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Anabela Mota Ribeiro

Maria Bethânia

26.03.24

«Essa mulher exótica, muito chique numa foto dos anos 60, comemora 35 anos de carreira com um show no Canecão. Você sabe quem é? Veja na página 20».

A legenda, datada de Novembro de 2001, ocupava a coluna da esquerda de uma página do Jornal do Brasil. A mulher exótica, a coluna da direita. O cabelo da mulher é o que mais impressiona; esticado num rabo-de-cavalo, vai muito para lá da cintura. O perfil, que pronuncia a testa alta e o nariz proeminente, destaca-se logo depois. A roupa é confortavelmente prêt-a-porter: umas calças de espinha, uma camisola de malha, um lenço à volta do pescoço. O que faz da imagem aquilo que a imagem é, é a imponência da mulher. Exótica e chique. Sendo que o exotismo era parte substancial do seu ser chique.

Essa mulher, no Brasil de 65, transformou-se numa estrela da noite para o dia. O mesmo Jornal do Brasil escreveu então: «Magra, esguia, tímida, Maria Bethânia, a moça dos mares da Bahia que veio substituir Nara em Opinião, teve que voltar a Salvador para fazer uma segunda época de matemática». O título não podia ser mais entusiástico: «Do mar surgiu uma nova musa». Maria Bethânia tinha 17 anos, contas a arrumar com a escola, e uma brasilidade que nada tinha que ver com a de Nara Leão, protótipo da carioca de boas famílias, que substituiu no show «Opinião».

Foi o seu debute. Para trás ficavam experiências avulsas na Baía. A acompanhá-la, menina virgem que o pai quer resguardar, o irmão mais próximo.

O irmão dá pelo nome de Caetano Veloso, e foi por causa dele que ela se chamou assim. (Na altura fazia sucesso no rádio o tema «Maria Bethânia», de Capiba, gravado no ano anterior por Nelson Gonçalves. O pequeno tinha quatro anos e insistiu com o pai para que a irmã mais nova se chamasse assim).

O que aconteceu antes e depois desta noite mágica é o que ela esclarece nas próximas páginas. A noite é o ponto de partida que assinala 35 de carreira, 55 anos de idade. O disco «Maricotinha» promove a festa de duplo aniversário.

Uma manhã, por altura dos concertos que deu no Porto e em Lisboa, Bethânia acedeu a viajar à margem do tempo.  

 

 

No dossier de imprensa que acompanha «Maricotinha», há imagens suas posando como modelo. São imagens muito estilizadas, que datam de 1969.

Eu era modelo. Não uma modelo profissional de passarela, mas fazia muita fotografia para moda. Moda com uma assinatura vanguardista. Alguns artistas plásticos resolviam desenhar roupas e pediam-me para posar.

 

Em Salvador?

No Rio, logo que cheguei, em 65. Sempre fui magra e tinha uma postura de cena de que as pessoas gostavam. Era diferente do manequim daquele período. Essas pessoas..., vanguardistas, (não tenho outra palavra), e criadores mais exigentes, me convidavam para que apresentasse as suas roupas, em fotografia. Já tinha feito o «Opinião», e fazia isso em paralelo à minha carreira. Nunca deixei de ser cantora.

 

Porque é que fazia?

Achava bonito. A roupa, os adereços, achava isso bonito. Tudo o que me pediam para fotografar – não tem muita coisa –, era como se fosse uma pintura, como se fosse um objecto da Lígia Clark. Adorava fazer.

 

Pensei que pudesse ser em Salvador, porque viveu intensamente a sua movida cultural. É muito fácil imaginá-la, então, a posar para artistas plásticos.

Quando vim de Salvador tinha 17 anos, era meniníssima, não tinha feito nada profissionalmente. Só tinha feito três espectáculos; dois com o grupo, (Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, Pitti), e depois a ideia do grupo era a de que cada um fizesse um solo. Fui escolhida para fazer o primeiro solo, dirigida por Caetano e Gil. Como tenho, sempre tive, uma atracção muito grande pela dramaturgia... Havia no Teatro dos Novos uma montagem muito especial com cenografia de um dos maiores artistas baianos. O espectáculo era «Eles não usam black-tie». A cenografia era uma réplica de uma favela carioca. Mas espectacular!, foi premiado no Brasil inteiro! Como você disse, esse período na Baía era de uma efervescência cultural mágica e única, e espero que um dia se repita para que outras gerações tenham o privilégio que a minha teve. De poder conviver, participar. Então, o meu espectáculo solo foi montado nesse cenário. Mas tudo amador, nós não éramos profissionais.

 

A componente social e política era relevante?

Contundente. Me referi a esse espectáculo porque foi a partir dele que Nara Leão, que não assistiu mas ouviu a fita de gravação, me indicou para fazer o «Opinião».

 

Gostava de perceber a relação que tinha com a sua imagem e com a sua feminilidade. No «Opinião» esticaram-lhe o cabelo, e tinham alguma dificuldade em lidar com a força que o seu físico emana, que não é o convencional de uma menina carioca – ao contrário.

Nunca tive problema; tanto que posava. Juro para você que essa coisa de posar para fotografia de moda era muito um agrado que fazia, uma maneira de dar o meu apoio à criação artística daquela figurinista ou daquele artista plástico. Não ganhava nada para fazer isso, era bem espontâneo e amigável. Nós, brincando... Só que era levado um pouco a sério, porque tinha feito o «Opinião» e virei um nome nacional muito forte. Mas sempre lidei com muita naturalidade. A criação que tivemos, meu pai e minha mãe sempre deixaram para nós uma escolha ampla. De gosto, de escolha de música, de escolha de tipo físico. Família de oito filhos, e eu sou a caçula [mais nova]. Vim herdando o gosto de cada um.

 

São todos parecidos?

Muito parecidos fisicamente. Eu com Caetano sou muito próxima, Mabel com Rodrigo, Clara Maria com Roberto. São sempre casais. Mas se olhar qualquer irmão meu, vai dizer «Ah, tem a ver com Caetano e com Bethânia».

 

Nas fotografias da época é muito evidente essa parecença. E partilhavam uma espécie de beleza andrógina, um e outro.

Nós temos isso. Quando fizemos o espectáculo juntos, havia comentários muito engraçados. Me lembro de um escritor argentino que foi assistir ao espectáculo e falou «Adorei; mas essa brincadeira de espelho não tem graça». Ele achou que realmente éramos um.

 

A sua relação com esse corpo e esses traços...

Sereníssima. Para mim não era difícil. Era para algumas pessoas que estranhavam aquela beleza, estranha e misteriosa, ou não-beleza. Era uma outra coisa: nordestina, do interior da Baía, com 17 anos.

 

Tinha orgulho nessa diferença? Nessa mestiçagem, por exemplo?

Não é orgulho nem nada. Para mim sempre foi normal. Sempre percebi que era uma singularidade, como tudo em mim. A minha voz é singular, a minha postura em cena é singular, a minha escolha intelectual é singular, tudo é singular. E Caetano, quatro anos acima de mim, desde menina que me chamava a atenção: «Olha a sua sobrancelha, olha como é desenhado o teu lábio». Tivemos sempre uma relação muito próxima com o nosso físico.

 

É verdade que um dia, num autocarro, iam perguntar que relação tinham, e você se antecipou e disse «Somos amantes!»?

[riso] Não me lembro dessa história, mas pode ser. Nós tínhamos um elo... Cresci com Caetano me ensinando tudo. E eu despertava nele um interesse... Ele viu uma criança virar mocinha e virar mulher. Era uma descoberta interessante.

 

Quando virou mocinha, com a chegada da menstruação, esse tipo de coisas contava mais facilmente a Caetano que a qualquer outra pessoa?

Não. Na hora que menstruei estava brincando, jogando bola com amigos. A palavra que se usava não era menstruar, era «Ficar incomodada». «Minha mãe, fiquei incomodada». E ela «Então vem rápido tomar banho, vou lhe ensinar». Saí da brincadeira, tomei banho, ela me ensinou como usava e voltei para a brincadeira, normal. Lógico, fui correndo, Caetano foi das primeiras pessoas a quem quis contar, «Caetano, fiquei moça!». Meu pai ficou um bocadinho zangado.

 

Porquê?

O pai não gosta muito de ver a filha desenvolver. Acho que meu pai atinava que eu me ia embora cedo, que eu ia sair daquele ninho.

 

Daí que mais tarde ele incumbisse o Caetano de a proteger e acompanhar.

Era virgem, era a filha caçula, e não vinha para uma cidade grande sem um irmão mais velho acompanhando! Não saia de noite sem um irmão me acompanhando!

 

O estigma da virgindade e da rapariga, em Portugal diz-se «Honrada»...

Lá também. «Perdeu a honra», quando perde a virgindade.

 

Era forte esse estigma?

Forte, mas não avassalador, e muito menos dentro da minha família. Conversava-se sobre tudo, com o devido respeito; não era essa intimidade que hoje tem com a mãe ou o pai. «Meu pai, preciso conversar com o senhor um assunto, minha mãe preciso conversar com a senhora». Tinha uma solenidade, mas muita naturalidade.

 

A relação que as pessoas dos Trópicos têm com corpo, passará com certeza pelo clima, é muito mais desinibida.

Muito viva.

 

Por isso fiquei surpreendida quando soube da extrema preocupação do seu pai com a sua honra.

Tinha, tinha.

 

No Rio seria diferente?

Completamente. Além de ser Baía, era interior da Baía, recôncavo baiano, berço das tradições mais enraizadas da Baía. O que nossos pais nos deram foi uma noção de «Como deve ser». «Como deve ser» na cabeça deles, mas «Vocês escolhem e sejam responsáveis». Isso sempre permeou a nossa formação.

 

O seu pai era quem mais se preocupava. Mas no «Verdade Tropical», Caetano escreve que a sua mãe a tinha por preferida

É, até hoje falam. Sou caçula e minha mãe me denga. Minha mãe tem comigo uma admiração extra por eu ter escolhido o palco. Por viver no palco. Minha mãe era actriz. É que em Santo Amaro, as senhoras milionárias que tinham as suas fazendas e terras, no fim do ano, chegava Novembro e terminava o colégio, arrebanhavam as moças, filhas de amigas ou conhecidos dos maridos, 20, 30 moças, para formar durante três meses.

 

Como é que se chamava a senhora que formou a sua mãe?

Dona Sinhazinha Batista. O marido era senador. Minha mãe, menina, teve uma formação ampla: aprendeu teatro, aprendeu a bordar, a cozinhar, a fazer doce, a cantar, a dirigir. A primeira pessoa que me dirigiu foi a minha mãe.

 

Aprendiam a ser prendadas?

Era costume da época formar as moças para um casamento, entendeu?, era para um casamento. Para a moça ter um conhecimento geral do mundo. Minha mãe cantarola até hoje trechos de ópera que ela lembra, que ficaram marcados. Meu avô era poeta e minha avó era uma mulher de classe média-baixa, como nós todos. Não tinham acesso a essas vitrolas com discos importados da França, com ópera gravada. Era bacana essa formação.

 

Como é que os seus pais se conheceram? Ficou a menina prendada, ensinada pela Sinhazinha Batista, pela qual ele se apaixonou?

Minha mãe era linda.

 

Na capa do disco do Caetano «Uns» percebe-se como são parecidos.

Temos muito dos dois. Tenho mãos idênticas às do meu pai, Caetano também. No rosto, o nariz é do meu pai, um nariz que se acha um pouco árabe, mas é muito do índio da região da Baía. Não sei muito da história de amor deles; eu vivi-a, graças a Deus!, vivi e me formei nesse núcleo amoroso. Um amor de causar espanto. Acho que foi uma paixão fulminante. Casaram logo, meu pai muito pobre, funcionário do Correio, e foram morar numa cidadezinha, menor ainda que Santo Amaro.

 

O seu pai tinha alguma formação cultural?

Era um apaixonado da poesia, da literatura de um modo geral. Os amigos do meu pai, todos os que conheci, era poetas.

 

O assunto vinha a propósito da preferência da sua mãe por si.

Minha mãe era óptima actriz lá nos dramas de Dona Sinhazinha. Depois se apaixonou pelo meu pai, foi viver a vida dela, de casamento e de filhos, e o palco sumiu. Então, o que é que ela fazia? Quando eu era meninota, ela dirigia umas meninas de Santo Amaro e eu inclusive. Fazíamos uns espectáculos, caseiros, para as pessoas da cidade. Sou um pouco ela no palco. Represento o palco que ela não viveu. Tanto que é muito exigente comigo; tem uma imensa confiança, mas até ganhar essa confiança... Hoje em dia, Bibi Ferreira, uma grande amiga, me dirigiu inúmeras vezes, tem comigo esse rigor que a minha mãe tinha. Me dá ordens. «Be, a perna...». Sabe como é, reclama da postura.

 

Trata-se de uma complementaridade. Mas a sua mãe tem um outro lado, mais estereotipado, da mulher que casa e tem filhos. Nunca ambicionou para si, também, essa vida?

De casar? Quando tinha 18 anos tinha uma quase obsessão em ter filhos. Vim cantar com 17, minha vida deu uma virada. Eu sabia, eu esperava, sabia que ia viver no palco. Mas não sabia que ia ser naquela rapidez, naquela violência que foi. Subi no palco à noite para fazer uma apresentação, e quando acordei era quem sou hoje. Um ano depois de estar no Rio, me bateu a solidão de uma grande cidade, e outra, a do palco, sozinha, comendo em restaurantes, sabe essas coisas? Talvez pela necessidade de preservar o que admirava – me fascinava a vida de nossa casa, família imensa, mesa com 20 pessoas –, pensava profundamente em ser mãe. Mas, junto com esse desejo, a visão da minha carreira, da minha história como intérprete do meu povo, era tão grande quanto. Com o desenrolar do tempo, me vi muito dirigida para o meu trabalho. E diminuiu esse anseio.

 

Havia ainda a dificuldade em fazer uma família à imagem e semelhança da sua.

Que era o meu modelo de perfeição. Todos os meus novos amigos, que tinham os seus pequenos núcleos familiares, não via ali a mesma coloração, o mesmo calor. Todo o mundo trabalha. E eu não ia deixar a minha carreira por nada! Senti muito isso, «jamais, isso não vai ser como sonhei» Também não foi uma decisão chapada, «Então não terei filhos». Ficou uma coisa «Se acontecer será muito bom, conquanto que não me divida». A maneira como sou no meu ofício, não posso ter divisão. Do mesmo modo, se parisse, tenho a certeza que seria igual. Nada me poderia dividir na criação. Deus foi generoso comigo; não me deu filhos, que é uma realização feminina, mas me deu a voz. Me deu a voz, que é feminino. Compreendi essa escolha que Deus fez em relação a mim.

 

Do que falamos é do feminino. As suas escolhas musicais marcavam também uma diferença nesse sentido. Neste caldo efervescente da Baía, era a que gostava das músicas melodramáticas do Noel Rosa, e até do Roberto Carlos, mais tarde. Depois de ter feito o «Opinião», que é um espectáculo eminentemente político, quer voltar ao Rio com «Um show de amor».

A mulher é diferente do homem, mais sensível e tal. Caetano, sendo um homem tão especial, tem toda essa coisa que eu tenho, todo esse lado amoroso, delicado, feminino, que faz dele quem ele é. Do mesmo modo que eu tenho uma energia masculina muito forte comigo. Canto uma canção de amor derramada, mas a minha postura e a minha emissão de amor têm uma energia forte que modifica a canção. É essa a nossa assinatura, a nossa individualidade.

 

A mulher não fica a chorar o amor perdido pelos cantos?

Choramingas nunca, jamais! Eu sou a mulher da luta, do amor, do palco. Filmes; Caetano e eu crescemos vendo tudo juntos, de Fellini aos dramalhões mexicanos. Chorávamos tanto no dramalhão mexicano como n’ «As Noites de Cabíria». Com emoções diferentes, mas tudo pode. Quando Caetano fez o Movimento Tropicalista, a grande marca do movimento foi «Não tenho medo do que gosto. Gosto de tudo que meu país é, mesmo que não seja o mais elegante, o mais fino». Amigos meus iam no cinema e tinham vergonha de chorar no dramalhão mexicano.

 

Nunca teve vergonha de gostar de Noel Rosa?

Absolutamente.

 

Li que quando ouviu João Gilberto o achou interessante mas destituído de emoção e carga dramática.

Não, não. João Gilberto, ouvi a primeira vez e falei «Esse homem é uma coisa, eu amo essa maneira». Ele tem uma coisa que corresponde à dramaticidade: é tão anti-dramático que vira o drama puro, renega tanto que é um drama, é uma tragédia grega! O João é genial, está fora dos parâmetros, João é um em século, quando o século é bom. O Noel não vinha tanto pela dramaticidade, vinha mais pelo lado do narrador do quotidiano. Noel era um compositor como Chico Buarque. Como se fosse um jornalista que conta sobre o típico da sociedade, do país. Noel sempre me interessou por isso, e pela maneira poética de ver o dia a dia, o amor, a vida de trabalho.

 

A vivência do amor no quotidiano é muito exaltada em si. Onde pensa que radica este interesse?

Não sei lhe dizer que raiz é essa.

 

Que memória tem de si enquanto menina que vai cantando e vivendo estas coisas?

Meu pai sempre falou «Você nunca vive a sua idade, você vive dez anos à frente da sua idade». Acho que já gostava destas canções mais aprofundadas, já gostava de imaginar uma relação amorosa com as dificuldades que essas músicas de Noel e de Chico... Tanto que Chico é a minha referência na minha geração. Chico e Caetano são os dois compositores. O Chico me pega mais no lado do amor, das crónicas do dia a dia; Caetano com uma coisa mais penetrante, mais aguda.

 

Como é que era a sua vida, menina pequenina?

Era em Santo Amaro, minha casa, colégio, brincadeiras, brincadeiras, brincadeiras... Brinquei muito, feliz de quem nasce no interior, com quintal e com árvores, com rua sem carro, cidade pequena onde toda a gente se conhece e se fala.

 

Completamente liberta de uma angústia, que é marca da vida e da opressão citadina.

Completamente liberta. Nesse período, não tinha angústia. Recentemente, conversando com Caetano, falámos sobre isso. Caetano não tinha angústia, naquele periodozinho não tinha não; depois foi chegando... Ele até falou «Tinha pavor de imaginar que ia viver a minha vida toda em Santo Amaro».

 

O sítio era demasiado pequeno para o seu talento e para a sua sede de mundo?

Uma cabeça como a de Caetano... Foi lindo o que vivemos, e hoje em dia voltamos e revivemos, mas tínhamos que sair. Principalmente Caetano, que é um autor.

 

Você também.

Eu, como intérprete. Mas um autor? Não pode. Os poetas amigos de meu pai, todos eles iam para Salvador ou Rio de Janeiro, para um curso, para qualquer coisa que desse uma respiração. De algum modo, o provincianismo deprime.

 

Aos 12 anos instala-se em Salvador com Caetano, para completar o liceu. Foi o seu primeiro desenraizamento.

Para mim foi dificílimo, foi um dos piores sofrimentos. Se não tivesse vivido esta ruptura, não sei se aguentaria com tanta firmeza a vinda para o Rio e o sucesso rápido.

 

Fazia birras de menina caprichosa, calava-se, não era?

Era muito calada. Fiquei muito infeliz. Vivia no meu quarto, que não era só meu. Nossa família é muito pobre. Meu pai alugou um apartamento para Rodrigo e Roberto, que já trabalhavam em Salvador, para mim e para Caetano, e Nicinha, minha irmã mais velha, foi tomar conta de nós. Meu quarto era dividido com ela. Nunca tive um quarto meu, só meu. Só fui ter depois que virei mulher, cantora, dona da minha vida. Não tinha dinheiro para ter um quarto para cada menina! Imagina, oito filhos!

 

E quando teve o seu espaço?

Ah, você não sabe, mas quando era menina pedia para minha cama ser encostada na parede. Porque tinha uma parede! Decorava toda a minha parede, tinha tudo o que eu amava. De fotos da Gelsomina, a Caetano. Caetano pintava; tinha retratos de amigos que mandava lhe fazer, programas de teatro a que ia, tudo, tudo.

 

Havendo tão pouco, a relação com os seus objectos seria intensa.

É, fortíssimo. Ao pé da minha cama tinha um caixotinho de madeira que me pai me deu; ele limou, lixou todinho e meu irmão Rodrigo decorou com retalhos de revistas. Eu adorava desde menina trabalhar com metal _ ainda hoje trabalho, preciso me ocupar com as mãos. Meu pai me deu uma tesoura e material para trabalhar com folha fina de cobre. Para Gal e para mim, na nossa estreia, fiz um enfeite que usámos: um girassol de cobre. Tenho uma pena de ter perdido essa peça...

 

A Gal tem a dela?

Não, perdeu também. Na nossa estreia, eu estava de branco e a Gal de preto, o mesmo modelo, o mesmo tecido, e fiz o girassol de cobre para usarmos. Então, tinha minha oficinazinha, que era a minha paixão, e tinha meu violão, que ganhei do meu pai e da minha mãe. Era um violão maravilhoso, chamava-se Zé.

 

Pôs nome ao violão?

Sim, sim.

 

A árvore que tinha quando era pequena...

A goiabeira.

 

Também tinha nome?

Não. Eu gostava de ficar no fruta-pão e Caetano na mangueira. Estão lá até hoje. Subíamos para o olho da árvore e ali passávamos o dia, brincando de tudo, ele no galho da mangueira, eu no galho do fruta-pão. Brincávamos muito de faquir, que era ficar deitado o dia inteiro no cimo da árvore sem dizer uma palavra. Era óptimo, desenvolvia a cabeça... Mas a minha árvore era a goibeira. E ainda hoje falo assim: a minha revista, a minha.

 

Aos 17 anos, vai para o Rio e quando acorda é uma super-estrela.

Tive que amadurecer em segundos. Compreendi na hora tanto a beleza como a responsabilidade do ofício. E o juízo que precisava ter. Compreendi o sucesso, assim, imediato: tenho que respeitá-lo para que ele me respeite. Mas me custou. Não gostava de mim nesse período.

 

Porquê?

Tive que envelhecer. Eu era adolescente, queria era namorar, ter os sonhos de adolescente, ter meu pai e minha mãe cuidando de mim. E tive de fazer de tudo, de pai, de mãe, de irmã, de cantora... Me senti extremamente só.

 

Mas Caetano foi consigo para o Rio, justamente para a proteger.

Mas não adianta, não. O palco é de uma solidão incrível. Você é só. E ao mesmo tempo é deslumbrante. O palco me salvou de tudo. A minha geração, muitos amigos meus entraram em drogas, em equívocos, se atrapalharam com seus talentos. Felizmente o palco me sustentou e me sustenta.

 

Sempre no duplo registo da responsabilidade e do prazer?

Imprescindível, o prazer. O prazer de realizar, de expressar, de poder expressar.

 

O que implica a existência de uma mensagem, daquilo que se quer expressar.

O artista tem necessidade de expressar. O palco é uma tribuna como outra qualquer. O que faço é ser intérprete do meu povo. Sensitiva, fiel e verdadeira. Eu não minto. Não posso entender mentiras no palco. Não combinam, mentira e palco não casam. Cada espectáculo é o que estou querendo dizer no momento. Por isso é solidão. Porque também é nudez.

 

Não amedronta ao mesmo tempo?

Nada. É um lugar onde não tenho medo, o palco. Cá fora? Inúmeros. Era muito mais corajosa, não tinha medo de quase nada quando era menina. Até virar cantora, até virar pessoa notória, não tinha medo de trovoada, não tinha medo do escuro. Agora tenho.

 

Ainda menina, pelo quadro que nos deu, parecia uma força da natureza. Crescer desenraizou-a.

Não desenraíza. Mas você tem de se adaptar, tem de incorporar. Não tem jeito: realidade é essa, vivo nesse mundo. «Maricotinha», a canção do Caymmi, porquê a minha atracção por essa canção? Para mim é um modo de vida. Fico encantada de ver que Caymmi escreveu isso, um homem tão sensível. E infinitamente menor na minha sensibilidade e na minha genialidade diante de Caymmi, também eu tenho necessidade de a cantar. O que é «Maricotinha»? Se fizer bom tempo amanhã, eu vou, se por exemplo chover, eu não vou. É um direito que todo o ser humano tem e que vai perdendo todos os dias. Mesmo que não possa agir assim, é lindo admirar esse modo. Por isso escolhi esta canção para representar este momento: 55 anos de idade, 35 de carreira.

 

Não é assustador envelhecer?

Nunca tive medo da velhice. Os meus velhos são mágicos, são gente muito bonita. O medo da velhice viria se vivesse de uma coisa superficial, de exterior, e eu não vivo disso. Me alimento do meu interior, da terra, de coisas perenes. Sabe, passei a gostar mais de mim a partir dos 40 anos. Fiquei mais feliz e menos dura comigo. Fiquei mais mole com a vida, compreendo melhor. É maturidade, mesmo. A minha voz, aos 40 anos, chegou no lugar. Para mim, é uma marca muito importante.

