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Anabela Mota Ribeiro

António-Pedro Vasconcelos

01.03.24

António Pedro Vasconcelos chegou, pontualíssimo, em cima das três. Estava em Lisboa por dois dias. Regressaria, depois, ao Luxemburgo para concluir a montagem do seu novo filme, «Jaime». Pela tarde fora, fumou um interminável charuto. Prestes a começar a entrevista, falámos de um casal que conhecemos e de como ela sacrificou o talento e os melhores anos ao amor que sentia por ele. Masoquista, declara António Pedro. Por isso me lembrei de lhe perguntar pelo escritor Sacher Masoch.  

 

Conhece o Sacher Masoch?

Conheço, mas não li. Li o Sade, conheço-o todo. Foi um dos meus educadores, um dos autores que mais marcou a minha formação. Falo dos meus 18 anos. Libertino vem de liberdade. O que aprendi no Sade foi a liberdade: «Ni Dieu ni Maître». Muitas vezes me pergunto se não tivesse lido estes livros, se tivesse lido outros, se seria outra pessoa. Lembro-me perfeitamente de um programa de rádio chamado «Leituras» do Fernando Curado Ribeiro; a entrevista da semana era ao José Augusto França, pediram-lhe para escolher três autores e um deles foi o Sade, que ainda não tinha lido. Os outros devem ter sido Stendhal e Tolstoi.

 

Conhecia-os?

O Stendhal foi uma das minhas primeiras descobertas. Isto coincide com a leitura de um livro decisivo para mim, «A cabra cega», do Roger Vailland. O Vailland lançou-me para o Stendhal, para o Laclos e para o Sade.

 

O jogo da relação amorosa e interpessoal é comum a todos eles.

Isso e o ateísmo. Nunca tive fé, mas ensinaram-me que era preciso ter. Não sentia fé; mas sentia, por exemplo, apetites sexuais. O sentido do catolicismo escapava-me um pouco. Como não tinha fé, esbarrava sempre nisto. Os meus pais tiveram percepção desta crise. O meu pai queria que eu fosse para Direito para ser advogado ou juiz (ele era juiz, o meu avó era juiz). Eu não tinha vocação nenhuma para aquilo.

 

Tinha essa noção?

Tinha a noção de que não me interessava. O meu pai percebeu que me interessava por ler, ouvir música, manter discussões filosóficas. É preciso situar estes 18 anos, estamos a falar de 1958. Ouvia muita música clássica, jazz e cançoneta francesa. Foi graças ao Brassens e ao Leo Ferré que aprendi a falar francês. Mas, então, os meus pais perceberam a minha crise de fé e combinaram com os meus tios que viviam no norte a minha ida para um colégio interno de jesuítas em Santo Tirso. Acolhi isso muito bem. Achei que devia uma chance à religião.

 

Que idade tinha quando entrou para o colégio?

Dezasseis. Acontece outra coisa: tinha vivido sete anos em Leiria (onde nasci), sete anos em Coimbra e aos 14, quando vim para Lisboa, o choque foi muito grande. Deixar Lisboa não me custava muito. Mas era sobretudo a ideia de pôr à prova as convicções que me tinham ensinado. Encontrei um professor que foi o primeiro pai putativo, o padre António Magalhães. Era uma espécie de católico renascentista e não limitava as leituras.

 

Continuava com os apetites sexuais?

Sexuais e outros.

 

A imagem mais pecaminosa que me ocorre é a de um rapaz que está a dar uma chance à fé e que continua com todos os devaneios normais à adolescência, como a masturbação, num colégio interno.

Ah, sim, é um bocado como o Eça n’ «O crime do padre Amaro». A certa altura o personagem vê na Virgem imagens eróticas.

 

Os seus apetites chegaram a tanto?

Era mais a Sofia Loren. É evidente que a adolescência é a descoberta da libido. A sensualidade eu sabia o que era, a fé esforcei-me por tentar perceber, mas não percebo o que seja. Graças à minha curiosidade e a esse professor acabei por ler livros, não fiz caso do Index. O Sade todo libertou-me de preconceitos. O primeiro livro que li dele foi «La Philosophie dans le Boudoir» que comprei num leilão no Chiado; arrematei um exemplar, custou-me uma fortuna, todo o dinheiro que consegui juntar.

 

Tinha uma mesada?

Não, comecei a ganhar dinheiro muito cedo. Como tinha jeito para desenho, comecei a fazer banda desenhada e capas para livros. O meu pai estava ligado ao regime, era inspector do trabalho. Havia um jornal das Casas do Povo e fiz uma banda desenhada sobre a História de Portugal.

 

A ligação do seu pai ao regime incomodava-o?

Não. Tinha muita ternura e respeito por ele. Ele não era um elemento activo do regime. Apesar de ter convicções de direita e de ser salazarista, era bastante tolerante. Eu tinha algum desgosto, por ser antifascista e de esquerda.

 

Quando é que começou a germinar em si o antifascismo? Há uma espécie de rebeldia em relação à casa paterna.

Saí de casa muito cedo, tinha 20 anos.

 

Para estudar?

Não, para viver uma paixão com a mãe dos meus dois primeiros filhos.

 

Tinha a bênção do seu pai?

Não. Lembro-me perfeitamente, cheguei um dia a casa e fui fazer a mala. 

 

O que é que levou?

Levei os livros todos, os discos, as roupas, o que tinha. Lembro-me de me estar a vestir e a calçar: «Onde é que tu vais?», «Vou viver a minha vida». Achei que era a única maneira, sempre fui de decisões assim.

Eu não era um homem, era um miúdo. A minha vida é um bocado atípica. Não fui um perseguido político porque nunca tive uma actividade ligada a um partido. Nunca fui do PC em parte graças ao cinema e aos livros. Fui aliciado, como toda a gente.

 

As pessoas que o aliciaram sabiam da ligação do seu pai ao regime. Você era, por isso, mais apetecível?

Não. O meu pai nunca teve ambições políticas nem militância. Era de convicções salazaristas e anti-democráticas, mas nunca me tentou convencer. Fui formado fora de casa. Apesar do carinho e respeito recíprocos, achei que o que os meus pais me ensinaram não me servia. A «Beatrix» do Balzac, que agora estou a ler, é a história de um jovem educado numa cidade de província, monárquica e católica, que descobre outro mundo. Há uma altura em que não há nada a fazer. Sobretudo, foi o primado da razão. Não aceito nada que a razão não sancione.

 

O amor ou a paixão percebem-se racionalmente? Não é uma contradição, ser razoável e responsável num estado de paixão?

Costumo dizer que sou responsável pela minha irresponsabilidade. A paixão pode conduzir-nos a excessos e estou sempre disposto a pagar. Seguir essa paixão é uma escolha minha (não estamos a falar só de paixão sentimental ou sexual). A minha vida tem sido uma procura, um pouco inconsciente, de um equilíbrio entre os estóicos e os epicuristas.

 

Com essa altura e esse aspecto deve ter sido objecto de muitos afectos. Como é que fez a conjugação harmoniosa de tudo isso?

Vivi uma vida um pouco louca. Tive grandes paixões, paixões fugazes e paixões sólidas. Vivo hoje conjugalmente, sou um homem casado. Tenho dois filhos da primeira mulher e um filho deste casamento.

 

Há quantos anos é casado pela segunda vez?

Há 25. Não se esqueça que tenho quase 60 anos. Assentei aos 35 por escolha. O sexo só é pouco interessante.

 

As descrições do Sade enfadavam-no?

Não, ajudaram-me a perceber que, ao contrário do que o romantismo nos fez crer, o amor, a paixão, o desejo e o sexo não são necessariamente a mesma coisa; e uma enorme liberdade em relação aos costumes. Sou tolerante desde que as pessoas estejam à altura das suas escolhas. A atitude que me repugna mais resume-se na história do menino que mata o pai e a mãe e depois vai ao juiz pedir clemência por ser orfãozinho.

