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Anabela Mota Ribeiro

O dia em que conheci Chico Buarque

19.06.24

No dia em que conheci o Chico Buarque, ele vestia uma camisola azul. Pormenor insignificante, azul inesquecível. Recomeço: no dia em que conheci o Chico Buarque, ele tinha acabado de ler um artigo que eu tinha escrito sobre Budapeste.

Foi pouco depois dos meus anos, em Outubro. Chico, que eu admirava como se admira um deus grego, nunca tinha ido a Budapeste quando escreveu o livro que se chama, justamente, Budapeste, e que, no Brasil, tinha uma capa cor de mostarda. Desta vez, o pormenor da cor não é insignificante como o do azul da camisola. E já vão ver porquê.

Chico nunca tinha ido a Budapeste e eu nunca tinha ido a um concerto seu. Poucos dias antes do concerto em Lisboa, decidi oferecer-me de presente uma viagem a Budapeste e fui ler o seu livro para os banhos do Géllert (descrever os Géllert é um pormenor de máximo requinte, mas não cabe aqui). O livro tem uma construção elaborada, é muito inteligente, e pareceu-me caleidoscópico.

Quando me sentei a escrever, quis escrever sobre o livro de Chico, mas também devolver-lhe uma Budapeste sensorial e física que ele desconhecia. Um jogo de espelhos cruzados, uma teia labiríntica que ia bem com o imaginário do livro.

No espaço de uma semana, voltei de Budapeste, num domingo, publiquei o texto, num sábado, vi o concerto de Chico, numa segunda, e encontrei-o, numa terça.

Nessa terça feira, eu estava no hotel onde Chico se hospedava para entrevistar o seu baterista de sempre – mister Wilson das Neves – e Wilson já me tinha dito que ele é “o cara”. Eu não queria parecer uma menina histérica que segue os artistas do seu coração, mas trazia na carteira a minha edição brasileira, cor de mostarda, de “Budapeste”. Deve ter sido por isso que ele me identificou como a autora do texto que ele acabara de ler!

Mas antecipo-me... Chico desce o elevador e eu atravesso o lobby do hotel ao seu encontro. Gaguejava coisas como: sou jornalista, acabei de entrevistar o seu baterista, desculpe abordá-lo. Também tentei “bancar” a desprendida quando lhe disse que o meu negócio é o Brasil dos anos 50, da Bossa Nova. Eu devia era ter nascido em Copacabana nos anos 50, nos anois 60. E tentei dizer tudo o que me veio à cabeça para justificar o meu comportamento e o gesto, raro em mim, de pedir um autógrafo.

Quando lhe estendi o livro, disse-lhe que o tinha lido em Budapeste, e foi aí que ele me olhou com os seus olhos de uma cor intraduzível e perguntou: «Foi você que escreveu a matéria? Acabei de ler, agora mesmo, antes de descer».

Chico, o Chico, tinha acabado de ler um texto meu quando desceu o elevador e eu vi que ele usava uma camisola azul. Gosto de pensar nos nossos caminhos cruzados, entre Budapeste e Lisboa, entre as palavras escritas e a poesia que ele canta. No dia seguinte, voltei ao concerto. Pareceu-me que gostava mais dele. Até o nariz, que desfeia aquela figura apolínea, lhe dava humanidade. Mesmo assim, preferi continuar a olhá-lo como um deus grego.   

 

   

Escrito para o programa da Antena 1 "A História Devida" em 2007

 

 

Wilson das Neves

19.06.24

Quem é Wilson das Neves?

Consulte as fichas técnicas dos discos de Michel Legrand, Sarah Vaughan, Sylvia Telles. Pergunte a Ed Motta ou a Roberto Carlos. Pergunte a Paul Simon. Mister Wilson, (como lhe chamava Tom Jobim) é o maior baterista brasileiro do século XX.

Provavelmente, estas páginas são seriam suficientes para incluir a lista de gravações em que participou. «Fala aí um cara... Toquei». Os caras foram mais de 500, e aquele que é para ele “o cara”, Chico Buarque, apresenta-o em palco como “o melhor baterista de sempre” ou “o baterista do meu coração”. Tocam juntos há 27 anos.

Dia 4 regressa a Lisboa com a Orquestra Imperial, uma big band que reúne nomes como Moreno Veloso, Rodrigo Amarante (dos Los Hermanos) ou a actriz da Globo e também cantora Thalma de Freitas. Domenico Lancellotti, um dos fundadores da Orquestra, fala de Wilson como “um sábio que esbanja humildade e talento.”

O baile é na Fonte Luminosa, na véspera da implantação da República, com o colectivo português Real Combo Lisbonense. O negócio é dançar!

 

Como é que descobriu o samba?

Eu não descobri não, o samba é que me descobriu. As coisas é que escolhem a gente. A bateria sempre me fascinou. Nas escolas de música aprendia-se tudo em método americano. A bateria, o americano inventou para tocar a música dele, não para tocar samba. O brasileiro adaptou. Os instrumentos do samba são o pandeiro, o tamborim, o surdo. Fui criado vendo desfile de escola de samba. Minha mãe era baiana, desfilava na escola. A gente já vem naquilo... Meu pai, Flamengo, eu tinha que ser Flamengo. Minha mãe, Império Serrano, eu tinha que ser Império. Você muda de roupa, de mulher, de automóvel, mas de escola de samba, não, é até morrer.

 

Império Serrano é a escola de samba do bairro Madureira. É o bairro da sua infância?

Não é preciso morar no bairro para ser da escola, é só ser aficcionado. Eu nasci no bairro da Glória, no centro do Rio. Depois mudei-me para S. Cristovão, um bairro de subúrbio. O meu pai trabalhava na [companhia] telefónica, e a minha mãe era doméstica. Tenho três irmãos: dois são bateristas, a minha irmã não é musicista. Eu era obstinado. Queria tocar bateria e fui atrás. Fui estudando, fui indo, não cheguei a lugar nenhum, mas ‘tou tentando. Sou profissional há 56 anos. Tenho 74, não parece, não?

 

Não! Um dos seus professores foi Moacir Santos.

Moacir Santos não tem que falar: ele é o tudo. Era um músico extraordinário, professor e amigo, me chamou para tocar com ele. É uma honra, a gente tocar com o professor. Conhece o [álbum] «Coisas»?

 

Claro.

Fui eu que gravei, tocando bateria. No Brasil todo o mundo tem ele como ídolo. Tanto como instrumentista, como arranjador, como saber música... Sabia tudo. Jobim, também. Gravei muito com ele, toquei com ele em show. Gravei com qualquer um que você fale aí... Fala!

 

Chico Buarque, claro. Vinícius, Caetano...

Gil, Bethania, Gal, Elis Regina, Ney Matogrosso, Zeca Pagodinho, Paul Simon, Sarah Vaughan, Paul Mauriat. Chico é um caso à parte, não tem comparação. Ele é “o cara”! O show dele emociona. Outros estão querendo ser, e ele é. É, mas não se acha. Ele acha que é igual a todo o mundo. Aí é que ‘tá a diferença. E segundo o samba, “quem acha vive se perdendo”. Não ache nada, deixe os outros achar... Eu não me acho nada. Sou mais um.

 

Tem-se em tão pouca conta? Toda gente diz que é o melhor baterista do Brasil do século XX.

Sei que tem tanta gente boa, que eu conheço... Vejo nos outros qualidades que não tenho. Não inventei nada, apanhei no ar. Não é falsa modéstia, é assim mesmo: a importância que me dão a mim, não é a mim, é ao que faço. A gente está sempre seguindo o caminho dos bons, imitando os bons.

 

Os músicos que fazem a síntese entre a velha e a jovem guarda apontam-no como o melhor baterista. Toca com a Orquestra Imperial.

Mas não é tudo isso não... Os meninos da Orquestra me põem numa “vitrine” – que nem “vitrine” de armazém de roupa. Eles estão me mostrando, me vendendo, estão me colocando na frente do palco. Sou um baterista essencialmente brasileiro. Toco ritmo dos outros por necessidade.

 

Qual é o seu ritmo?

