo sem som para ver os gestos, oiço o vídeo sem imagem para ouvir a melodia. “Assim que se apanha, é uma segunda natureza” [isto é dito no registo de Marcelo], mas primeiro que consiga apanhar, é uma chatice.

 

Disseste que podes ser inseguro? Vou testar a tua insegurança: posso dizer que não acho piada nenhum às crónicas que escreves para a Visão? Talvez sinta a falta da tua interpretação. Ao contrário do que dizes, tens imensos recursos enquanto actor.

Aquilo já dura há dois anos, e continuo à luta com a crónica. O Miguel Esteves Cardoso no outro dia dizia que uma pessoa faz uma crónica boa, depois é merda, merda, merda, merda, depois vem outra boa, e depois é outra merda, merda, merda, merda. Eu estou quase sempre na merda.

 

O que é que falha?

É uma coisa que não consigo compreender. Às vezes, até o sentido da responsabilidade me cerceia os movimentos. Lembro-me de estar a escrever para o blogue e ficar satisfeito com os textos... O problema principal é o tempo. Nunca tenho tempo para escrever tão bem quanto gostaria.

 

O que quero é saber se te custa muito admitir que não sabes fazer uma coisa. Ou vais tentando, tentando.

Sim, custa-me. E vou tentando. Não admito que não consigo fazer, eu hei-de conseguir. Estou a ser absolutamente sincero. Nas peças da escola eu era o pior gajo que ali estava, a minha família ria-se à gargalhada com a minha falta de jeito. A minha tia Lurdes ainda hoje fala nisso, “péssimo, péssimo”.

 

Quem te viu e quem te vê. Ao mesmo tempo, a insegurança é uma arma poderosa, porque é altamente estimulante.

Exactamente. Conheces a fábula do mocho e do leão?

 

Conta.

O mocho diz: “Pst, ó leão, eu vou sair agora de casa, estão lá as minhas crias, são bebezinhos tão bonitos e fofinhos, pedia-te que não lhes fizesses mal”, “à vontade, estás a pedir-me, por amor de Deus...”. E o mocho chega a casa e está tudo estraçalhado, “então, pá, tinha-te pedido...”, “disseste que eram bonitos!, eu comi uns que eram absolutamente horríveis”. O mocho acha sempre que os seus filhinhos são lindos. Tenho sempre esse pânico, de achar que estou a ser mocho em relação a uma rábula que acabei de fazer. O texto, controlo mais ou menos, sei ver que isto tem graça ou não tem. Uma imitação do ponto de vista da performance, tenho sempre muita dificuldade em saber se aquilo está bem ou está mal.

 

Pronto, está visto que a conversa não tem fim. Ficamos por aqui.

Ok.

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009

 

Ler e escrever (Plano Nacional de Leitura)

08.01.24

Aprendi a ler com cinco anos, numa escola pública. Até há pouco tempo, não prestei especial atenção ao facto de ter aprendido cedo e ter aprendido bem. Fiz o primeiro ano, que então se chamava primeira classe, duas vezes: a primeira com cinco anos, quando frequentei a turma do meu irmão, um ano mais velho do que eu, e a segunda vez, com seis anos, já numa situação regular.

Há um episódio de que tenho vaga memória e que diz qualquer coisa: o de um pequeno incêndio em casa, eu com seis anos, a pedir que me salvassem os livros.

Pode ser que eu tenha querido ir mais cedo para a escola por gostar de livros, por ter gosto em aprender.

Pode ser que eu tenha querido ir para a escola para acompanhar o meu irmão mais velho e não ficar em casa com a minha irmã de poucos meses.

Entre a minha vontade e ciúme e a cumplicidade de uma professora que deixou que eu frequentasse a escola um ano antes do permitido, aprendi a ler cedo. Quando entrei formalmente para o ensino primário, em Outubro de 1977, tinha cinco, quase seis anos, e já sabia ler bem. Ler e escrever.

Penso que isso me deu um conforto e uma confiança importantes. E, sobretudo, um prazer associado à escrita e à leitura.