 

E se matar só o pai? Estava a pensar no paradigma edipiano.

Não tenho nenhum reflexo edipiano. O meu pai não era uma personalidade suficientemente forte para precisar de o matar.

 

Todo o seu percurso é antagónico ao do seu pai.

Não era ele, era o mundo que ele representava. O meu pai era bondoso e desprendido, tinha um desprezo aristocrático pelo dinheiro. A minha mãe era muito mais pequeno burguesa.

 

O Álvaro d’ «O lugar do morto» era o seu alter-ego?

Um bocado.

 

Lembrei-me do Álvaro por causa da ideia da paternidade e de como ela é vivida.

Corresponde a uma fase da minha vida.

 

Os filhos entregues à secretária?

É típico da minha geração. O final dos anos 60, desde a pílula e até à sida, foram o período de maior liberdade sexual na história da humanidade. Na minha adolescência, Lisboa era a miséria sexual. As pessoas ou casavam ou iam aos bordéis. Era muito difícil ter uma vida sexual sã, normal.

 

Como foi a sua primeira vez?

Foi, como a de quase toda a gente, no bordel. Mas eu casei muito cedo. A minha educação amorosa e sexual foi muito mais saudável porque foi feita numa relação em que o amor e o sexo coincidiam.

 

Acha-se um charmeur?

Não.

 

Por favor, basta olhar para a forma como se veste, se perfuma.

Sempre gostei de me vestir bem.

 

Onde comprou o seu casaco?

Devo ter comprado em Paris ou em Nova Iorque, onde há medidas para mim. Não tenho paciência para ir a alfaiates. Os alfaiates são óptimos, mas não tenho tempo nem paciência. Se vejo um casaco de que gosto, tenho dinheiro e me apetece comprar, compro.

 

O seu casaco é cachemira, deve ter custado umas boas dezenas de contos.

É possível, privo-me de outras coisas. Tenho em relação ao dinheiro e ao que ele representa – o poder, quase sempre – um desprezo absoluto. Sou totalmente desprovido do sentido de propriedade. Por outro lado, somos completamente condicionados pelo dinheiro.

 

Suponha que está numa fase em que não tem dinheiro para os charutos. Deprime-se?

Nunca deixei de satisfazer os meus apetites. Quando comecei a fumar charutos tive de sacrificar outras coisas; ou tive de escrever mais um artigo por semana.

 

Não lhe é difícil fazer dinheiro?

Nunca tive um tostão, nem no banco nem em lado nenhum, nem tenho coisas. Mas sou totalmente responsável em relação ao dinheiro. Desde que saí de casa, todos os meses tenho de arranjar dinheiro para viver e inventar maneira de ganhar a vida. Tenho a facilidade de fazer várias coisas, se não tivesse provavelmente teria feito mais filmes. Como não sou obrigado e não estou disposto a aceitar certos constrangimentos, faço menos filmes. Agora vou ter de resolver o problema de já não ter todo o tempo à minha frente. Quando comecei a descobrir que levava cinco anos entre cada filme que se parecesse um pouco com o que queria fazer, pensei que com um bocado de sorte faço um aos 65 e talvez faça outro aos 70 e que nessa altura já estou provavelmente gagá. Não é vida.

 

A sua auto-estima não sai abalada dessas conjecturas?

Não. Não é que não me leve a sério, não me dou é muita importância. Ainda ontem em Paris comprei uma revista onde vinha uma entrevista ao Paulo Rocha e fiquei abismado. Porque ele fala de si próprio como se fosse o Shakespeare. A modéstia é uma coisa admirável. Estou a ter esta conversa consigo e não gostaria que pensassem que me estou a tomar por um Orson Welles ou um Rossellini. Não há nenhum autor português que tenha uma obra.

 

Nem o Manoel Oliveira?

O Oliveira tem em número e teve a sorte fantástica de ter sido adoptado pelo regime democrático e se ter tornado num cineasta vitalício. O papel dele na história do cinema vai ser irrisório ao lado dos grandes mestres.

 

Tem um eco internacional.

Mas não tem uma projecção internacional, isso é um mito. O Oliveira é conhecido em três jornais de Paris e em dois festivais. Não tem público.

 

Gostaria que o seu novo filme fosse falado nesses três jornais de Paris?

Os americanos fizeram filmes sobre índios para serem vistos pelo mundo inteiro. Nós fazemos filmes sobre índios para serem vistos pelos índios. Isso não me interessa. Interessa-me que o público português me veja, até porque começo por ser português. Gostava que o meu filme tivesse sucesso, não o escondo, ao contrário de muita gente que diz que o público não interessa.

 

O Paulo Rocha integrava as tertúlias do café Vá-vá com o Fernado Lopes, o João César Monteiro, o Fonseca e Costa. Viveram talvez o período mais marcante da vossa vida e agora praticamente não falam uns com os outros.

Olhe que falamos. Não falo com o César. No entanto, é de todos aquele por quem tenho mais admiração.

 

Fala com o Paulo Rocha?

Falo. Não nos frequentamos, que é diferente. Falo com o Seixas [Santos], com o Saboga, com o Fonseca [e Costa], com o Fernando Lopes.

 

Foi a usura, tal qual a usura conjugal, que fez com que se afastassem uns dos outros?

Vá ver os Impressionistas ou a Nouvelle Vague. O tempo encarregou-se de mostrar que cada um tinha a sua personalidade e quase todos entraram em choque uns com os outros. Leia a correspondência do Truffaut com o Godard. O aspecto pessoal das zangas é desagradável e doloroso. As divergências estéticas são saudáveis e normais. Esta é uma casa muito pequena e as pessoas acotovelam-se todas.

 

Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.

O problema é a corrida aos subsídios. Este ministro decidiu atribuir subsídios a fundo perdido. Não estou a dizer que o Estado não deve intervir e apoiar. Num país como Portugal, se não interviesse não havia filmes. Ou então as pessoas iam para os grandes centros tentar a sua sorte. O problema são os critérios com que se atribuem os subsídios, que são completamente arbitrários. Estabelecem uma política do gosto com dinheiros públicos.

 

É possível ser de outra maneira? Como é que se atribui senão pelo gosto?

Não estou de acordo com estes critérios. Recusei-me a produzir este filme. O produtor é estrangeiro. Se der dinheiro quem ganha é ele. Em toda a minha carreira, pelo conjunto dos cinco filmes que fiz, não recebi como realizador aquilo que o Manoel de Oliveira recebe por um filme.

 

Quando ocupava um lugar de decisão a vida de alguns realizadores era decidida por si.

Nunca fui presidente do IPACA. Tentei – e demiti-me quando percebi que não conseguia – estabelecer outra política: criar condições para que houvesse maiores possibilidades e que os critérios de atribuição dos dinheiros públicos fossem o mais rigorosos possível. Tentei começar por regular o mercado e ter uma intervenção a nível europeu (porque nada se resolve exclusivamente em Portugal). Não tinha responsabilidades directas. Se me tivessem proposto, se calhar, tinha aceitado.

 

Não foi uma situação complicada para si, um socialista?

Não sou socialista, sou de esquerda. Mas isso não constitui uma contradição. Tenho a minha liberdade e só faço o que a minha consciência puder sancionar. Não estamos no fascismo. Durante o fascismo recusei tudo o que pudesse ser um compromisso.

 

Foi por causa do dinheiro que decidiu participar nos «Donos da Bola»? Provavelmente, a maior parte das pessoas que vê o programa não faz ideia quem é o Marquês de Sade.