 

Canta melhor agora?

Muito melhor. A única angústia que vem com a velhice é que a voz também envelhece. Vai chegar um ponto que não vou poder mais cantar e isso me dá uma certa melancolia. Querer cantar e não poder.

 

Ainda canta sem estar em cima do palco?

Canto, canto o tempo todo. Cantoralo pedaços, e passo muitas horas trabalhando com música na minha cabeça. Sonho muito que estou cantando. Está muito presente no meu subconsciente: o palco, o cantar, a emissão, as minhas preocupações.

 

Imagine que oferece à sua mãe de presente uma canção cantada por si.

Eh, para a Dona Canô...

 

Chama-lhe assim?

Minha Mãe. É que a gente brinca, porque ela é muito famosa... Ah, ela gosta tanto das canções do filho dela... Se fosse para meu pai, saberia imediato: seria a canção de que mais gostava, «Objecto não identificado», adorava esta canção que Caetano fez e eu cantando. Mas para minha mãe... Talvez cantasse uma canção religiosa. Fiz um disco para Nossa Senhora. Certamente tiraria de lá uma canção para oferecer a ela. Uma dessas preces, anónimas, muito simples.

 

Da terra?

É. Uma homenagem à mãe de todo o amor. 

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2003

Jorge Silva Melo

26.03.24

“E os dias que não estive junto deles, a decifrar-lhes a letra miudinha, como os recuperar? Porque gostava de ser lembrado como alguém que, como os gatos, se passeou, um «flâneur». E gostava de escrever com a independência do Garret das «Viagens», também «flâneur», apenas porque me faltou a rosa da juventude”.

Jorge Silva Melo escreveu-se assim, frente ao espelho dos dias de 98. Uma biografia sumária perfumada pelo hálito da sua flor. Carnívora, passeante. Na infinita tentação do desejo. Na vertigem da partida; ou seja, da dissolução. Perdeu-se amando. Como aprendeu com Camilo, que tanto ama. Como ama Pavese, Minelli, Brecht, Sara Montiel. O de fragrância mais intensa, não forçosamente pura, forçosamente impura, conspurcada de vida, do traço da quotidianeidade. 

Numa manhã de Junho, ele acordou pelas cinco e meia ou seis. O de sempre. Foi ver as pessoas à rua, assistir ao acordar das hordas inflamadas de patriotismo. O de sempre – quero dizer, o interesse pelas pessoas. As que dizem «Ou vai chover, ou então não sei», e as que festejam a glória e a felicidade da pertença.

Eu cheguei cedo, sem que fosse tão cedo. Sentámo-nos no recanto da sala onde, em menino, se instalava a pista de comboio. Esta é a casa da sua infância.

Experimentou outras casas, outras vidas. A pergunta é sempre: «Quantas vidas leva uma vida?». E no caso dele, há ainda vidas extra. As do teatro, vivenciadas ao correr do texto e da emoção – talvez não seja substancial, a diferença, em relação às vidas verdadeiras.

Jorge Silva Melo, 56 anos. Como apresentá-lo numa linha? Dizer que é encenador, que é realizador, que fundou a Cornucópia, que habita os Artistas Unidos? Que é um estrangeirado amante das artes? Um tutor? Um aglutinador? Um passeante? Coitado do Jorge, que ergue o corpo, espartilhado pelo fascismo, para acalmar a fúria da portada. Coitado do Jorge, que não soube nunca dançar. Coitado do Jorge, que espera ser abraçado e não consente que lhe expressem ternura. 

Numa das próximas páginas, diz-se que a conjugalidade com ele seria impossível. Mas é certo que os nossos dias não seriam os mesmos sem ele.

 

Usou como epígrafe no filme “Coitado do Jorge” um verso de Ruy Belo: “Triste é no Outono descobrir que era o Verão a única estação”. A ideia de nostalgia é essencial em si.

É uma daquelas hesitações que tenho sempre: porque é que vim parar a esta minha vida?, que escolhas fui fazendo?, não terei falhado as escolhas principais? Quando fundei a Cornucópia com o Luís Miguel [Cintra] e desisti de trabalhar no cinema, terei feito a escolha certa? Não teria sido o cinema o meu Verão, não teria sido a minha única estação? Quando saí da Cornucópia fiz bem, fiz mal? Essa vida que não vivi é a vida que me preocupa e o “Coitado do Jorge” era sobre esse assunto. Era sobre um homem de trinta e cinco anos, burguês, professor, casado, bem instalado, com uma bela moradia. De repente, há um miúdo que assalta a casa dele e ele fica perturbadíssimo.

 

O que é que mais perturba este professor?

A ideia de poder ser outro. Porque é que este rapaz faz isto, porque é que eu não podia ser ele? Essa ideia entusiasma-me também no teatro. Se calhar podia ter feito outro gesto, mas o gesto que fiz determinou-me. Acho que fiz escolhas certas. Mas, quando anoitece, (aquele quadro da Sofia Areal é sobre o anoitecer), às vezes penso: e se tivesse ficado em Paris, se tivesse arranjado trabalho com o Peter Stein?

 

O que é que, em última instância, define a escolha? Acossados até ao limite, o que é que nos faz decidir?

Não chego a perceber. Todos os filmes que fiz eram sobre o momento da escolha. É esse o momento que me interessa: aqueles 30 anos onde o resto da vida vai ficar definido. Tem a ver com um autor que muito amo, o Pascal, e sobre a hipótese de apostar. Eu aposto que vai ser assim. Aposto que existe Deus; se existir ganho, se não existir não perco.

 

Se não tiver a comprovação, não importa nada.

Não importa nada. Essa ideia da vida como uma aposta é muito importante. Como é que chego a ela? Não sei, vou chegando. Há determinantes e as escolhas são cada vez menos possíveis. Neste momento já não é possível voltar à Cornucópia, viver em Paris, viver em Berlim. A vida vai limitando as muitas hipóteses que tive a sorte de ter.

 

Mas essa obliteração de cenários, que é uma ideia muito heideggeriana, acarreta nostalgia ou até frustração?

É mais inquietação. Há uma frase no Rilke que a Glicínia [Quartin] cita muito: “Uma profissão é pouco para uma vida inteira”. Não esgota uma vida inteira. Tenho tentado viver assim. Este ano faço 56 anos e realmente não tive uma profissão. Fui jovem empresário quando fundei a Cornucópia, fui estagiário, fui bolseiro, escrevi uns artigos para os jornais, só no CCB é que tive um vago contrato de trabalho, durante quatro ou cinco anos.

 

Profissão itinerante.

Dessa ideia gosto, de ser vagabundo nestas coisas, não me fixar, não me determinar. Ver ao espelho, não uma determinação, mas uma série de possibilidades. Gostava que fosse assim.

 

Mas é muito «flâneur», naquele sentido baudelairiano de estar sempre entre a multidão...

Adoro estar na multidão.

 

... e de encontrar, apesar de tudo, a sua singularidade e um espaço para a dobra que lhe permite ver, retratar, situar a multidão. Não está nunca imerso e essa é também a dor.

Sim. Esse é o problema, não poder estar imerso. Lembro-me perfeitamente do primeiro 1º de Maio de 74: estava tão contente no meio daquela multidão, mas as cantigas que estavam a ser cantadas eram horríveis! Só pensava por que é que não se cantava a “Ode à Alegria” do Beethoven. Esse lado de não pertença é uma coisa que me marca.

 

Mas essa não pertença é essencialmente estética?

É muito estética e, pela estética, moral. Mas, olhando para o meu nariz, se calhar tem a ver com as heranças hebraicas de tudo isto, com este lado de incerteza.

 

A marca da genealogia?

Isso com certeza. Há uma incerteza e uma espécie de dúvida permanente. A cultura portuguesa é tão estranha, os nossos fundamentos, entre árabes e judeus, a mistura de tudo isto... A minha mãe tem origens no Algarve, o meu pai no Minho.

 

É capaz de me apresentar esta casa, a sua vida a partir destes corredores?

Os meus pais tinham estado em Angola, Silva Porto. A minha irmã é 12 anos mais velha que eu, entrou para a faculdade e vieram para aquilo a que se chamava metrópole. Nessa altura eu tinha cinco. Conheci os colegas de faculdade da minha irmã, que vinham aqui para casa estudar ou com quem ela ia ao cinema: o Pedro Tamen, o João Bénard da Costa, a Buchholz e todo esse ciclo cultural; o Manel de Brito, que era livreiro ali na Escola Politécnica, onde a minha irmã comprava os cadernos. O meu pai era funcionário dos correios, depois montou um negócio. A minha mãe era professora primária. Não eram católicos, embora eu tenha ido para os Maristas, aqui em frente, porque era uma boa escola. Como morávamos mesmo em frente do colégio, acabou por ser uma casa de convívio de todos os meus colegas. Brincávamos aqui, neste quarto, com um comboio eléctrico que ainda tenho ali guardado. Mas este prédio era engraçado! Aqui em cima morava o Senhor Muznick, pai da Esther Muznick.

 

Judeu.

Chefe da comunidade israelita. Mais em cima morava a família San Payo de Lemos, de onde vem a Vera. Vivia ali ao fundo a família do Arons de Carvalho. Havia também uma senhora belga, Francine Benoir, amiga do Lopes Graça, professora de piano; a Maria João Pires, o Emmanuel Nunes andavam por aqui a estudar. E o Almada [Negreiros] vivia um bocadinho abaixo. Havia o Liceu Francês, frequentado pela grande burguesia, mas também pelos filhos dos intelectuais que não queriam uma educação salazarista. É um bairro como uma certa tradição de modernidade.

 

É uma genealogia geográfica, que influencia, também.

Havia esta atmosfera um bocadinho cosmopolita. Depois havia dois colégios religiosos muito importantes, as Doroteias e os Maristas. E as madames. Aqui em cima, no terceiro andar, vivia uma senhora francesa, que dava aulas na Alliance Française.

 

Aprendeu a ler com a sua mãe?

Aprendi com ela e sozinho. Cheguei à escola a saber ler e o primeiro livro que li foi «Os Lusíadas», a edição de estudo da mesma, que era da minha irmã. Tinha quatro, cinco anos. A minha irmã estudava Germânicas, pertencia a movimentos de libertação colonial, aos Agostinhos Netos e Amílcares Cabral. Tudo o que ela fazia me interessava. Muito cedo fiquei a ver os livros sobre os campos de concentração que chegavam cá a casa. Queria imenso saber o que eram aqueles livros que eu não conseguia ler, os livros em alemão. Portanto, muito novinho, sabia o que eram os concertos onde a minha irmã ia, o Cineclube Católico... Nos Maristas, fui colega de alguns jovens, o principal foi o Zé Ribeiro da Fonte, que me levou para o São Carlos, tinha para aí oito anos, nove anos.

 

Tudo isso são referências culturais. Na relação com a sua irmã, onde é que cabem os afectos? Isso de que fala é qualquer coisa que consigo encontrar nos textos que escolhe, nos textos que escreve, e que até vão ao encontro da vida de todos os dias. Mas existe um pudor em falar de um modo mais explícito ou do sexo ou dos afectos.

Sim.

 

É evidente a relação de admiração pela sua irmã. Contudo, admirar é uma coisa, amar é outra.

A minha irmã, sendo de Germânicas, era alemã de espírito. O afecto era uma coisa que não existia em minha casa. Era disciplina, rigor, autoridade. Afecto havia com a minha mãe, que era muito calorosa. Só que eu estava numa posição extraordinária! Podia jogar com o poder das duas mães, ora estava zangado com uma, ora estava bem com a outra.

 

Elas disputavam a sua atenção e o seu afecto?

Isso com certeza. O meu pai era muito presente, regular, rigoroso e foi importante no amor aos livros. Tinha poucos estudos, era muitíssimo inteligente, de uma geração republicana que leu todo o Victor Hugo, o Zola, os grandes romances humanistas e que tinha uma biblioteca que comprava a muito custo, boa, sólida. E falava com entusiasmo do empenho do escritor em transformar a vida. Lembro-me, com muito afecto, de ele me falar de livros e de cinema. Nas horas vagas de Lisboa, quando era novo, tocou piano a acompanhar cinema mudo para ganhar uns tostões. Falava da sua actriz preferida, a Barbara Stanwick.

 

É, em si, uma cena muito cinematográfica: o seu pai a acompanhar filmes mudos ao piano. Ocorre-me um dos filmes mudos mais belos de todos os tempos, «Sunrise», de Murnau. Como é que um filme, como este, pode ser tão explicitamente emocional sem ser piegas? Para as pessoas que têm pudor em abordar os afectos deve ser a grande questão: como fazê-lo?

Os afectos não são piegas. Adoro chorar no cinema, no teatro não consigo; só de raiva, quando é muito mau. Adoro o “Esplendor na Relva”. Nunca consegui ver o final, vejo uma espécie de nevoeiro à minha frente. É sobre o mesmo assunto do Ruy Belo, aqueles dois perceberam que o Verão tinha sido a única estação e que a perderam. Gosto mais de analisar do que empolgar.

 

Porquê?

Tenho muito medo de empolgar e gosto de ver como é que as pessoas se aproximam, se afastam, se encontram, de um certo ponto de vista, que Nietzsche dizia que era “a meia encosta”. A meia encosta é que é ponto de observação certo, nem alto demais porque é longe, nem perto demais porque se está misturado na turbulência. Lucrécio também fala do ponto certo para se ver o barco na tempestade. Se estamos no barco e na tempestade não vemos nada, se estamos na costa, muito refastelados, vemos o acontecimento. É isso também o teatro. Gosto de estar sentado num sítio e ver, à minha frente, digladiarem-se forças opostas, que não se vêm meter comigo. Tenho algum receio quando os actores se vêm meter comigo. Daí uma certa frieza. Embora, pense que é uma frieza muito cálida, que deixa um espaço para a ternura.

 

Quando é que conseguiu abandonar a posição do voyeur e diluir-se?

Nunca consegui. Nunca consegui dançar. Nunca consegui embebedar-me sequer, por muito álcool que beba. Existe um controlo racional que me deixa muito pouco entregar-me.

 

E a dança?

Não saber dançar é a mesma coisa; ou seja, não permitir que o ritmo venha de outro. Sou eu que imponho o ritmo, não admito que seja a dança ou a música a dizer qual é o ritmo.

 

Há uma cena de dança no «Agosto», filmada no Portinho da Arrábida, também num Verão, num cenário que convoca uma perdição. O que é que pediu às pessoas que dançavam?

Eu adoro ver dançar. Foi dos dias mais felizes de filmagem que tive. Adoro filmar bailes. É muito imponderável o que pode existir no baile: fogem-nos do enquadramento... A dança é um jogo sexual muito nítido, mas também muito social, contido, condicionado perante as aparências.

 

Se fosse capaz de dançar, dançaria com quem?

Dançava com toda a gente. Devia ser a coisa que mais gostava de fazer.

 

No que estou a pensar é no amor, evidentemente. Na força do amor, que pode ser redentora e que permite o afogamento.

Acho que nunca me aconteceu e que nunca pensei muito nisso. Pensei sempre em relações de trabalho e em relações de cumplicidade. Porque a minha família é de professores, pensei sempre no ensino. Por ter sido um estrangeirado desde sempre, por ter tido esta educação entre o germanófilo e o francês, senti sempre muita culpa. Quando vou a um café em Lisboa e o empregado me trata mal, sinto-me culpado. A culpa é minha, fui eu que não o eduquei suficientemente bem. Se é um francês que me trata mal, não sinto culpa nenhuma. Lisboa é o sítio da minha culpa. Onde os passeios estão sujos, do cocó dos cães, sinto-me sempre culpado.

 

Não militou civicamente o necessário?

Exactamente. Esse é o meu sentido de pátria. A minha pátria é a minha culpa. O O’Neill diz isso: “O remorso de Portugal é o remorso de todos nós”. Há na cultura portuguesa uma vocação didáctica permanente. Vem de todos os estrangeirados que vão lá fora e depois dizem como é que há-de ser: escrever versos, fazer teatro, fazer cinema, portar à mesa. Isto marcou-me sempre. Liguei a vida dos afectos com a vida do trabalho, e nela me resolvo, ou com a vida do ensino. Um dos momentos mais felizes da minha vida foi quando fui com o Manuel Mozos ou o Edgar Pêra, que foram os meus primeiros alunos da turma, a formações e passarem afectos entre nós os três. Este é para mim o sentido do amor. Tem a ver com não encontrar pessoas da minha idade com quem me dê e gostar de partilhar tudo o que sei.

 

Nunca se deu com os da sua idade?

Dei-me com os da minha idade, mas sempre fui professor. Devo ter sido muito chato. Comecei a escrever sobre cinema aos 15 anos, no Juvenil do Diário de Lisboa, e depois n’“O Tempo e o Modo”, aos 16. Os meus pais, a partir dos sete anos, perguntavam-me: “Qual é o filme que devemos ver este sábado à noite?”. E só se zangaram comigo uma vez, quando os mandei ver o «Quanto mais quente melhor”; não gostaram nada porque não gostavam de comédias, gostavam de filmes para chorar.

 

Não chegou nunca a ser uma criança convencional?

Ainda sou. Sou muito infantil em aspectos de não entrada num mundo adulto, na vida prática; sei mal ir a uma repartição de finanças, é muito confuso. Mas desde muito cedo pus-me a dizer como é que devia ser. Em Silva Porto, morava numa moradiazita e ao lado vivia o bispo. Eu dizia que queria ser bispo. Se calhar, era para mandar nos outros. Não queria ser padre nem sacristão. O senhor era muito simpático, cordial, mas a ideia de saber e poder dar ordens, entusiasmou-me.

 

Sendo que as duas estão ligadas. O conhecimento revela uma superioridade e pode confirmar uma ascendência sobre o outro.

Acho que foi isso que imaginei desde muito novinho. No Juvenil devo ter escrito um poema ou dois; acima de tudo, escrevia textos sobre cinema. Havia uma vocação didáctica e de intervenção no gosto. Era mais uma vocação ensaística do que a expressão dos meus sentimentos juvenis de amor ou não sei quê. Manias como outras quaisquer.

 

Sobre o que é que fala com a Glicínia?

Falamos de tudo.

 

Uma coisa são os afectos, resguardados pelas referências culturais, pela atitude prosélita. Mas, com uma amiga tão íntima, com quem fala todos os dias, fala de quê?

Fala-se de tudo. E com a Glicínia é um prazer, porque ela contraria sempre. Basta eu dizer: “Hoje está a chover”, e ela diz: “Não, estou a ver aqui nuvens a afastarem-se”. Uma das coisas que mais nos entusiasmam nos últimos tempos é aquilo de que está a falar. Eu tenho realmente um corpo salazarista, fui educado dentro do salazarismo. A minha sensualidade é espartana, muito austera. O republicanismo dos meus pais, o catolicismo dos Maristas também marcaram isso. Um dia estávamos a ensaiar, a Glicínia veio para o balcão e os rapazes estavam a fazer uma dança qualquer no palco. E ela diz-me: “Estes corpos não podiam existir quando eras novo”. Ou seja, a sensualidade viva, vital era uma coisa que não podia existir. E ela dizia muito assim: “Isto é que foi a grande conquista do 25 de Abril, estes corpos estão livres, não são corpos salazaristas”. E é verdade. O meu corpo não é um corpo livre. Nasci em 48, no apogeu do Estado Novo e da educação muitíssimo puritana. Nunca consegui ultrapassar esse puritanismo.

 

Com a culpa dos católicos?

Vivo com a culpa de, se calhar, ser esse o meu Verão. Se soubesse dançar, se soubesse cantar... Eu adorava ser como o Dean Martin e cantar canções italianas em americano!

 

Adorava ser o Dino, o estróina do «Kiss me, stupid» do Billy Wilder, que o Dean Martin interpreta!

Adorava. Provavelmente era esse o meu Verão. E olho para o mundo sempre com essa hipótese.


No fundo, o seu Verão era «E se eu fosse livre».

E se eu fosse livre. Se eu tivesse sido livre.

 

Quando é que teve a impressão de que já não tinha essa possibilidade?

Foi para aí aos 35 anos. Houve dois anos absolutamente atrozes na minha vida, passados aqui em casa. Tinha estado a trabalhar na Alemanha, depois fui para França, fiz cinco ou seis espectáculos em França. A certa altura não conseguia viver mais entre Lisboa, Paris, não ter casa, a idade a avançar... Eu queria estar num sítio e continuar alguma coisa. E vim para Lisboa. Estive dois anos e meio no mais completo desemprego. Nem um artigo para o jornal, ninguém me aceitava nada. Vivi do que os pais me tinham dado. Foi assim até 96.

 

Sentiu-se proscrito?

Senti que tinha chegado ao fim, que não tinha utilidade para nada. Estava aí sentado no sofá, via televisão, esperava pelo programa da Teresa Guilherme, às sete da tarde, adormecia depois do programa, esperava pelo dia seguinte.

 

Na depressão absoluta.

Na depressão... Mata.

 

Foi antes do «António, um rapaz de Lisboa».

Foi antes de fazer o «António». Foi o Manel Wiborg quem me ajudou imenso, com a sua juventude e vitalidade.

 

Como é que o encontrou?

Foi o João Pedro Rodrigues, que fez os castings para o filme “Coitado do Jorge”. Eu não queria estar nos castings, é uma situação de que não gosto; fico com imensa simpatia pela pessoa que lá está, escolho logo o primeiro que me aparece porque me encanta. Nesse dia ele veio excitadíssimo, “Encontrei um com nome estrangeiro que me parece muito engraçado”. Curiosamente, Wiborg, ascendência norueguesa, a família morava também aqui durante a minha infância. O Manel estava no Conservatório, a Joana [Bárcia] estava no Conservatório, encontrava-me com eles uma vez por semana, a inventar uma história que dava origem ao “António, um rapaz de Lisboa”. E senti-me tão obrigado a fazer isso...

 

A fazer exactamente o quê?

A fazer uma coisa para eles. E volta a necessidade didáctica. Senti-me tão responsável por estar a afundar-me numa depressão e não estar a fazer nada para que os melhores anos da vida do Manel e da Joana pudessem ser filmados ou trabalhados... Conseguimos que a Gulbenkian pagasse, (agora veja o meu valor), sete mil contos, para fazer o “António”, que era um espectáculo de 30 actores! Nessa altura, um espectáculo normal, de seis, sete actores, era orçamentado em 12 mil e 13 mil contos! Se não tivesse agarrado a ocasião e se o Manel, a Joana, a Lia [Gama] não tivessem estado comigo, estava completamente acabado. Foi daí que voltei a fazer e que consegui impor uma série de jovens actores e uma série de outros valores dentro da modernidade portuguesa. Fiquei muito contente.

 

Não soçobrou e arrancou-se à sua depressão bebendo da juventude deles.

Nisso sou um vampiro. Encontrava-os: “O que é que faço, que peça é que hei-de fazer?”, “Eu quero escrever uma história para ti”. Eram as conversas. Se não houvesse um outro a quem queria dedicar o meu trabalho, não tinha feito nada.

 

Era a consciência do “Eu já não vou a tempo, já não tenho aquela juventude”.

Era.

 

Se penso no Wiborg, na Joana Bárcia, no Miguel Borges a ideia que me ocorre é a de explosão. Eles podem estilhaçar-se e estão sempre na iminência de o fazer. São «borderline». No fundo, quis estilharçar-se também, com eles.

Sim, aprendi isso com o Brecht. O Brecht nunca fez nada sozinho na vida, nem sequer escreveu uma peça, que é uma coisa bastante íntima, que se costuma fazer à máquina, mas que ele fazia com as namoradas. O diálogo é tão estimulante que estar sozinho é uma perda de tempo. Perceber o que é a vontade de vida do Manel, da Joana, do Miguel, do Zé Airosa e conseguir dar-lhes matéria para prosseguirem a sua arte, encanta-me. Permitir-lhes a libertação e aconchegar-lhes espaços. Mas também é isso que me dá um enorme conforto.

 

Sabe que me parece que é a mãe deles todos, e não o pai. A sua atitude é a da mãe.

É possível. Herdo muito da minha mãe, que era divertida e que adorava ter a casa cheia de gente. E há uma coisa que, de certeza, herdei da minha mãe e que tem a ver com o teatro: ela adorava nos sábados em que não tinha nada que fazer responder aos anúncios de casas para alugar; e íamos passar o sábado todo, ela e eu, a ver as casas. Sem nenhuma intenção de alugar, só para ver como é que a nossa vida seria se a sala de jantar fosse ali, que mobília é que compraríamos.

 

Esse exercício é extraordinário!