Não posso reconstituir com segurança, mas arrisco dizer que ler e escrever surgiram sempre juntas no meu imaginário. Desculpem abusar do uso da primeira pessoa, mas gostaria de contar daquela vez, na terceira classe, em que fiz uma redacção sobre um passeio à Senhora da Penha, em Guimarães. Era uma descrição vívida, tinha o verde do parque, as actividades desse domingo, o cheiro, talvez a alegria. Qualquer coisa deve ter parecido excessivo à minha professora, que duvidou que tivesse sido eu a escrever e que pôs a hipótese de a redacção vir escrita de casa.

Não vinha.

 

Fanny e Alexander 2.jpg

 

A minha casa não era uma casa de leitura. E a minha avó querida, materna, era analfabeta.

Pensei na minha avó quando concluí o meu mestrado e quando me matriculei no doutoramento, na Universidade Nova de Lisboa. Senti, sinto, uma gratidão pelo país, por todos os que pagam impostos e pelos governantes que implementaram políticas de promoção de serviços públicos de qualidade, sobretudo na educação e na saúde. Fiz toda a escolaridade em escolas públicas com a certeza de que ter um serviço público de qualidade, universal, gratuito ou tendencialmente gratuito, é uma expressão do que é ser civilizado, evoluído, justo.

Que pena que a minha avó tenha crescido num tempo em que a educação não era uma prioridade ou sequer uma possibilidade para todos, e ainda mais para as mulheres.

Esta reflexão que hoje se levou a cabo não é sobre a discriminação de que as mulheres são alvo, ainda hoje, nos mais diversos sectores da vida em sociedade. Mas, como feminista, empenhada num sistema que faz da democracia uma palavra viva, e como cidadã que paga impostos e que luta pela utilização desses impostos em serviços públicos que não deixem alguns pelo caminho, não posso deixar de o dizer e de a recordar.

Dizer é uma forma de combater. A palavra "Não" é uma palavra feroz, ensina Emily Dickinson, e eu quero dizer não a um tempo de injustiça social e de discriminação de género. Quero recordar mulheres como a minha avó, que não encontraram lugar na escola, para, desta maneira, lembrar que, apesar dos passos gigantescos que demos nestes 43 anos, há um caminho importante para fazer. Os desafios são outros, a persistência na acção é a mesma.

O título desta jornada, organizada pela Teresa Calçada, que gostaria particularmente de saudar, incita-nos a olhar para o presente e para o futuro. Neste exercício, obrigatório e difícil, tento não perder de vista o lugar de onde venho. E por lugar quero dizer: a família, a cidade, o país, o tempo, o corpo próprio, a minha identidade.

Sou, somos, essas raízes, um território movediço, feito com os contributos de muitos, uma compreensão de mundo sempre imperfeita, ficções que construímos acerca de nós próprios, a capacidade mágica de fazer planos, projectar-nos no futuro, viajar. Somos pessoas em dúvida, precisamos do espanto, de nos sentir menos sozinhos na perplexidade, sabemos o mundo tóxico, ruidoso, pré-apopléctico. Preciso de ler para me sentir menos confusa, menos ansiosa, para compreender e incompreender, para sair de mim e para me recentrar em mim.

A metáfora da leitura como viagem está talvez um pouco gasta, mas continua a ser, para mim, uma ideia poderosa. A de que, através da faculdade da imaginação, a partir de um conjunto de signos, da clarificação e da estranheza, o mundo se torna menos opaco e o meu mundo interno se abre, se expande, se transforma, é engrandecido por causa dessa acção, absorve e expulsa, integra, está em processo: é vivo.

A leitura é um lugar de partida. Do que mais gosto é de não saber onde vou dar, da aventura de não conhecer o destino. E quando parece que chego, essa outra coisa é que é linda, está sempre adiante. Aprender tem que ver, no meu glossário, com o desconhecido. Ou, para citar Millôr Fernandes, cultura é tudo o que amplia a minha ignorância. O mesmo se pode dizer da leitura. É porque leio que sou mais consciente da minha ignorância, é porque escrevo e leio que o meu mundo se torna, para citar Camões, um "largo mundo alumiado".

Sou afortunada se encontro mestres que me sugerem portas, caminhos. Sublinho: sugerem, em vez de uma imposição ou indicação assertiva, e me dão as ferramentas para que eu possa abrir outras portas, encontrar outros caminhos, tornar mais largo o meu mundo. Uma subtileza iluminante é uma qualidade rara, preciosa. Conheci-a com a professora Maria Filomena Molder, minha mestre, que um dia, estava eu no segundo ano de faculdade, trouxe Dante para uma aula de Filosofia Medieval.