Gostava de que este filme fosse visto pelo público anónimo. Não me interessa nada ser reconhecido por três jornalistas franceses ou portugueses e o público não me ligar nenhuma. O cinema é uma arte popular e o mais importante é comunicar. Dirijo-me a um público que não lê o Marquês de Sade. Fui para os «Donos da Bola» no último momento em que era possível falar de futebol em Portugal. Fui por duas ou três razões: porque gosto muito de futebol, porque me dava uma oportunidade de ganhar a minha vida e, antes de tudo isto, porque alguém me convidou. A RTP não me convidou para nada. Se me tivesse convidado para fazer um programa de livros, tinha preferido.

 

Consegue dar um exemplo de um programa de que goste na televisão portuguesa?

Acho que a Judite de Sousa faz boas entrevistas. Gosto, de uma maneira geral, do que faz o Herman. E gosto de ver o Sporting-Benfica ou o Porto-Benfica.

 

Quanto ao seu filme novo, que sensação tem agora que o está a montar?

Os filmes são como as crianças: imaginamo-los bonitos, inteligentes, saudáveis. Depois o filme não nasce como se queria, mas a gente afeiçoa-se a ele. Teve uma série de condicionamentos. Eu próprio não fazia cinema há sete anos e não conhecia a maior parte das pessoas com quem trabalhei. Era complicado porque era um filme com crianças. A partir do momento em que acabam as filmagens há um duplo sentimento: um sentimento terrível de olhar para aquilo que se fez e perceber que se ficou aquém e um sentimento exaltante porque se volta a controlar o filme. Está praticamente montado, já o mostrei a várias pessoas e são unânimes em dizer que é o meu melhor filme.

 

A quem mostra o guião e o filme?

O guião geralmente mostro ao Joaquim Leitão (que faz um papel notável no filme), à Filomena Mónica, ao António Barreto, ao Fernando Lopes. Mas, por acaso, no dia em que o mostrei em vídeo o meu filho mais novo tinha convidado uns amigos para jantar e ficaram todos a ver. Precisava de reacções para uma coisa que era ainda informe. Começo a gostar mais e já não o confronto com o projecto; o filme é o que é.

 

Precisa dessas pessoas para se encouraçar?

Não é para me encouraçar. É importantíssimo que um filme corra bem, que o público anónimo (não os meus amigos ou os críticos) consiga partilhar o que acho que devo mostrar. É como em tudo. Os bons restaurantes são aqueles em que o chefe da cozinha é um amador de boa comida e gosta que as pessoas partilhem o que ele gosta de fazer. Uma das coisas que gostava de ter era um restaurante. Mas tenho a impressão de que seria um patrão intratável. Se estivesse a fazer um belo prato e me pedissem Coca-Cola, punha os clientes na rua, insultava-os.

 

Que outras vidas poderia ter? Cozinheiro, leiteiro, carpinteiro?

Leiteiro e carpinteiro acho que é um universo muito limitado. O instrumento com que trabalho mais é a cabeça. Era capaz de ter gostado de fazer história, arqueologia. Mas gostava de ter sido jogador de futebol, um grande jogador de futebol.

 

Jogava quando era miúdo?

Jogava, como todos os miúdos na escola. Não tinha grande jeito.

 

Era bom aluno?

Razoável. Depois, na Faculdade de Direito, não fui. Estive lá dois anos e chumbei, aquilo não me interessava.

 

Quando tinha dez anos e jogava com os outros miúdos queria ser futebolista?

O futebol sempre foi uma coisa de pobres. Aliás, uma das coisas de que gosto no futebol é ser o mais democrático dos desportos.

 

Porque é que marcou encontro no Grémio Literário? Não podia ser mais aristocrático.

É um sítio agradável, sossegado. Havia duas alternativas: a minha casa ou um café. O café é barulhento, em minha casa o telefone toca. Tornei-me sócio do Grémio por causa do «Aqui del Rei!», filmei aqui. Não sou propriamente um nostálgico, mas as coisas boas, como o Grémio, devem preservar-se ao máximo. O meu mundo está ameaçado de morte. No fundo é um problema de memória. O que mais me aflige hoje em dia é a perda de memória.

 

Está a falar da velhice? Há o Prozac para a felicidade, o Viagra para a impotência, o Xenical para a gordura. Mas ainda não se descobriram pílulas miraculosas para a velhice e a senilidade.

A senilidade é horrível, a velhice não. Espero que não perca a memória. A memória altera-se. Segundo sei as pessoas começam a lembrar-se muito mais da infância. Lembro-me raramente da infância, era incapaz de escrever um livro sobre a minha vida porque não me lembro de quase nada. Não sou um nostálgico.

 

Que obra sua gostaria que usassem para o recordar?

Nenhuma, ainda não fiz nada que dê para ser recordado.

 

É terrível dizer uma coisa dessas.

É a verdade, com alguma frustração. Quando aos 20 anos decidi fazer cinema gostaria de chegar aos 60 e ter feito um filme por ano e ter uma obra que tivesse marcado, no mínimo, Portugal e os portugueses. É o que dizia há pouco do Paulo Rocha; choca-me que colegas meus falem da sua obra como se fossem o Orson Welles ou o Griffith. Nenhum de nós é!

 

Quando se reuniam todos no Vá-vá acreditavam que eram?

Acreditávamos, sim. A nossa geração era, de facto, brilhante. 

 

Que é que falhou?

Portugal.

 

Não era previsível que o país evoluísse desta maneira?

Achávamos que quando o fascismo acabasse...

 

Onde é que iam meter a fatura de 50 anos de ditadura?

Mas ouça, as pessoas de 20 anos vivem com a cabeça cheia de ilusões, não têm experiência de vida e não fazem esses recuos.

 

Quando é que deixou de ser ingénuo?

Ingénuo e inocente são coisas diferentes. Ingénuo, deixei de ser relativamente cedo. Há um personagem num filme meu que diz: «Sou um tipo sem ilusões, o que é o contrário de um tipo desiludido».

 

Diria mais rapidamente que é um tipo desiludido que um tipo sem ilusões.

Não faço ilusões sobre o amor eterno, agora posso fazer tudo para eternizar o amor. Não faço ilusões sobre a felicidade na Terra, mas faço tudo para que os homens sejam melhores e haja felicidade na Terra. No essencial o mundo não melhora. Não há hoje ninguém a pensar melhor que o Aristóteles.

 

Gostava de ter sido um génio?

Um génio, é um peso tremendo. Provavelmente devia escrever. Decidi fazer cinema porque descobri que era possível ficcionar a realidade com a própria realidade. A minha adolescência foi uma coisa difícil e a literatura isola-nos. Um escritor a sério é um torturado. O Balzac, que leio ciclicamente, foi um torturado, mas é torrencial, um génio absoluto. Tenho essa componente epicurista de gostar de viver. Por um lado, defendeu-me da depressão, por outro impediu-me de ser mais obsessivo. Cometi um erro na minha vida.

 

Ter regressado depois de estar em Paris?

Foi ter voltado aos 23 anos. Houve os filhos, a possibilidade de fazer um filme, a revolução. Se tivesse olhado para trás tinha visto que todas as gerações que tentaram fazer alguma coisa neste país e por este país acabaram mal. Somos um país de suicidas. Ninguém em Portugal conseguiu fazer algo de grandioso.

 

Que é que o impede de agarrar no seu filho e nas suas coisas e levá-los daqui?

Não é fácil. Como é que vou recomeçar num sítio qualquer assim sem mais nem menos? A gente precisa de pagar a renda da casa todos os meses. Numa entrevista ao [Alexandre] O’Neill, que era um tipo cáustico e céptico, perguntei-lhe: «E a aventura?». Ele respondeu: «A aventura em Portugal acaba na pastelaria». Sucessivas gerações embateram neste muro horrível. O país tem a forma de um caixão. Vivemos com o mar por um lado e por outro os espanhóis, que declarámos como nossos inimigos. A grande tragédia portuguesa foi não termos constituído uma grande federação ibérica.