Mas fiz imensas vezes, a certa altura já estava farto de fazer aquilo. Ao domingo, no passeio, com o meu pai, a minha irmã, era o assunto da conversa: “Encontrámos uma casa muito gira na João XXI, mas tem cortiça até ali, tínhamos que mudar o quarto...”. Foi tal e qual o que andei a fazer na Capital. [espaço no Bairro Alto, sede dos Artistas Unidos até ao despejo]. Era um prédio vazio, andei a pôr as mobílias, a decorar aquilo e foi um dos momentos felizes da minha vida. É isso que gosto no teatro e no cinema. Só filmei duas vezes em estúdio e detestei, porque está lá aquilo que quero. O que é engraçado é debater-me com o que não quero. Era isso que a minha mãe fazia, “Como é que seria o Verão se a minha vida tivesse sido nesta casa e não na Artilharia Um?”.

 

Nunca houve nesta casa os fantasmas da solidão?

Já, já. Sempre. Vivo quase sempre sozinho, mesmo desde pequenino. Filho de pais mais velhos do que seria normal, a minha mãe tinha quarenta e tal quando nasci. Sempre rodeado de miúdos, a minha mãe fomentava uma espécie de companhia e colonização permanentes. Mas sempre também não me ligando. O meu amigo mais antigo é o Miguel Lobo Antunes.

 

Essa dificuldade em ligar-se às pessoas, em diluir-se, radica nesse espaço de solidão? Em estar sempre com outros sem conseguir estar completamente com outros.

O que tenho procurado e não tenho conseguido encontrar é interlocutores com quem possa discutir. É muito fácil fazer rupturas comigo, é muito difícil haver antagonismo. Tenho encontrado maravilhosos colaboradores com quem tenho conseguido trabalhar, mas que se fartam porque estão apenas a obedecer. Ou que se sentem presos pela demasiada protecção que eu, mãe judia, lhes dou. Tenho encontrado muito poucos a quem digo: «Gostava que fosse assim», e com quem fico a discutir até às cinco da manhã que podia não ser assim.

 

Tirando a Glicínia.

Mas a Glicínia é um exercício de discussão sem responsabilidades, é a conversa diária da contradição. Agora, no trabalho, quer com o Luís Miguel, quando dirigimos a Cornucópia, quer agora com os Artistas Unidos, tenho poucos interlocutores. Há uma opressão que exerço e que leva as pessoas a afastarem-se de mim com muita violência. As rupturas comigo são muito violentas, há imensa gente que não me fala e me acha a pior das pessoas. Amparo demasiado e abafo, não dou a liberdade de existir.

 

Uma vida conjugal consigo, não no sentido mais estrito, mas no sentido de ser quotidiana, de açambarcar todos os aspectos...

É quase impossível. Já estou resignado que não irá acontecer. Mas aquilo a que aspiro... Vou buscar uma citação do Montaigne: “Se tivesse a certeza que havia alguém que estava perto, que me era próximo, de certeza que iria o mais longe possível para o encontrar, pois a doçura de uma companhia não tem preço. Ai de um amigo...”. Li no domingo passado e tocou-me forte. O amigo que eu quereria seria um contraditor activo. Aquela ideia de estarem duas pessoas a olhar para o mesmo ponto, terem opiniões diferentes do mesmo ponto, mas conseguirem agir em relação a esse ponto...

 

Permanecerem nesse lugar apesar da discordância, não o abandonarem...

Exactamente.

 

É a coincidência na discordância?

Não abandonarem nem se sentirem menorizadas ou superiorizadas. Isto tem a ver com os cowboys. A minha educação é também feita pelos westerns e pelo Howard Hawks. A diferença que há entre o Dean Martin e o John Wayne no «Rio Bravo»...; mas perante uma acção específica, (combater os maus), embora venham de mundos diferentes, os dois estão do mesmo lado.

 

O seu papel é o do John Wayne, que quer redimir o amigo bêbedo Dean Martin.

E o bêbedo não quer ser redimido, é esse o meu problema. Mas nos filmes ele queria ser redimido.

 

Posso voltar à sua irmã, que tinha mais 12 anos e uma enorme ascendência sobre si? O que procurava era estar à altura dela?

Ela pôs-me sempre. Puxou por mim para dar opiniões, para eu dizer...

 

Ela considerava a sua opinião? Com que intenção é que pedia a sua opinião? Era para puxar por si ou estava realmente interessada no que pudesse dizer?

Muito cedo, dez,12 anos, já era para saber a minha opinião, mesmo para coisas práticas, como a escolha de filmes. Nas outras era para puxar por mim, com certeza.


Insisto: qual é a intenção? Porque fazem isto por nós? Consideram-nos realmente ou fazem-no numa atitude vampiresca, procurando aí a sua redenção?

A atitude vampiresca procurando a redenção sou eu, de certeza.  


Amá-los-ia da mesma maneira se não estivessem à altura?

Com certeza.

 

Mas eles duvidariam disso.

Claro. Mas isto desde sempre, mesmo no Juvenil. “Porque é que este gajo gosta de mim, porque é que me dá confiança? É um grande sacana, está-se a aproveitar de mim”. Porquê, porquê, porquê, é um assunto que me segue sempre

 

Ensina, ensina, ensina. Mas com quem é que aprende?

Em livros. A hipótese que tive de conhecer muitas línguas, pessoas muito engraçadas, como o Jacques Tati...

 

Deu-se com o Jacques Tati?

Conheci o Tati por sorte e graças à PIDE. Fui preso em 68 e quando saí da cadeia, o meu pai abraçou-me fortemente, muito honrado e comovido por eu ter estado preso; e eles rapavam o cabelo. Vejo no Diário de Notícias que havia uma recepção ao Jacques Tati, que vinha estrear o «Play Time». Despeço-me rapidamente dos meus pais e vou para a embaixada francesa! Não sei porquê, deixam-me entrar, não tinha convite. Estavam lá todas as velhas glórias de Portugal e o Tati olhou para mim, viu um homem completamente careca e achou-me mais graça do que às múmias que lá estavam. Não deu entrevistas a mais ninguém, só a mim e à Maria Antónia Palla. Durante os quatro dias que esteve em Lisboa estive sempre com ele.

Então, aprende com Tati, com Pascal, com Montaigne, com todos os filmes e com todos os livros.

Com o Peter Stein. Com o Giorgio Strehler. Os meus professores extraordinários: o Mário Dionísio, o João Bénard da Costa, a minha irmã, o Fernando Belo, o Padre Manuel Antunes.

 

A sua irmã foi sua professora? Ai que situação tão constrangedora.

Quanto aos afectos: vivíamos aqui em casa os dois e não me diz que vai ser minha professora. Entro às oito e meia, num sítio completamente desconhecido, ela faz a chamada, aluno número um, número dois, número três, número dezasseis, sou eu, tive que me apresentar, chamo-me Jorge Silva Melo, venho dos Maristas, como se ela não me conhecesse. Os meus colegas só descobriram três ou quatro aulas depois que era a minha irmã.

 

Chegou a fazer-lhe algum teste?

Sim. Sei que foi o António Reis do PS que teve a melhor nota, eu e o Miguel Lobo Antunes tivemos a seguir.

 

Confesse que ficou furioso porque outro foi melhor.

Não, não.

 

Não confessa?

Não confesso.

 

Para que é que lhe serve saber?

Para amar. Para dar. Para planificar.

 

E à Glicínia, o que é que lhe ensina e o que é que aprende com ela?

Ensinar muito pouco. O que aprendo com ela é uma liberdade de pensamento única que é essa capacidade de contradição, de análise, de respeito pelo outro e de indignação.

 

E o lado mais corriqueiro? Goldoni, que tanto ama, proclamava no século XVIII: «Tudo pode ser teatro». O que põe no teatro é a vida corriqueira. Mas essa vida corriqueira, existe deveras na sua vida?

Esse lado corriqueiro é muito solitário. É mesmo meu, só. Adoro ir à rua, é um acontecimento e vou sozinho. Adoro passear, sentar-me em cafés.

Porque é que vive solitariamente esse lado corriqueiro?

Tenho muito pouco contacto com outras pessoas. Afundei-me no trabalho. Se calhar o Verão era a última estação, se calhar não me devia ter afundado no trabalho. Comecei a trabalhar muito novinho, com responsabilidades. Fiz a Faculdade de Letras, depois fui para Londres fazer a escola de cinema. Quando voltei trabalhei em traduções. Fundei a Cornucópia em 73.

 

Quando fundou a Cornucópia achava-se ainda no Verão?

Eu achava que o Verão estava a vir, que ia vir, que ainda vinha. Estávamos no fascismo, sentia que os ventos estavam a mudar, preferi voltar para Lisboa a continuar em Londres. O Luís Miguel fez o curso mais ou menos ao mesmo tempo, mas ficou lá mais tempo.

 

O Luís Miguel foi o que mais se aproximou do interlocutor que procurava? Do interlocutor que está à sua altura, que discute e permanece, apesar da diferença?

Sim. Também a minha irmã foi professora do Luís Miguel, ainda eu não conhecia o Luís. Era o meu rival. Porque a minha irmã dava-me sempre como exemplo o Luís. Chegava a casa e dizia: “Ah, o Luís é que fez uma redacção maravilhosa. Ele é que sabe inglês, ele é que não sei quê...”. Já não podia com o homem!

 

Em suma, quis ser melhor que o Luís.

Não...

 

Tinha um misto de admiração e respeito...

Um enorme respeito, uma enorme admiração. Mas comecei logo a dar-lhe aulas! A primeira relação que tive com o Luís Miguel foi pedir-lhe uma redacção sobre os «Chapéus de Chuva de Cherburgo».

 

Que era protagonizado pela Catherine Deneuve. Tinha paixão por ela?

Absolutamente. Mas isso tem a ver com a tal frieza em relação às emoções. Sempre a achei uma actriz fantástica, o ideal de Hitchcock, que para mim era o mestre máximo. Foi o encontro falhado: como é que o Hitchcock nunca filmou com a Deneuve, quando sempre sonhou com a Deneuve?

 

E então?

Já não havia tempo. Nos últimos filmes dele, ela já existe, mas era muito novinha.


Já agora, se me puder esclarecer como é que Hitchcock filma com a Doris Day, agradeço. A Doris Day!!!

A Doris Day é horrorosa. Mas o filme é lindo. Ele devia achar graça filmar com a banalidade. Tem a ver com o tal lado corriqueiro. A Doris Day é a piroseira inglesa, embora seja americana.

 

É uma dona de casa.

É uma dona de casa que afinal é perversa.

 

A Doris Day é para aqui chamada porque me interessa a sua atracção pela vulgaridade. Quando assiste à conversa trivial do café, da senhora que pede o queque, embrenha-se nisso para elaborar a partir daí? Pergunta-se se a senhora é perversa?, se o vai surpreender?

Não. Isso seria o Hitchcock. O [Harold] Pinter tentaria observar nesses gestos a perversidade. Eu acho que é mais o calor e a vontade de comunicação. Nunca mais me esqueço, meti essa frase no «António»: um dia ia a descer a Rua do Salitre, era um fim de tarde, havia uma velhota que estava à janela e que disse: “Ou vai chover..”, pausa, pausa, pausa, pausa, “ou então não sei.” Acho genial que uma pessoa abra a boca para dizer uma coisa que não é nada.

 

De que é que está sempre à espera? É de ser abraçado?

Absolutamente. Mais do que beijado, é ser abraçado de corpo inteiro, de fundir. Não é abraçar, é ser abraçado. Abraçar, abraço muito. Deve ser muito difícil abraçarem-me. Sei que espero, mas não acontece.

 

Porquê? Sente-se em perigo e foge?

Não sei dizer. Devo ser muito desagradável se alguém quer manifestar ternura.

 

Espreita algures, por aí, o puritanismo, o catolicismo?

O que é importante no catolicismo, que é a descoberta da responsabilidade perante o outro, não foi dado pelos meus pais. A ideia de amar o outro como a si próprio, a ideia de que há um próximo. Trabalho nas margens do catolicismo, trabalho na profissão mais odiada dentro do dogma católico, o teatro. Porquê?

 

Porquê?

Porque os corpos se metem uns nos outros, porque é demasiado próximo como matéria. Os padres da Igreja não queriam nem por nada que houvesse teatro, a Igreja proibiu o teatro.

 

Também porque é uma exposição a nu?

É uma exposição a nu e é uma exposição democrática. Os padres sempre gostaram de cinema. Há imensos prémios católicos de cinema, imensos cineclubes católicos. No cinema a luz vem do alto, como na igreja. No teatro estamos em comunidade, é uma comunicação política, da cidade, laica. Quando os padres na Igreja não gostavam daqueles arraiais que o teatro produzia não era só pelos maus costumes; era por esse sentido comunitário, sem Além. O teatro é terreno.


Viveu sempre mais ou menos arredado da força do dinheiro. Nunca teve o desejo de ganhar dinheiro?

Tenho uma péssima relação com dinheiro, não sei ganhá-lo. Tem a ver com uma infantilidade permanente. Como o meu pai tinha ganho algum dinheiro e me deixou numa posição relativamente confortável, nunca amadureci o suficiente. Continuo a viver à sombra dos meus pais. A casa foi comprada com o dinheiro deles. Se fui responsável, por exemplo, pela escolha do fim-de-semana de prazer dos meus pais, («Tu é que escolhes os filmes que vamos ver»), fui poupado, excessivamente, às coisas da vida prática. Havia empregada, não sei fazer a cama.

 

Se o reconhecimento do outro é uma ideia forte do catolicismo, a redenção não o é menos.

A redenção e o perdão. Nunca seria protestante, onde não há perdão! A ideia de ser perdoado por amor é inultrapassável. Arrepender, redimir, e isso ser a força criadora. Há no catolicismo um pensamento prático extraordinário, que é esse. Uma pessoa sente-se mal, fez uma data de coisas mal feitas, como é que há-de resolver? Sofrer sozinho como o protestante? Porquê? Dizer a outro: “olha, fiz mal”, já é o seu próprio perdão.

 

Gostava de ter uma morte católica?

Agora tenho pensado mais na morte, antes não pensava muito. Sempre disse que gostava de morrer devagarinho, precisamente por causa disso.

 

Para ter tempo para a reconciliação?

Sim, gostava de me preparar muito bem. Agora já não sei, já tenho mais medo da brutalidade da doença, da invalidez. Não gostaria..., mas também não tem qualquer importância..., não gostaria de morrer sozinho. Mas se morrer, também não me arrependo.

 

Esteve a vida toda a lutar contra o facto de estar sozinho. Esteve sempre rodeado de pessoas, mas sozinho.

Não gostava nada de ser como os elefantes que vão lá morrer escondidos. Não gostava que a morte fosse uma vergonha. A morte é um acto de vida.

 

Porque implica transição?

Implica transição, implica mudança.

 

Está a pensar na reencarnação, em vida depois da morte?

Não, não. Pertence à minha vida. Não é uma vergonha, não me vou esconder para essa parte mais frágil da minha vida.

 

Há sempre o exemplo muito tocante da Amália, que quando tem medo de morrer, vai para os Estados Unidos porque não quer que a pátria a encontre morta. Sobretudo morta de um modo despudorado.

É como os elefantes.

 

Depois, é maravilhoso que seja resgatada novamente para a vida pelos filmes do Fred Astaire.

Essa é genial!

 

No seu caso, também há um pudor em relação a esse momento?

Há. Ao mesmo tempo, a morte do Fernando Assis Pacheco na Livraria Buchholz... Uma pessoa que vai ao seu lugar de todos os dias e morre no seu prazer maior que é andar a ver livros... São as mortes mais teatrais a que não posso deixar de apreciar o lado público e sentimental.

 

O Luiz Pacheco, n’«O Libertino», pergunta-se como será a morte: síncope, loucura súbita... Quanto a si?

Morrer é devagarinho, como adormecer. Pensava sempre como uma lenta incapacitação, a pouco e pouco ir-me apagando. Pode ser que isso seja extremamente doloroso e extremamente doloroso para os outros. E como não tenho outros que me sejam próximos, imagino a complicação que não iria criar às poucas pessoas que ainda me aturarem por esses anos...

 

Já teve tantas estações, a sua vida em Paris, em Milão, em Berlim, a sua vida anterior à Cornucópia, os anos da Cornucópia, de 95 para cá, desde o «António», os Artistas Unidos...

É, mas ainda tenho medo de ter férias, por exemplo. Em Junho foram as férias de 90 por cento das pessoas da companhia e fui fazer uma peça só com três actores porque tenho medo. Sim senhor, podia ir de férias para o estrangeiro, mas não estou nada a ver-me sozinho a andar pela Grécia. Um mês? Para onde? Que chatice. Antes, ficaria excitadíssimo. Mas isto tem já a ver com um medo atroz de ficar sozinho. Sim, isto vincula-me à vida.

 

Já pensou matar-se?

Não.

 

Nem quando estava muito deprimido, na fase anterior aos Artistas Unidos?

Não. Aí só pensava em dormir, ver a Teresa Guilherme, dormir e esperar telefonema. Era a angústia. Com os Artistas Unidos e com o que precedeu os Artistas Unidos adquiri uma espécie de velocidade cruzeiro da felicidade. Por muito doloroso, dorido, combativo e às vezes insultuoso que tenha sido o meu percurso, sobretudo nestes últimos dois anos e meio, por muitas mentiras que me tenham feito, há uma espécie de “Eu não abdico de ser feliz”. Sei que tenho razão, e essa tranquilidade...

 

Chega a amargar?

Não. Então com A Capital, a ideia de amargura desaparece. Mesmo que me tratem mal, mesmo que não sei quê. Quando estive preso na PIDE, partiram-me a cabeça, meteram-me na carrinha ali na Almirante Reis, estava cheio de sangue e a primeira preocupação que tive foi encostar a cara ao vidro, para que as pessoas na rua vissem como eles tratavam. Há sempre um distanciamento em relação a mim ou à minha própria dor para testemunhar. Eu estava cheio de orgulho, estava como nos filmes, os filmes que mais amava. Sentia que o Rosselinni estava ali para me filmar e conseguia tratar os pides com desprezo. Eu tinha razão. É um sentimento de serenidade que nunca mais esquecerei.


E de orgulho.

De serenidade. Por mais miserável que estivesse, e estava em condições fisicamente também dolorosas, há uma dignidade que não é tocada. Naquela cadeia de Caxias, durante três semanas, contávamos anedotas nas celas e ríamos, ríamos. Isto é o que gosto nas pessoas: a capacidade de sobreviver.

 

E a vergonha?

A vergonha tem-se, e às vezes tenho muita vergonha. Vergonha de ser emocional.

 

O que suscita a vergonha?

Em certa despedida, o gesto que foi feito, e que não tem retorno. Ter sido fora do tom.   

 

 

Publicado originalmente no DNa, Diário de Notícias

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Glicínia Quartin

26.03.24

A pergunta é recorrente: quantas vidas cabem numa vida? Glicínia, a menina da Vila Sousa que se enfeitiçava com as figuras de Malhoa. Glicínia, a intelectual que se cruza com Almada Negreiros, Abel Manta, Jorge de Sena, Cesariny nos cafés de Lisboa. «Havia várias tertúlias. Quando era miúda, o meu pai dizia-me: «Vai-me buscar ao banco e depois vamos lanchar», e lá íamos a uma tertúlia. Havia uma célebre, na Avenida da Liberdade, numa pastelaria chamada «Havaneza». Estavam lá o Ferreira de Castro, o Aristides Esperança. O meu pai tinha outra tertúlia no Café Chiado. Eram todos intelectuais contra o regime vigente. Era o café dos estudantes, de alguns intelectuais e também dos surrealistas – mais tarde, era no Café Chiado que me encontrava com os surrealistas. Eu ia ali e estava muito atenta às conversas, a observar as pessoas, a achar que estava num lugar que me favorecia. Já estudante, já quase mulher, continuei a frequentar tertúlias. Começava pelo Café Chave de Ouro, o Café Portugal e depois também a Brasileira». Glicínia, a bióloga marinha, assistente de Mário Ruivo, que estuda com minúcia o comportamento do bacalhau. Glicínia e o deslumbramento com o exterior, «Come in, darling», a importação das calças compridas e as meias pretas de viagens a Londres e aos países nórdicos. Glicínia do teatro amador, do cinema em «Dom Roberto», da «Maluquinha de Arroios». A ruptura já depois dos 30, antes que fosse demasiado tarde e perdesse actualidade. Depois vem Roma, onde estudou, o encontro com Fellini, o jantar com Neruda. Depois vem a representação como vida, o Luís Miguel e o Jorge a convidarem-na para a fundação da Cornucópia, as aulas no Conservatório. Sempre discreta. Sem querer ocupar o centro. Ciente de que o centro era fazer parte do jogo.

Glicínia Quartin completou 80 anos a 19 de Dezembro. Vive em Campo de Ourique numa casa de vista deslumbrante. De lá se vê o sítio onde nasceu.

 

 

Gostava que me descrevesse a Vila Sousa.

A Vila Sousa é um prédio na Graça, construído em mil oitocentos e qualquer coisa, tem quatro faces – dão para o Largo da Graça, a Rua das Mónicas e a Travessa de São Vicente –, e, dizem, nunca as contem, 365 janelas. Tudo enquadrado pelo Convento da Graça, que hoje é uma igreja e um quartel, tem um jardim, com uns canteirinhos, um laguinho, um repuxo. Quando eu era miúda, enchia-se de gente nas noites de verão, os miúdos brincavam, grupos de raparigas cantavam e passeavam de braço dado.

 

Viveu sempre na Vila Sousa?

Sim. Nasci e saí de casa a primeira vez com 21 anos. Era um terceiro andar, mas nessa altura os prédios eram construídos com os tectos muito altos; equivalia talvez a um quinto andar num prédio moderno. Havia uma emoção estética: ver as figuras das pessoas numa dimensão e saber que, se descesse, tinham outra. Numa das entradas, a principal, tinha uma escada que é das coisas mais bonitas que tenho visto em escadas. Um dia destes vou lá e vou subir outra vez a escada.

 

Há quanto tempo não vai lá?

Há muito tempo. Anos. Não há muito tempo trabalhei no Teatro Taborda [numa peça dos Artistas Unidos] e quando vejo a minha casa ali ao pé... Um dia lá fui sozinha, olhei para as janelas todas, lembrei-me dos vizinhos, alguns ainda me lembro dos nomes, outros já morreram, e lembrei-me do meu dia-a-dia. Eu tinha um dia-a-dia muito regulado pela passagem das pessoas.

 

Como é que era?

As pessoas iam para os seus empregos e passavam pelo Largo da Graça, a caminho da Baixa, entre as oito e as nove da manhã. À tarde também os via regressar. Quase que o meu relógio era: «Olha, vai passar aquela menina da saia plissada».

 

As pessoas distinguiam-se como, quando as via passar?

A maneira de vestir, era uma das coisas que fixava. Umas andavam mais banais, outras eram elegantíssimas, iam para o seu trabalho bem vestidas, com gosto. Eu distingui-as: «Lá vem a menina da saia plissada», «Lá vem a senhora que usa uma trança». Era o meu convívio. E inventava histórias. Como é que viviam, quem era. A minha infância marcou-me muito em sensações. Por exemplo, a varanda era alta para mim e eu só espreitava através das grades; a pouco e pouco consegui pôr a cabecinha de fora. Foram conquistas que nunca me esquece de ter tido, e recordo a alegria que [então] tive.

 

Essa sensação de conquista, de superação de dificuldades é anterior ao medo. As crianças, quando se jogam sem freio, não têm consciência do medo. Imagino que os seus jogos infantis fossem bastante isolados, porque havia uma grande diferença de idade entre si e os seus irmãos.

Os meus irmãos para mim eram adultos. O meu irmão, porque só tinha uma diferença de nove anos, pelo temperamento e porque era rapaz, acompanhava-me mais brincando comigo. A minha irmã, 13 anos mais velha, era uma espécie de segunda mãe, dava-me ordens: «Come a sopa, se não comes ficas aí sentada». Eu ficava uma tarde inteira sentada em frente à comida, coisa que não me magoava muito porque a nossa casa de jantar tinha muitos quadros.

 

Não a dobravam facilmente.

Não, porque tinha essas defesas. Conheci o Malhoa quase todo porque o meu pai tinha reproduções dos quadros do Malhoa. Talvez por ser muito sozinha, criava um mundo, esse mundo era preenchido por figuras imaginárias.

 

A sua mãe é que lhe ensinou a ler?

Foi. Aprendi a ler aí com uns quatro, cinco anos. Ela foi minha professora na escola, também. Escola-Oficina Número Um: era um projecto de pedagogia moderna, fundada mesmo antes da república. O ambiente era de liberdade e responsabilidade. Era também uma excepção haver rapazes e raparigas.

 

Como é que lhe ocorreu que podia ser corista, que era o queria ser quando tinha quatro anos?