 

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“No meio do caminho em nossa vida, eu me encontrei por uma selva escura porque a direita via era perdida...”; “Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita.”

Começa com estas palavras célebres a Divina Comédia. Trago-as para falar da selva oscura e de como considero indispensável ter figuras tutelares para avançar no caminho. Amparo é uma palavra muito boa. Curiosamente usamos mais a palavra desamparo. Precisamos de amparo. Da fantasia de uma pessoa que lê para nós uma peça de Strindberg e nos fala do sonho, que nos escuta como meninos que sempre somos.

Dante escolheu o poeta Virgílio, que ele admirava enormemente, para o acompanhar até às portas do paraíso. Eu encontrei Maria Filomena Molder como quem recebe uma mão que segura, como quem encontra.

Esta imagem de Dante em Florença, com Beatriz, reflecte um cruzamento de linhas, uma sintonia.

 

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Esta imagem de William Blake, de uma série fabulosa que fez para a Comédia, é uma imagem de alguém que não está sozinho, de alguém que talvez tenha menos medo porque tem condições para decifrar enigmas, enfrentar perigos, que tem a quem perguntar, alguém que o pode ouvir.

Muitas vezes, a leitura é esse outro, é essa outra voz, um diálogo connosco. O cinema, o teatro, as artes plásticas, as artes são vozes, são outros que nos ajudam a situar na nossa selva oscura. Muitas vezes, também, a literatura está dentro destes vários suportes, explicitamente, como na imagem que vimos do filme Fanny e Alexander, de Bergman, ou enquanto ponto de partida para uma outra obra de arte, como no caso de Carta de uma Desconhecida de Max Ophuls, um filme de 1948 que parte de um livro de Stefan Zweig.

 

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Na cena mais famosa desse filme, uma jovem interpretada por Joan Fontaine, viaja num parque de diversões com o seu apaixonado, um pianista bem sucedido. O cenário é uma cabine de um comboio, dois bancos, uma janela, imagens desenhadas que dão uma ilusão de movimento, uma música encantatória. Viajam sem sair do lugar e fazem paragens que são ficcionais (mas não na imaginação deles) em Veneza, na Suíça, vão às memórias de infância dela, chegam a uma estação, recomeçam a viagem, nova digressão, novo mundo vasto, novo mundo alumiado...

Os três minutos desta cena são uma forma de leitura fascinante. São uma experiência diferente da que tive quando li as páginas do livro de Stefan Zweig. Mas apesar de serem mais taxativas, como o cinema sempre é, porque tem cara e lugar e uma configuração que não esquecemos mais, mostram como a memória, ter um enredo, criar e contar uma história, são um aliado precioso para a vida, são formas de salvação. Aquela personagem não mais estará sozinha enquanto puder recordar o pai como recorda naquele banco de comboio, junto do seu apaixonado.

Eu não me sinto sozinha porque sou um ser narrativo. Porque aprendi a ouvir a História do mundo, porque tento escutar a minha história.

 

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Paula Rego, a nossa maravilhosa Paula Rego, quis que o seu museu se chamasse Casa das Histórias por isto mesmo. Frequentemente ela fala da importância de ter uma história para começar a desenhar e a pintar, ela fala da singularidade dos nossos contos tradicionais; ou seja, fala de identidade individual e colectiva. Vou ler um excerto de uma entrevista que lhe fiz aquando da inauguração do museu:

"… vi no outro dia na televisão um programa com umas velhas e uns velhos a contarem histórias antigas portuguesas – algumas bastante obscenas. Essas histórias são uma grande, grande influência. A Gulbenkian, graças a Deus, deu-me seis meses dinheiro para eu poder estudar contos folclóricos. Estudei os italianos, estudei franceses, estudei portugueses. E não há como o conto português.

Porquê?