 

Nunca esteve deprimido a ponto de se fechar no caixão?

Não, passei a vida a espernear.

 

Porque é que decidiu vestir essa roupa hoje? Vestiu-se para as fotografias?

Primeiro, porque no Grémio Literário a gravata é obrigatória; segundo, porque ando habitualmente assim. Tenho cuidado com a minha imagem mas não é quando sou fotografado, tenho cuidado com a minha aparência na vida. Não gosto de ser visto em trajes menores e isso faz parte da civilização. As pessoas devem cuidar de si e eu gosto de me tratar bem. Por mais artificial que pareça, sou o mais natural que há, visto e faço o que me dá prazer.

 

Com que imagem acha que as pessoas vão ficar depois de lerem esta entrevista?

Preocupa-me que as pessoas tenham uma visão errada do que sou. Não tenho qualquer ambição política nem de poder. A outra ideia é a de ter uma relação com o país muito pouco complacente e de pouco apreço. As pessoas têm de ser lúcidas, é um país pequeno, pobre e atrasado que não tem uma grande História, nem pintura, nem música, nem sequer literatura. Podem pensar que tenho uma falsa modéstia quando falo dos meus filmes sem lhes dar a importância que provavelmente deveria dar. Não sou pior que a maioria dos meus colegas, mas devíamos ter todos a noção da realidade. Se o país me tivesse dado as oportunidades e se tivesse tido a previsão, a obstinação, a habilidade para ser menos conflituoso, menos contestatário e rebelde teria chegado a esta idade com 20 filmes e falaria da minha obra. Teria gostado de fazer uma obra. Mas não passo a vida a chorar sobre isso.

 

Chora?

Chorei quando morreu o meu pai. Não choro e tenho pena. Emociono-me às vezes no cinema. Choro no «A leste do paraíso» quando o James Dean se agarra ao pai.

 

A figura do pai está presente em toda a sua obra. Para quem tinha o Édipo bem resolvido...

Descobri que em todos os meus filmes havia um suicídio: no primeiro o suicídio do pai, no segundo o do amigo, no terceiro o do alter-ego, no quarto o do pai putativo e no quinto, que é este, o do pai. Portanto, há qualquer coisa aqui. Tenho um lado negro e depressivo mas, depois, nalgumas circunstâncias, tenho um lado extremamente positivo que não é voluntarista, é espontâneo. O suicídio é uma enorme cobardia, apesar de poder ser um acto de enorme coragem.

 

Este sítio lembra-me «Os Vencidos da Vida».

Não sou um vencido. Toda essa geração acabou mal. Portugal era um país caricaturável. Não é por acaso que os grandes génios desse tempo eram, provavelmente, o Eça e o Bordalo Pinheiro.

 

E neste século, quem temos que fique para a história?

O Eusébio, o Futre, o Figo, o Rui Costa [risos]. O O’Neill é um grande poeta mas nunca vai ter a importância que o Rimbaud tem em França e no mundo. Temos gente óptima, gosto muito do Rui Veloso e do Carlos Tê, são excelentes naquele domínio. Sobretudo, somos dotados para o futebol, que é um desporto de subdesenvolvidos.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 1999

  

     

 

Álvaro Siza Vieira

01.03.24

Não a propósito da arquitectura, mas do desenho, tinha dito: “Há uma ligação entre mão e mente muito estreita”. Ao longo da entrevista, procurou-se essa ligação. Falou dele próprio e menos do génio mundialmente conhecido por Siza Vieira. Nasceu em 1933.

O dia da entrevista estava marcado com um mês e uma semana de antecedência. Pelo meio, fez incontáveis viagens, e recebeu o prestigiado RIBA das mãos da Rainha de Inglaterra. Uma canseira. Mas acaba por gostar.

Gosta da vida que tem. Não é o misantropo que dizem que é. Ri-se por isto e por aquilo. Dá gargalhadas, espessas, de quem tem a voz e as cordas vocais entupidas pelo tabaco. Fuma muito.

A entrevista foi uma viagem. Às Sete Casas onde passou a infância, em Matosinhos. A um tempo em que a Segunda Guerra era uma ameaça. Ao Marco, à sua única igreja construída. Mas, por acaso, fomos dar ao Marco por causa de uma irmã que é freira e da descrição de uma casa onde as mulheres eram de missa diária. Não fomos às piscinas de Leça da Palmeira, nem ao salão de chá da Boa Nova, obras de final dos anos 50, quando ele era um arquitecto recém-formado. Nem fomos à muito celebrada Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, obra maior dos últimos anos. Mas fomos ao Brasil que o pai lhe deu a conhecer, através de relatos dos 12 anos que aí viveu. Fomos a muito lado. Sem sair da sala onde trabalha.

Siza Vieira falou de quase tudo. Não tocou em assuntos que eu e toda a gente sabemos que são tabu. Assuntos íntimos. “Não vou fazer confissões nem revelar a intimidade, não é?”. É viúvo e tem dois filhos. 

 

 

Perguntou-me qual é o tema da entrevista. Quando disse que o tema era o senhor e a sua obra, respondeu, muito pasmado: “Eu?”. Já chegámos à fase em que o ícone Siza ocupa de tal maneira o espaço que o homem Álvaro Siza não é um tema?

É que isso, [quem sou], é do domínio do privado. Não vou fazer confissões nem revelar a intimidade, não é? Quem sou é um tema em princípio pobre. Mas agora depende mais de si do que de mim.

 

Comecemos pelo princípio. Para estarmos sempre entre a obra e o homem, peço-lhe que descreva a casa da sua infância. Que é um modo de perguntar como começou a olhar o espaço.

Ainda era o tempo em que as famílias eram grandes. Havia tias, tios, avó – avô, não –, pais; irmãos, éramos cinco. Era uma casa cheia e com aquele staff importantíssimo: as tias solteiras, que garantiam o funcionamento da casa com enorme dedicação e competência. Tias paternas. Havia uma tia materna, mas essa vivia em Lisboa – o que me proporcionou algumas férias em Lisboa. A primeira vez foi em 1940; o fim era a Exposição do Mundo Português.

 

O espaço da casa, propriamente, era como?

Era uma série de casas, contínuas, construídas pelo chamado Brasileiro Torna Viagem, que ainda conheci. Na Rua Brito Capelo. Era a rua onde, mais à frente, estava a câmara, as lojas; mas esta zona era só residencial. O brasileiro construiu sete casas; aliás, são conhecidas pelas Sete Casas.

 

O senhor nasceu em casa?

Sim. Uma casa com uma ala contínua, cave e dois pisos. Não era uma cave: era um piso de pouca altura, onde estavam as lojas, os serviços, uma sala onde se brincava. E com jardim. Uma parte da minha infância tem lugar no jardim, no pátio, com relações muito fortes com a vizinhança. Tudo famílias grandes. Juntávamo-nos no quintal de uma das casas, conforme fosse, e brincávamos aí. Portanto, uma infância feliz.

 

Quando pensa nessa infância feliz, que episódios é que aparecem?

Ui, deixe ver se me lembro… Mudança marcante: os meus pais deixaram a casa; foi quando nasceu a minha irmã que é 15 anos mais nova do que eu. Já não havia condições para ficar ali, com conforto.

 

Quantos irmãos são? Como era a família?

O meu irmão mais velho morreu muito jovem. Morreu num acidente. Tinha acabado de se formar em medicina, brilhantemente. Era desportista, jogava basquete. Uma trave, um cesto que caiu, apanhou-o, estava sentado, de costas. Ele tinha 21 anos e eu 19. Era o mais velho; dois anos menos, eu. Depois um irmão que vive ainda em Matosinhos, engenheiro. Uma irmã que é freira, doroteia. E outra irmã que é a Teresa.