Vi teatro de revista, no Politeama, e fiquei muito deslumbrada com aquele espectáculo, muito colorido. A vivacidade daquilo tudo encheu-me de alegria. As coristas mudavam de vestido, umas vezes iam com um chapéu muito engraçado, outras com uns mantos, outras com uns maillots. Eu achava que aquilo é que era engraçado, e não estar a um canto do palco a dizer umas coisas que eu não percebia. Em casa também fazia essas danças sozinha, levantava a perna...

 

Quem era o seu interlocutor em casa?

A minha mãe. O meu pai esteve sete anos em África, dos cinco até aos 12 não vivi com o meu pai. Ele era jornalista, foi perseguido, os jornais estavam proibidos de o contratar. Foram uns anos terríveis.

 

Nunca o viu durante esse período? A imagem dele era construída nas cartas?

Nas cartas, nas fotografias. O choque foi muito forte quando voltou. Não estava habituada a uma voz masculina a dizer-me: «Não, não fazes isso». Comecei a revoltar-me contra a autoridade do meu pai e explicitei-o: «Quem manda em mim é a minha mãe».

 

A sua mãe transformava o seu pai num herói? Ele foi perseguido pelo seu envolvimento anarco-sindicalista.

Não. A minha mãe acompanhava bem o meu pai. Fez sempre parte dos movimentos feministas.

 

Ela dava-se com a Ana de Castro Osório?

Era um bocadinho mais velha que a minha mãe, mas davam-se. A Maria Lamas, (já depois da guerra), também conheci. A minha mãe levava-me para as reuniões do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Elas chamavam-me a atenção fisicamente, havia senhoras muito bem vestidas, usavam chapéu, eram classe burguesa, mas não gente de dinheiro.

 

A sua mãe sofreu muito com a distância?

Era uma pessoa com um grande sentido pragmático. Se sofreu, foi interiormente.

 

Nunca assistiu ao sofrimento amoroso da sua mãe?

Não. Eles escreviam-se regularmente.

 

Nunca leu nenhuma dessas cartas, nem depois da morte dos seus pais?

Não. O meu pai foi o que morreu primeiro, a minha mãe alguns anos depois. Nunca passou por mim uma carta. Não sei se deitaram fora, se rasgaram.

 

Estudou no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho.

Entrei no ano em que a Mocidade Portuguesa foi instaurada obrigatória. Discutia-se muito lá em casa, falava-se de política. O meu pai era anarco-sindicalista. Os amigos, pessoas de grande valor, até operários, iam lá a casa. Para fazer um número, de vez em quando subia a um banquinho e dizia: «Viva a República!». E lembro-me de querer elaborar um discursozito com frases que lhes ouvia. Sabia que existia esse mundo, mas de modo nenhum compreendia o que podia ser. Comecei a despertar para a política depois da Guerra, quando houve uma tentativa de democratizar o sistema e ingressei nesses movimentos, (já aluna da Faculdade).

 

Porque é que foi para Biologia quando o seu desejo de infância era ser escritora?

A minha personalidade é um bocado estranha... Não é estranha, é muito racionalizada. Eu era muito ambivalente, era boa aluna a Letras, gostava de escrever, tinha uma cultura geral literária superior à das minhas colegas. Mas às vezes era também a melhor aluna a Matemática e a Ciências. Enquanto era miúda, a vida era casa e histórias, depois tive um contacto com a vida. Aos 14, 15 anos, dei uma volta. «Letras? Tretas!, vou para Ciências». Eu queria ser útil e trabalhar numa coisa palpável e concreta. Achei que Letras não valia a pena, que devia ir para Ciências, aprender coisas positivas, que podia pôr em acção e que podiam transformar o mundo. 

 

Casou aos 21 anos, quando ainda estudava.

Devo ter sido uma das primeiras alunas da Faculdade casada.


Como é que foi, apaixonou-se?

Sim. Era um grande companheiro, encontrei-o nas reuniões, movimentos, manifestações estudantis. A gente estava a lutar pela Associação de Estudantes que tinha enfraquecido muito durante o tempo da ditadura, as pessoas não podiam intervir, eram suspeitas. Depois da Guerra, tínhamos o exemplo da Europa, estávamos à espera que Portugal ingressasse também numa democracia. Mas os países da Europa, a verdade é que nos viravam as costas. Democracia com parlamento, eleições livres, liberdade de reunião: eram os princípios básicos, ninguém vinha impor a revolução comunista. O Governo e os poderes tratavam tudo como se fosse comunista. As pessoas encolhiam-se imenso porque não havia dúvidas de que iam ser presas.

 

Teve medo?

Eu passei por situações um bocado complicadas, mas não era bem medo. Fui presa uma vez numa reunião de estudantes. Invadiram a casa onde estávamos, apareceu um senhor que apontou uma pistola, mostrou-nos o crachá, «Polícia de Estado», engolimos em seco, olhámos uns para os outros, «E agora?».

 

Então, começou a cantar.

A cantarolar e a mostrar que estava muito ocupada, a ver uns papelinhos, ao mesmo tempo observando aquilo, sentindo os meus colegas a entrar em tensão. Ainda estivemos sob vigilância mais de uma hora. O inspector que nos prendeu devia ter a nossa idade, ainda fiquei na dúvida, «Será um colega a brincar connosco?».

 

Como é que foi o seu casamento?

Foi civil. Os meus pais não concordaram, «Tu fazes como entenderes».

 

Não gostavam dele? Por que é que não concordaram?

Achavam que era um disparate o casamento, com 21 anos. Alterou-lhes o programa em relação a mim. Não me trataram mal, não me puseram na rua, mas afastaram-se, não quiseram participar. A minha irmã, que era muito solidária, foi ao casamento.

 

Recorda esse dia como um dia de grande felicidade?

Não. Mas de grande libertação. Ainda no outro dia pensei que fiz bem em ter casado, mesmo que não tenha resultado. Acho que me deu oportunidade de viver uma vida e ter conhecimentos que se estivesse em casa do pai e da mãe não tinha.

 

O quê?

Não tinha liberdade para sair, para contactar com mais pessoas. Andei uma vez numa tarefa que era ler um escrito sobre a mulher. Eram sessões de esclarecimento, não era propaganda partidária. Eu chegava às associações, geralmente sociedades de recreio, não eram fábricas, e só tinha homens.

 

O que eram sociedades de recreio?

Eram sociedades formadas e orientadas por pessoas do bairro, que ascendiam através da sua cultura, da sua formação. Faziam bailes, tinham um barzinho, jogavam cartas, dominó, xadrez, damas, faziam aquela vida diária, sobretudo os homens. A parte engraçada é que eu lia aquelas coisas para ser ouvida por mulheres e só tinha homens à frente; porque as mulheres ficavam em casa.

 

Como é que a sua mãe, que privou com feministas, não a deixava estar mais à vontade?

Era uma questão de equilíbrio doméstico.

 

O seu pai não achava grande graça.

Não. Quando veio de África, o meu pai viu que tinha perdido a autoridade na família. Era um estranho. Isso perturbou-o muito.

 

Posso perguntar se casou para conquistar uma liberdade sexual?

Vou-lhe dizer uma coisa: eu casei virgem, quando toda a gente julgava, pela minha maneira de ser, que já tinha avançado muito na minha vida sexual com o meu futuro marido. Vivemos na Mouraria, em Lisboa. Eu estudava, mas o meu marido trabalhava. Frequentávamos sítios e pessoas, foi-me permitido conhecer os intelectuais da altura.

 

Foi nessa altura que começou a dar-se com os surrealistas? Com o António Maria Lisboa?

Sim, sim. E com o Vespeira. Eles tinham ateliers, a gente ia ao atelier. Mas a gente ia também ao café, (era uma instituição!), sabia que tinha uma série de pessoas conhecidas para conversar. Foi nessa altura que comecei a fazer teatro. Surgiu um grande movimento de realizações teatrais, de procura de novas linguagens, novos autores.

 

De qualquer modo, o teatro ainda estava longe de ser a sua vida. Quando acaba o curso, trabalha como bióloga marinha – é assistente de Mário Ruivo. E é convidada a trabalhar na Dinamarca e na Noruega. Que idade é que tinha?

25.

 

Ainda estava casada?

Não.

 

Esteve casada quanto tempo?

Cinco anos. Isso aconteceu em 57.

 

Como é que foi daqui para lá?

De avião. Fiz escala em Londres, depois fui para Berger e depois para Copenhaga.

 

O que é que aquilo foi para si?

Foi óptimo. Nunca julguei que viajar era tão fácil, tão bom e as pessoas tão simpáticas.

 

Nunca tinha saído?

Tinha ido a Espanha, uma vez.

 

Estava num hotel ou ficou alojada em casa de pessoas?

Estava num hotelzinho pequenino, era uma coisa simpatiquíssima, como se fosse uma casa de família. A cidade onde estava era linda, Berger, a segunda cidade da Noruega. Embora houvesse a separação da língua, as gerações mais novas já falavam inglês, as mais velhas não.

 

Já falava inglês?

Um bocadinho. Nunca falei muito bem, mas o suficiente para ter contacto com as pessoas, para conviver.

 

O que é que se comia?

A comida era simples, não era de grandes condimentos, mas boa. A carne era muito boa, não tinham muitos legumes, alguma fruta. Só houve uma coisa que não consegui comer: bacalhau podre.

 

Que comida fazia para si e para o seu marido?

Cozinhava, mal, mas cozinhava. Comia-se o que se come agora. A batata frita, o bife, o peixe cozido, o bacalhau cozido. Agora há talvez mais vegetais do que havia na altura.

 

Também esteve em Londres uns tempos.

Londres para mim era mais mítico do que Paris. Cheguei sábado, a um hotel encantador, com umas velinhas nas janelas e aquilo dispôs-me bem. Eu nunca me lembrava de perigo. Havia um parque, Holland Park, quando entreguei o bilhete o empregado disse-me: «Come in, darling»! Fiquei tão encantada, achei que era outro mundo. Meti-me no bus e disse para o condutor: «Quero ver Londres», ele riu-se: «Conhece Trafalgar Square?». Nessa noite perdi-me e tive só surpresas agradáveis. As pessoas ajudaram-me sempre a chegar a casa.

 

Da visita a Londres, trouxe para Lisboa as calças e as meias pretas.

Comecei a ver as raparigas todas com meias pretas e saias vermelhas, achei aquilo giro.

 

Meias opacas ou transparentes?

Opacas.

 

Aqui as viúvas é que andavam com essas meias, e era uma obrigação.

Eu era insultada, por homens e mulheres. Depois comecei a usar calças, também era insultada. «Olha p'ra ela, machona!». Tinha trazido umas galochas da Noruega, brancas, um encanto, até me insultavam por causa das galochas que não faziam mal a ninguém. Íamos sentadas no banco dos eléctricos, a saia levantava um bocadinho e havia uma alma generosa, «Dá-me licença?», e puxava-nos a saia.


Como é que era olhada por ser divorciada?

Não foi muito agradável. Você perguntava-me por que é que os meus pais se preocupavam tanto: eles tinham medo que eu, transgredindo mais, fosse lesada.

 

Lesada significa mal vista?

Exacto.

 

Quando se separou, mediu a repercussão social disso?

Na altura achei que era um falhanço meu. Afinal não tinha conseguido construir nada. Mas ficámos sempre amigos, eu e o meu marido nunca nos zangámos.

 

Foi feliz nesses anos? Ganhava o seu dinheiro, tinha uma vida independente.

Fui. Eu gostei de trabalhar em biologia.

 

E agora, parecerá que estou a falar com outra pessoa se perguntar pelo jantar em Roma com o Pablo Neruda...

Fui para lá frequentar um curso de teatro. O Pablo Neruda, como sabe chileno, estava fora do país dele, tinha vindo da Rússia e passou por Roma, onde estavam outros não bem-vindos nos seus países. Os meus amigos [portugueses] tinham laços de amizade com sul-americanos que estavam em Roma, quiseram jantar com o Pablo Neruda e insistiram muito para que eu fosse. Não era assim uma figura que me empolgasse muito, mas fui ao jantar. Tenho uma fotografia desse jantar no Trastevere.

 

Porque é que não a empolgava muito?

Eu não conhecia a poesia dele. Ele já tinha a aura de poeta extraordinário. Só que eu não tinha lido, só conhecia o nome e a história.

 

Viveu em Roma cerca de dois anos.  

Não estive na escola oficial, porque não sabia italiano. Estive numa escola que aceitava estrangeiros porque se baseava muito no método Stanislavski, onde o trabalho é mais corporal, emocional.

 

O estilo de representação italiano, que conhecemos através dos filmes, é mais emotivo, visceral, o corpo entra todo. Conheceu a Anna Magnani?

Vi-a uma vez a jantar com o Pasolini. Quem conheci directamente foi o Fellini. Ele estava a fazer um casting para um filme e fui ao escritório onde recebia pessoas, num bairro antigo. Olhei para as caras das pessoas que estavam à espera e reconheci-as dos filmes_ faziam os pequenos papéis, a figuração. Estabeleceu sempre entre ele e os figurantes um diálogo muito engraçado, tratavam-se por tu, com muita alegria, à italiana. O Fellini era daquelas pessoas paternalistas, grandes, não me desiludiu nada. Apresentei-me, disse que era actriz portuguesa, que estava a estudar em Itália, timidamente e atabalhoadamente fui-lhe dizendo que gostava muito dos filmes dele, que gostaria muito de poder entrar num. Deixei uma fotografia e a morada. Era um homem que olhava muito para as pessoas, nos olhos. Era uma figura que dava tranquilidade.

 

Normalmente as pessoas sentem incómodo quando outras as olham tão intimamente. Muitas fogem, não conseguem aguentar o olhar.

Eu gosto de pessoas que olham nos olhos. A não ser que eu seja culpada de alguma coisa. Olhar nos olhos é uma consideração que se está a ter com a pessoa, demonstra que se está a prestar atenção. Quem foge com os olhos é porque não nos liga. Nunca me aflige nada.

 

Quando viu Anna Magnani a jantar com o Pasolini, ficou a observá-la, a medir a distância?

Foi num restaurante ao ar livre, não me lembro qual. Ela não divergia muito. Era aquilo que eu estava à espera. Tinha um ar um bocado desleixado. O Pasolini causava sempre escândalos, ou era preso, ou saía um filme...

 

Teve o sonho de fazer parte desse universo da Cine Cità? Viveu numa Itália fervilhante.

Logo a seguir à Guerra, foi um período de ouro do cinema francês, talvez mais poético, com filmes do Marcel Carnet, do Cocteau. Depois veio o italiano com uma vitalidade extraordinária, foi uma fase de grande paixão, com a Anna Magnani, os filmes do Pasolini, do Visconti.

 

Mas teve ou não o sonho de fazer parte desse mundo?

Eu penso que sou um bocado tonta, nunca sonhei em ser protagonista, vedeta, coisas assim extraordinárias. Se me dissessem: «Gostavas de entrar num filme do Fellini?», mesmo que fosse uma figuração dizia-lhe que sim, porque era um homem que me empolgava muito. Estive em Itália, só fui a esse casting do Fellini.

 

Por que é que nunca ambicionou ser protagonista? Isto tem alguma relação com o complexo de não ser bonita?

Não era por isso que eu não sonhava ser protagonista.

 

A Magnani não era propriamente bonita.

Diziam-me assim: «Que pena, se tivesse vindo cinco anos mais cedo, tinha trabalho». Tinha mais de 35 anos, um ar neo-realista que calhava bem naqueles modelos da mulher do campo. Quando fui já havia tendência para um cinema mais burguês, as vedetas já não tinham muito a ver com as mulheres que a gente encontra todos os dias.

 

Tinha o complexo de não ser bonita.

Sei que não era bonita, mas não tinha complexos de ser tão feia que não pudesse fazer coisas.

 

Se olhamos para o seu retrato pintado por Sá Nogueira, é uma mulher de expressão muito marcada. Não é uma beleza canónica, mas tem uma boca muito pronunciada, o olhar penetrante.

Sabe que esta coisa da beleza varia com o tempo. Quem me salvou foi a Joan Crawford e a Katherine Hepburn, porque tinham uma boca muito grande. Quando era miúda diziam-me: «Ai que boca tão grande». Às vezes os adultos são muito estúpidos, sem querer estão-nos a aferroar. Acho que não ajuda a crescer. Tive sorte porque elas rebentaram com as boquinhas pequeninas, feitios de coraçãozinho...

 

Sobretudo a Joan Crawford tinha uma boca enorme. Mas o que é mais impressionante na Joan Crawford, o que é mais impressionante num actor ou uma actriz? Não é o olhar?

A boca também tem importância. Mas sim, é o olhar.

 

Os sentimentos passam-se nos olhos, não é?

Essa história do olhar tem importância. As pessoas achavam que eu era feia, mas ao mesmo tempo atraente. E quando me deram um papel em que não era a mulher feia, mas a mulher provocante e sedutora, (foi a «Maluquinha de Arroios), foi um abrir de boca, porque ninguém esperava que fizesse aquele papel.

 

Quando lhe deram esse papel, sabia que o podia fazer bem? Confiava em si enquanto mulher sedutora?

Sim. Eu não era a Ingrid Bergman, mas sabia criar esse clima de atracção.

 

Era uma coisa mais explicitamente sexual.

Sim, foi isso que abanou mais as pessoas, «Ai que engraçada, que bem que se mexe». Nunca tinham descoberto, devo-o ao Carlos Avillez. Diz-se sexual ou sensual, mas não tem nada a ver com a beleza.


Mudou de vida já depois dos 30 anos. Abandonou a Biologia e dedicou-se à representação.
Foi na sequência desta decisão que foi estudar para Roma. 

Eu disse: «É agora ou nunca». Continuava a fazer o meu trabalho de investigadora no laboratório, não fazia contrariada...

 

Fazia-o sem chama.

Sim. Fazia uma rotina de registos sobre um peixinho que toda a gente conhece, o bacalhau. Já feito o filme «Dom Roberto», e devo dizer que ao ver-me no ecrã, a desempenhar aquele papel, convenci-me finalmente de que podia ser actriz, de que valia a pena fazer a jogada. Foi uma surpresa ver aquela imagem em que não era eu. Os primeiros momentos foram um bocado dolorosos. Para mim, actor não é o que se exibe, é aquele que se transforma.

 

Onde é que a pessoa vai buscar esse outro lado?

Está nela, em primeiro lugar, e depois em tudo aquilo que vai observando e assimilando, quase sem dar por isso.

 

Quer dizer que podemos ter todas as emoções, dizer todas as coisas? Elas só precisam de ser desencadeadas? Precisam de um detonador, que pode ser um texto, um encontro?

Claro. Queria dizer-lhe que nós não estamos a mentir, estamos a procurar memórias de sentimentos que foram vividos, passaram pelo coração, e que somos capazes de transmitir. Atinge-se essa facilidade com a experiência. O desenvolvimento do que é representar é muito complexo.

 

Foi professora muitos anos. O que é que pedia e o que é que ensinava aos seus alunos?

Não me pergunte o que é que ensinava. Tentava dar-lhes a noção de que eles próprios tinham o seu caminho, que uma emoção feita por um aluno e essa mesma emoção repetida por outro não era igual, porque ambos tinham tido experiências diferentes e são caixas de ressonância diferentes. Portanto, emocionei-me ao ver que podia fazer qualquer coisa de diferente. Eu já tinha feito muito teatro, mas nunca me tinha visualizado. E disse: «Estou a perder o meu tempo, daqui a uns tempos não tenho forças e já não tenho actualidade». Depois houve uma questão de foro trabalhista com o meu chefe, o Comandante Tenreiro, uma das figuras importantes do regime, que veio interferir com a minha vida. E eu: «Pronto, é agora, vou-me embora». Podem dizer: «É doida, largou a biologia e foi para o teatro». Eu não sou doida. Enquanto não sei o chão que piso, não dou o passo. Não era bem calculismo, era não criar problemas, os problemas que eu sabia que ia criar se ficasse desempregada. As coisas eram bastante observadas e medidas para comigo: «Tenho coragem para», «Posso fazer isto». 

 

Participar na fundação da Cornucópia foi um marco importante na sua vida?

Importantíssimo. Tenho a impressão de que se não tivesse encontrado a Cornucópia através do Luís Miguel [Cintra] e do Jorge [Silva Melo], talvez não perseguisse a minha carreira teatral. Como lhe disse, nunca pensei ir para o teatro para ser protagonista. Não estou a fazer romance, era verdade. Hoje até digo: «Mas que parva, por que é que não fiz isso?».


Se calhar, o mais importante era outra coisa. Que outra coisa era?

Fazer parte daquele jogo.

 

Disse numa entrevista antiga: «Uma carreira não justifica uma vida». O que é que é mais importante?

Quer saber como é que isto liga? Ninguém pensava em dar à Palmira Bastos um papel que não fosse o centro de cena. Essa obsessão exige da pessoa uma atenção espantosa, não perder oportunidades. Incomodava-me se tivesse que fazer isso. Interessava-me a obra, o papel, o gozo, que transmitisse alguma coisa que gostava de ver transmitido. Quando fui para a Cornucópia estava a pôr em questão a minha vida no teatro. Eu queria era fazer parte de bom teatro, tinha uma certa exigência, estética, de conteúdos. Tinha acabado de fazer um espectáculo por minha decisão, «As criadas», do [Jean] Genet, (uma encenação do Vítor Garcia, com a Eunice Muñoz e a Lourdes Norberto). Quando acabei aquilo senti um vazio, o que viesse nunca seria próximo daquele, como inovação, como experiência. Fiquei um bocado sucumbida. Aparece a Cornucópia, um grupo da Faculdade de Letras, apresentaram um espectáculo e fui ver.

 

Foi assim que os conheceu, foi ver o espectáculo à universidade?

Foi.

 

O que é que os distinguia?

Tinham especial talento, vi-os a fazer «O Judeu», vinham com uma frescura, uma linguagem... Eles vieram ter comigo, tinham um certo interesse pelo tipo de actriz que eu era, e fiquei com eles.

 

Fez teatro para crianças. A Glicínia não teve filhos...

 Dirigi um teatro que teve muito êxito, «Emílio e os Detectives», ali no Villaret. Nunca tive desejos de ser mãe. Não tenho pena nenhuma. Não ser mãe nunca me perturbou. Gosto da criança pela criança, é um ser humano, um ser que tem todas as possibilidades e que devemos ajudar o mais possível a ser feliz. Que não tenha a preocupação de ser um bom advogado ou um bom engenheiro: que seja feliz! O resto vem por acréscimo.

 

Pode-se ensinar a ser feliz?

Eu não ensino a ser feliz. Eu gostava de educar as pessoas de modo a que elas pudessem abrir os olhos à sua volta e crescer. Acho mais importante do que saber muita coisa. Pelo saber também chega o crescimento, acho que isso é que é importante, e muitas vezes não se faz.

 

Parece uma mulher feliz.

Não sou infeliz.

 

Parece bem consigo.

Sim, estou.

 

Isso é uma conquista ou sempre foi assim?

Acho que sou também assim. Tem sempre que haver qualquer coisa de nós. Depois a vida favorecer-nos, não ser contrária, abrir-nos caminhos, «Agora vem mais isto, que bom, que interessante!», e não ficar muito tempo a resmungar, «Porque é que aquilo aconteceu?». Dá -me a impressão de que tudo o que me aconteceu foi aquilo que devia ter acontecido.

 

Não deprimiu com a velhice.

Não, deprimir não deprimi... Mas se quer que lhe faça uma confidência, hoje estou a sentir uma baixa. Gozar a vida, ainda gozo, ainda me riu com facilidade, ainda me interesso por coisas muito simples. Depois penso assim: «Isto está a acabar».

 

A parte extraordinária é que continua a saborear. Há pessoas que soçobram, e amargam...

Espero que não, mas estou no princípio da velhice.

 

O que seria um bom presente de aniversário? [A entrevista é anterior aos 80 anos de Glicínia, a 19 de Dezembro]

Não sei. Uma festa, com amigos, com gargalhadas, com graças. Durante muitos anos não me lembro de haver o «Parabéns a você». Tenho impressão de que o «Parabéns a você» foi uma importação, através dos filmes americanos. Eu nunca gozei o Natal, os meus pais não eram católicos. Mas este ano é que vou enfeitar a minha casa!, parece que este ano vai ser! Como eu recebia presentes e bonecos no dia dos anos, era quase como um Natal.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004

Glicínia Quartin morreu em 2006

 

 

Manuel António Pina

21.03.24

Manuel António Pina vive entre livros, papéis e gatos. Lembranças, palavras e um cão. Nasceu no Sabugal, há 65 anos. É poeta, escreve livros infantis (embora não goste da designação), é cronista. A sua obra está traduzida, foi premiada.

Pina é o tipo de homem que diz ao mesmo tempo coisas como: “Somos matérias de estrelas. Tenho um poema chamado “Matéria de Estrelas”; e oferece um doce: “Não quer tomar nada? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã”. Cita T.S. Eliot e mostra fotografias antigas. Aponta para o casaquinho à grilo que usou num Carnaval e explica que religião e religare vêm do mesmo.