É o samba. Como explicar? Criei a minha maneira de tocar ouvindo os outros. É que nem na hora do tempero da comida: bota salsa, bota mangericão, já ficou diferente. Meu negócio é esse: ouvindo os outros, para achar a minha [maneira de tocar].

 

Que coisas ouvia quando era pequeno e o fizeram querer ser músico?

Ouvia tudo, na rádio. Tango, canções francesas, música portuguesa... Amália Rodrigues, maravilhosa, infelizmente não toquei com ela, que ela não usava bateria! Quando uma pessoa aprende música sabe que a música se compõe de ritmo, harmonia e melodia. Se não tem as três, não é música. Bem tocado, direito, afinado, bonito, gosto de qualquer instrumento. Música é a voz da alma. É a alma da gente que fala.

 

Chico Buarque nota que, muitas vezes, o teor da letra e o ritmo da música não coincidem. Por exemplo, num samba da Mangueira, muito festivo, a letra diz: «Não saio do miserê, ai, ai meu Deus, tenha pena de mim»...

É a maneira de cada um cantar o seu sofrimento, a sua desdita. Cartola [ídolo da Mangueira]: um poeta daqueles lavava carro na rua! Até descobrirem ele. Um sujeito que morava no morro. Canta aí tua musiquinha... Ninguém acreditava [no talente dele]. Depois, não é bem assim. Cartola é um dos caras.

 

No início da carreira, fez parte da Orquestra Nacional e de outras orquestras, que acompanhavam os grandes cantores, como Elizete Cardoso. Que memórias tem desse tempo?

Quando fui para a escola de música já era para tocar em orquestras. Toquei em orquestra de rádio, de baile, fiz concurso para a sinfónica do teatro municipal. Fiquei três meses lá. Não me pagavam e larguei. Não podia tocar a “Tosca” do Puccini duro!, que me perdoe o Puccini.

 

Lamenta não ter prosseguido essa via?

Não me arrependi. Se estivesse lá, estava neurasténico, é sempre a mesma coisa; e eu sou cigano, gosto de tocar por aí. O mundo que eu conheço... Já toquei em Moscovo, Japão, na Europa quase toda, Estados Unidos, Cuba. Ouvia tudo o que possa imaginar, mesmo sem entender o idioma. O que me importava era a música, queria descobrir os ritmos. Ouvia no rádio, não tinha vitrola [gira-discos].

 

Ouvia sozinho? Era um rapaz solitário?

Não, não. Ia muito a bailes. Anos 50, bailes de terno e gravata. Aí, conheci um baterista chamado Bituca, que era o meu ídolo. Como eu não tinha dinheiro para entrar no baile, ajudava-o a levar o instrumento e ficava lá dentro. Dançando. Quando acabava o baile ajudava a desmontar e ia embora. Até que um dia ele perguntou: «Você não gosta de bateria?». Me levou para a escola. Então, eu ia no baile, fazia na mesma, só que, em vez de dançar, ficava sentado no pé dele, acompanhando a partitura, «Onde é que está?». Foi assim que aprendi.

 

Como é que deu o salto para a prática?

Na hora em que a orquestra ia descansar, no lanche, eu ficava tocando um sambinha-canção. Depois, ele saiu da orquestra, e eu fiquei. Bituca é que me inventou! Tudo a que não podia ir, mandava me chamar. Quando ele tinha dois trabalhos, «Chama o Wilson». «Vê lá se eu posso tocar...», «Pode, senão não mandava chamar». Fui indo, indo, indo, até agora, em que estou aqui com você falando de bateria.

 

Nas orquestras da rádio tocava o quê?

Samba-canção, bolero, tango, fox-trot, dependendo do cantor. Elizete, trabalhei 20 anos com ela.

 

Elizete era uma espécie de Amália do Brasil.

Eram amigas. Era “a divina”, “a iluminada”, “a enluarada” – tinha esses títulos todos. Ela ia para minha casa cozinhar para mim, se você quer saber...

 

E porquê?

Porque era minha amiga, porque gostava de mim! Você ia na minha casa e ela estava de pano na cabeça, de “shorts”, fazendo comida. A gente contava anedota, falava da vida. O Chico, o Buarque, vai na minha casa. De vez em quando, se faz um almoço lá.

 

Quando João Gilberto apareceu com “Chega de Saudade”, em 1958, foi uma grande revolução. Sentiu isso?

Era uma nova maneira de cantar, mais moderna... Mas, no fundo, revolução nada! Isso é rótulo para vender. Cerveja: cada um bota o rótulo que quer, mas não é tudo cerveja? Não tinha nada de mais: é samba! Gravei com João Gilberto, com Tom Jobim. Mas eu tocava do mesmo jeito.

 

Nunca pensou ir para os Estados Unidos e fazer carreira lá, como Sérgio Mendes, Moacir Santos ou Tom Jobim?

Não sou comunista, sou brasileiro. Mas não gosto do sistema deles [americanos]. Vou lá, já cantei, já toquei, mas não é minha praia. São muito prepotentes. São donos do mundo, menos do Wilson das Neves! Jobim ficou lá, mas com saudades da cerveja brasileira. «Ó Mister Wilson – ele me chamava de Mister Wilson –, nos Estados Unidos é muito bom, mas não tem uísque falsificado! Ninguém põe água no leite!». É uma forma de dizer as falcatruas que se fazem...

 

Quando tocou com Eumir Deodato (que depois foi produtor da Björk) ou Michel Legrand, foi no Brasil, e não em temporadas nos Estados Unidos?

O Eumir, foi no Brasil, com Os Catedráticos e Os Gatos, antes de ele ir para os Estados Unidos. O Michel Legrand fez uma temporada com a orquestra brasileira, e levou os arranjos para música de filmes. Era para o Bituca, esse meu ídolo, fazer; ele não quis, «Chama o Wilson». Moacir vivia nos Estados Unidos, mas estava sempre indo para o Brasil tomar a cachacinha dele...

 

Bebia-se muito e fumava-se muita maconha...

Quando comecei, não tinha. Nem ouvia falar. O charme do músico era beber uísque, fumar cigarro americano, de terno e gravata. Maconha era a droga da favela e a cocaína era do asfalto.

 

Gravou discos instrumentais em 68, 69, «Wilson das Neves e o seu conjunto – Juventude 2000» e «Som Quente é o das Neves». Mais recentemente gravou composições suas e tem um disco novo: “P’ra gente fazer mais um samba”.

Em 1997 me convidaram para gravar um disco instrumental. Não quis. Já gravei e não acontece nada! Vivo no Brasil e ninguém conhece os meus discos. Vou no Japão e todo o mundo tem o meu disco.

 

Os seus vinis, de prensagem original, custam uma fortuna.

Eu sei, e nunca recebi um tostão! Mas deixa na mão na Deus. Não corro atrás de dinheiro. Tenho tudo o que quero. Ninguém dá atenção a disco instrumental, só músico. O povão, não toma conhecimento.

 

O que é que o fez gravar um disco com músicas suas, onde também canta?

Tinha as minhas músicas, inclusive com Chico, com João Bosco. A minha ideia não era cantar. Mas eles falaram: «Vamos gravar, que músicas boas!». Foi assim que cantei. Com 60 anos fui revelação de sambista! Incoerência. Ganhei Prémio Sharp, fui indicado para o Grammy Latino. No disco novo, são composições minhas e tudo é cantado. Vamos tocar no concerto de Lisboa.

 

Falamos a uns dias das eleições no Brasil. Vai votar?

Se puder, voto na embaixada do Brasil em Lisboa. Tomara que as pessoas escolham a pessoa certa para continuar o trabalho, o progresso. Há oito anos que a gente vem crescendo. O país está rico, está emprestando dinheiro! Mas o povo, uma parte do povo, continua pobre. Outra parte, ‘tá classe média. Todo o mundo tem geladeira, automóvel. Vou votar no candidato do Lula, lógico. Quem chegou antes, sabe como era e vê como está. Se me decepcionar, é outra história.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010

 

 

Beatriz Batarda e Luís Miguel Cintra

16.06.24

“Qual é a qualidade que mais aprecio num actor? A generosidade. Consiste no gosto de se expor, correr riscos, estar aberto a outras pessoas. É precisar deixar que lhe aconteçam coisas. Quando partimos para a profissão com a intenção de ser admirados, não estamos abertos à surpresa, à curiosidade, à generosidade da profissão e da vida”. Luís Miguel Cintra não disse isto a propósito de Beatriz Batarda, mas poderia ser.