 

Tinha de partilhar o quarto? E como era o quarto?

Na casa da minha avó havia um quarto no piso de cima, onde estávamos eu e o meu irmão mais velho. A minha irmã tinha outro quarto, e quando nasceu a Teresa fomos logo para outra casa. Perto. As refeições eram com 12, 14 pessoas à mesa. O centro da casa era a sala de jantar, que era também sala de estar. Levantava-se a mesa, as pessoas ficavam ali à volta. A tricotar (a minha mãe e as minhas tias). O meu pai, habitualmente, a estudar, a trabalhar. Tinha uma vida muito ocupada. Como tinha de ser para manter a família. Era engenheiro na refinaria de Matosinhos. Mas à noite dava aulas na escola Infante Dom Henrique – desenho de máquinas. E nós, brincávamos.

 

Brincava a quê?

Eu, desde muito cedo, fazia desenhos ao colo de um tio. Que embora fosse uma negação para o desenho, me instruía e animava essa vontade. Suponho mesmo que criou essa vontade – coisa estranha. A minha mãe era outra negação para o desenho. Quer eu quer o meu irmão mais velho, a [escola] primária, estudámos em casa.

 

Tinham uma preceptora?

Era uma prima da minha mãe que era professora e que mais tarde foi nossa explicadora de inglês. Morava em frente. Está a ver, era tudo muito relacionado… Atravessa a rua de manhã e dava-nos aulas.

 

Porque é que os seus pais optaram por não os mandar à escola?

Possivelmente por quererem ter os filhos por perto. Isso colocou-me alguns problemas. Quando fiz o exame da terceira classe, não tinha a mínima noção do que era uma turma, e mesmo do comportamento [que se devia ter. Em casa] chegava a minha professora, beijinho, sentar – sempre na sala de jantar –, o ditado, a cópia, essas coisas. No exame, os meninos levantaram-se todos, eu não. Estranhei, levantaram-se, que é isto? Na quarta classe também aconteceu uma coisa importante: o professor faz-me uma pergunta, um problema de matemática; olhei e muito calmamente disse: “Não se pode fazer”. Na assistência, estavam a minha mãe e a minha professora. Geladas. De súbito, o professor começou a corar. Realmente, o problema era mal dado… Eu não tinha medo nenhum. Depois, estudei no Colégio Brotero, e lá fui ganhando medo e o nervoso. Como me competia!

 

O tempo começou a contar de maneira diferente a partir do momento em que ganhou medo e nervoso. A infância passou a ser outra.

O tempo que está para trás, como correu bem…

 

É sem sombra, sem mancha.

Sim, sim.

 

Até aos oito, nove anos, não sentiu medo? Das coisas em geral, e não apenas das aulas e do professor.

É possível que alguma vez me tenha pegado com vizinhos, mas não me lembro. As crianças eram muito protegidas, a vida era num círculo restrito. A ida para o colégio não foi fácil. Eu não estava habituado ao convívio com pessoas que não eram da relação da minha família. Depois adaptei-me – incluindo o medo.

 

A mesa de jantar onde tudo se passava era parecida com esta onde estamos, e que é onde trabalha?

Era mais larga, menos comprida.

 

É fácil imaginar que se reproduzia ali a imagem da Última Ceia. Todos à mesa. A partilhar. 

Mas era, era mesmo! Ao lado, havia um quartinho onde estava um divã, uma escrivaninha e, coisa importante, o rádio. O meu pai era um apaixonado pela ópera e transmitiu-me esse gosto. O rádio, ouvia-se muito mal, muitos ruídos e tal, mas ouvíamos. Ouvíamos o Fernando Pessa na BBC. Seguíamos com muito interesse e receio a guerra. Havia exercícios que fazíamos: um que divertiu muito os meninos, que não estavam conscientes dos perigos, foi colar fitas nos vidros e janelas.

 

Porquê?

Para resistirem, se houvesse bombardeamentos. Fazia-se uma quadrícula com fitas adesivas, que foram distribuídas. Havia exercícios de simulação de um ataque; aviões, navios e submarinos andavam ali muito perto. Foram distribuídas lanternas aos homens que tinham idade de fazer guerra. Uma lanterna que tinha um foco vermelho, um foco verde e um foco branco.

 

Tem uma memória muito vívida disso.

Aquilo era motivo de divertimento, se o pai emprestava a lanterna. Também me lembro do dia da vitória, em que muita gente foi para a rua, celebrar o fim da guerra! Mas houve pessoas que se zangaram, discussões acaloradas; e gente que estava convencida de que a Alemanha ia ganhar a guerra e que isso seria óptimo. Aquilo dividia-se mais ou menos assim: 50% anglófilos e 50% germanófilos.

 

As imagens das câmaras de gás, dos seis milhões de judeus e dos 20 milhões de russos não apareceram logo…

Não se sabia. Recebíamos uma revista inglesa que era mandada pela propaganda inglesa, que documentava com fotografias as frentes de combate. Já mais tarde, havia distribuição de intensa propaganda americana. Mandavam chocolates e brinquedos. Outra coisa forte, em relação à família, foi a presença do Brasil.

 

O seu pai falava muito do Brasil, onde viveu até aos 12 anos?

Falava bastante. Contava-nos histórias do Belém do Pará.

 

Eram histórias de aventura, de liberdade, de exotismo?

Histórias que davam o ambiente. Falava com muita paixão do Brasil. Falava, por exemplo, dos pássaros pretos – não me lembro de como se chamam – que faziam a limpeza de Belém do Pará.

 

Urubus?

Sim! Uns pássaros feios. Falava do teatro de ópera, em Manaus. A vida cultural era riquíssima. Contaram-me na Colômbia, (nas duas vezes que fui lá, para seminários na Escola de Arquitectura de Bogotá), que se fazia a viagem a partir de Bogotá, que é a 4000 metros [de altitude], para chegar a uma cidadezinha junto a um rio, afluente do Amazonas. À medida que se vai descendo, é impressionante o aumento de dimensão das folhas das árvores; são enormes quando se chega à cidade. Contaram-me que o Caruso ia de barco até essa cidade e depois ia até Bogotá de burro! Imagine que super-homens eram estes! E chegavam lá e cantavam!

 

As coisas que o seu pai contava pareciam-se com essas? E alguma vez fez essa viagem?

Fiz, de carro. O meu bisavô, que era fotógrafo profissional, tinha um estúdio em Belém e na Goiânia, onde tinha um sócio inglês. Estive lá há pouco tempo. O estúdio, a casa propriamente, já não existe. Ele deslocava-se entre o Pará e a Goiânia e esteve na Exposição de Chicago [1893]. Descobriu-se a existência de um álbum da cidade com fotografias do meu bisavô. Reeditaram-no há uns anos. Organizaram uma exposição com as fotografias do bisavô e a mim pediram-me para fazer desenhos dos mesmos sítios, hoje.

 

Foi emocionante fazer isso, indo ao encontro do seu passado, da sua genealogia?

Não fiquei em estado de comoção convulsiva, mas sim, foi emocionante.

 

Esse encontro com o passado, procura-o? Mesmo em relação ao Caruso: se faz uma viagem dessas, pensa que está a refazer a viagem de alguém que admira?

Bem gostava, mas não tenho nem tempo nem energia para ir de burro do [clima] tropical até à montanha! [risos]

 

Herdou do seu pai o gosto pela ópera. A última vez que Caruso se apresentou em público foi em Sorrento, no jardim do Hotel Excelsior.

Não sabia. Já fiquei várias nesse hotel, em frente ao mar, com o Vesúvio por perto. Uma maravilha. Estou a fazer um trabalho em Nápoles, juntamente com o Souto Moura. Vou lá para semana. E vou cantar! [risos] Nesse hotel, passou tudo: o Humphrey Bogart, reis…

 

E o Siza.