Para Manuel António Pina, isto anda mesmo tudo ligado. A comida que se come, a morte que se inflige às bactérias com o antibiótico, o taoísmo do urso Puff, a empregada de língua afiada que faz parte da família há 20 anos.

“Ler, como diz o Borges, é uma forma de felicidade”. Quando era pequeno, os outros miúdos faziam música, cantavam. Ele lia e escrevia versos.

 

Tem uma fixação no Winnie The Pooh

É um dos meus livros de referência. Nós somos o que lemos, e eu, não sei se sou alguma coisa ao Winnie The Pooh, mas gostava de ser… Ao [Jorge Luís] Borges, perguntaram assim: “Quem é afinal Borges?”; ele começou a responder como os futebolistas, na terceira pessoa, “Borges não existe” [risos]; depois passou para a primeira pessoa do singular: “Sou todos os livros que li, todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei”. É verdade – agora digo eu.

 

Como se deu o encontro com o Winnie The Pooh, de Milne?

Descobri-o tarde, era um jovem adulto. Em casa dos meus pais havia poucos livros. O primeiro livro que li, tinha uns oito ou nove anos, emocionou-me imenso. Foi “A vida sexual”, do Egas Moniz. Comecei a ler livros por causa das bibliotecas da Gulbenkian que apareciam lá na terra.

 

Como o apresentaria? É improvável que um encontro com uma figura da infância se dê na idade adulta…

E de uma forma muito forte. É um ursinho com muito pouco miolo, que tem uma relação com o mundo e consigo dominada por uma nonchalance e pela bondade – que é a grande qualidade humana. É muito medroso, mas tem aventuras de grande coragem. Há uma nonchalance que há, ou que gostaria que houvesse em mim, ou que procuro que haja em mim, [um desejo de] deixar-me atravessar pelas coisas. O Ursinho Puff é uma imagem de um universo perdido, de um mito, de um passado dourado – que nunca existiu. É uma espécie de reencontro com a infância. E esse reencontro é uma necessidade natural em sociedades urbanas como as nossas, muito agressivas, competitivas e pouco espontâneas. É natural que em silêncio, na solidão, sintamos essa melancolia da infância.

 

Era à voz da infância que eu queria chegar, cruzando o Pooh com o título Um sítio onde pousar a cabeça.[1991] O Pooh simboliza o espaço mitificado da infância?, onde tudo era puro e onde podemos, pelo menos na memória, pousar a cabeça.

O Ursinho Puff não é propriamente puro, é espontâneo; tem uma relação directa e imediata com as coisas e com a palavra. Seduz-me a sua relação com as palavras, que é simultaneamente de inocência e de malícia. E seduz-me a capacidade formidável que têm as palavras de fazer sentido e de produzir sentido. A palavra “criar”, pelo menos em termos fonéticos, tem muito que ver com a criança; criança também é aquele que está em criação. No Pooh tudo é feito através do discurso.

 

E que tem isto a ver com os seus livros?

Escrevo o livro comigo mesmo, com o meu sangue, com a minha vida, com a minha memória. A minha escrita tem muitas alusões, frases. Tenho a cabeça cheia de frases!, do Eliot, do Rilke, do Alexandre O’Neil, do Ruy Belo e do Winnie The Pooh; para além de outras que não reconheço, e que se calhar são as mais importantes ou significativas. Quando falo na minha poesia do que está atrás dos cortinados, o que está debaixo da cama, esses medos infantis, tenho no horizonte relações com esses poemas do Milne.

 

O primeiro espaço da sua infância foi o Sabugal.

No dia 4 de Abril, vão-me fazer uma homenagem [entrevista realizada dias antes]. Vão pôr uma placa na casa onde nasci, e pediram-me um verso lá pôr. Andei à procura. Uma das ideias centrais da minha poesia é a morte, o sítio onde pousar a cabeça. O regresso a casa é a melancolia da infância e é também a morte. Do mesmo modo que nascemos do ventre da mãe, há um regresso, uma espécie de percurso circular, ao ventre da terra. Por algum motivo dizemos “a terra natal”.

 

E muita gente quer ser enterrada na terra onde nasceu, por mais voltas que tenha dado.

[afasta-se] Deixe ver se encontro aqui esse livro…, onde é que está isso agora? Deixei-o no carro. Aqui é onde tenho as coisas relativas aos meus livros, este armário todo… Vou dizer-lhe um poema: “Os homens temem as longas viagens, os ladrões da estrada, as hospedarias, e temem morrer em frios leitos e ter sepultura em terra estranha”. Começa assim. “Por isso os seus passos os levam de regresso a casa, às veredas da infância, ao velho portão em ruínas, à poeira das primeiras, das únicas lágrimas”. Continua por aí abaixo.

 

Vamos até à casa onde nasceu?

Nasci em casa. Era a casa dos meus avós. Tenho tantos poemas sobre aquilo… E, no entanto, saí de lá com seis anos. O meu pai era funcionário das Finanças. Só podia estar dois anos em cada terra para não fazer amigos. Isso foi horrível para mim, porque não fazendo ele amigos, eu também não fiz. Sair do Sabugal foi muito penoso.

 

Quando saiu do Sabugal, iniciou a sua viagem. Gosta de viajar?

Há uns anos, uma miúda perguntou-me: “Como é jornalista, viaja muito?”. “Não gosto nada de viajar!”. E ela: “Se calhar foi por viajar tanto quando era pequeno…”. Tinha uns dez ou 11 anos, e chamou-me a atenção para isso. Fui uma espécie de Sísifo: sempre a fazer amigos e a perdê-los. Quando os amigos estavam feitos ou a fazer-se, perdia-os de novo, e ia para outra localidade, e recomeçava a fazer, tudo do princípio, sabendo que os ia perder daí a três ou quatro anos, e que tinha de recomeçar de novo. Passei a infância nisto.

 

Mas não desistia?

Não. Estamos condenados a isso. Os meus amigos mais antigos são dos 18 anos, aqui do Porto. Não tenho amigos da instrução primária, mas tenho nomes: o Américo, o Pedro Matos Neves, (esse sei que morreu na guerra colonial). Tenho a cabeça cheia desses nomes, mas os rostos já se perderam. Eu tinha um pesadelo quando era miúdo, recorrente, que tinha que ver com o regresso a casa.

 

Como era?

Eu vivia numa casa e atravessava a rua para ir à escola; entretanto, começava a passar um comboio eterno, passava, passava, e não podia regressar a casa. Era horrível! É o problema do regresso a casa.

 

Há um poema seu que diz assim: “A alegria da viagem é o regresso a casa”.

A minha vida, na infância e juventude, foi uma permanente, uma eterna partida. É natural que tivesse a melancolia do regresso.

 

Era um menino triste?

Não. Essas coisas são profundas demais para terem expressão à superfície, na tristeza ou na alegria. São vivenciais; na altura não nos apercebemos delas, e são as que nos marcam mais.

 

Não desistia de fazer amigos, que era um modo de construir casa, mesmo sabendo que o desmoronamento era inevitável. Não criou um muro entre si e o mundo. Não o fez menos loquaz.

Se calhar até aumentou a minha loquacidade. A minha infância foi uma longa queda, com a minha existência a desmoronar-se permanentemente, a ter de ser recriada. Agarrar-me é uma forma de criar raízes.

 

Olhando à volta, percebe-se que acumula coisas.

Tenho muita dificuldade em deitar coisas fora.

 

Podia pensar, em função do seu passado, que o desprendimento lhe fosse mais fácil.

Foi exactamente isso que me fez ser mais agarrado às coisas. Sabe o que é isto aqui? São coisas importantes para tratar.

 

Tem uma pilha de um metro de coisas importantes para tratar!

Descobri que as coisas importantes, se as pusermos num monte, passados uns meses deixam de ser importantes [risos]. É tudo inútil!, são urgências que entretanto deixaram de ser urgentes. Mas nem calcula as coisas que tenho da infância. Tenho até um casaquinho preto que a minha mãe e a minha tia Céu me vestiram numa festa de Carnaval. [Afasta o cinzeiro da secretária apilhada de coisas] Eu quase não fumo. Sou muito inseguro. O cigarro também é uma forma de insegurança. Eu é que estou pendurado no cigarro, não é o cigarro pendurado em mim. As minhas amigas psicanalistas dizem que se eu não escrevesse poesia era um grande cliente delas.

 

Nunca foi cliente de psicanalista?

Não, e não gosto de psicanalistas.

 

Porquê?

Desconfio. São polícias das almas. Não gosto nada que me espreitem cá para dentro. [Mostra fotografias] Isto era a minha avó, o meu avô, a minha mãe e a minha tia Fernanda. Isto são as minhas filhas. Este é o Mário Cesariny. Isto sou eu e o meu irmão.

 

Sem o bigode, nem o reconheço. Deixe-me tentar perceber se é o mesmo.

Sou, sou. Sou o mesmo e outro. Estava a ver se encontrava as tais fotografias… Isto é a minha mulher. O meu avô. Tenho um poema, “O casaquinho preto”. Tenho esse casaquinho aí, vou buscar, tem de ser, está bem?

 

Está.

“Como é que eu podia saber na altura que eu era só uma memória do que sou hoje, de alguém que eu na altura desconhecia?”. Estava a falar da infância: tenho uma memória muito vaga daquela casa, tenho só sombras. A memória mais antiga que tenho é concreta, mas as outras não. “Ao fundo da escada havia uma floreira branca e lilás, com uma flor descolorida, talvez tenha sido um sonho a preto e branco e isto faça algum sentido, a avó morria de cancro no quarto de baixo, vomitando um líquido branco, andava por ali a morte, falando baixo, subindo e descendo as escadas. Vi-a muitas vezes hesitando, como se estivesse perdida também ela, ou como se estivesse viva…”.

 

Vai insistentemente aos poemas… A poesia, como o cigarro, é um biombo que interpõe para evitar ou adiar o encontro com os outros?

Não. Quando começo a escrever um poema nunca sei o que vou dizer. O Eliot fala de um ser informe que se pergunta a si mesmo: “O que virei eu a ser?”. O Paul Claudel diz que sente qualquer coisa nele que se quer transformar em palavras. A poesia é uma busca da identidade, ou seja, de coincidência. Na busca dessa coincidência, é natural que cada um de nós construa uma narrativa, construa um passado. Os poemas sobre a infância são uma tentativa desesperada de construir um passado onde possa regressar, onde possa encostar a cabeça. Mas isso é comum a todos os seres humanos, quer tenham uma existência nómada, como foi a minha, quer tenham uma existência sedentária – a tentativa desesperada de se encontrar a si mesmos, de coincidir com o rosto que vêem diante do espelho.

Não sei como é que hei-de explicar isto…

 

Como foi o seu encontro com as palavras?

Aprendi a ler muito cedo. Os meus pais viviam com muitas dificuldades económicas. Tanto que fiz o curso todo sem assistir a uma aula de Direito. Fui para Direito porque era o único curso que se podia fazer sem ir às aulas. Tinha um primo numa república e às vezes conseguia estar um mês em Coimbra. Mas ia assistir às aulas de Literatura, do Paulo Quintela! Isto vinha a propósito de quê? Ah, não havia livros, mas o meu pai todos os dias, quando vinha da repartição, levava o jornal para casa. Aprendi a ler nos jornais. E sabe como são as mães… Tem filhos?

 

Não.

Mas tem mãe. As mães são os seres mais admiráveis que há. A minha mãe é que guardava essas coisinhas todas que eu escrevia. Desde que me conheço, escrevia todos os meus sentimentos, a minha relação com o mundo e com as coisas. Escrevia em verso.

 

Como é que um miúdo de seis anos escreve versos?

Os versos eram dísticos, o verso mais simples. Alguém me contou a história do milagre das rosas e eu pu-la em verso. “Nasceu um dia em lua-de-mel, uma princesa chamada Isabel”. O “que queres ser quando fores grande?”, fazia sempre em verso. Queria ser detective, aquelas coisas que os rapazes querem ser.

 

Os rapazes querem ser detectives? Essa nunca tinha ouvido.

Queria ser detective por causa dos livros de banda desenhada. O “Cavaleiro Andante” vinha aos sábados, chegava na camioneta, e eu andava com o meu irmão à pancada para ver quem lia primeiro. Queria ser padre.

 

Padre? Porquê?

Eu queria ser santo. Imaginava este mundo como sendo a barriga, o interior de um ser a quem chamamos Deus, que por sua vez era um habitante de outra terra, que vivia na barriga (que é o sítio onde está a alma) de outro ser que era o seu Deus, e assim até ao infinito. E para mim era a mesma coisa: na minha barriga viviam muitos pequenos seres que me designavam a mim, não sabendo quem eu era, por Deus.

 

Era um elo numa cadeia.

Uma cadeia para o infinitamente grande e para o infinitamente pequeno. Não está longe da verdade. De vez em quando, dava um soco na barriga, “ai, provoquei um terramoto nos universos inferiores todos”; imaginava os seres dentro da minha barriga atirados ao chão, a pedir piedade, piedade! [risos].

 

Donde veio a ideia de querer ser santo?

Queria ser bom até ao limite, ao extremo. Na Sertã, vivia num extremo da vila e a escola era noutro extremo; vinha a pé para a escola e aproveitava para rezar todo o caminho. Era investir na minha santidade.

 

Era também um desejo de agradar à sua mãe? A sua mãe era religiosa?

Era. O meu pai era anticlerical primário. Quando fiz o 7º ano do liceu, a alternativa para as pessoas com poucos meios era ir para a academia militar ou para o seminário. Para o seminário, nem pensar! O meu avô materno tinha todos os defeitos: era judeu, anarquista, republicano e anticlerical. Na minha família, eram todos judeus de origem; ele era Ismael, a minha mãe Sara.

 

Onde é que pára o judaísmo e o desejo de ser santo?

Eu, que já fui agnóstico, agora sou mesmo ateu. Mas tenho muita sedução por religiões e por livros religiosos. Sou um grande leitor da bíblia, embora leia aquilo como um romance.

 

A prosa nunca foi a sua forma?

Nunca. Ainda hoje leio pouca ficção, e leio sempre os mesmos: o Malcolm Lowry, o Conrad, o Melville, o Jack London, o Mark Twain. Li o Eça de Queirós porque tive um prémio literário no liceu de Aveiro. Era no valor de 500 escudos em livros, e comprei as obras completas do Eça. Passava o tempo metido na biblioteca; não era para me cultivar, era por prazer.

 

Porque aquilo era uma casa.

Talvez. Está a psicanalisar-me! [risos].

 

Fale-me da sua mãe, por falar em psicanálise.

A minha mãe também fazia versos. A minha mãe ficou muito magoada quando morreu o meu avô, pai dela, e eu não escrevi nenhuns versos. Tentou fazer uma fraude. “Sabes, escreveste uns versos tão bonitos sobre a morte do teu avô…”, “Não escrevi nada”, “Escreveste, escreveste, encontrei-os ali”. Queria convencer-me que era eu que os tinha escrito! E mostrá-los ao meu pai e às amigas. “Não escrevi nada, é mentira, foste tu”. Esses versos terminavam assim: “Estás no Céu avozinho, junto de Nosso Senhor”! [gargalhada] Fiquei furioso.

 

Ficou furioso porque lhe queria atribuir uns versos que não eram seus?

Sim. E fazia versos que queria que eu recitasse para as visitas: “Quero ser alferes, e de um lindo regimento de mulheres”. Um dia, o Tesoureiro da Fazenda Pública e a mulher foram visitar-nos e a minha mãe esteve a ensinar-me uns poemas que fez. Eu tinha vergonha de os ler. Finalmente acabei por fazê-lo escondido atrás da porta. Nunca contei isto a ninguém. Agora que me está a fazer a psicanálise, lembro-me destas coisas engraçadas. A minha mãe morreu há 10 anos.

 

E escreveu versos?

Não. Não escrevo poemas sobre nada.

 

A sua poesia escreve-se com memória, não com sentimentos.

Toda a poesia se escreve com memória de sentimentos, mas não com sentimentos. O Oscar Wilde dizia que “a má poesia normalmente é sincera”. Os sentimentos são maus conselheiros. Outro dia recebi um original do João Luís Barreto Guimarães sobre a morte do pai; peguei no livro com a maior das desconfianças, mas é admirável.

 

Na infância escrevia em versos. Sobre quê?

Sobre sentimentos.

 

Escreveu versos sobre a morte da cadela Coquita e não escreveu sobre a morte do seu avô. Porquê?

Sabe-se lá porquê? Nunca me forcei a escrever. Não queria ser dramático, porque estas coisas são simples: mas é como se os poemas é que quisessem escrever-se em mim. Os sentimentos sentem-se, a poesia não tem nada que ver com isso.

 

Como naquele seu verso: “A palavra sangue não sangra”?

Se me dói uma coisa, dá-me para chorar, para gritar, e não para escrever. Agora já não choro há muito tempo, mas houve uma altura em que chorava imenso. Sem motivo. Já com 30 anos, 40 anos, fechava-me sozinho no quarto, agarrava-me à almofada e chorava. Saía dali com um conforto… A minha poesia, quando era miúdo, tinha que ver com efabulações, sonhos, desejos. Os temas de toda a arte reduzem-se à morte e ao amor.

 

Eros e Tanatos.

Eros e Tanatos, e o Tempo também. As questões fundamentais de todos nós, do Homem enquanto tal, são aquelas que os nossos filhos nos põem quando têm três anos. “De onde é que nasci? Onde é que eu estava antes de ter nascido? Para onde se vai quando se morre?”. Os sistemas filosóficos, as religiões tentam responder a essas perguntas. E no meio tempo: “Quem somos”, ou “O que somos”. É natural que à beira do abismo o Homem se interrogue, ou fique ansioso. Essa interrogação é o motor da arte, da filosofia, da poesia, da música.

 

Quis ser escritor?

Nunca. Os miúdos, nas escolas, perguntam-me se quando era pequeno queria ser escritor. Até costumo responder-lhes com um jogo de palavras: “Que o escritor é que quis ser eu”. E é verdade.

 

Não quis ser escritor, mas quis ser santo. Influências bíblicas abundam na sua poesia.

Quando era jovem, gostava do Cântico dos Cânticos. Tinha aquele conteúdo carnal… Eu tinha uma namorada e uma bíblia; Salomão fala dos seios de Sulamita: “Os teus seios são como duas pombas, para não falar do que está dentro”. E na minha bíblia tinha uma nota de rodapé: “Entenda-se os dois seios da Igreja, a Moral e a Doutrina”. Eu dizia à minha namorada: “Hoje tens mais Doutrina que Moral” [gargalhadas]. Depois também me interessei pelo Apocalipse. Mais velho, pelos livros do Antigo Testamento. O meu evangelho era o de São Mateus. O Pasolini é que fez um grande filme, Il vangelo secondo Matteo.

 

Além de ser belo, é um filme muito carnal.

Também. Agora, que já sou sexagenário, tenho uma certa preferência pelo Génesis e pelo Evangelho de São João, que acho que é o mais poético. Tenho a cabeça cheia de versículos da bíblia. “Podes ter o dom das línguas, mas se não tiveres o amor…” Conhece esse? Vou ler, desculpe lá, é comovente e tudo. É do São Paulo, e não gosto nada do São Paulo: é misógino.

 

Não gosta do São Paulo porque ele é misógino?

E por outras coisas. Mas esta é lindíssima. “Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência e de toda a fé, a ponto de transformar as montanhas, se não tivesse o amor, eu nada seria”.

 

O que seria da sua vida sem o amor?

Costumo dizer uma coisa: o amor é a bondade que se aplica a tudo. É a bondade, é a beleza. O amor é um conceito só. Sou um céptico, mas conheço duas ou três ou quatro pessoas bondosas. A minha sogra é uma pessoa bondosa, a minha mulher também é. O amor é o principal veículo de comunicação. [aproxima-se uma gata] (É a minha gatita, deve ter tropeçado). De maneira que o amor ou a bondade é tudo o que temos. Memória é tudo o que temos, palavra é tudo o que temos, e as palavras são a forma de podermos, eventualmente, tocar a fímbria do amor e da memória. Veja lá há que tempos estou com este cigarro sem o acender…, isto é insegurança.

 

Porque é que é inseguro?

Sei lá. Vou contar-lhe um segredo, mas não me importo que fique: eu escrevia com régua, à mão. Se eram coisas que podiam ser vistas por outra pessoa, escrevia com régua, e com hipocrisia. Ainda hoje faço as dedicatórias dos livros assim: uso o Bilhete de Identidade, [a fazer de régua].

 

Para quê?

Para ficar mais certinho, para não me mostrar em cuecas, para não mostrar a minha intimidade, a irregularidade.

 

Isso é irregularidade?

Tenho essa mania. O que é que quer?, é o mesmo motivo que nos leva a pentear ou a ajeitar a gravata – não uso gravata. Quando estamos em público não nos apresentarmos da mesma maneira que em privado. Gosto muito de um título do Alexandre O’Neil, que é um bocado a minha relação com as palavras: “O Abandono Vigiado”. Liberdade condicional. Senão as palavras começam a falar sozinhas. ([A gata mia] O que é que ela está a fazer?

 

Está a meter-se dentro da minha carteira.

Ela é muito brincalhona. Vai à tua vidinha. É muito gorda.

 

Enxotei-a. É como se fosse uma pessoa a mexer nas minhas coisas.

Fez bem. É intromissão.) As minhas amigas psicanalistas – são duas ou três – diziam que escrever com a régua era expressão de insegurança. Se sou inseguro, porque é que não mostro que sou inseguro?

 

Já disse pelo menos duas vezes que é inseguro.

Sou. Antes tinha vergonha, mas agora não – são os tais privilégios da idade. Lá está você a contar as vezes…, a psicanalisar!

 

Os psicanalistas contam?

Você repara. É perigosa. Porque é observadora.

 

Se sou isso, vou dizer que reparei que citou várias vezes o Borges e nenhuma o Mallarmé, que, segundo os escritos sobre a sua poesia, lhe é essencial. Nem a Odisseia.

Não é tanto a Odisseia, é mais a Ilíada.

 

O tema do regresso a casa e da memória, e mesmo do mito de Sísifo, estão na Odisseia. Por isso falo dela.

A Odisseia foi muito marcante. Até onde tenho consciência, os autores essenciais são todos aqueles gregos a quem chamamos Homero, o Eliot, o Rilke e o Borges. A ficção do Borges. Não gosto muito da poesia do Borges, curiosamente.

 

Estranho, porque Borges é um dos maiores poetas, e porque você é um poeta que quase não lê ficção.

Sinto-me mais consanguíneo com a ficção dele. E há Ruy Belo, Pessoa, Cesário Verde, Cesariny, e há muitas mulheres… Surpreende-me, em versos meus, reconhecer ecos da Sylvia Plath ou da Anna Akhmatova.

 

E a vidinha?

A vidinha, convivo bem com ela.

 

Estudou Direito porque era o que era possível. Quis ser santo e detective, entre outras coisas. Parece uma vida efabulada. E depois há uma vida que se impõe, com os pés na terra.

São vidas paralelas, convivem perfeitamente uma com a outra.

 

Como é que aprendeu a fazê-las conviver?

À própria custa!, é a única maneira. Isto é humano, demasiadamente humano. É natural que queiramos evadir-nos quando nos sentimos agarrados pela vida corriqueira. (Hoje estou com uma dor de dentes. Não posso tomar coisas, que tenho medo, estou a caminho da diálise, dá-me cabo dos rins. O dentista radiografou tudo e não tenho lá nada, mas dói-me!, não sou maluco completamente). Continuando: somos muitos ao mesmo tempo, somos aqueles que sonhamos, somos sobretudo aquilo que tememos e que desejamos.

 

Ainda não explicou como é que embrulha as várias camadas. A do poeta, a do que vive a vidinha, a do escritor de livros infantis que vai às escolas falar com miúdos e dizer-lhes que nunca quis ser escritor.

Acho que é fácil compatibilizar todos aqueles que nós somos ou vamos sendo. Vivo a tal vida corriqueira sem me comprometer. Consigo ser muito “forex”, como dizem os putos, mas ao mesmo tempo sou muito prático – é o tal espírito jurídico. Ainda agora tive uma guerra com a TMN por causa de umas facturas e acabaram por me indemnizar. Eu gosto de guerras perdidas, tenho mesmo vocação para santo! [gargalhada].

 

Essa com a TMN, pelos vistos, não foi perdida. E já agora, algum santo em particular?

Não. Queria ser santo, queria ser bom.

 

Santo Pina.

Há uns versinhos de um miúdo do Centro de Recuperação de Crianças Anormais – um nome horrível – o Manuel Ferraz, de 12 anos: “Eu quero ser bom, mas não bom de todo o meu coração”. Eu queria ser totalmente bom. Embora hoje já só queira ser bom mas não de todo o meu coração – como o Manuel Ferraz.

 

Pelo meio, exerceu advocacia durante nove anos, que abandonou para ser jornalista.