Os dois encontram-se em Setembro, na Cornucópia, na peça encenada por ele e protagonizada por ela: “Ifigénia na Táurida”, de Goethe.

Batarda entrega-se com generosidade. Cintra está disposto a correr riscos. Mais do que tudo, é um reencontro de dois cúmplices.   

 

Porque é que decidiu encenar “Ifigénia na Táurida”?

LMC - Por sugestão do Frederico Lourenço, que fez a recriação poética do texto. Em Goethe, sente-se um profundo repensar do que é o Ser humano, o que é a Liberdade, o que são as relações do Homens uns com os outros, os Valores. Isso faz do texto uma obra apaixonante.

 

Algures na peça pode ler-se: Ifigénia teve a ousadia de determinar o seu destino.

LMC – Era um papel ideal para a Beatriz. Há nela uma aparente fragilidade física que convém à Ifigénia, mas sobretudo um domínio das nuances da alma humana e da representação indispensáveis à personagem. Na peça, tudo assenta no que se passa na alma de cinco personagens, e sobretudo em Ifigénia. Não há grandes façanhas de encenação, cenografia, etc. É um espectáculo de câmara. A única ideia que eu tinha era: despojamento máximo, verdade total na relação com o texto, ausência de exposição [do actor].

 

Porque é que Ifigénia é desafiante para si?

BB – Certas personagens aparecem na minha vida na altura certa. O que me tem permitido fazer uma viagem de descoberta e crescimento, que não acabou ainda. Aconteceram muitas coisas no último ano na minha relação com a profissão. Aconteceu ao nível da técnica, do exorcizar do meu narcisismo. Cheguei a um momento em que aceito as minhas fragilidades. É bom que a técnica seja dominada, mas ela é apenas um instrumento.

 

A ideia é: dominar a técnica para a seguir a esquecer?

BB - Dominar a técnica torna-se o objecto da nossa obsessão e do nosso esforço. Fica uma coisa muito cerebral, fechada sobre o domínio do texto, da interpretação, da relação com o público. Tem um efeito contrário: contribui para a minha desumanização. Porque o público não se reconhece, não reconhece a sua própria humanidade. Faz comentários à habilidade da actriz, ao fogo-de-artifício, mas não sente nada. Quando percebi que isso me estava a acontecer fiquei triste, porque não é essa a minha viagem.

 

Pode explicar essa constatação, esse processo?

BB – Começou com “O Construtor Solness”, depois “De Homem para Homem”, e finalmente com “A Menina Júlia”. Houve um mergulho que foi um equívoco. Quando surge uma peça cujo tema é: quem é que domina?, os deuses, o destino, nós próprios?, a quem cabe a decisão?…, isso tem um efeito redentor na minha relação com a representação. Como sacerdotisa de Diana [na peça de Goethe], tenho de entrar em contacto com a minha humildade, e assim descobrir a minha humanidade.   

 

Quando é que começa a vossa relação?

LMC – A Beatriz esteve na Cornucópia há muitos anos. Eu funcionava como um protector. Sentia uma diferença de idades muito grande; era como se estivesse a tomar conta dela. Depois, foi-se embora, estudar, fazer outras coisas. O “Solness” marcou o regresso, e senti o prazer de contracenar com uma pessoa agora adulta. Estávamos em situação de igualdade. Há uma evolução da minha relação com ela através do trabalho, dos nossos encontros no trabalho.

 

Quando é que o Luís Miguel deixou de ser “a referência” para passar a ser um igual? Costuma dizer que ele é o culpado disto tudo…

BB – O Luís Miguel há-de ser sempre o culpado… [risos] Continua a ser o mesmo para mim. O nosso percurso tem sido uma permanente confirmação. No nosso primeiro encontro eu era muito jovem, tinha 17 anos. Fiz de filha dele, várias vezes seguidas. Numa altura em que também perdi o meu padrasto. Essas coisas todas misturam-se…

 

Ele apareceu como um pai putativo? Artístico.

BB – Sim, um pai da idade adulta. Que não tem a ver com o sangue e a raiz, mas com aquilo que escolhemos. Tem a ver com reconhecimento, identificação, admiração. Com o que poderia ser um percurso para mim. É verdade que em todas as escolhas que fiz, e que faço, profissionalmente, penso no que me faz sentido a mim, mas penso sempre no que o Luís Miguel diria. Apesar de não ter trabalhado cá durante dez anos, a relação não se quebrou. O “Solness” foi muito importante porque o Luís Miguel permitiu-me que eu fosse adulta. [LMC ri]. Só me foi possível contracenar com ele – e só Deus sabe as dores que tive no meu diafragma – porque o Luís Miguel me deu essa autorização.

 

É uma maneira de ele lhe dizer que tem confiança em si?

BB – É uma maneira de dizer: reconheço-te.

LMC – Há muitas coisas que facilitam o nosso entendimento. Há referências culturais e um passado comuns, há amizades de família.

BB – A nossa relação é uma escolha.

 

Como é que tudo começou?

LMC – Conheci a Beatriz como filha do Eduardo Batarda e da Tchou. Reencontrei-a num filme do Manoel de Oliveira. No “Vale Abraão”, superficialmente. N’“A Caixa”, todos os dias. E disse: “Mas esta menina é uma actriz!, tenho a certeza”. Pelo prazer da contracena. Foi daí que saltou o convite para integrar a companhia [Cornucópia]. Além de que era linda!, e continua a ser. A primeira coisa que fez connosco foi o “Conto de Inverno”; toda a gente dizia que era muito bonita mas que nunca poderia ser actriz porque não tinha voz nem presença! Ela deu-me o prazer de os dois nos podermos vingar dessas pessoas. Houve ali uma teimosia…, eu sabia que tinha razão.

 

Que coisa foi essa que reconheceu na Beatriz, além do prazer na contracena? O que respondia aos outros quando lhe diziam que ela não poderia ser actriz?

LMC – Dizia: “Pode, pode, isso não tem importância nenhuma. A voz está pouco desenvolvida, tem falta de segurança. Mas o principal para se reconhecer um actor não é isso. Não são as habilitações técnicas. Isso conquista-se. O principal está no fundo da pessoa.

BB – Tem a ver com a alma.

LMC – O principal é esse prazer de jogar com os outros, provocar, receber resposta. É arranjar maneiras de continuar a fazer o que as crianças fazem – brincar umas com as outras. 

 

Não por acaso, em inglês, brincar, jogar e representar dizem-se da mesma maneira: play.

BB – Hoje em dia dou aulas [na Act] e confronto-me diariamente com isso: como é que se reconhece um potencial actor? A questão do talento pode ser um enorme equívoco. O que parece ser um talento nato, à vontade com o seu corpo, expansivo, não ter timidez a projectar a voz…, isso não faz um actor. Acontece-me ver miúdos reservados, tímidos, mas densos como seres humanos. Intuitivamente chamam-me mais a atenção esses alunos. 

 

Quando foi estudar para Londres, mais do que tudo, teve consciência de si própria, das suas ferramentas, potencialidades?

BB – Sei lá!, aconteceu tanta coisa. Só a experiência de cortar com os nossos laços, os fantasmas, o ser obrigada a sair do casulo burguês para ser confrontada com o mundo, esse embate levanta tantas questões sobre a nossa identidade... Tive medo. Pensei em voltar – como toda a gente. Só que obriguei-me a assumir a escolha que tinha feito. Estar ali tinha sido uma escolha.

 

Os vossos processos de trabalho são semelhantes?