[gargalhada]. Não me parece que o carisma seja o mesmo. O Humphrey Bogart, fumando sempre. Recentemente vi num hotel em Londres o Breakfast at Tiffany’s; no filme, todos fumavam, e no hotel era proibido! Uma nuvem de fumo que quase invadia o espaço, mas que ficava no ecrã. Tornou-se um filme sádico, para um fumador.

 

Porque é que fuma tanto?

Comecei a fumar bastante tarde. Aos 20 anos ou coisa assim. Ninguém falava dos malefícios do tabaco. Era natural o menino, quando começava a crescer, a ganhar buço, fumar. Às escondidas dos pais. As mulheres não fumavam. Nos anos 40 começaram a vir os refugiados da guerra. Alguns ficaram cá, a maioria seguiu para os Estados Unidos. Ficou cá, por exemplo, a Ilse Losa. A Ilse Losa ia ao café: aquilo era um escândalo! Criaram-se modas; começaram a usar-se calças (o que era inadmissível), e o chamado cabelo à refugiada (cortado curto).

 

Começou a fumar com quem?

Todas as pessoas das minhas relações fumavam, e eu também comecei, Maria vai com as outras. 

 

O cigarro, nos momentos em que está com outros e não pode desenhar, é uma muleta e uma barreira?

Há um problema do uso das mãos ligado a isto. Uma pessoa habitua-se a ter as mãos ocupadas, a empunhar o cigarro. Mas o mais importante é que [fumar] é bom!

 

Fecha as pálpebras muitas vezes. Li que o António Damásio lhe disse que esse tique deriva da consumo do tabaco.

O Damásio nem hesitou: “Isso é da nicotina”! Mas eu tenho ideia que não é… O meu filho assistiu a um programa na televisão sobre isto. Nos Estados Unidos, um grupo consistente de médicos estudava o fenómeno há anos e não tinha chegado a conclusão nenhuma. Aparentemente é um nervo, louco, que, quando lhe apetece, dá ordem à pálpebra para apertar. Não é a pálpebra que cai, é um espasmo. Às vezes pode durar meia hora, e é fatigante.

 

Alguma vez teve medo de cegar?  

Não. Não. Desde miúdo que sou míope. A descoberta da miopia é outro episódio que não me esquece. Tínhamos uma relação grande com o cinema porque a minha bisavó era proprietária de uma casa onde havia um cinema. A família tinha direito a uma fila, e íamos muitas vezes. (“Os Tambores de Fu Manchu” foi um dos filmes da minha infância). Um dia, esse meu tio apercebeu-se de que eu não estava a entender o filme; talvez por não me rir em determinadas cenas. “Então, não leste as legendas?”. “Não, a esta distância já não se lê”. Chegou a casa e disse ao meu pai: “O miúdo tem problemas de visão”. Tinha oito anos ou coisa assim. Passei a usar óculos.

 

[Levanta-se e vai à outra sala buscar água; quando vê a fotógrafa à espera, diz-lhe: “Ui, isto ainda vai na infância…”]

 

“Ui” usa-se muito no Porto… Estávamos na descoberta da sua miopia.

A única coisa que me incomodou é que eu gostava muito de hóquei em patins – isto aos 16 anos. Formámos o Hóquei Clube de Matosinhos. Houve um jogo no Infante Sagres, e, grande emoção, sou convidado para jogar! Juniores. Fiz quatro ou cinco jogos com grande sucesso. Metia golos e tudo. O médico que me acompanhava, sabendo que eu jogava, disse ao meu pai que era perigosíssimo. Proibiu-me de jogar. No domingo seguinte, contrariando as ordens, lá fui. Apareceu a equipa, fulano de tal, fulano de tal, e NN! O meu pai, que desconfiava, chamou-me: “Com que então NN? Livra-te de tornares a fazer isto”.

 

Quem é que era a figura mais solar e inspiradora na sua vida? O seu pai, o seu irmão, o seu tio?

Todos me marcaram, mas era o meu pai. Era uma pessoa encantadora, tolerante. A vida familiar era muito boa. Durante uns quatro anos, fizemos férias em Espanha. O meu pai nunca teve a carta. Alugava um carro grande, e lá ia a família toda. O meu pai, a minha mãe, e nós; em geral, ia também o tio, esse tio. Andaluzia, Galiza, Costa Brava. Uma das razões [por que íamos] era porque as férias em Espanha eram baratíssimas. Uma peseta valia 50 centavos. Fazíamos férias óptimas, em hotéis bons.

 

Alugavam um carro com motorista, ficavam em hotéis bons, mas na vida de todos os dias, eram poupados. Ainda não percebi bem o estatuto financeiro da família.

O dinheiro era contado! Mesmo nas férias.

 

Nesses anos, viu pintura nos grandes museus. O que é que o impressionou?

Vi sobretudo, e muito cedo, museus em Espanha. O Prado em Madrid, o Museu de Arte Antiga em Barcelona. O que me impressionou mais foi Greco e Ticiano. Era mais difícil ver um Picasso ou um Matisse. Não me lembro de ver Picasso num museu espanhol. Eu ia mergulhando mais e mais no desenho. Os presentes: para mim, era sempre um livrinho da colecção Le Maître, com todos os pintores; no Natal era um, nos anos outro. Ainda tenho esses livros. Reproduções péssimas, a preto e branco.

 

Olhando para o seu percurso e para a tendência para o desenho, seria fácil pensar em si como um pintor.

Quis ser escultor. Muito cedo fiz coisas em barro. Mas o meu pai achava que ir para escultura seria uma desgraça. Ligava-se ainda a vida do escultor à boémia, à miséria. Persuadiu-me a não ir. O meu pai não era pessoa com quem apetecesse alguém zangar-se. De maneira que o meu plano foi ir para as Belas Artes, onde havia o curso de arquitectura. (Já era um curso mais ou menos aceite). E depois, sub-repticiamente, sem conflito, mudar.

 

Mas não mudou. O que é que o fez ficar?

Apanhei um período da Escola de Belas Artes interessantíssimo. Tinha que ver com uma relativa abertura a que Portugal foi obrigado. Já não havia Hitler nem Mussolini… Sobretudo, entrou como professor e depois como director o Mestre Carlos Ramos. Criou uma equipa de gente muito nova, de grande qualidade e com um interesse grande pela modernidade. Era também professor um dos membros portugueses do CIAM [Congresso Internacional de Arquitectura Moderna], o Fernando Távora. Ia às reuniões do CIAM e trazia informação à “família”. Trouxe a contemporaneidade. Começaram a aparecer revistas do Japão, de Inglaterra.

 

As suas notas biográficas falam de um primeiro interesse pela arquitectura: quando viu Gaudì.

Numa dessas viagens [com o meu pai] vi as obras do Gaudì. Mas o meu desinteresse era tão grande que a primeira crítica que me fez o Mestre Carlos Ramos, que andava pelos estiradores a ver o trabalho, foi: “Você, vê-se que não tem nenhuma informação sobre arquitectura. Tem que comprar umas revistas e adquirir informação”. E, de facto, fui, sempre com o meu pai, comprar quatro “Architecture Aujourd’hui”, que era a única revista que chegava. Apanhei por sorte dois números monográficos. Um sobre o Gropius, director da Bauhaus, que conhecia porque o Carlos Ramos era bauhausiano). Mas o outro não: era o Alvar Aalto. Entusiasmou-me muitíssimo. Era uma coisa fresca, nova em relação aos modelos anteriores, óptimos também, cuja figura dominante era o Corbusier.

 

Insisto na pergunta: por que é que não quis ser pintor se desenhar lhe era tão essencial? E porque é que acha que foi mais tocado por ter visto uma obra do Gaudì do que um quadro do El Greco?