[De novo a gata] Anda cá Bézinha! Ela é muito simpática, é muito cordial.

 

Era um advogado de causas perdidas?

Também. As pessoas confiam no advogado a sua liberdade ou a sua fazenda. O mínimo exigível era uma entrega total. Tinha de poder dormir comigo mesmo todas as noites. Podemos dormir com A ou com B, mas connosco temos sempre que dormir. É bom a pessoa dormir tranquilamente, poder não dizer: “Sou um sacana”. Somos o nosso pior juiz. Em relação a amigos que tive na juventude, o Alberto Martins, o Jorge Strecht, digo-lhes muitas vezes: o que é que pensariam das pessoas que são hoje as pessoas que vocês eram quando tinham 20 anos?

 

Andou metido na política?

Pouco. No outro dia encontrei no Alfa o Januário Torgal Ferreira, o bispo, “olha o padre Januário!”. Continua a dizer hoje o que dizia quando tinha 20 anos. As pessoas mudam, mas fundamentalmente os valores são os mesmos.

 

E no seu caso?

Acho que continuo a dizer o mesmo. Mudei muitas coisas. Para ser fiel aos valores fui obrigado a mudar. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril, cheguei a ser candidato a deputado pelo MES e pela UEDS. Fiz sempre questão de não ser militante de coisas nenhuma; como se costuma dizer em linguagem popular, eu mijo fora do penico. Esse militante, foi o homem que nunca quis ser. Vamos sendo outros; alguns por imperatividade da vida biológica (não quer tomar nada?), outros por imperatividade afectiva, outros moral, e nesse grande painel de identidades, o militante é perfeitamente dispensável.

 

Aproximou-se da política numa altura em que em Portugal toda a gente fazia política.

Foi a seguir ao 25 de Abril. Acreditei e envolvi-me mesmo. Eu não sou muito hipócrita, sou o suficiente para conseguir viver em sociedade. Acreditei que vinha aí o socialismo, que podia ser uma forma de felicidade colectiva. Eu andava à procura de casa, estava para nascer a minha filha mais nova, a Sara. O obstetra dela, que era um famoso professor da Faculdade de Medicina, nas consultas só falava nos comunistas, estava preocupado que lhe levassem as pratas. As pessoas fugiram em debandada final como se fossem umas baratas, e abandonavam coisas que vendiam por tuta e meia. Estava à venda uma casa que eu cobiçava imenso, por 600 contos, que era muitíssimo barato. Sabe porque é que não a comprei?

 

Porquê?

Estava sinceramente convencido de que vinha aí o socialismo e que não precisava de comprar casa! A militância não foi só por causa de l’air du temps. Eu acreditava mesmo no poder popular. Tentei ser candidato duas vezes. A proximidade com a militância e com a política partidária revelou-me aspectos da natureza humana e das próprias organizações partidárias revoltantes. De maneira que afastei-me completamente. Hoje tenho até uma hostilidade em relação à política.

 

Foi em 74 que editou o seu primeiro livro. O título é: “Ainda não é o princípio nem o fim do mundo, calma, é apenas um pouco tarde”.

Foi nas vésperas da revolução, acho que o livro saiu mesmo em Abril.

 

É um título profético, de certa maneira.

Tinha editado um livro infantil em Dezembro de 73, chamava-se “O país de pessoas de pernas para o ar”.

 

Sei que não gosta da designação, mas é um dos autores mais conceituados de literatura infantil.

Não faço distinção entre a literatura e a poesia infantil. Tenho exactamente a mesma atitude. O Paul Valéry diz que o primeiro verso nos é dado e os outros têm de ser conquistados. Aquele que me é dado, nunca me é dado como um verso infantil para crianças ou um poema para os adultos; é-me simplesmente dado. Depois, os versos seguintes, conquistados, têm alguma penosidade. O próprio texto é que se vai escrevendo como texto, eventualmente legível ou publicável como livro para crianças ou como poesia para adultos.

 

Lembra-se muitas vezes da criança que era?

Recordo-me. Mas de uma forma engraçada: como se essa criança nunca tivesse existido, a não ser fora da minha lembrança.

 

Por fim, os gatos. Porque é importante ter esta gataria perto de si?

Dou-me bem com os gatos porque eles, os animais em geral, estão muito próximos do Ser. Como estão alguns personagens literários.

Relaciono-me com eles com alguma melancolia, porque “quem me dera ter a tua inconsciência, e a consciência dela” – como escreve Pessoa. (Não quer tomar nada, um doce? Um bolo da minha sogra, bolo da mamã).

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Abril de 2009

Manuel António Pina morreu em Outubro de 2012

 

 

 

 

 

 

 

Herman Enciclopédia

21.03.24

Gud evenaing. Ou, se preferirem, boa noite.

O espectáculo vai começar. O elenco: Lauro Dérnio, Artista Bastos, Super Tia, Mike e Melga, Felisberto Desgraçado.

Mais este:

- “Eu sou uma pessoa que pensa no depressa”.

O senhor Engenheiro do riso alarve e estilo brejeiro: “Parece que temos um pedaço de francesinha na boca…, eheheh”.

O protagonista: Diácono Remédios.

Ei-lo.

- “Ó meus amigos-s-s.”

Censor, moralista, filho de uma mãe “repugnante e hedionda”: a Dra. Rute Remédios. A sexóloga que aparecia semanalmente na televisão para falar de “sexo puro e duro como todos nós gostamos, ceeeerto?”.

O Diácono Remédios foi o verdadeiro artista de um programa recheado de personagens luminosos, esdrúxulos, reveladores do que éramos então: um Portugal ocupado com a Expo-98, em transição. O Diácono instalou-se no imaginário colectivo como alter-ego de uma moral careta, salazarenta, falsamente puritana. Representava um bafio que afinal ainda existia.

Era um tempo em que Portugal repetia, como se fosse uma senha: “Onde é que tu estavas no 25 de Abril?”. Ou “Let’s look at the trailer”. Ou: “Este homem não é do norte, carago!”. Para além do omnipresente: “Não havia nexexidade-e-e”. Era um tempo em que Herman José estava no pico da forma. Herman Enciclopédia, a obra da maturidade, estreou em 1997.

“Acho que é, de longe, o que de melhor se fez em Portugal em matéria de humor. A obra mais iconoclasta, a mais escandalosa, às vezes quase pornográfica. Como dizia o Alexandre O’Neill, somos o país do diminutivo e do respeitinho é que é preciso; este é um humor que escapa a esse respeitinho. O programa é uma espécie de contra-ataque à censura dos anos do cavaquismo. Contra uma moralidade vigente, com cheiro a naftalina. Que estourou assim que Cavaco saiu do poder. No período Guterres, nitidamente, as bolas de naftalina diminuíram de tamanho. O programa transpira isso. Uma maior liberdade. Reflecte uma direcção da RTP menos sensível à censura. À censura íntima, àquela que se faz antes de os programas serem delineados”, diz Clara ferreira Alves, uma das primeiras opinion maker a escrever sobre o Herman Enciclopédia.

António Guterres, então primeiro-ministro, era fã da série.

“Sempre que tinha oportunidade, não perdia. Era para mim, não apenas um entretenimento, mas um tranquilizante. Era um modo de esquecer por um momento as preocupações, as tensões. Não me recordo de ter adoptado nenhuma das expressões do programa de forma regular. Não como uso: “É a vida”, que é uma das minhas expressões favoritas. Mas com grande probabilidade tê-las-ei usado. O impacto do programa e dos personagens foi extremamente forte”.

Guterres, o católico. Alguma relação com o puritanismo do Diácono? “Nenhuma – responde Herman. “Guterres é um espírito maior, e a sua fé serve as suas convicções, não é para ser usada como arma de arremesso. É uma pessoa de bem, e o mais democrata dos primeiros-ministros. Isso mesmo reflecte-se na amplitude da paleta crítica que usámos”.

Nuno Artur Silva quis que o Diácono se chamasse Reverendo. O director das Produções Fictícias, a empresa de argumentistas que escreveu o programa, e que esteve na concepção do personagem com o próprio Herman, José de Pina e Miguel Viterbo, considera que o programa foi “um bom momento, um bom encontro”.

“O programa surge numa época de abertura depois de um fechamento que coincide com o cavaquismo. O Herman Enciclopédia beneficiou de total liberdade depois da tentativa de censura do sketch da “Última Ceia” no programa anterior [Parabéns]. Surge na ressaca desse episódio, com algumas sequelas, com quebra de contratos publicitários, por, supostamente, o Herman ter hostilizado a Igreja Católica. A Igreja não é o único alvo, o programa dispara em muitas direcções. Critica os modelos de jornalismo; estava a despontar o estilo: “Põe a manchete primeiro e faz as perguntas depois”.

A Igreja não era o único alvo. Mas basta rever alguns dos episódios, no DVD que foi lançado recentemente, para perceber que o tirocínio é constante.

Alguns exemplos, em separadores inócuos, entre sketches e personagens. Uma manchete anuncia: “Claudia Schiffer é um homem. Para mim foi uma grande desilusão, diz o Papa João Paulo II”. Como consequência: “Basta de brincadeiras com sua santidade”, pede em título o Infelizmente. “Ex-Papa apanhado nas malhas do doping. O actual Papa: não comento”. Outro exemplo: o Papa passeia no Papa-móvel e antes dele, há elefantes mecânicos a copular.

Porquê esta fixação na Igreja? Herman esclarece que “na altura, estávamos convencidos de que um dos problemas maiores da sociedade portuguesa seria a pressão obsessiva da Igreja Católica sobre o poder político. Já em 1988 – apesar de ninguém mo ter confirmado – consta que o final do programa Humor de Perdição teria tido mão pseudo-divina. Estava no entanto longe de imaginar que, dez anos mais tarde, teria a prova de que os mais perigosos garrotes da liberdade de expressão desta espécie de democracia residem dentro das togas e não das batinas”.

Joaquim Vieira, o director de programas da RTP que aprovou, com o director-geral Joaquim Furtado, a série, nunca teve dúvidas acerca da aposta no programa, apesar do seu carácter subversivo. “Nunca considerei o Herman Enciclopédia uma aposta errada, porque achei que este era o tipo de programa que correspondia melhor ao enorme talento do Herman. A questão do suposto radicalismo nunca me preocupou, pois só assim se poderia construir um programa de humor saudável. Não tenho ideia de ter havido alguma pressão. Penso que depois de termos resistido a uma outra pressão de meios católicos, quanto a um sketch sobre a "Última Ceia", se terá chegado à conclusão de que não valia a pena”.

A pedido da PÚBLICA, Joaquim Vieira reviu alguns episódios do Herman Enciclopédia. Com esta distância, não hesita em identificá-lo como “expressão de uma época de expansão, tranquilidade e bem-estar da sociedade portuguesa, com muitas referências ao consumo, a projectos públicos e a prazeres de uma forma geral. Se fosse hoje, haveria diferentes preocupações, embora me pareça que não mudámos assim muito no que respeita à cultura de massas. Veja-se as caricaturas feitas aos programas de TV: parecem antecipar o que veio depois. Não acho o programa nada político, mas a ligação aos anos do guterrismo pode ter a ver com uma certa visão despreocupada da vida. Caminhávamos alegremente para o abismo (do défice) e nenhum de nós tinha consciência disso”.

Sobre que é o programa, afinal?

“O tema dominante eram os costumes, e não a política”, pensa Clara Ferreira Alves. “Aliás, o Herman e as Produções Fictícias nunca foram muito para a política. Mas há uma grande sátira social. O que ali se critica é um modo de ser português. Um modo mais estreitinho dá lugar a um modo às vezes boçal, à boa maneira de Bordalo Pinheiro, e outras vezes mais refinado. O sexo era um grande tabu. O episódio dos “Óscares da pornografia”, ainda hoje, não tenho a certeza de que pudesse ser feito com a liberdade com que foi. Teve a sua importância que a RTP tivesse na sua direcção o Joaquim Vieira e o Joaquim Furtado. Dois jornalistas, duas pessoas que gostam de liberdade. E que chegaram a ser ferozmente satirizados no Herman Enciclopédia”.

Herman sublinha também este aspecto: “Era o serviço público ao serviço da inteligência, com dois “inteligentes” ao leme da direcção de programas. Lembro que o programa sucumbia nas audiências em confronto com a efervescente SIC de Emídio Rangel”.

As audiências do Herman Enciclopédia começaram por ser tímidas. Foram precisas semanas para que o programa se transformasse no fenómeno que continua a ser passados 13 anos sobre a sua exibição. Os portugueses pareciam não se rever nos personagens histriónicos de Herman&Companhia. Ninguém dizia nas ruas: “Grandes fitas, Greites faites”, numa glosa a Lauro Dérnio. Ou “Qual é a senha?”. Ou “Você “num” se desgrace!”

Nos jornais e nos cafés discutia-se o tema da regionalização; na televisão, numas caves infectas da muy distinta cidade do Porto, discutia-se em reuniões clandestinas o Pintismo Narcisismo.

Pinto da Costa era (e é) Presidente do Futebol Clube do Porto, Narciso Miranda, “rosto do poder local”, ascendia a Secretário de Estado, Fernando Gomes, presidente da Câmara do Porto e ministro socialista, servia de base para a composição do Senhor Engenheiro de Herman. Embora nunca se tenha ouvido da boca de Gomes: “Graande sticada”.

“É um mister!”, dizia dele um dos assessores-acólitos. Uma expressão que ficou, para Clara Ferreira Alves, indissociável daquele grupo. Herman, revendo, diz-se “positivamente espantado com a jactância da rubrica dos Homens do Norte”.

Nuno Artur Silva tem no “Partido do Norte” um dos momentos preferidos do Herman Enciclopédia. “É uma ideia colectiva, depois escrita pelo Rui Cardoso Martins e pelo José de Pina. Sempre imaginámos que deveria ser representado à Yes, Minister. Ou seja, com contenção. O Herman fez exactamente o contrário. Representou à Irmãos Marx, completamente em delírio, quase à desenho-animado. O que começou por nos parecer terrível acabou por ter um resultado brilhante. Tem imensa graça a maneira como se movimentam e a opção por aquela direcção de actores. É raro ter no mesmo sketch o Herman, o José Pedro Gomes, o Miguel Guilherme, a Maria Rueff, a Lídia Franco. Um grupo de actores em estado de graça”.

As reuniões do PNRN (Partido Nacional da Região Norte) representavam o momento mais colado à realidade política de um programa que não era eminentemente político. Mas Guterres não se revia no conteúdo do sketch. “Aconteceu-me várias vezes fazerem humor sobre mim, e sempre encarei isso com grande naturalidade. Quem quiser estar, não apenas na política, mas em qualquer função que implique exposição pública, tem de encarar isso com naturalidade. O que é importante dizer é que, apesar da irreverência do Herman, ele nunca foi ofensivo. O humor do Herman sobre as mais diversas personalidades da vida portuguesa, merecia, na minha opinião, ser encarado com grande fair play”.

Entre o “não ofensivo” de Guterres e o “quase pornográfico” de Clara Ferreira Alves, vale a pena rever algumas das cenas e expressões usadas para compreender o que estava em causa.

Pelo Herman Enciclopédia apareciam personagens como a Teresa Trucla, no programa Vibratório. Logo censurada pelo Diácono Remédios:

- “Um vibrador? E de tamanho familiar! Valha-me Deus!”

O Artista Bastos repetia a frase:

- “Lá vinha ele com o seu castor debaixo do braço…”,

como uma espécie de intróito ao famoso:

- “Onde é que tu estavas no 25 de Abril?”

Havia convidados que não entravam no monólogo secreto do Artista Bastos e eram zurzidos com pérolas deste quilate:

- “Eu acho que eras umas besta, há que dizê-lo com frontalidade” ou

- “Vou-te partir o trombil, há que dizê-lo com frontalidade” 

ou,

- “Vai levar na peida, vai fazer broches a cavalos”,

que os “pis” sobrepostos mal disfarçavam, como era intenção manifesta da equipa.  

Herman Enciclopédia satirizava o novo-riquismo nas “Aventuras da Super-Tia” e da sua amiga Robinha (um magistral Joaquim Monchique). “Uma super-tia llena de possidonite, de nome Batata, epítome de uma high society que vive na tesura e que mantém as aparências. Obviamente usa malas Louis Vuitton.

- “O tio Babas diz que a última moda em Paris é um Picasso no canto da parede e um Pollock no rodapé”.

Repete palavras como:

- “Caturreira!”

Num estilo afectado, exala boa educação quando se dirige à empregada:

- Ó não sei quantas (nunca sei o nome da criadagem)…

Acha que “os jipes na cidade não podiam estar mais na moda!” Fazem sentir “aquela coisa da ligação à terra”.

Os assuntos eram os de um Portugal próspero, em vésperas da Expo-98 e das grandes obras de construção. O Senhor engenheiro falava, cobiçoso, do “contratozinho”.

- “Le boilá!”

Ao mesmo tempo que frequentava casas de alterne, e deixava implícita a ligação entre política – corrupção – prostituição.

- “Tou-me a sentir comichoso. Bou até Amarante…”

(o incêndio no bar Mea Culpa tinha sido nesse ano).

Decisão que merecia o aplauso do personagem interpretado por José Pedro Gomes:

- “Este homem é um senhor!”

Neste mosaico da sociedade portuguesa, coexistia a micro-realidade de Alfama, onde se faziam campeonatos de lerpa, os homens vestiam fatos de treino fluorescentes e onde se cantava o fado, claro.

“Ai Mãezinha, não te apagues” era uma novela burlesca que tinha em Felisberto Desgraçado o personagem central. O seu sonho era levar a mãezinha aos Estados “Onidos”.

- “Corre-me tão mal a vida! É esta maldita caspa, é o cancro da próstata da Felismina, e a mãezinha que não volta... Menzinha volta por favor! Mãezinha não tapagues!”

Era o tempo das boys band, constituídas por rapazes espadaúdos, “repescados da valeta e das obras”. Da televisão “em movimentos”, feita de planos oblíquos – uma hiperbolização do já de si frenético Big Show SIC. A música que se ouvia era de Abrunhosa, Prince, Cesária Évora. No Herman Enciclopédia promoviam-se encontros improváveis. Entre Madonna e Carlos do Carmo, Amália e Bob Dylan a cantar um malhão-malhão.

A música também era a dos Fried Potato Suicide – deixa para nova aparição do Diácono Remédios:

- “Batatas fritas a cometerem suicídio? O suicídio é um pecado, mesmo para as batatas fritas.”

Nem o hino nacional foi poupado. A Dra. Rute Remédios, nas consultas de sexologia, considerava-o uma boa base musical para o sexo. Porquê? Porque daí se pensa em militares… Pelo contrário, os Madredeus eram desaconselhados.

- “Com isto é impossível ter uma erecção capaz! Madredeus, Manoel de Oliveira, meio litro de leite morno, bolachinha de água e sal, e obtenha uma embalagem de Xanax!”

De onde é que saía tudo isto?

Herman e Nuno Artur Silva explicam o modo de fazer do Herman Enciclopédia.

“Tínhamos reuniões de ideias todas as semanas, brainstorming à volta da mesa. Passavam-se as ideias para o Herman, que contribuía com algumas sugestões. Por exemplo, deu-nos uma frase da mãe: “Ó filho, és um bom artista, não tinhas necessidade de fazer aquilo”, e pediu-nos: “Façam alguma coisa com isto”. Daí resultou o “Não havia necessidade” do Diácono. A ideia era depois trabalhada por dois guionistas. Trabalhavam em liberdade total dentro daquela regra que o Herman estabeleceu comigo quando começámos a trabalhar: “Escreve o que te apetece, eu uso como me apetece, e não vamos perder muito tempo com explicações”. Esta regra manteve-se com a equipa toda e funcionou muito bem. No Herman Enciclopédia, de uma maneira geral, respeitou muito o texto. Eu próprio fazia a ligação com o Herman e os actores”.

Herman José recorda que o ritmo de feitura do programa era sempre alucinante, mas que o processo de apropriação dos textos e composição dos personagens era variável. “Eu diria, que atrás de cada boneco está alguém. Há os óbvios, como o Lauro António ou o Baptista Bastos, mas em todos os outros estão a vizinha, o motorista, a vendedora de jornais, a prima, o sócio, o polícia, etc... Havia textos que tinham tratamento copy/paste. Eram respeitados na íntegra e reproduzidos tal e qual. Havia outros que tinham tratamento bovino. Mastigava-os, engolia, e eram finalmente regurgitados depois de devidamente tratados. Outros não chegavam sequer a entrar na digestão – eram modificados e compactados no papel, em longas horas de trabalho (como aconteceu com alguns episódios dos “Homens do Norte”). Imagino que nessa altura jovens autores me tenham rogado algumas pragas. Mas foi por uma boa causa – espero eu”.

O ambiente era “muito solidário, distendido, divertido, mas penosamente profissional. Gravar mais de 50 minutos de ficção científica com aquela variedade de personagens e cenários foi uma tarefa ciclópica. Havia muito pouco espaço para brincadeira”.

O Herman Enciclopédia constituía uma das grandes apostas do canal. Numa fase inicial, as gravações, foram acompanhadas de perto pela direcção. “A única questão que se colocou de início teve a ver com valores de produção que quanto a nós, (eu e o Joaquim Furtado), não estavam a ser devidamente concretizados, o que tinha menos a ver com conteúdo e mais com imagem”.

Em todos, exista a ideia de se estar a fazer um grande momento de televisão, que perduraria. “Era uma equipa de argumentistas em boa forma e um Herman de regresso, depois de uma das suas mortes anunciadas. O programa é uma amostra da incrível paleta de cores que o Herman tem na composição de personagens”, sintetiza Nuno Artur Silva.

Era, como disse Carlos Pinto Coelho, himself, numa aparição no Herman Enciclopédia, um programa de “audiências modestas, mas um fenómeno planetário”.

Talvez fosse excessivo falar em fenómeno planetário, antes da vulgarização da internet como suporte privilegiado de conteúdos media. A geração youtube ainda não tinha nascido. Mas no Portugal de então, o programa era um espaço de convívio. (Convaive, para Lauro Dérnio.)

O que é que o fez resistir? O que é que faz que estejamos a falar sobre ele, 13 anos depois da sua exibição (e assumindo que a edição em DVD não o justifica completamente)?

“O que resiste melhor ao tempo é o Herman José”, pensa o antigo primeiro-ministro António Guterres. “Na maior parte dos casos, os programas de humor ficam tão terrivelmente datados que perdem a graça. São apenas expressão de um tempo. O que é mais interessante no Herman Enciclopédia é sentir que (exceptuando histórias mais específicas), o humor não perdeu a sua oportunidade. É uma qualidade rara”. E faz o paralelo com um clássico da história do humor. “Continuamos a ver Yes, Minister e continuamos a rir. Mesmo que o programa tenha a ver com a política do seu tempo. Porque é um humor de grande qualidade. É o que acontece com o Herman. A qualidade não é datada”.

Herman, o verdadeiro artista, elenca os momentos do programa que, na sua opinião, melhor resistem à erosão do tempo. “A actualidade do Diácono Remédios, o non-sense groucho-marxiano da novela “Ai Mãezinha, Não te Apagues”. Também me encanta o talento dos actores. A série resiste bem, apesar de ser pontualmente atraiçoada pelo timing menos frenético de alguns sketches, e pela própria duração de cada episódio, o dobro daquilo que é praticado hoje em dia”.

Na opinião de Joaquim Vieira, resiste porque há nele “um registo de humor burlesco e anárquico, demolidor das convenções, que é intemporal e muito bem compreendido pelos jovens”.

A geração Gato Fedorento, (denominada sumariamente assim para definir um tempo e um modo de consumir conteúdos de humor), não assistiu à emissão do Herman Enciclopédia no canal 1 da RTP. Mas Herman pensa “que são eles os grandes catalisadores do estatuto de culto que o programa tem vindo a ganhar”.

Vão ao youtube e percebam do que estamos a falar.

Clara Ferreira Alves reviu recentemente o programa com dois adolescentes. “Adoraram!, mesmo que não saibam quem é o Lauro António. A personagem criada é naturalmente cómica. Essa é que é a marca do grande humor e da genialidade do Herman: transformar uma situação particular numa situação universal, que todo o mundo percebe, em qualquer lugar. Transformou uma pessoa num tipo imortal. Isso, o Herman faz. O Eça de Queirós também fazia”.

É verdade que há expressões, como essa, que continuam a usar-se. Mesmo que a sua origem seja desconhecida. “Eu é que sou o presidente da junta” é outro exemplo, que se aplica de forma exemplar a contextos de poder.

Herman ouviu recentemente “Onde é que estavas no 25 de Abril?” na Assembleia da República, numa interpelação de um deputado ao Governo.

Mas o seu personagem preferido, “pela sua importância histórica e capacidade de sobrevida, é o Diácono Remédios. Infelizmente mais actual do que nunca”.