LMC – Eu não consigo representar enquanto não tiver a certeza absoluta do que lá está escrito, depois de todas as dúvidas estarem solucionadas. Desespero os colegas, estou até à última sem saber o texto bem. É como se precisasse de muito tempo para pensar. A Beatriz precisa de um compromisso emotivo imediato. E depois pensa sobre ele. Pouco depois de sairmos da mesa [de leitura], eu vi a cara da Ifigénia! – não era a cara da Beatriz. Depois trabalha, trabalha, mas o compromisso está lá. Significa também que se atira de cabeça, sem defesas!

BB – Pareço uma maluquinha! [risos] Funciono por camadas. Como um óleo que vamos pintando. Para chegar ao efeito do despojamento. 

 

 

Publicado originalmente na Revista Máxima em 2009

 

 

Pedro Mexia

16.06.24

Pedro Mexia já não é aquele que adopta o verso de Camões “Foi-me tão cedo a luz do dia escura” como primeira linha de um auto-retrato. O poema vai para 20 anos. Entretanto acabou o curso de Direito (alguém o imagina num escritório?), apresentou nos blogues o personagem Pedro Mexia (o público não compreende porque razão é auto-depreciativo), passou a escrever nos jornais crónicas e crítica literária. Às vezes, também confissões sobre o medo e a angústia. Edita em Menos por Menos cem poemas escolhidos dos seis livros de poesia que lançou até ao momento. O primeiro é de 1999, o último de 2007. Ele acha que ninguém os leu.

  

Quando é que começou a envelhecer?

Não me lembro de ser novo. Não tenho nenhuma memória de me sentir na força da vida, ou no vigor da idade, ou nos anos dourados. Mesmo quando era adolescente. Nesse sentido, sempre fui bastante velho. Já fui mais velho do que sou hoje. Sobretudo porque não tinha sentido de humor. Ou, pelo menos, hoje acho que não tinha sentido de humor. Isso ajudava a que fosse mais pesada a minha maneira de viver as coisas. Ter ganho uma maior ironia e humor atenuou isso.

 

E cria uma certa distância, uma membrana.

Sim. Isso não aconteceu por uma razão estritamente voluntária. Tem a ver com os autores que leio, os de língua inglesa, e os ingleses em particular, nos quais a auto-ironia – um elemento não-óbvio na cultura portuguesa – está muito presente. Senti isso como muito natural para mim, para o meu discurso. Coincide com o momento em que comecei a escrever crónicas e o blogue, 2002. Essa dimensão irónica é sucessivamente referida e colada a mim, e bem. Eu era seriíssimo no pior sentido da palavra quando tinha 20 anos.

 

Levava-se muito a sério?

Não era tanto levar-me muito a sério. Era levar as coisas muito a sério. Era tudo muito pesado.

 

Há em alguns poemas um fundo nostálgico. Em especial quando faz uma dissecação dos retratos de família, de memórias. Identifica-se e incorpora-se nesses retratos, como se fosse também aqueles que evoca. Existiu um tempo em que se sentiu o menino desta cadeia familiar?

Há um livro que acho importante no percurso desses seis livros; hesito em dizer se é o melhor ou não, nem me cabe a mim dizê-lo. Chama-se Em Memória (2000). Concentra os poemas sobre a família e sobre a memória, enquanto mecanismo, identidade. Foram escritos depois da morte da minha avó, em 1993. São, portanto, muito anteriores à publicação. Significou uma espécie de apocalipse familiar. Era na casa dos meus avós – o meu avô já tinha morrido – que a família se reunia no Natal, na Páscoa, essas coisas. A morte da minha avó acabou por desencadear uma reflexão sobre a família e o deslaçamento que poderia daí [resultar].

Eu estou sempre no retrato. Embora não tenha muitas memórias de infância, (aliás, tenho muito má memória), tive uma infância muito feliz e um começo de adolescência bastante feliz. Esses anos familiares, vejo-os com nostalgia. A perda iminente dessa correia, desse legado foi traumática. Alguns poemas são até violentos. Depois não aconteceu exactamente assim. As relações mudam de natureza, as pessoas encontram formas de relacionamento diferentes.

 

Esse tempo da infância e do começo da adolescência parece ser anterior à cicatriz. Nesse tempo era novo.

Era criança. Eu fui criança. Não tenho é noção de ter sido jovem. Saltei de criança para velho muito rapidamente. Não velho. Mas mais velho do que sou. Nesses anos, as minhas memórias são boas e não creio que sentisse um desfasamento [em relação à minha idade]. Continuo a ser uma pessoa introvertida, pouco social, et cetera. Já era na altura. Claro que não formulava as coisas nestes termos, mas apesar de tudo estava mais integrado.

 

Não havia nem medo nem angústia, que são palavras recorrentes do seu discurso. E palavras essenciais numa das suas autoras de eleição, Agustina. Não por acaso organizou e prefaciou os ensaios de Contemplação Carinhosa da Angústia. Um dos aforismos mais famosos de Agustina: “Nasci adulta, morrerei criança”. Parece fazer o movimento contrário…

Que é o movimento natural da espécie. Não é um movimento unívoco. Em três ou quatro momento sinto que me tornei mais velho ou mais novo do que era antes. O livro não tem nenhum poema posterior a 2007. Há um hiato sobre o qual não escrevi. Isto não interessa nada ao leitor. Interessa-me a mim, enquanto organização, até mental, da minha vida através dos poemas. O livro acompanha este percurso. Não de uma forma cronológica. Progride por avanços e recuos.

 

No poema Avó Leonor, há versos sobre ela: “… sabendo tudo, sofrendo tudo, como se fosse um alimento. (…) … Essa mistura de uma aceitação cristã, de uma nobreza que não mostra o que vai na alma”. E isto: “um coração atento e em tumulto”. Podiam ser sobre si?

Não sei bem. Haverá similitudes. A minha avó é retratada com fidelidade como uma pessoa muito reservada, fechada. Eu sou muito reservado e fechado pessoalmente, mas no que escrevo sou muito confessional. 

 

Mas esse não é o personagem Pedro Mexia, que criou, e que lhe permite relacionar-se com muitos?

As regras que valem para as relações sociais não valem necessariamente para a escrita daquilo que presumo ser literatura. E assim como dificilmente teria conversas íntimas com alguém que não fosse do meu círculo de amigos mais próximo, na literatura, naquilo a que insisto em chamar literatura – boa ou má – é o contrário. Não escrever de forma intimista seria batota em relação ao que me interessa na escrita. Interessa-me falar do medo e da angústia. Não só, mas para pegar nessas duas palavras. O único cuidado que é preciso é eliminar tudo aquilo que possa ser informativo e que constitua bisbilhotice. Por respeito pelas pessoas sobre as quais se escreve. Mesmo as coisas obscenamente pessoais que escrevi, ninguém, ao ler aquilo, saberá sobre quem é. Não há nenhuma razão para que as regras [a observar na vida social e na escrita] sejam as mesmas. Daí tanta gente ficar surpreendida, perplexa, quando encontra um escritor que é muito diferente daquilo que ele escreveu. Isso é, para mim, uma ideia banal.

 

Mas há um personagem Pedro Mexia.

Se não criarmos algo que se pareça com um personagem quando somos figuras públicas, quando escrevemos no espaço público, somos devorados. Não podemos ser 100% nós mesmos. Há um fenómeno de distanciação. É verdade que nos emails que recebo, as pessoas (amigos e desconhecidos), sentem-se incomodadas com a possibilidade de aquilo poder não ser uma personagem. Por exemplo, incomoda muito que escreva recorrentemente sobre o tema do fracasso. Também para essas pessoas, é mais confortável dizer que é ficção, que é um boneco. Eu não me sinto obrigado a dizer o que é ficção e o que não é.

 

É uma das regras da literatura.

É. Outra coisa que incomodava muito as pessoas (agora nem tanto, mas quando escrevia crónicas mais pessoais) era o tom auto-depreciativo. É um género de que gosto muito.

 

Há imensas coisas que diz de si próprio no livro, ou que julgamos que são de si, que não são propriamente abonatórias. “Destroço”. Fala sobre o seu corpo num poema que tem por título Ferro-Velho. Num dos primeiros poemas fala de um tronco decepado; a seguir não sabemos se o tronco vai ser usado como jangada ou caixão. Nesta fase, há muitos poemas com referência a árvores.