O meu pai preparava as viagens, arranjava uns livros. “Vamos ver isto e isto”. E quando vi imagens do Gaudì, alto: “Isto interessa-me. Parece escultura”. Visitei quase todas as obras em Barcelona e apercebi-me que aquilo que para mim era escultura era feito com portas, punhos de porta, rodapés… Aquilo tinha tudo o que tinha a minha casa. Simplesmente era a cantar. Tudo relacionado. Tive um baque pela arquitectura. Mas passou. Passou porque estava interessado na escultura e na pintura.

 

Confrontou-se com aquilo para que tinha talento? Com as suas limitações?

Não me punha o problema de ter talento ou não. Gostava de – era tudo. Em arquitectura era um aluno fraquinho. Julgo que isso se devia à carência de informação. E, no fundo, no fundo, à contrariedade por não ter seguido para a escultura e ter ficado na arquitectura. Eu tinha notas muito fraquinhas e achava que era muito fraquinho. 

 

Como é que se inverteu isso?

Já no quarto ano, o Fernando Távora foi meu professor. Foi ele que me reconheceu qualidades. E demorava-se na crítica. Mais tarde convidou-me para trabalhar com ele. O ego subiu um bocado, porque pelo Fernando Távora havia uma admiração enorme! Que diabo, se ele me chama…

 

Em casa, e de si para si, havia a pressão da excelência? De ter de ter medalhas. De ser extraordinário.

Não nesse sentido. Mas havia uma exigência. Era uma questão de educação. O meu irmão mais velho foi um aluno brilhante, o mais novo (o engenheiro) foi óptimo, eu próprio, no liceu, fui muito bom, a minha irmã também; a outra irmã era boa aluna, mas sentiu aquela vocação… Foi um grande drama na família.

 

Que relação tinham em casa com a religião?

A minha mãe e as minhas tias eram quase de missa diária. E no entanto, quando a minha irmã decidiu isso e o anunciou à família, caiu Tróia! Falaram-me para a convencer a não ir para freira! 

 

Tinha ascendente sobre ela?

Tínhamos uma relação muito boa. “Mas como é que vou fazer uma coisa dessas? Isso é um problema dela, se quer ir – e quer”. Cá por dentro pensava: “Como é que estas pessoas tão religiosas não aceitam que ela vá?”. Alguém que ia para freira era como uma pessoa que ia para longe, que ia desaparecer.

 

Na sua arquitectura podemos encontrar sinais de espiritualidade e mesmo religiosidade? Há uma relação entre isso e essa casa onde as mulheres eram praticamente de missa diária?

Quando fiz a igreja no Marco de Canavezes, foi muito difícil ser-me entregue esse trabalho. A hierarquia dizia que eu era ateu e que não podia fazer uma igreja. Fez-se porque o padre Nuno Higino se empenhou nisso a fundo. Julgo que ter-se sabido, a dada altura, que tenho uma irmã freira deve ter ajudado…

 

Não importava nada a sua consagração internacional. Importou a circunstância de ter uma irmã freira…

[gargalhada] Quando foi a inauguração, lembro-me de jornalistas me perguntarem: “Você é um homem ateu e faz uma igreja?”. “Mas quem lhe disse que sou ateu? Nunca disse a ninguém se sou se não sou. Nem digo!” E agora digo-lhe o mesmo a si! Bom, há qualquer coisa que se pode chamar de religiosidade em toda a arquitectura. Religiosidade no sentido de atmosfera, conforto, ligação com tudo. A arquitectura tem isso, independentemente se ser uma igreja. Não esquecer que uma casa é um abrigo, um lugar de intimidade e recolhimento. A uma igreja chama-se a casa de deus. É inerente à arquitectura essa componente de silêncio, de protecção, de comunidade.

 

Comunidade numa igreja ou numa casa.

Sim. A família é uma comunidade que se vai reduzindo cada vez mais. Já há muita gente a viver sozinha. Eu, por exemplo. Para mim, projectar uma igreja não foi diferente de projectar uma casa. Tem as suas exigências próprias e a sua atmosfera.

 

Subjacente à minha perguntava estava o seguinte: como é que a sua personalidade e vivências aparecem naquilo que projecta?

Seguramente que aparece, quer um seja arquitecto ou médico. Mas não é um consciente fio condutor. É qualquer coisa que se projecta de nós, mas não é um propósito.

 

Vamos a um exemplo: este facto marcante na sua vida, de a sala de jantar coincidir com a sala de estar e esse ser o espaço onde tudo acontecia; se olhar para a sua obra, consegue perceber um traço disto, uma projecção disto?

Não, não consigo. Mas admito que exista. Se vivi isso, muita coisa ficou e aparece sem que eu tenha consciência. No exercício da arquitectura há muita coisa que vem do subconsciente. Coisas que fazem parte de nós e que conduzem uma pesquisa em determinado sentido. A nossa mente é um armazém de tanto mais capacidade quanto mais for usado. No caso de um arquitecto, a formação baseia-se no aumento da informação, no aumento do que se vê, se estuda.

 

E o que se vê são cidades, filmes, quadros, pessoas…

Literatura, música, tudo! A literatura está tão ligada à música, à escultura e à pintura, ao ballet… No meu tempo, começava-se pela fixação numa pessoa e numa obra. Depois começa-se a conhecer mais isto e mais aquilo, a alargar. A certa altura já não estamos a copiar isto ou aquilo; temos tanta informação que ela já faz parte de nós. Vem quando é preciso. Vem porque faz parte.

 

Se fala de inconsciente, pergunto-lhe pelos seus sonhos. É capaz de desenhar sonhos?

Acontece-me sonhar com o problema em que estou embrenhado e com a solução; a maior parte das vezes são disparates, mas às vezes trazem uma ponta de solução. Lembro-me de um sonho em technicolor fantástico. Tem que ver com essa… como se chama a água do mar que invade a terra?, esse desastre tremendo?

 

Tsunami.

Exactamente. Eu estava em Vila do Conde, na rua à saída da ponte antiga. Olho para trás e não era o rio que estava lá, era o mar. O mar ergueu-se, e começou toda a gente a correr, amigos e amigas a subir a rampa. De repente apareceu um autocarro amarelo, que se atravessa na rua. E fica-se ali empancado, em terror.

 

Estava completamente encalacrado: entre a onda do mar e o autocarro amarelo.

Pode ter que ver com um espectáculo a que antes tinha assistido: um navio que encalhou no Castelo do Queijo e que se incendiou. Eu ia a passar de carro na avenida da Boavista e vi as chamas. Foi angustiante. Nessa altura somos auxiliados: acordamos. Julgo que me impressionou o sonho, formalmente, pela cor.

 

Vi desenhos seus. Em dois deles, auto-retratos, estava a cavalo e parecia o Dom Quixote. Num estava com uma espécie de punhal, no outro a mão fingia que segurava uma arma que não existia. Num deles o corpo estava nu, e havia nele uma certa sensualidade e impetuosidade.

Lembro-me desse desenho. É que tenho um amigo que anda muito bem a cavalo, e eu sou uma desgraça. Às vezes recebo piadas… Uma das reacções a essas piadas foi o desenho, eu e o cavalo, em glória!

 

O desenho como sublimação? Gostava de ter uma maior destreza física? Olhando para si, para a sua figura, não é uma criatura eminentemente física.

Não sou. Ainda joguei durante um tempo ténis (não havia perigo). Fiz ginástica. Depois parei com tudo. A prática do arquitecto não é muito saudável. Passamos uma parte da vida debruçados num desenho.

 

Noutro desenho aparece implicado no que se vê. Vê-se a cena que desenha e a sua mão a desenhar aquela cena.