Para Joaquim Vieira, “o provedor Diácono Remédios diz muito sobre os preconceitos da nossa sociedade. Ainda há gente que parece hoje em dia querer imitá-lo, mas à séria… A minha preocupação tem sido não usar a expressão “Não havia necessidade”. Não é agradável ser comparado a um Diácono Remédios.”

Clara Ferreira Alves também escolhe o Diácono como o grande personagem da série. “O “Não havia necessidade” fez esse grande milagre, que fazem alguns versos de grandes poetas: entrou na língua portuguesa”. E continua a usar “Lets look at the trailer”.

Nuno Artur Silva tem uma predilecção pelo Artista Bastos, escrito por Eduardo Madeira e Henrique Dias, pelo Herman Geographic, em cuja criação participou, e que foi escrito por João Quadros.

Depois, veio o declínio.

“Se o Herman tivesse nascido nos Estados Unidos, sobretudo na Califórnia, seria uma estrela absoluta. Em Portugal, é difícil agradar. Há sempre um desejo de matar alguém em Portugal, e o Herman foi um desses casos bem sucedidos. Havia um desejo compulsivo, a partir de certa altura, de não achar graça e de dizer que o Herman estava acabado”.

Como é que Herman se revê?

“Com ternura e inveja. Ternura por me sentir, aqui e ali, relativamente imaturo; e inveja porque aquela pele de 43 anos imprime muito melhor do que a actual. Toda a perda é dolorosa. A perda de uma certa inocência e quixotismo. A perda de dezenas de amigos cuja saúde não resistiu à passagem do tempo. A perda de uma inconsciente felicidade de quem se sente praticamente imortal e centro do mundo. A perda da visão total que me permitia ler o teleponto a metros de distância sem qualquer ajuda”.

O Herman Enciclopédia teve duas séries. Frequentemente, depois de terminado o programa, no decorrer da ficha técnica, aparecia, cereja no topo do bolo, o Diácono Remédios.

- “A minha mãe a portar-se como aquelas cadelas infiéis... Uns seios enormes, como as bossas de um camelo. Enquanto vários homens abanam os seus bacamartes-s-s”.

E abanando a mão sapuda e mole, exortava ao recolhimento:

- “Ide, ide para as vossas casas”.

 

ps: "Let's look at the trailer" foi criado por Nuno Markl

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010. 

 

Vinicius de Moraes (p/ filha Suzana)

18.03.24

Produziu frases tão extraordinárias quanto: "Amar, porque nada melhor para a saúde que um amor correspondido” ou "Se o amor é fantasia, eu me encontro ultimamente em pleno carnaval”. E outras, menos amorosas: "O uísque é o melhor amigo do homem, ele é o cachorro engarrafado” ou “As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. São boutades que constam das enciclopédicas, múltiplas, e que condizem com as histórias de trazer por casa. Histórias como esta: “Inteiramente bêbado, Tom Jobim se vira para Vinícius de Moraes: "Chega uma hora em que as mulheres quebram as garrafas de uísque. A minha quebrou duas ontem, na pia. Mas não adianta. A gente vai e compra outras."

Ambas definem Vinícius de Moares como um personagem excessivo, vibrante, em permanente estado de exaltação. Segundo Carlos Drummond de Andrade, «Vinícius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural».

Viveu intensamente, desdobrou-se em papéis vários. Foi diplomata, bolseiro em Oxford, crítico de cinema e aluno de Orson Welles, conhecedor profundo de jazz americano, amigo de Ava Gardner (quando foram apresentados, ela terá dito: «Sou extremamente bonita, mas moralmente cheiro mal!»). E foi, sobretudo, poeta iluminado: «De manhã escureço/ de dia tardo/ de tarde anoiteço/ de noite ardo»; e mentor da Bossa Nova, com António Carlos Jobim e João Gilberto. Foi ele que escreveu: «Olha, que coisa mais linda, mais cheia de graça...», imortalizando certa garota de Ipanema que ele e o amigo Tom viam passar quanto tomavam cerveja.

Vinícius de Moraes foi um amante da vida. Casou nove vezes. Teve cinco filhos.  Oriundo de uma família tradicional carioca, teve uma existência errante. Cidadão do mundo, passeou-se e viveu entre a Europa e a América do norte e do sul. Publicou prolixamente; em Portugal, entre os livros disponíveis, consta uma antologia da sua obra poética, editada pela D.Quixote, e revista pelo próprio.

A discografia é extensa; são memoráveis as suas gravações com Edu Lobo, Chico Buarque, Toquinho e, especialmente, Tom Jobim. Consta que nasceu numa noite de temporal, em 1913, num bairro do Rio de Janeiro. Morreu há 25 anos.

Sabia que «Tristeza não tem fim, felicidade sim».

Susana Moraes é a sua filha mais velha, nascida do primeiro casamento. É cineasta, vive no Rio de Janeiro, tem 65 anos. Traça de Vinícius, figura da cultura brasileira e do mundo, um retrato fervilhante. Mas quando o recupera enquanto pai, sente a falta da sua companhia. Chamava-lhe «Darling». É co-produtora do documentário “Vinícius de Moraes - Quem pagará o enterro e as flores se eu me morrer de amores", que estreia em Outubro, no Brasil. 

 

Paixão é a palavra exacta para uma primeira aproximação a Vinícius de Moraes?

Paixão é a palavra chave. Sendo que a paixão, em Vinícius, tomava a forma de busca e de transformação. Ele estava sempre atrás, não só nas relações amorosas, mas um pouco em tudo o que fez na vida. No filme de Miguel Faria, que eu co-produzi, o Edu Lobo fala uma coisa bem interessante: quando Vinícius se empenhava numa coisa e aquela coisa estava na crista da onda, ele passava adiante. Edu falava particularmente da participação dele na Bossa Nova e em como isso se desenvolveu numa pós-Bossa Nova _ na parceria dele com Baden [Powel] e na composição dos afro-sambas, que são completamente diferentes do trabalho que tinha feito no começo da Bossa Nova.

 

Onda radica essa insatisfação permanente, de que essa busca desenfreada é expressão?

Esse traço na personalidade dele é resultado de muitas coisas. Em Vinícius houve desde cedo a ambição de fazer coisas, e uma coragem, existencial e como artista, de ir rompendo... E isso mudou muito pela vida fora. Ele começou um poeta místico, influenciado pela formação católica, depois virou um homem de esquerda e passou fazendo o contrário do que tinha feito até então. Transformou-se num poeta do quotidiano, do amor.

 

Quais foram as revoluções que rasgaram caminhos? O que é desencadou cada mudança? Os encontros com pessoas?

Vinícius era uma pessoa extremamente permeável e com muita vontade de entender o que estava a acontecer no momento. Sempre se interessou pelos novos discursos, pelas novas coisas que estavam acontecendo.

 

Esse interesse pelo novo e pela juventude, pelo que é palpitante e contraria o que vem de trás, era sintomático de uma instabilidade ou mesmo imaturidade?

Provavelmente tem componentes disso. Há componentes disso em qualquer grande poeta. São sempre um pouco infantis e instáveis. Infantis no sentido de não quererem se estratificar, de estarem sempre querendo uma síntese maior, uma compreensão maior. Vinícius era muito ambicioso. Em relação a tudo. Por exemplo, ele teve uma relação longa com o cinema, foi crítico de cinema, foi amigo de cineastas.

 

O primeiro posto dele como diplomata foi em Los Angeles. Ele, que já tinha estado na Europa, em Oxford, a estudar, sentia a América do norte como o centro do mundo? Foi por isso que ele a escolheu?

Certamente que a paixão dele pelo cinema contribuiu para isso. Fora uma relação muito profunda que ele estabeleceu com a música negra americana. Na minha casa, quando eu era criança, só se ouvia jazz, ele era um conaisseur. Fomos várias vezes a New Orleans, porque ele queria ouvir fulano ou sicrano que ia tocar.

 

Mas de onde vem o interesse tão sério pela música negra num branco filho de brancos?

Na formação dele, a cultura negra brasileira foi importantíssima_ essa coisa do quintal, das empregadas, do cavaquinho e do samba. Era uma pequena classe média carioca, ligada à música popular. O lado da família da mãe eram uns boémios, meio malucos! Ele tinha um tio, Henriquinho, engraçadíssimo, que era delegado de polícia, e que foi expulso porque fazia roda de samba na cadeia com as prostitutas!

 

É extraordinário que um homem nascido numa família com essas características tenha enveredado pela diplomacia. Representa uma ascensão social notória. Ele procurava transcender-se socialmente?

Em Vinícius sempre tem um lado popular e um outro lado, que é o da família do pai, ligado à cultura erudita. A peça “Orfeu da Conceição” é a maior síntese disso. O pai era muito culto, poeta convencional, que nunca publicou mas que conhecia literatura francesa, latim, professor de violino... Essas duas vertentes caminham em paralelo.

 

Então, não é estranho que tenha sido também diplomata?

Ele foi ser diplomata depois que eu nasci. Quando voltou de Oxford com a minha mãe, era muito pobre. Ser diplomata era um costume no Brasil. Poetas como João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, eram diplomatas. Era bom para um escritor porque oferecia uma vida materialmente confortável, viajava e dava tempo para escrever. É claro que outras profissões seriam possíveis. Eu acho que há um desejo de ascensão social, sim. Ele casou com minha mãe, por exemplo, que era uma moça rica, de uma família “aristocrática” de S. Paulo.

 

Casou nove vezes.

É verdade.

 

Há uma conversa famosa entre ele e Tom Jobim. Jobim pergunta: «Quantas vezes você vai casar?», e ele respondeu: «As vezes que forem necessárias». Porque é que acha que ele casou tantas vezes?

Porque precisava da chama da paixão, do começo de um amor. Isso alimentava-o de alguma forma. Estou super-simplificando, mas a razão mais óbvia me parece essa.

 

O que é que o fazia desapaixonar-se? Possuir o objecto desejado, fosse ele qual fosse?

A paixão, como toda a gente sabe, tem um tempo dentro de uma relação amorosa, que pode desenvolver-se e virar outra coisa. Ele não tinha essa capacidade. Ele precisava daquele primeiro momento do amor.

 

Era muito seguro de si, do seu poder de sedução?

Tinha muita confiança nele mesmo e tinha um real prazer em relação às pessoas. Tinha uma paciência... Por exemplo: aluno que vinha entrevistá-lo e que ele recebia... Era muito democrático, e muito sedutor.

 

Sedutor como?

Porque, realmente, ele interessava-se, ele ouvia o que as pessoas tinham a dizer, e achava graça. E isso passa, as pessoas sentem isso. Ele tinha um jeito de ser muito simples, muito directo que desarmava as pessoas. Muito humor, também, muito engraçado.

 

Era um hedonista? É fácil olhar para ele como alguém que vivia plenamente a vida e não conseguia deixar de procurar o prazer, as várias formas do prazer.

Totalmente. Já com 50 e tantos anos ele ficou diabético, diabetes adquirida_ coisa característica de quem come errado, bebe demais, essas coisas. Soit disant, ele fazia regime. Mas, numa época em que morei com ele, descobri os óculos dentro da geladeira! Ele descia de noite, comia indisciplinadamente tudo o que não podia comer e esquecia os óculos dentro da geladeira!

 

Era absolutamente indomável...

Indomável, ah, indomável... Nada, a não ser a vontade dele, o segurava. Tanto que, (tem essa história), quando saía dos casamentos, saía com a escova de dentes. Deixava tudo, não queria nem saber. E quando casava de novo, montava outra casa.

 

Com o mesmo empenho?

O mesmo empenho.

 

A acreditar: desta vez é que vai ser?

Bom, não sei se com o passar dos casamentos ele acreditava assim tanto... Mas, que eu tivesse visto, nunca teve uma posição céptica em relação ao amor.

 

Imagino que não ligasse qualquer importância às convenções sociais...

Realmente, ele mudou padrões de comportamento. Em relação à mulher, o discurso era revolucionário_ não tem outra palavra_ para a época. Que as mulheres largassem os maridos que elas achassem chatos, que fossem em busca do seu próprio prazer e existência... Falava essas coisas, e eu acho que é uma das razões porque as mulheres adoravam tanto ele.

 

Dava-se com homens e com mulheres?

Dizia que gostava muito mais da companhia de mulher do que de homem, que as percepções e as conversas das mulheres lhe interessavam muito mais do que as dos homens_ se bem que tivesse muitos amigos homens.

 

Quando acedemos ao site oficial de Vinícius, assistimos ao desdobrar de um biombo, que é um modo, também, de apresentar as suas múltiplas facetas. Ele era uma figura poliédrica, tinha sucessivas faces. Não podemos concentrar-nos apenas numa face?

Não pode mesmo. Tem uma essência, claro...

 

E qual é? O que é dominante?

A essência é essa necessidade de mudança, de estar em busca. No filme, Miguel Faria pergunta a Chico Buarque se ele achava que Vinícius era feliz. Chico diz assim: «Ele estava sempre à procura da felicidade». Mas quando você está à procura, já está compreendido que a felicidade não está ali onde você está. Ela está sempre um pouquinho adiante, um pouquinho para o lado. Essa angústia..., de sempre estar a ver ali adiante... Isso é o mais essencial em Vinícius, em todos os sentidos: na vida amorosa, na vida profissional, na relação dele com o mundo.

 

Então, a sua resposta coincidiria com a do Chico Buarque?

Ah, sim. Chico conhecia ele bem, e ele conhecia Chico desde pequenininho. Pai de Chico, Sérgio Buarque de Hollanda, era muito amigo dele.

 

Depois, há esse lado incrível. Ele deu-se com pessoas do mundo inteiro, ao longo de décadas. Sérgio Burque de Hollanda, Ava Gardner, Orson Welles, Carmen Miranda, Pablo Neruda. E dava-se indiscriminadamente?

Bem indiscriminadamente, sim. Interessava-se por uma gama extensa de pessoas. Não se dava só com intelectuais.

 

Do que é que ele gostava mais nas pessoas? O que é que lhe provocava enamoramento?

Ele era muito sensível à integridade_ da pessoa ser ela mesma_, e dava muito valor à generosidade.

 

A imagem que tem dele, enquanto pai, é coincidente com o retrato deste Vinícius contado na terceita pessoa?

Para mim, não era bem assim. Durante a minha infância e adolescência, Vinícius não era muito conhecido. Passou a ser conhecido e uma pessoa tão pública depois que foi trabalhar com Tom Jobim e a Bossa Nova. Antes disso, era um poeta e diplomata, conhecido de um grupo relativamente pequeno de gente.

 

Via-o como?

Quando fomos morar nos Estados Unidos, as pessoas perguntavam o que é que o meu pai fazia; e das vezes em que disse: “poeta”, aquilo causava um estranhamento. Poeta? Passei a omitir esse facto e a dizer que ele era diplomata. Eu adorava-o. Éramos muitos próximos. Tínhamos uma relação constante. Sinto falta da companhia dele.

 

Quando pensa nele, recupera-o nos momentos de intimidade?

Sim, penso no pai. E agora, muito mais velha, fiquei um pouco com a responsabilidade de cuidar das coisas dele_ eu nem queria, aliás, mas não tinha outro jeito. Então, passei a pensar nele como uma pessoa dentro da cultura brasileira e do mundo.

 

Foi aí que se habituou a falar dele na terceira pessoa? É que não se refere a ele como «o meu pai».

Habituei-me a falar dele assim, como uma pessoa que está olhando de fora. Na verdade, eu chamava ele de “darling”. Minha mãe chamava ele de darling, até por influência da estadia na Inglaterra. Eu não saberia dizer “papai”. Nunca chamei ele de “papai”. 

 

Publicado originalmente na revista Elle

David Ferreira (s/ D. Mourão Ferreira)

18.03.24

“Depois do sucesso do Um Amor Feliz vai ao Brasil e conta-me quando vem: “Tive um romance de amor, mas ela já morreu”. Ele nunca tinha lido a Clarice Lispector, ou tinha lido de passagem, e ficou tão fascinado que decidiu escrever um romance, que nunca escreveu: o romance de um homem por uma escritora que tinha morrido. Muito escritor, passado dos 50 anos, já não descobre coisa nenhuma. O meu pai sempre manteve um tom de assombramento.” David Mourão-Ferreira, evocado pelo filho David Ferreira.

David Mourão-Ferreira, poeta do amor? “A obra do meu pai tem muito mais do que isso. É um cliché merdoso, próprio de quem não o lê.” Escreveu poesia, teatro, ficção, ensaio. Em Junho, passaram 15 anos sobre a sua morte. A Presença reeditou o livro de contos As Quatro Estações.

O filho, David, acusa a edição de ser preguiçosa. “Em vez de perceber que na obra de um grande escritor há um trabalho permanente de descoberta, [a Presença] dedica-se à reedição. A obra de crónica e ensaio do meu pai está fora do mercado.”

Doravante, as reedições e a edição de inéditos vão ter a direcção de uma professora catedrática italiana, Fernanda Toriello. “Tem feito um trabalho notável na Universidade de Bari, onde é responsável pela Cátedra David Mourão-Ferreira de Língua e Literaturas lusófonas. Gostaríamos muito de ver envolvidas neste trabalho pessoas que sabem muito da obra do meu pai. O Vasco Graça Moura, o Eugénio Lisboa, o Fernando Pinto do Amaral, a Teresa Martins Marques, a Joana Varela”.

A entrevista teve lugar no gabinete de trabalho de Mourão-Ferreira. Os livros estão como os deixou, estão expostas fotografias de Yourcenar ou Nemésio, a secretária onde escrevia continua habitada, o cheiro a cachimbo ainda se sente mal se transpõe a porta de entrada. Aquela ainda é a casa de David.

 

 

“Que o verso seja um espelho/ ao mesmo tempo um véu”.

Na sua opinião, a poesia era para o seu pai, simultaneamente, o espelho no qual se revia e um véu que lhe permitia uma certa dissimulação?

A escrita já é, por natureza, um espelho e um véu. A execução de uma obra de arte é um ajuste de contas [que permite criar] um equilíbrio, precário que seja, que, sem a escrita, não se sente. Os grandes escritores percebem essa duplicidade da escrita como verdade e como invenção.

 

Invenção ou ocultação?

Acredito mais na invenção do que na ocultação. Não sei se o véu é uma questão de ocultação ou uma questão de pudor.

 

É também um artifício de sedução.

O meu pai não era propriamente um tímido em relação ao amor carnal. Nem no que escrevia nem no que fazia era pessoa para se reprimir. Mas não deixava de ter o seu pudor.

 

Na primeira edição de Um Amor Feliz (1986), na contra-capa, lê-se que romance é um ajuste de contas do autor consigo próprio. Não deixa de ser curioso que tenha tido necessidade de o fazer, com toda a obra que estava para trás, e quando já era consagrado.

Ele próprio aparece no romance como figura secundária, não particularmente simpática. Há dois alter-egos no livro, e nenhum deles é integral. Há um alter-ego em que ele se compraz a fazer ironia sobre si próprio, que se chama mesmo David.

 

E que fuma cachimbo.

Leva a gozação bastante longe. E há o outro alter-ego, que é a [personagem do] escultor, que também não é inteiramente ele. Ele projecta-se nos dois, e se calhar em mais. Não há uma personagem no Um Amor Feliz em relação ao qual se diga claramente: “É este”. Sem transformação – e o véu também é uma transformação – não há obra de arte. Ele também aparece num conto ou numa novela de um dos primeiros livros, referido como um tipo que escreve umas letras para a Amália.

 

Foi um académico heterodoxo. Tinha uma formação clássica e uma proximidade com os latinos e os gregos. Existia nele uma procura de equilíbrio?

Há um poema dele de que gosto muito: “Nós temos cinco sentidos: dois pares e meio d’ asas/ - Como quereis o equilíbrio? (“Hai-Kai”. O poema não é nem a apologia do equilíbrio, nem a condenação do equilíbrio.

 

 A procura de equilíbrio não o inibiu de viver intensamente, não o deixou refém de um cânone.  

O meu pai acaba a vida com o estatuto de professor extraordinário porque era escandaloso que tivesse um estatuto inferior – ele que orientava teses. Nesta casa, já com a doença muito avançada, a ponto de adormecer por vezes, orientou uma tese. Fazia-o porque tinha uma imensa cultura, e porque tinha um enorme prazer nisso. Permite-me um desvio?

 

Todos os desvios. Já voltamos ao ponto em que estamos.

O maior amigo do meu pai era o João Belchior Viegas; conhecem-se no Colégio Moderno, onde foram alunos. Mais tarde o meu pai diria que o João Belchior teria sido melhor escritor do que ele. Foi empresário da Amália, de 1965 a 1992. Era meu padrinho. Calhou ser eu a contar-lhe que o meu pai estava muito doente. Eu soube da doença com um telefone em voz alta, não sabiam que estava a ouvir... O Belchior ficou desmaiado com a notícia. Passam-se algumas semanas e voltamos a falar sobre o estado do meu pai. Contou-me uma coisa muito reveladora; o meu pai disse-lhe, quando soube da doença: “São duas as coisas que não dispenso: estar com uma mulher e ensinar. Sem elas prefiro morrer”.

Enquanto tem forças para fazer o que o realiza dá luta à doença.

 

Já doente, grava de um disco de poesia. Outra forma de se manter vivo?

Para mim foi a despedida do meu pai. Passei vários sábados e domingos em casa dele a gravar. Depois ele conta à Joana Varela: “Sabe que, afinal, o meu filho conhece a minha obra, o meu filho gosta de mim” [riso]. Tínhamos longas conversas, discutíamos a colocação, e ele achou que eu tinha um conhecimento de causa. Faz parte dos véus, os filhos não podem passar a vida a dizer aos pais: “Gosto muito de si”.

 

Esse é outro tópico: a sua relação com o seu pai e a sua relação com o poeta Mourão-Ferreira.

Estou a gravar. Há um poema em que ele diz: “Quando a vida nos agarra”, está com um cancro, e di-lo com uma força… É ele a agarrar a vida. Ele não fala em escrever, mas nas duas coisas que considera vitais. Ensinar e estar com uma mulher.Nunca tratou de se doutorar, sendo que alguns doutores (que o meu pai não era, doutor por extenso), lhe terão dito (isto foi-me transmitido pela filha de um deles), na fase dos anos 50 para os 60: “Ó David, deixe-se de fadistices e trate de se doutorar”. Fazia essa coisa inferior que era escrever letras para a Amália.

 

O encontro com Amália foi decisivo para ambos. Mas inesperado…

A relação entre o meu pai e a Amália – e, através deles, entre a poesia e o fado – foi uma relação mal quista pelas famílias de cada um. Uma fadista muito célebre ironizava, cáustica, por volta de 1965: “Agora a Amália canta letras à Picasso!” Os disparates que disseram os sectores mais conservadores da literatura e do fado (aqui se misturando tradicionalistas e pseudo-progressistas) dão hoje vontade de rir.

Ele nunca é um académico convencional. Tem um papel importantíssimo na introdução da cadeira de Teoria da Literatura. É um óptimo crítico literário (o que escreveu sobre literatura é fascinante). Era um escritor que gostava de livros.

 

“Nunca pensei em termos de público mas em termos de leitores”. Não lhe interessava o sucesso comercial? Ainda que tenha sido um autor que desde sempre gozou de reconhecimento e sucesso.

Sucesso comercial, não tanto. Até escrever Um Amor Feliz tem mais notoriedade do que sucesso comercial.

 

As pessoas conhecem-no muito.

Por causa da televisão, e a partir de certa altura por causa do que escreve para a Amália. O volume de vendas era baixo. Publica poesia, novelas e contos, ensaio e crónica. Um Amor Feliz passa a marca dos 100 mil, e é uma coisa que o apanha de surpresa. Sobre essa frase: o leitor, o que se dá ao trabalho de ler, que gosta ou não gosta, tem importância. O público-entidade anónima pode comprar para ter na estante, ou comprar e não perceber.

 

Pode falar-me da sua avó? Sendo Mourão-Ferreira o poeta que amava as mulheres, é interessante perceber como é que aprendeu a olhar para as mulheres.  

Não sei se não terá começado a olhar para as mulheres pelos olhos do meu avô. O meu avô era um amador de mulheres, que nunca saiu de casa embora tenha chegado a fugir (não sei ao certo se com uma francesa ou com uma argentina). Um dia, a minha avó telefona-me, aflita, porque não sabe do meu avô. Vamos para o banco do hospital de São José, andamos no meios de macas a ver se o reconhecemos. Dizem-nos que o Sr. David Ferreira tinha ido para casa e que estava bem. Em casa, toca o telefone, o meu pai atende: “Era uma senhora, muito simpática, da Casa Africana, que viu o papá cair e estava preocupada”. E a minha avó: “Alguma flausina a quem ele dá troco” [riso]. E dava troco. Tinha 80 e muitos anos.

 

Como é que na sua família os homens se fizeram assim amadores das mulheres? O seu pai, a propósito do seu avô, diz que era um “um discreto Don Juan”. Como ele.