Há neles uma espécie de brutalidade bela. Que não há em mais sítio nenhum, nenhum, nenhum. O grande mestre disso foi o Leite de Vasconcelos [etnógrafo que fez a recolha de contos populares e lendas]. Temos essa tradição oral que vem do passado, de uma beleza mórbida. Essa beleza só existe aqui e tem a ver com a vida portuguesa de agora – não tem a ver só com o passado. Por isso chamo a isto a Casa das Histórias, está a compreender? Não é porque os quadros contem histórias. A mim, todos os quadros contam histórias. Essa crueldade bela é uma tradição a que ninguém liga nenhuma. Tentei, tento que os meus bonecos tenham uma ligação com essa coisa portuguesa. É só isso que quero dizer."

Era o começo da entrevista. 

Gosto desta brutalidade bela de que fala Paula Rego. Gosto de, com ela, na pintura, apurar o ouvido, a minha capacidade de ler em diferentes suportes, de diferentes maneiras.

 

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Como já disse antes, ler é para mim um lugar de partida. E ler é, frequentemente, um detonador da experiência da escrita. Uma escrita mais elaborada, reflexiva, que ganha autonomia em relação ao objecto de onde provém, ou uma escrita que funciona como comentário directo do objecto sobre o qual me debruço.

Gosto de escrever sobre os livros que estou a ler. Dir-se-ia que o faço desrespeitosamente, porque escrevo com a caneta que tenho à mão e me aproprio da página como se ela fosse uma folha onde posso anotar o que é convocado por aquela leitura. Escrever, sublinhar, comentar são, então, uma forma de ligação com o texto, para mim mais respeitador, mais sacralizado, porque sintoma de uma relação amorosa. Quem eu sou está naquele vínculo, naquele corpo a corpo com um texto que é de outro e depois é meu também.

É uma relação de dois que é, ao mesmo tempo, uma relação com muitos, com uma constelação de personagens, com quem temos uma ligação empática. Se Brás Cubas, o personagem criado por Machado de Assis em 1880, não nascesse a 20 de Outubro, que é o dia dos meus anos, provavelmente a minha simpatia por ele não seria tão imediata ou séria. E se não fosse por causa dele, que não existe deveras, nem nasceu no dia 20 de Outubro, a não ser no instante criativo de Machado de Assis, eu não iria à Rua de Brás Cubas no Porto, encontrar numa placa a existência de um Brás Cubas que existiu deveras e que fundou a cidade de Santos, no Brasil, no século XVI.

Como é fácil supor, Brás Cubas, para mim, é o outro, e não este, conhecido pelos seus feitos e valentias num tempo longínquo. O Brás Cubas com quem me dou foi criado por um mulato numa sociedade de matriz esclavagista, Machado de Assis, que cita Shakespeare, traz uns fumos de Schopenhauer, vive no aroma de uma flor amarela e mórbida da melancolia, falta-lhe ímpeto cesariano, conquistador, que encontra, na escrita das suas memórias, uma forma de se relacionar com a eternidade. Ele, que teve uma vida falhada, encontra no exercício da escrita uma forma de se perpetuar, de nos ligar ao seu nome, a uma biografia.

Foi assim que o li na minha dissertação de mestrado. Suspeito que vai acontecer o mesmo com Bentinho e Capitu, personagens que começo a entranhar no doutoramento que já avança, bem como Pedro e Paulo, os gémeos de Esaú e Jacó.

Esta imagem dá ideia de como eles vivem já comigo. Há nela intuições, pistas, tentativas de desvendar qualquer coisa que não sei ainda.

Sei que vou encontrar nestes personagens cintilações de quem sou, do que é o mundo, algo que me fará sentir mais acompanhada. Viverão em mim anos, como Brás Cubas vive. E que prazer ler e ler e ler e não perceber ainda. Espero que vivam com sofreguidão, que provoquem convulsão, que aconteça comigo o que Agustina explica na sua autobiografia quando descreve o acto da escrita: “Escrever é entrar no coração das pessoas, beber-lhes o sangue, avançando sempre, criando enredos e fazendo saltar os personagens das páginas. Há pouca gente que percebe que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se têm encontros com Deus”.

Se substituirmos escrever por ler, o efeito produzido é o mesmo. Porque ler é lugar de partida, ler é lugar de encontro.

Obrigada.

 

 

Lido no encerramento da jornada: "Presente- futuro: a urgência da leitura", organizado pelo Plano Nacional de Leitura. Gulbenkian, 6 Novembro 2017