Nos poemas familiares, as árvores representam o campo. Mesmo na experiência urbana, a mim, que não sou um amante da natureza, as árvores tendem a chamar a atenção. Tenho que ir ler o dicionário de símbolos quando chegar a casa. Nesse poema, não pensei nisso. O poema nasceu da experiência concreta de ver uma árvore a ser transplantada para o contexto urbano. Claro que pode ter todas as leituras alegóricas, mas não diria que se trata do corpo.

 

Do seu corpo. De um “imenso totem decepado”, como está em Sinal.

Admito a leitura, mas nunca pensei nisso dessa maneira. Como em todos os poemas: a distância entre a intenção que se teve ao escrevê-lo e a leitura possível é enorme.

 

Isto a propósito das coisas auto-depreciativas que diz de si nos poemas.

Nos poemas também? Mais nas crónicas e nos blogues. 

 

Nos poemas aparece uma auto-contemplação desesperançada, rasgada. Menos irónica e mais sofrida.

Sim. Por razões que não sei exactamente explicar, e que admito que tenha a ver com uma certa (a palavra é má…) sacralização da poesia, refreio-me mais no uso da ironia. Embora exista uma espécie de ironia, muito contida, nalguns poemas. Alguns poemas, pela situação que descrevem ou encenam, são mais densos, mais trágicos. No livro sobre Lisboa (Eliot e Outras Observações, 2003) há mais anotações irónicas sobre a cidade e os comportamentos.

 

Há dois poemas terríveis, sem sombra de ironia, no livro de 2007, Senhor Fantasma. O Auto-retrato com Versos de Camões e A Esperança entre as Urtigas. O título do segundo já diz quase tudo.

São poemas do começo dos anos 90, recuperados no livro de 2007. O excesso de pathos cria um efeito contrário ao que se pretende, poeticamente não é interessante. Mas nalguns momentos não há como fugir-lhe. Não há ironia nenhuma no livro Avalanche (2001), o dos poemas de amor. São poemas mais ou menos escritos em directo. Não tinham aquela coisa que o Wordsworth recomendava: as emoções recordadas na tranquilidade. Talvez seja a maneira ideal de escrever poesia. O investimento biográfico estraga os poemas. Tenho a noção de que há poemas que considero muito importantes mas que não são interessantes, em termos de objecto verbal. Quando se escreve sobre acontecimentos – o Drummond de Andrade recomendava que não se escrevesse sobre acontecimentos – a distância protege, do ponto de vista literário. Os poemas do Avalanche são o contrário do Em Memória. São escritos no momento.    

 

Ainda o incómodo que os leitores sentem quando faz comentários auto-depreciativos, ou escreve sobre o fracasso…

Mas esse incómodo é em relação à prosa. A poesia, ninguém leu.

 

A audiência do Pedro Mexia-cronista fica de fora da poesia?

Completamente. Não é por ser eu. Muito pouca gente lê poesia. Há muita gente que segue o que escrevo e que sabe vagamente que escrevo poesia. Esta selecção é publicada, em parte, porque dos seis livros que a compõem, quatro são praticamente impossíveis de encontrar. Mas tenho a noção que, de tudo o que fiz, é o mais obscuro.

 

Fala do “amor intransitivo e inconfessável”. Parece uma condição dos seus amores.

É uma expressão oxímora. Os poemas do Avalanche são bastante transitivos e confessáveis! [riso]

 

É um verso do poema Bad Songs.

É sobre as paixonetas do liceu, que não são nada, não têm sequer espessura. Puras fantasias. Intransitivos e inconfessáveis, sim. Ao contrário dos poemas da família, que incluem um grande elenco, e dos da cidade, que incluem desconhecidos, nos poemas do Avalanche só existem duas pessoas. Uma coisa reincidente, sempre que falo da temática amorosa, é que é uma temática totalmente não-social. Não existe o mundo. É bastante transitivo, mesmo que seja, como acontece na maioria desses casos, infeliz.

 

Existe uma relação. O que nem sempre acontece nos poemas de outros livros.

Nos poemas sobre Lisboa, é inquietante o facto de haver tão poucas relações. As pessoas relacionam-se por razões práticas, utilitárias. É uma visão da vida urbana desolada.

 

Nesses poemas, existe você, os intermináveis domingos à tarde e os terraços vazios.

Exactamente. No Avalanche uso o “tu”, o poema é dirigido a alguém. São os poemas mais relacionais numa poesia que não é muito relacional. 

 

Um par amoroso que convoca: Paolo e Francesca. Amantes adúlteros da Divina Comédia. Porquê este par?

Tem a ver com uma ideia de retribuição metafísica a que eles são sujeitos. Como têm um amor tempestuoso em vida, no outro mundo têm um castigo e uma recompensa misturados. Por um lado estão juntos, abraçados, mas no meio de um vórtice. Estão num permanente turbilhão. A ideia de que há um castigo e uma recompensa, juntos, no amor, interessou-me quando li a Divina Comédia.

 

Linda visão que tem do amor. (E isto é uma provocação…)

Já lá vou. Tendemos a arrumar muito bem o castigo e a recompensa. O amor, tenho mais dificuldade em arrumá-lo numa dessas categorias. A minha experiência do amor é a de que é castigo e recompensa ao mesmo tempo. A minha visão do amor é como a de quase tudo: por mais que conceptualizemos, nasce da nossa experiência. Aquele verso do Camões: “Segundo o amor tiverdes, tereis o entendimento dos meus versos”. Como nunca tive uma visão lúdica do amor – tenho uma visão, não necessariamente trágica, mas muito séria – não consigo encará-lo de um modo mais leve.

 

Agora parece Kierkegaard a falar de Regina Olsen.

Muito obrigado!, há muito tempo que não tinha um elogio desses. O Kierkegaard é um dos autores que mais leio, de que mais gosto. A maneira terrível como fala do amor… Uma categoria que escapa ao mundano, ao trivial – sempre me reconheci nisso. Não acho que seja um tema social. Por isso há uma distância muito grande entre todos os temas da vida em sociedade e o amor (que são duas pessoas abraçadas numa espiral, na eternidade).

 

É mesmo verdade que escreveu num blogue que uma mulher que gostasse de si não era digna de ser amada?

É possível, eu já escrevi coisas bastante palermas. Essa frase, que não sei a que contexto pertence, tem um carácter lúdico. Claramente não me estou a referir ao amor. Admito que apareça a tal ideia da personagem. Há muitas coisas que escrevo que são frases de efeito. Essa é uma frase para chamar a atenção. Não tem a ver com isto de que estamos a falar.

 

Outro par da Divina Comédia, Dante e Beatriz, inspira-o? 

Sim, mas não foi desses que falei. Sempre me pareceu um par amoroso, ainda que no contexto bíblico não seja um par amoroso, a mulher de Ló, que se transforma em sal, olhando para trás. É verdade que tendo a transformar todos os pares, homem e mulher, em pares amorosos.

 

Obsessão. É uma flor de obsessão, que era como Nelson Rodrigues se chamava.

Outra grande referência para mim. Com todas as distâncias tropicais. Há uma presença muito maior da sexualidade nas coisas que ele escreve. Eu quase só falo da sexualidade em registo irónico.

 

Usa num poema a expressão “foda kitsch”. Muito inesperada.

É verdade. Não é um dos meus temas, na poesia. Na prosa é, enquanto observador. É um tema divertido porque é o grande impulso por detrás daquilo que as pessoas fazem. Sou um freudiano de estrita observância.

 

Num dos poemas usa uma expressão de Dante citada por Baudelaire: vita nuova. Já antes, o nome de uma das suas crónicas remetia para o spleen de Baudelaire. Surpreende quando sabemos que é um autor de filiação anglo-saxónica.