Uma vez o arquitecto Távora falou-me de um desenho do paladium em que aparece a mão. “Você copiou isto?”. “Não, nem conhecia o desenho”. Mas se calhar vi-o. O desenhar, para um amador como eu, descontrai. Descontrai do trabalho do arquitecto, que é de grande concentração e exigência. O Alvar Aalto, que pintava, dizia que no desenvolvimento de um projecto, às vezes, havia um bloqueio; estava encravado. Deixava tudo e ia para casa pintar ou desenhar, sem pensar naquele problema. Às vezes, no que estava a fazer, vinha a ponta da meada da solução. Portanto, há uma conquista de espontaneidade e intuição que complementa o trabalho racional.

 

É uma pessoa intuitiva?

Inventiva, de certeza que não. No meu trabalho conta pouco a preocupação de inventar qualquer coisa nova. Está mais ligado à história das coisas. Por exemplo, se desenho uma cadeira gosto que uma cadeira pareça uma cadeira.

 

Gosta da familiaridade das formas, é isso?

Se desenho uma retrete, gosto que pareça uma retrete. Há retretes quadradas, cúbicas; acho que não é natural, não é a forma do corpo.

 

Porque é que sendo tão sensível ao que é familiar é tão desligado da casa onde vive? Não viveu nunca casa projectada por si.

Devo ser um péssimo cliente! 

 

Viveu a vida quase toda num apartamento da Rua da Alegria, que era a casa onde viveu com a sua mulher e os seus filhos.

Vivi lá para aí 40 anos. Só recentemente mudei. Porque mudei o escritório para aqui, onde estou com vários amigos. Achei que tinha de arranjar uma casa perto. Surgiu esta possibilidade, uma casa feita pelo Souto Moura, e comprei-a.

 

Souto Moura, de quem é amigo íntimo, vive no mesmo prédio. Como na sua infância, os próximos vivem todos perto uns dos outros.

Não é bem a mesma coisa. Às vezes passa uma semana que não o vejo!

 

Atendendo à sua vida pensei que ia dizer que se passava um mês sem o ver.

Não, isso não.

 

O que é que sentiu quando saiu da casa da Rua da Alegria?

Um enorme incómodo. Mudar de casa é uma das coisas terríficas da existência. Vamos acumulando coisas, a maior parte das quais não serve para nada. É muito difícil na hora de mudar, que é a oportunidade de dispensar todas as coisas inúteis, a gente desprender-se. Há coisas que tenho no armazém [do escritório], que não me interessa nada ter. Mas não consigo dar ou deitar fora. Há um agarramento grande. Há uma longa história que é difícil abandonar. É muito doloroso. Talvez por isso nunca fiz uma casa para mim. E também por dificuldades económicas. Até aos anos 80, a vida era difícil, era controladíssima.

 

Está a dizer que também fez as contas que se faziam na casa dos seus pais?

Ah, claro. Depois comecei a ter mais trabalho, e trabalho fora, e agora não me posso queixar de ter dificuldades económicas. Vivo confortavelmente. 

 

A sua vida parece uma fuga para a frente. Por causa da velocidade a que vive, viaja, projecta, faz conferências, visita obras, recebe prémios. O que é que o faz correr? E porque é que está sempre a correr?

É difícil escapar a tantas solicitações. Tento limitar o mais possível workshops, conferências. Mas há muitos casos em que não é possível dizer não. Mas toda essa actividade: acabo por gostar!

 

Há lendas a seu respeito: como a de ser um misantropo. Que vive a trabalhar e para trabalhar. Como se só existisse a sua obra.

Aqui, salvo as saídas, convivo todos os dias com 26 pessoas. Se fosse misantropo ser-me-ia insuportável a vida que levo. E tenho amigos, família. À noite fico em casa; televisão, copo de uísque. Outras vezes, estou com amigos.

 

Também dizem que é triste.

Muito riso pouco siso! [risos]

 

E dizem que o ícone consumiu a sua vida particular. Que já só é o grande arquitecto Siza.

Ou o horrível arquitecto Siza! – há quem diga.

 

Isso incomoda-o?

Não me incomoda profundamente, mas incomoda-me que essas lendas criem dificuldades. Como que deito árvores abaixo, que faço tudo branco, ou cinzento. Pode haver projectos que não se desenvolvem porque há campanhas contra. Juízos de valor: nem me incomoda nem deixa de incomodar.

 

Em algum momento foi inseguro?

Sou muitas vezes inseguro. Ainda sou. O arranque de um trabalho…, há sempre uma componente de medo.

 

Que medo? Medo que não seja uma coisa extraordinária?

Não. Medo de não fazer aquilo para que sou chamado – que é fazer bem. A insegurança é em grande medida o motor do pensamento, da pesquisa. Não encaro a insegurança como uma fraqueza, mas com um sentido de responsabilidade. Estar completamente seguro? Só quem estiver na ilusão e inconsciência.

 

Contaram-me que um dia, visitando uma obra, começou a matutar e disse: “Isto não está bem”. O seu interlocutor ficou atrapalhado e pegou nos papéis para saber se tinham executado mal. Mas concluiu que o que estava a dizer era que tinha pensado mal, antevisto mal. Ora, isto surpreende porque olhando para as suas obras, parece que já nascem perfeitas, acabadas. Gostava de saber como lida com o seu erro.

Procurando corrigi-lo – o que nem sempre é possível. O desenvolvimento seja do que for passa pela detecção de erros. O que leva ao aperfeiçoamento. 

 

Olhamos para o seu currículo e é uma sucessão assombrosa de prémios e obras. A sua cronologia pessoal é engolida por isso. Que cicatriz é que acha que deixa? Quando falarem no Siza Vieira daqui a 50 anos, que é que pensa que dirão?

Se calhar já nem se fala de Siza Vieira. Não nos podemos preocupar com isso. Para mim o que conta na obra de um arquitecto é a arquitectura que faz. Os prémios são muito agradáveis se vêm; mas são circunstâncias. O prémio depende de um júri, que pode ser maioritariamente de certa tendência ou de outra. Enche a pessoa de satisfação, orgulho e tal, mas não é um facto extraordinário.

 

Acha que pode não ficar na história da arquitectura?

A história da arquitectura não depende dos prémios. Pode haver transformação de conceitos que tornam irrelevantes esses prémios.

 

Mas passados 50 anos, continua a falar do Gropius e do Alvar Aalto. Não acha provável que daqui a 50 anos as pessoas vão ao Marco ver a sua igreja como se vai a Viena ver as obras do Otto Wagner?

Uma das questões que se levanta é: como estará a igreja do Marco daqui a 50 anos? Toda a obra do Alvar Aalvo está, na Finlândia, impecável. Eu tenho obras que estão irreconhecíveis. Depende do meio em que viveu e como evoluiu. Há obras enormes que desapareceram. Uma obra celebrada, como era o hotel no Japão do Frank Lloyd Wright, foi demolido!

 

Estou também a perguntar como lida com a ideia da morte, com o que fica de si depois dela.

O grande poeta Gomes Ferreira: perguntaram-lhe sobre a relação com a morte. “Não me importo nada. Mas na horinha vai ser uma grande vergonha.” O que está implícito é que na horinha vai ter medo… O que me incomoda é a ideia de ficar imobilizado, de ser uma carga para alguém, num estado lamentável. Agora há esse debate sobre a eutanásia: eu preferiria, se estivesse numa vida vegetal, que não fossem utilizados meios para prolongar uma situação que, já não é de agonia: é de inconsciência.

 

A questão é: o que é para si existir?

É existir em consciência. Senão, não é. Agora morrer?, morremos todos. Você está aí, fresca, no máximo da forma, mas também vai morrer… É desagradável, mas não há outra possibilidade. Não há outro futuro.

 

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Abril de 2009