O meu pai talvez menos discreto. O meu avô chegou a ser agente de ligação do Afonso Costa. Uma pessoa com origens humildes, filho de um militar, criado na Casa Pia, órfão de pai aos quatro anos. Não tem curso superior. Está metido na primeira revolta armada contra Salazar, em Fevereiro de 1927. Tanto que o meu pai nasce prematuro – tinha o sangue vermelho nos genes como outros têm o azul – porque o meu avô anda fugido e a minha avó não sabe dele. O meu avô gostava de fazer cara de mau. Era muito de falar do dever, da dignidade, aquela linguagem dos republicanos. Depois tinha um fraco muito forte por senhoras.

 

Porque é que o seu pai é um Don Juan menos discreto?

É outro tempo. E era uma figura pública, isso também atrai.

 

Que relação é que o seu pai tinha com a mãe?

Difícil. Já ouvi a teoria, que acho absurda, de que o meu pai teve muitas mulheres para se vingar da mãe dele, porque no fundo a minha avó gostava mais do meu tio [Jaime]. O meu pai tinha um sentido do dever muito forte. Uma vez, na altura em que o meu cabelo chegava aos ombros, tive um problema escolar. O meu pai disse assim: “Se há desgraça nesta família, é a morte do teu bisavô. Nenhum destes problemas teríamos se tivesses sido educado no Colégio Militar”.

 

Portanto, enquanto pai, tinha acessos de fúria, era exigente.

O meu pai estava zangado a sério, e quando se zangava falava alto. Ameaçava que me punha a trabalhar numa mercearia, e acho que punha. Estávamos a almoçar. A Pilar olha para ele: “No Colégio Militar?”, e desatámos os três a rir.

O meu tio Jaime era muito mais estroina. Três anos mais novo, um sedutor, nunca se fixou numa profissão. Foi relações públicas, publicitário, chegou a apresentar um concurso na televisão. A minha avó, em muitas coisas, ou gostava mais do meu tio, ou sentia que era mais necessária ao meu tio – o que causava ciúmes ao meu pai. Ainda por cima o meu tio morreu aos 46 anos.

 

Incompatibilizavam-se?

Eles gostavam muito um do outro mas havia um conflito. Tinham um feitio parecido naquelas coisas em que as pessoas fazem faísca. Já perto do fim da vida do meu pai tinham brigas por tudo e por nada. Depois, ficava cada qual uma hora ao telefone a queixar-se do outro, com o seu quê de imaturo da parte dos dois.

 

É extraordinário que, apesar dessa relação com a mãe, tenha feito das mulheres substância essencial da sua obra poética, e também do seu carinho e interesse pessoal.

O meu pai é um conquistador não-machista. Quem o disse muitas vezes foi a [Maria] Teresa Horta, que era muito amiga dele: “É raro uma poesia masculina e erótica tão pouco machista e agressiva contra as mulheres”.

 

O que é que acha que o fez procurar as mulheres, dar-se bem com as mulheres, e até, de uma certa maneira, reconciliar-se com as mulheres?

Ele aprende a ler com a mãe – como eu aprendi com a minha avó. O papel da minha avó não entra na história, corre em paralelo. Há um filme do Truffaut, O Homem que Amava as Mulheres, que fui ver porque o meu pai me disse que se tinha reconhecido a ver o filme.

 

Do que é que ele gostava nas mulheres?

Muita coisa. Em 1995 morreu uma amiga dele, e ele já estava com o cancro. Era Setembro ou Outubro, estava uma tarde quentíssima, eu não queria que ele fosse ao cemitério. (Ouvia-se aquela respiração pesada… O meu pai teve um cancro num rim e depois um recidiva tratada com a maior incompetência. Andou oito meses a queixar-se de dores nas costas e o médico a dizer-lhe que precisava de massagens, ou então que estava deprimido. Detectou-se o cancro com duas costelas e meia comidas pela doença num raio X… Era um cancro no pulmão, na cabeça, pele, ossos, um bombardeamento.)

Almoçámos os dois no Conventual, na Praça das Flores, entram duas raparigas muito bonitas. Era impossível não olhar. Olhámos. O meu pai: “De qual é que gostaste mais?”. E eu disse de qual, e porquê. E isto é das melhores medalhas que tenho na vida!, o meu pai disse: “Sabes ver!” [riso]. Isto de que estou a falar não se esgota numa psicanálise de trazer por casa. Gostava de mulheres, ponto.

 

Era um homem sensível, quando não era suposto que os homens fossem sensíveis. Como é que naquela Lisboa, na primeira metade do séc. XX, com estas raízes familiares, aparece um homem com esta sensibilidade e abertura?

Esteticamente e intelectualmente, vai definir-se entre pessoas que são contra o regime. Mas não só não adere ao neo-realismo como combate o neo-realismo. A maioria dos escritores da [revista] Távola Redonda é de direita; o meu pai não é. Não aceita o primado da política. O seu maître à penser, nesse aspecto, é o Régio.

 

Porque é que o Régio se torna tão central na sua formação?

É um irmão da minha avó, chamado Raimundo, que oferece um livro do Régio ao meu pai. Na altura em que o meu pai o lê, no princípio dos anos 40, o Régio é o adversário escolhido pelo Cunhal para ter uma polémica. O Cunhal está numa fase de afirmação dogmática, não lhe interessa andar à pancada com pessoas do regime. O Régio é um opositor do regime, foi preso pela última vez perto dos 80 anos, tem simpatias socialistas, mas não aceita o primado do político sobre a estética; e tem um lado religioso.

 

Que o seu pai também vem a assumir. Convertendo-se, tardiamente.

O meu pai baptiza-se para casar, porque a minha mãe era católica. Mas a presença do cristianismo no meu pai situo-a nos primeiros poemas sobre o Natal, que já são dos anos 60, aos 30 e tal anos. Não sei se o baptismo é muito mais do que uma coisa de conveniência.

Nunca se deixa reduzir ao cânone neo-realista. Também tem coisas escritas que têm um teor político. Pôs a Amália a cantar Abandono.

 

“Por teu livre pensamento/ Foram-te longe encerrar/ Tão longe que o meu lamento/ Não te consegue alcançar…”

Está a falar da prisão de Peniche. Mas isto existe como exercício de liberdade. O meu pai tem uma paciência muito pequena para os neo-realistas, tem interesse pelo Surrealismo, mas também não lhe agrada o lado de cartilha.

 

Não tem um desejo ou uma necessidade de pertença a um grupo. Ele é ele.

A Távola, que é o grupo onde está, tem outro grande poeta, o Luís de Macedo, que escreve também para a Amália. (Os três primeiros poetas que não vêm do fado, mas que vão parar ao fado, são o Pedro Homem de Melo, o meu pai e o Luís de Macedo.) A Fernanda Botelho, que vai ser uma grande romancista, era muito próxima do meu pai.

Começa a ler muito novo, tem a paixão da leitura, e não é uma pessoa de grupo. Tem 17 ou 18 anos quando um colega do colégio o leva a fazer uma ou duas conferências em centros operários, para tentar levá-lo para o PC. Era o Mário Soares.

 

A amizade com Soares é tão antiga que vem do tempo em que este era PC?

O Soares é mais velho. O João Soares [pai de Mário Soares] era amigo do meu avô, havia em comum o lado republicano. A certa altura, a pessoa que coordena os estudos vai para a clandestinidade e escreve uma mensagem muito bonita aos alunos. Era o Cunhal. Cruzam-se na mesma altura: o meu pai, o Belchior, o Soares e o Cunhal.

 

Parte da formação do seu pai fez-se no Colégio Moderno.

Tem primeiro um professor privado. O Dr. Teófilo, um republicano que não pode ensinar no ensino oficial, e que o meu avô põe a dar aulas ao meu pai.

 

O seu avô foi educado na Casa Pia. Como é que dá a volta ao seu destino?

O meu avô vem para Lisboa como aluno da Casa Pia, e a certa altura, porque nasce em 1897, torna-se republicano. Como os heróis dele são da literatura francesa, o Dumas, o Victor Hugo, começa a estudar História para escrever romances históricos. E a frequentar bibliotecas. (Terá, quando muito, o curso do liceu.) Na Biblioteca Nacional chega ao Jaime Cortesão, (padrinho do meu tio Jaime), frequenta o círculo do Cortesão, do Câmara Reis, do Raul Proença, do [António] Sérgio. São todos demitidos, e todos readmitidos depois do 25 de Abril. O meu avô é autor de uma das primeiras histórias políticas da Primeira República; no prefácio considera-se republicano, democrata, de tendência socialista, e é faccioso na defesa do Afonso Costa.

 

Mas foi um homem sensível ao saber, que se afirmou pelo saber. Daí ter puxado o Dr. Teófilo para casa.

O meu avô dá aquele salto. A minha avó tinha a 3ª classe.

 

Apesar dessa limitação, é quem o ensina a ler.

Se é o pai que o introduz nos livros, é a mãe que o introduz na escrita. Escreve no poema Jogo de Espelhos: “Foi a mãe que lhe ensinou a ler; e a entender. O pai, a reflectir; e a contemplar”. Os dois fascinados por França. Fui a Paris a primeira vez com os meus avós e o meu primo Jaime. Tínhamos 13, 14 anos, e fomos às Folies Bergère.

 

França naquela altura era o farol do conhecimento, assim apelidado. E acolhia muitos emigrantes políticos.

O prazer que o meu avô tinha em estar em livrarias de Paris a dizer mal do Salazar… Falavam um francês bastante decente, e quase nada de inglês.

 

O seu pai estuda Filologia Românica cumprindo, de certa maneira, um desejo dos pais de aproximação à cultura francesa?

O meu avô acarinhava a ideia de o meu pai estudar Direito. Mas como o meu pai revelava outras tendências, o meu avô levou-o a uma pessoa que respeitava e cuja idade ficava entre a dos dois – o Agostinho da Silva. O Agostinho da Silva é que diz: “Não faça isso. Este rapaz tem que ir para literatura”. O meu pai vai para a faculdade de Letras, onde conhece a minha mãe. Apaixonam-se e chumbam. A minha mãe irreversivelmente larga os estudos e vai para dactilógrafa, para o Valentim de Carvalho, que era tio dela, meu tio-avô. Casam-se passados oito anos de namoro.

 

É especialmente difícil fazer-lhe esta pergunta a si, mas porque é que acha que foi a sua mãe a pessoa com quem casou? O seu pai conta numa entrevista que dá à Colóquio que ela casa virgem. Ela sabe que ele não é casto, que há aventuras ao longo desses anos de namoro.

Um amigo do meu pai, o Urbano Tavares Rodrigues, num programa de televisão, gaba duas coisas na minha mãe: a beleza e o imenso sentido de humor. O meu pai escreve muito cedo no diário que não é homem de uma mulher só.

 

Ele estimava o desejo da sua mãe de se manter casta até ao casamento? Sabe se tinha algum fascínio por isso? Resultava como uma dificuldade, uma forma de resistência da parte dela.

Não tenho nada que me permita responder a isso. Tenho a sensação, a partir das coisas que apanho, de que a intimidade entre eles não deve ter sido extraordinária. Naquela época, não é grave.

 

Uma época em que faziam umas coisas com as de fora e outras com as de casa.

Aí, o meu pai era apenas mais visível. E se calhar tinha o sucesso bastante para poder escolher entre as de fora.

 

Acha que era sobretudo um amoroso ou um sexual?

As duas coisas.

 

Estou a perguntar por ele e sempre a pensar na obra. Que é marcadamente erótica e também profundamente amorosa. Ou ele não fazia esta dissociação entre o amoroso e o erótico?

Tem muitos poemas de amor físico, tem muitos poemas de enamoramento. Não teria o preconceito de achar que o físico sem a alma não tinha legitimidade. Ao mesmo tempo, escreve num dos poemas: “Por que há-de sob a pele o sangue amotinar-se quando apenas a pele havemos convocado” (Sob a pele). Existem as duas coisas na poesia dele, e um trânsito entre as duas componentes. Não me estou a lembrar de uma situação na obra de paixão deliberadamente casta.

 

Uma das traduções que fez, com Natália Correia, foi A Arte de Amar, de Ovídio. Ele falava do que entendia por amar, do que o amor fosse, ou não mantinha este tipo de conversas?

Os meus pais separam-se, não sei se tinha 12, 13 anos. Tenho um grande desgosto. Não contava com aquilo, mesmo que se dessem muito mal, grandes discussões. O meu pai vai viver com a Pilar na Rua dos Ferreiros à Estrela, numa casa pequenina com águas furtadas. Em casa da minha mãe, numa época que já não existe, de criada de dentro e criada de fora, o almoço e o jantar eram na cozinha. Quando os meus pais se separam começo a ser tratado como adulto. Oiço anedotas de adultos, picantes, muitas. Entro nas discussões de política. Fazia parte do charme do meu pai sobre mim. Adorei. Em 1967 não era como hoje. De repente estava num universo de homens recém separados, com mulheres mais novas, e algumas giras.

 

O seu pai começou a contar as suas histórias amorosas?

Muitas das histórias que contava, também contava à frente da Pilar. Mas não se gabava.

 

Não respondeu: era de falar sobre o amor? O amor é isto, o amor é aquilo.

Não, era um mistério, para ele. Isso nunca. Nunca se assume como aquele que sabe. A poesia é isso, é o amador aprendiz. O meu pai achava que eu era um exemplo porque fui durante décadas homem de uma mulher só. Fazia-me confidências. Uma vez deu-me um grande abraço, disse-me uma coisa lindíssima: “Ah, meu filho. Meu filho, meu pai”. Havia coisas em que achava que eu era o adulto, porque vivia numa estabilidade, e ele sentia-se frágil.

 

Quais eram as suas grandes angústias e dores?

A obra dele está marcada pela obsessão da morte.

 

O amor e o sexo não são senão uma forma de contrariar esse fantasma. Eros e Tanatos.

Num poema, dos que gosto mais, O Romance de Pompeia, fala do casal que morre no acto, que fica eternizado na lava. A morte é uma preocupação fortíssima, que aparece muito cedo. Nos últimos anos de vida, dez, 15, tem a angústia do regresso à barbárie.

 

Barbárie civilizacional?

Sim. Sabe que pertence a uma cidadela sitiada. A partir de 1967, fazia pelo menos uma viagem por ano a Itália com a Pilar. Ficava angustiado antes de partir. Telefonava para se despedir, e começava a dizer mal de Itália. Depois voltava e adorava. Ele ia claramente ter com uma velha amante, e tinha medo que ela tivesse envelhecido mal. A amante era a cidade de Roma. (Está em Londres, para ser visto pelos médicos, num apartamento onde vive duas ou três semanas: o primeiro livro que se vê é um guia de Roma. Está sempre nos planos, durante os meses da doença: quando estiver melhor tem que ir a Roma).

Depois de Portugal aderir à União Europeia, volta e meia vai a Bruxelas, convidado para fazer conferências, e fica desgostado com os eurocratas. Conta-me da vergonha que tinha dos que se sentavam no avião e pediam logo A Bola.

 

Não gostava de futebol?

Nunca gostou de futebol. Por solidariedade para comigo passou a vibrar pelo Benfica. O meu avô queria que perdessem todos, achava a bola um atraso. O que o chocava era que estávamos entregues a brutos.

 

Há um momento em que ele percebe que vai morrer. Como é que ele lida com a morte concreta, física, não com a questão metafísica que atravessa a sua obra?

O meu pai era um hipocondríaco. A partir de uma dor de garganta era capaz de criar a ficção de uma doença terminal. E perante o cancro, foi de uma bravura extraordinária. Como as pessoas sabem do estado em que está, servem-se do pretexto do disco de poesia para lhe dizer que gostam dele. O disco tem críticas óptimas por todo o lado. Ele gostou, mas sabia que as pessoas se estavam a despedir.

 

O disco é também uma forma de ele se despedir, até da poesia?

É, é uma escolha que faz, é a última antologia dele. Sabe perfeitamente que vai morrer. Era um homem muito bonito e dá entrevistas para a televisão desfigurado.

 

Era um esteta.

Penteava-se, ia ao barbeiro, perfumava-se, vestia com gosto. Era um homem que gostava da sua aparência, e não se esconde. Continuámos a ir a restaurantes, e há uma ou outra situação em que as pessoas não o conhecem à primeira. Foi uma coisa dolorosa.

 

Porque é que ele capitulou? Estava esgotado?

Porque cada vez tinha menos as coisas boas da vida.

 

Porque já não podia ensinar nem estar com uma mulher.

É isso. Há uma aluna desse grupo de estudantes que vinha cá para casa, e que tinham 20 e tal anos, que fica um ano com uma depressão profunda por causa da morte do meu pai. Nesta sala, acontecia estar a ver cadernetas velhas e a falar-me de alunos, do Eduardo Prado Coelho, do Artur Anselmo. O prazer que tinha nos grandes alunos...

 

Era sobretudo a ideia da transmissão do conhecimento, da corrente, de tocar a outra pessoa?

Ele também tinha sido tocado. Tinha tido acesso privilegiado, lendo ou através do contacto pessoal, a pessoas excepcionais, e transmitia isso. A noção da água de um rio usa-a num poema em que, numa das versões, fala do meu avô e de mim. O poema chama-se Xácara dos Campos de Elvas e tem três versões. A que ele virá a considerar piegas, a primeira, acaba: “Que nestes campos sem água/ eu sinto-me água dum rio/ David José meu pai/ David João meu filho”. Mais tarde corrige, e os últimos versos passam a ser: “Água que vem do meu pai, que se prolonga em meu filho”. Grava para o disco uma terceira versão onde faz questão de dizer outra vez o meu nome e o do meu avô.

Adora saber coisas de família. Andam aí por casa esquemas que fazia, quem é que vinha de quem. Fascinava-o saber se o avô do meu avô era judeu (esta teimosia nos David dá-o a entender).

 

Ocorre-me que a forma como arruma os livros é uma espécie de genealogia. Arruma-os a partir da data de nascimento dos autores. O que vem, de onde vem, vai dar a quem.

Nunca tinha pensado, mas tem toda a razão. Sabia quase todas as datas de cor, tinha uma memória extraordinária. O meu avô é um historiador amador, o meu pai tem muitos livros de história. Escreve uma novela que se chama Nem Tudo é História. Até como professor, tem uma noção do que vem, para onde vai.

 

Começa por arrumar por línguas, e depois, dentro de cada língua, segue, não a ordem alfabética, mas a cronológica.

São os rios. Copiei-lhe isso, e faz muito mais sentido. O que faz sentido é encontrar o Garrett ao pé do Herculano e do Castilho. Tinha uma paixão muito grande pelo Garrett, é dos primeiros poetas acerca de quem escreve. O Garrett foi uma espécie de ministro da Cultura, o meu pai foi secretário de Estado da Cultura. O Garrett foi um homem que se interessou pelo direito de autor. O meu pai trabalhou na Sociedade Portuguesa de Autores, a certa altura. Além da ligação ao teatro.

Um dia conta-me a história do enterro do Garrett. O Castilho, que era cego, terá feito, para os risinhos da sua corte, um comentário puritano e maldoso às mulheres da vida do Garrett, que eram muitas: “Mas a família que está cá é a verdadeira”. O Herculano terá respondido: “Dêem dois tostões para calar esse cego”. O meu pai estava a falar do enterro dele. Sabe que tem mais do que uma mulher a chorá-lo.

 

Disse que o outro autor com o qual sente uma grande identificação, além do Garrett, é o Paul Valéry.

Que é um tipo de uma inteligência muito fina. Uma noite, ainda é solteiro, põe-se a ler o Valéry, e faz uma directa, de entusiasmo, não consegue parar. Uns dias mais tarde vem a saber que o Valéry tinha morrido naquela altura.

 

Ele explicava o porquê dessa identificação tão íntima?

Não é exagero dizer que o meu pai acreditava que a comunicação entre os espíritos não se esgotava naquilo que sabemos. Cinco ou seis anos antes de morrer, no aeroporto, há uma mulher de leste, uma cigana, que olha para ele e de repente desata a chorar convulsivamente. Quanto tem a doença, acha que ela viu a doença dele. Há outras coisas deste tipo que atravessam a vida dele. Vai à Baixa [de Lisboa] pela mão do meu avô, há um atentado bombista, e escapam por um acaso. Mais tarde vai ao Brasil, há um travesti que é extraditado e que quer mandar o avião abaixo; o avião baixa de 10 mil para mil metros, param nas Canárias. O meu pai achava que várias vezes na vida alguém lhe tinha posto a mão por baixo.

Mais tarde, alguém atribui o interesse do meu pai pelo catolicismo a uma beatice, por ter apanhado esse susto. É completamente falso. Isso passa-se já em princípios dos anos 90, e os poemas cristãos são do início dos anos 70. Sobretudo o fascínio pela figura de Jesus.

 

Um fascínio humanista? É menos a figura de Deus e mais a figura do homem.

Sim. Ou um homem de uma bondade tão extraordinária que é por isso que é Deus. O nome do meu pai é David de Jesus porque a minha avó é Teresa de Jesus. Um poema diz: “Sou David, mas de Jesus”. Havendo o humanismo, a dimensão transcendente não está fora. É um humanismo enriquecido, que não encara o homem sob uma visão meramente materialista.

 

Preocupava-se com a imortalidade da obra dele? E enquanto católico, o post mortem era uma coisa que o preocupava?

Era um católico especial. Há um poema de Natal – nunca o percebi, a Joana Varela é que me chamou a atenção – que de edição para edição passa sempre para último poema do livro; e todos os outros têm data, menos esse. O poema começa: “Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que se veja à mesa o meu lugar vazio”. Aquilo vai num crescendo: “Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que não viva já ninguém meu conhecido”. Acaba a dizer: “…em que o Nada retome a cor do Infinito”. O lado religioso nunca lhe dá a segurança de que fique mais do que o Nada. Esse poema é muito bonito, e é uma reflexão sobre a hipótese da mortalidade total. Não é só a mortalidade física. É a própria obra.

 

A respeito da obra, o que é que ele pensava que ia suceder? Achava que era um grande poeta e que por isso ia perdurar anos e anos, que ia ser estudado nas escolas?

O meu pai tinha a obrigação de saber a qualidade que tinha, mas tinha a sua insegurança. A minha mãe, que bateu à máquina muitos poemas, dizia que considerava o meu pai um dos maiores poetas de toda a língua portuguesa. E depois não gostava da prosa. Costumava dizer: “O teu pai às vezes parece que precisa da opinião de uma criada para saber que é bom”. E precisava de uma corte de pessoas inferiores. Isto é típico dos artistas.

 

Porquê?

A Amália tinha uma corte patética, ainda hoje sofremos os efeitos disso no seu legado. A Natália [Correia] tinha uma corte inacreditável. Era muito amiga do meu pai, tinham uma camaradagem de irmãos, e no PREC, em 1975, telefonava a dizer que aparecia aqui em casa. Podia ser uma pessoa, três pessoas, sete pessoas, a corte encolhia e alargava. No Botequim, sabia tudo sobre o PREC, e sentava-se, rainha, no melhor sofá, a perorar.

A corte do meu pai não tinha este peso, porque o meu pai tinha coisas que as outras duas não tinham – filhos e netos. E felizmente tinha muitas mulheres, que o equilibravam bastante. Mesmo assim tinha uma corte. Lembro-me de uma cortesã muito simpática que uma vez me admoestou porque eu estava a discutir política com o meu pai: “Ó Davidzinho, não discuta com o pai porque o pai depois ainda lhe dá uma bofetada e fica triste” [riso].

 

Ele era emocionalmente carente, era por isso que precisava de ser tão amado por tantas mulheres?

As mulheres, é outra coisa. O grande artista ser carente e precisar que o confirmem é muito mais comum do que seria de esperar.

O meu pai, até ao fim, lê muito e vive muito, mas não deixa de ter insegurança.

 

Ele precisava de viver para escrever?

E vice-versa. Tem um texto de 1969, onde, julgo eu, inventa a expressão O Ofício de Escreviver. Assume que é viver para escrever, e escrever para viver.

 

Outro título muito famoso: Órfico Ofício. Ofício remete-nos para o lado laborioso da poesia.

E órfico para o sonho.

 

E para Orfeu.

Outro poema de que gosto muito (na fase mais tardia tinha poemas muito curtos, a meio caminho entre o poema e o aforismo): “Olhar de frente o Sol  Assim se aprendem

as letras iniciais da Solidão”. Nas festas de Natal, era ele que ia comprar o vinho, o bacalhau. A escolha dos presentes, a encenação... Esteve presente no nascimento de todos os netos (assim que sabia, vinha de férias do Algarve). Na última entrevista grande que dá, um programa feito pela Diana Andringa, está sempre a falar desta coisa maravilhosa que é a vida. Quando a imagem pára nele vê-se um homem, fisicamente a morrer, a dizer que a vida é uma coisa extraordinária.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011

 

 

 

 

 

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