O meu universo estilístico é muito anglo-saxónico. Mas o Baudelaire é uma óbvia referência para quem quer escrever sobre a colmeia da cidade e a vida contemporânea. Tem essa personagem do flâneur – a pessoa que passa e que é um observador. Mas o que escrevo, do ponto de vista formal, não tem nada a ver com a poesia do Baudelaire. 

 

Outro autor que aparece e que é um dos seus preferidos: Tchekov. Esse poema chama-se, com ironia, Futuro Radioso.

A imagem central da peça O Cerejal é a imagem final, do cerejal a ser abatido.

 

Outra árvore a ser cortada.

Sim. Na peça significa o fim de uma época, de uma certa ordem social. Nesse poema significa o fim de uma família. Cortar aquilo que lá esteve desde sempre. Num certo sentido, quase todos os poemas são sobre uma coisa que acabou. Há muito poucos poemas sobre coisas que estão a começar. Essencialmente o que faço são elegias. Nem todos os poemas são episódios auto-biográficos, embora seja todos biográficos. Como não tenho imaginação, é uma transposição de coisas que vi, ouvi, conheci. Tenho dificuldade em criar do nada. Por isso é que não escrevo ficção.

 

Como é que concilia essa desesperança, essa ausência de futuro radioso, com o seu catolicismo?

É a pergunta que mais me fazem. São horizontes diferentes. Não sou niilista, não acho que a vida não tenha sentido, que tudo seja arbitrário. Acredito num sentido da existência que o cristianismo dá. Mas o horizonte do cristianismo ultrapassa o limite da nossa existência física, tal como a conhecemos. Projecta-nos para uma realidade sobre a qual não temos meio de falar. Mesmo quem acredita na eternidade, ninguém sabe o que é isso. Escapa à capacidade de verbalizar. O catolicismo existe nos poemas como educação, como visão do mundo. Têm a ver com o para cá da morte, e não com o para lá da morte. Não que a metafísica não me interesse, mas não saberia escrever sobre isso. É intransitivo e inconfessável. Não é incompatível porque a minha desesperança tem a ver com o horizonte da nossa vida.  

 

Um poema tem por título Vencido do Catolicismo. Mas o mais forte vem a seguir: “sem plural”. É um modo de falar da sua solidão? E contraria outra das premissas do catolicismo: o de ser em rebanho.

É verdade. Mas tem um contexto específico, um poema do Ruy Belo que fala da desilusão de uma geração em relação ao catolicismo. Quis falar de uma relação meramente individual com o catolicismo. Não poderia usar esse plural que o Ruy Belo usa. Pertenço a uma geração para quem o catolicismo é um traço arcaico. Em tudo, e também na religião, as coisas fragmentaram-se. Além do mais, sou um individualista.

 

É um solitário, além de individualista.

Não sei se é a palavra. Voltemos ao Kierkegaard: a religião é uma experiência totalmente subjectiva. Envolve uma relação directa entre o sujeito e aquilo em que ele acredita. Valorizo a relação directa, a vida em comunidade vem mais tarde.

 

Nos poemas, no que escreve, os seus pais, que são pessoas centrais na sua vida, quase não aparecem. Alguma coisa do que vem dizendo nesta entrevista será uma surpresa para eles?

Não creio. O meu universo está muito circunscrito. Os temas que vêm à baila são os mesmos, há muito tempo. A não ser que houvesse uma inflexão grande do que digo ou do que me interessa… Controlo bastante aquilo que digo. Não dou entrevistas sem trazer o superego. Mesmo sem superego, um conservador não tem coisas bombásticas desde a última vez. [riso]

 

Faz um Auto-retrato com Versos de Camões. Muito escuro, desesperançado.

São quatro versos de Camões, de poemas diferentes. É um retrato fiel ao momento em que foi tirado (início dos anos 90). Estou muito mais bem disposto! A partir do momento em que está escrito, deixa de estar sujeito à nossa confirmação a cada momento. Todos nós já escrevemos coisas que não subscrevemos. Se escreveria este poema hoje? Não. Mas gosto muito do poema. É o poema de que gosto mais – nenhum dos versos é meu.

 

Está a fazer género.

Não, é literal.  

 

Tem uma escrita ecléctica. Tanto escreve sobre o Morrissey como sobre o George W. Bush.

Nos poemas o universo é muito mais delimitado. Se pensar nas coisas que são fundamentais para mim, estão todas neste livro.

 

Pelo facto de ser crítico é mais difícil editar poesia?

Estou demasiado perto daquilo que escrevo para ter a distância que é necessária para a crítica. Um crítico escreve sobre um texto e não sobre um autor – o autor nunca percebe isto. Exercer a faculdade crítica em causa própria é impossível. Daí também haver tantos poemas maus. Espero que não nestes cem escolhidos. Faz diferença quando, ao fim de muitos anos a ler e a escrever sobre poesia, tenho uma maior percepção do que é um mau poema. Ter um discurso crítico incorporado ajuda. “Estas duas imagens não funcionam”. “Estas palavras são de diferentes áreas vocabulares”. Coisas que vêm com a prática.

Uma das frases que mais gostei que me tivessem dito, numa sessão literária: “Gosto muito do que você escreve, mas não me interessa nada a sua vida”. A minha esperança é que isso seja o sentimento da maior parte das pessoas. A minha vida interessa-me muito a mim. Percebo que, por um lado voyeurista, interessa um bocadinho a algumas pessoas. Se for como eu gostava que fosse a literatura, a vida que está por detrás não é radicalmente diferente das outras. Toda a gente tem família, toda a gente se apaixonou, toda a gente tem um percurso. 

 

 

Publicado originalmente no Público em Abril de 2011

José Gameiro

13.06.24

“Que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure”, escreveu Vinicius de Moraes. O gostar, esse grande mistério, que cremos infinito quando somos incendiados, é, como todos sabem, de experiência própria, uma coisa de todos os dias, laboriosa, por vezes secante, até raivosa, difícil. O que é gostar? E quais são os fantasmas que mais aparecem ao caminho? O psiquiatra José Gameiro trabalha sobretudo com casais em crise. Não gosta de dar receitas, mas prescreve algumas. Por exemplo? Ouvir. Mesmo que estejamos fartos da velha conversa. E baixar a bolinha e criticar menos.

José Gameiro nasceu em 1949. É psiquiatra. Na consultório onde nos encontramos, numa manhã de terça feira, há maples individuais e um sofá onde cabem dois. Há casais que o consultam e se sentam longe um do outro. Outros repetem que continuam a gostar da pessoa com quem vivem, não sabem é ser felizes com ela, no todos os dias. O problema é o todos os dias. O problema é o outro ter outro. O problema é o outro ser inaturável, criticar demais, ter uma família de origem chata.

Consultam-no a ver se ainda conseguem ser felizes. Alguns separam-se, outros, reconstroem-se.

Porquê, para ele, a terapia conjugal? “O meu fascínio profissional pelos casais tem tudo a ver com a história dos meus pais, ainda que o encontro com a terapia familiar tenha sido causal.”

O que é que um terapeuta conjugal faz, exactamente? “Trabalho a possibilidade de o amor ser vivido”.

  

As pessoas estão numa relação para amar ou ser amadas?

A maior parte das pessoas está para as duas coisas. Ser amado é tão satisfatório como amar. As duas coisas são complementares. Mas ser amado é mais uma construção do que amar. Posso sentir que sou amado, e se perguntar à outra pessoa, ela pode achar que não me ama tanto, ou que me ama mais do que sinto.

 

A reciprocidade é fundamental para o sucesso de uma vida amorosa?

Para mim, individualmente, é fundamental. Já conheci pessoas que amaram com a sensação de não serem amadas da mesma forma e que conseguiram viver essa situação. Se vivem sem sofrimento, tudo bem. Também já vi muita gente que, em fases críticas de uma relação, achou que, para trás, nunca tinha sido amada, ou que nunca tinha amado. E alguém que está deprimido pode achar que faz sentido não ser amado porque não presta para nada.

 

Pergunta-se: “Porque é que o outro havia de gostar de mim?”.

Sim. Há pessoas que vivem relações de 30 anos sempre a pensar: “Mas o que é que eu tenho para esta pessoa gostar de mim?”. E começam à pesca das coisas que têm ou não têm.

 

Há resposta para isso?

Gosta-se porque se gosta, ama-se porque se ama. Quando amamos alguém, não sabemos muito bem porquê. Quando deixamos de amar, arranjamos 30 razões para dizer porquê.

 

Então gostar é um mistério.

Completamente. Já há muitos anos que desisti de perceber porque é que gostamos de outra pessoa. Há quem diga que é o cheiro.

 

A coisa animal...

É uma coisa irracional. Isto não tem nada a ver com a relação ser mantida. Se viver com alguém tenho que me adaptar, e vice-versa, à pessoa. E as cedências, as negociações, são feitas em nome daquilo que sinto e que a outra pessoa sente. Se queremos estar juntos, não temos outro remédio senão adaptarmo-nos. Ou então separamo-nos. Separarmo-nos de uma pessoa de quem gostamos, e que gosta de nós, é estúpido.

 

Trabalha com casais em crise; eles continuam a gostar um do outro?, não sabem é estar juntos?

Parto do princípio, porque mo dizem, que continuam a gostar um do outro. Isso é uma coisa que não trabalho. O amor não é trabalhável. Trabalho a possibilidade de o amor ser vivido. Aí tem a ver com os comportamentos.

 

Ao cabo destes anos, tem uma definição sua para gostar?

A definição que vou dar é um bocadinho egoísta. É gostar de estar com a pessoa. Isto não chega... Mas é gostar de estar com a pessoa de uma forma bastante permanente. É gostar de ir ter com ela. É sentir necessidade de estar com ela. É sentir falta quando não se está. E é também uma espécie de solidariedade e de intimidade que se cria com alguém.

Não posso estar com alguém com quem não estou solidário. Posso ter opiniões diferentes, mas tenho que ser solidário. Se a minha mulher vem falar da sua vida, do seu trabalho, ela não espera que me comporte como um colega. Espera que eu perceba qual é o seu ponto de vista. Não há objectividade numa relação amorosa, não pode haver.

 

E a competição que há entre os dois membros do casal? É o oposto da solidariedade. Não é preciso serem colegas, mas se forem isso torna-se mais taxativo. Competem em relação a ter melhor posição, reconhecimento.

Os casais que trabalham juntos podem ser um problema. O problema maior é a vida conjugal ser invadida pela vida laboral, e as discussões conjugais serem trazidas para a vida laboral. É uma situação especial, não aconselho. Mas há quem sobreviva bem a isso.

A competição pela pressão social é sobretudo um problema dos homens. As mulheres estão cada vez mais em lugares de destaque, de maior visibilidade. Depois há a questão do dinheiro. Um homem ganhar mais do que uma mulher não é um problema, uma mulher ganhar mais do que um homem, é, muitas vezes.

 

São resquícios de uma sociedade machista.

Sim. Vai passar com o tempo. Também se sabe que as mulheres são mais mal pagas.

 

Estava a falar da sua definição do que é gostar e entrava aí a solidariedade. Mesmo sendo um mistério, há aproximações que podemos fazer ao que é gostar.

O que é gostar varia imenso de pessoa para pessoa e de casal para casal. O problema é se isto gera desequilíbrios. Se gosto de uma forma mais fusional, e estou com uma pessoa para quem o gostar é uma coisa mais funcional da vida familiar, isso gera insatisfação. Pode haver um casal para quem a conjugalidade mais próxima, mais intensa não existe, ou existe muito pouco, e gostar seja sobretudo ser pai e mãe.

 

Falamos de uns arquétipos que vão aparecendo na literatura, no cinema, nas conversas entre amigos. Aparecem, mais do que tudo, a partir da nossa história pessoal, daquilo que vimos em casa, na nossa família de origem? Foi aí que aprendemos o que é gostar, o que é estar com um cônjuge?

Se falar de mim, não. Sou um filho de pais separados. A relação conjugal que vi foi sempre de tensão e conflito. No entanto, o meu modelo de relação conjugal não é de modo nenhum esse. Vivo muito mal numa relação conjugal conflitual.

Não tenho dúvidas de que a história pessoal influencia, mas com a idade e a experiência clínica acho cada vez mais que as pessoas se podem libertar da sua história passada. Ela não é uma condicionante da vida futura. Está lá, marca-nos, há coisas do inconsciente que são actuadas, mas dizer que é uma fotocópia do passado no presente, não é.

 

Gostava de ouvir a história dos seus pais. Pode contar?

O meu fascínio profissional pelos casais tem tudo a ver com a história dos meus pais, ainda que o encontro com a terapia familiar tenha sido causal.

Os meus pais casaram-se em 1944. Nasceu a minha irmã em 45 e eu em 49. É uma história de amor que durou até ao fim da vida dos dois, ainda que com a separação. Pode ser uma construção minha, mas tenho dados objectivos. O meu pai era um filho-família do Ribatejo, com algum poder económico.

 

Pelo que se vê da fotografia que aqui tem, muito poder económico. Casaram de fraque, com pompa.

Sim. Gente da Escola Agrícola de Santarém. Era o filho mais velho de três irmãos, com uma relação fusional com a minha avó (era o filho claramente preferido). Conheceu a minha mãe, que era filha única de um casal de origens pobres, da zona de Tomar. O meu avô materno foi para África em 1914 ou 1915, quando casou, e ganhou muito dinheiro no Lobito, com um negócio de venda de carnes. A minha mãe nasceu lá. Vinha cá muitas vezes. Marcaram-me as histórias das viagens de barco da minha mãe.

 

O que é que contava? O que é que fazia nos barcos?

As viagens duravam um mês, do Lobito a Lisboa. Ia a bailes todas as noites, dançava, falava. Fez 15 ou 17 viagens. E num Verão conheceu o meu pai, na Nazaré. As pessoas do Ribatejo iam muito à Nazaré, à praia. Apaixonaram-se. Não tinham nada a ver um com o outro. A minha mãe estudou piano e falava Francês, literalmente.

 

Houve na sua família materna uma ascensão social muito rápida.

Sim. O meu avô vem de África, reforma-se. Comprou prédios em Lisboa, que ainda são nossos, e vivia dos rendimentos. Penso que também emprestava dinheiro, que funcionava como financiador das construções dos chamados “patos bravos”.

Casam contra a vontade dos meus avós maternos. A história que ouvi é que receberam informações de que era de boas famílias, mas um bocadinho levantado.

 

Levantado?

Mulherengo. Sempre foi. Foram viver para Torres Novas, onde era a quinta dos meus avós.

 

A sua mãe não lhe deu nem um bocadinho com os pés, ao seu pai?

Não sei. A minha mãe tinha uma paixão muito grande meu pai. Desde cedo correu mal. O meu pai ia a Lisboa quase todas as noite. Estamos a falar dos anos 40, as estradas eram como eram. Dizia que ia tomar café e vinha passear com os amigos. Tinha três carros. Um com o qual vinha, um em Lisboa para o caso de o outro se avariar, e outro para um amigo, para o desenrascar. O meu pai tem histórias, tem aventuras, mas a minha mãe aguentou sempre.

 

Sempre sabendo?

Sempre.

 

As pessoas, no fundo, sabem sempre quando há outras?

Sabem sempre. Aos meus oito anos, a minha irmã tinha 12, o meu pai apaixonou-se e saiu de casa. Uma das minhas memórias mais fortes é a saída do meu pai de casa. A minha mãe tenta que o meu pai não saia. “Não te vás embora!” Ofereceu-lhe de presente um estojo de barba muito bonito.

Os meus avós ficaram muito contentes. Não gostavam do meu pai. E o meu pai achava os meus avós uma seca. Ao domingo tínhamos que ir todos passear o Mercedes para o Estoril. “O senhor do Mercedes”, como ele dizia, era o sogro.

 

Não podiam não ir?

Mais tarde falámos muito disto e o meu pai sempre disse que a minha mãe era controlada pelos pais, que não conseguia libertar-se daquilo. Passados dois ou três anos, há um processo em tribunal. Os meus avós resolvem fazer uma separação. Não havia divórcio. Aliás, nunca se divorciaram. O advogado da minha mãe é o Azeredo Perdigão, que dá cabo do meu pai.

 

É incrível pensar o quanto os seus avós maternos detestavam o seu pai. Preferiam a vergonha social da separação, que o era, à época.

Mas não provocaram a separação. Acontece que a minha mãe se torna... uma espécie de namorada do meu pai.

 

Namorada, como assim?

Mantêm uma relação, clandestina aos meus avós. Havia um problema importante, o económico. O meu pai tem uma relação com o dinheiro complicada. Ora tinha, ora não tinha. Era um tipo generosíssimo, mas muito irresponsável. Durante anos não nos deu um tostão. A minha mãe tem que ir ter com os meus avós para receber uma mesada.

Quando a minha mãe e o meu pai começam a sair, de vez em quando saíamos os quatro no carro. A minha irmã e eu não percebíamos nada. Não podíamos dizer nada aos avós. Isto durou uns tempos.

 

Voltaram, às claras?

Não. O meu pai era regente agrícola, depois começou a vender imobiliário, depois voltou a ser regente agrícola. Teve uma vida profissional sempre oscilante. Várias vezes diz à minha mãe que quer voltar. A minha mãe diz sempre a mesma coisa: “Podes voltar, mas larga essa mulher. Vives sozinho durante uns tempos e depois voltas”. Parece uma coisa de bom senso.

A determinada altura, penso que por dificuldades económicas, decide ir para São Tomé e Príncipe. Disse à minha mãe que ia sozinho, mas não foi. O meu pai não conseguia estar sozinho. Há-de confessar-me que não conseguia dormir sozinho.

 

O grande fantasma da solidão.

Sim. Em São Tomé tem um AVC, com 49 anos. Faz uma depressão violentíssima. Volta passado um ano e a situação mantém-se igual. Nunca consegue separar-se da mulher.

Acho que a relação com a minha mãe nunca passou disto, não estou a ver que fosse uma relação íntima.

 

Não? Acho que está a ser um filho ingénuo que recusa a sexualidade dos pais. Essa paixão toda, que fazia com que não conseguissem deixar de estar um com o outro, e depois nada?

A minha mãe era muito especial nisso. Pode ser a minha visão, não sei. Não me faria confusão nenhuma, até achava graça, mas não acredito.

O meu pai: deixou de trabalhar, herdou, fazia uma vida boémia. Ia para o Gambrinus todos os dias lanchar. Era o poiso dele na Baixa com os amigos. E muitas vezes, já com um copo a mais, telefonava à minha mãe.

 

Esse modelo de relação, manteve-se durante anos?

Há vários interregnos nisto. Depois nasce a minha sobrinha, e a partir daí começam a encontrar-se na casa da minha irmã. Uma relação familiar. Mas nunca com a senhora. O meu pai nunca tenta impô-la.

 

Teve relação com ela?

Conhecia-a desde sempre, ia lá a casa de vez em quando almoçar, jantar. A minha irmã, menos, tinha mais dificuldade nisso. Mas o meu pai ia muito a minha casa, no meu primeiro casamento, e a senhora nunca ia.

 

Percebo pelo que conta que teve uma relação de intimidade com o seu pai, que foi uma espécie de confidente do seu pai. Quando é que passou a ser assim?

Depois da separação, há longos períodos em que ele desaparece. Mais tarde explica que desaparece porque não tem dinheiro. (O meu pai separa-se em Outubro ou Novembro e vai no Natal lá a casa oferecer-me um comboio eléctrico. O primeiro que tive. Ainda hoje tenho comboios eléctricos.) Mais tarde a relação normaliza-se. Estou com ele frequentemente. Tiro a carta e empresta-me o carro, depois dá-me um carro. Inverte-se a relação: sou um bocadinho pai dele. Tem problemas de saúde, é hipertenso, come e bebe bem.

 

Começou mais cedo uma coisa que é constante nas nossas vidas: o momento em que começamos a ser os pais dos nossos pais.

O meu pai fazia as suas rábulas, dizia: “Tem juízo”. Mas nunca foi o meu educador. A minha mãe é a figura importante desse ponto de vista. O meu pai é o chamado gajo porreiro, de quem gostei muito, a quem perdoei o abandono. Não tenho nenhum conflito com ele neste momento. Na verdade, nunca cheguei a ter. Eu dava-lhe conselhos. Abria-se muito comigo, contou muita coisa dele.

 

Tomar conta é uma coisa. Ter uma relação de intimidade e ser o confidente é outro patamar.

Sim. Que nunca tive com a minha mãe. Era uma relação fortíssima, sofri muito com a morte dela em 2008. Foi um luto que demorou muito tempo a resolver-se. Mas é uma pessoa com quem quase não falei de mim. É paradoxal. A minha mãe não permitia muito isso, queria que estivesse tudo bem e tudo calmo. Separei-me e levei muito na cabeça. Nunca teve disponibilidade para ouvir o que sentíamos, como é que estávamos.

 

É a antítese desta conversa do partilhar, de ter a relação íntima.

A minha mãe tinha uma relação connosco muito pela comida e pela casa. Uma coisa muito primária. Sinto imenso a falta dela. Não para falar com ela. Para ela estar ali.

 

Já disse que o seu pai era irresponsável. É fundamental ser maduro enquanto pai? Hoje estamos cheios destes chavões...

Costumo dizer a brincar: tive pais separados quando ninguém tinha, tive um pai que foi irresponsável durante muito tempo, e estou aqui, não estou muito mal! [risos]

 

Não estamos todos a ficar paranóicos com o que deve ser a educação?

Percebo que se pretende trabalhar com os pais nas suas dificuldades funcionais. Mas educação parental é uma coisa que não faz nenhum sentido. Há 20 mil maneiras de ser pai. Aquilo que é o modelo de uma família funcional não existe. Pode haver famílias aos nossos olhos disfuncionais, em que os miúdos ficam sozinhos e não tomam banho, e que são funcionais. Os técnicos têm uma imagem e estão cheios de preconceitos. E muitas vezes aplicam estes preconceitos a famílias a que não faz sentido que sejam aplicados.

 

O âmago é a criança sentir-se amada?

Sim. E o sentir-se amada pode ser de 20 mil maneiras.

 

E é a trave a partir da qual se pode construir o edifício…

Uma criança para crescer e para ter alguma saúde mental tem que ter sido amada. Não tem que ser amada pelo pai e pela mãe, pode ser amada só pelo pai, só pela mãe, por uma tia, uma avó, ou por uma figura muito importante.

 

Alguém que a sustém.

Alguém que seja contentora. Se isso tem que ser feito numa família tradicional? Nem pouco mais ou menos. A adopção por casais homossexuais: a questão que ponho é social. Como é que um miúdo na escola vive isso? É uma treta dizer-se que o miúdo precisa de uma figura masculina e de uma feminina.

 

Porque vão encontrando sempre figuras femininas e masculinas?

Eu posso ser uma figura feminina, apesar de ter pénis. No sentido de ser aquilo que é tradicional na figura feminina: mais acolhedor, mais colo. Não tem que passar pela anatomia das pessoas, muito menos pela orientação sexual.

 

Estamos a falar de estereótipos que hoje nos dominam. Também não há-de ser por acaso que cada vez mais as pessoas vão aos psicólogos, põem as crianças a fazer terapia, fazem terapia conjugal…

Demais.

 

Porque, na verdade, querem sentir-se normais, querem sentir-se bem? É esta a opinião que tem?

Não. Quem entra aqui está sofrer. Raramente uma pessoa entra aqui só para se conhecer a si própria, sem que tenha havido um gatilho de sofrimento.

 

O que queria dizer: as pessoas precisam de se sentir enquadradas socialmente, e achar que a sua história, aquilo que vivem, encaixa no que se designa por situação normal.

Isso é verdade. As pessoas muitas vezes vêm aqui e dizem: “O que estou a sentir é isto. É normal?” As pessoas não são tão diferentes como isso em relação ao sofrimento. Quando percebem que aquilo que estão a sentir não é nada do outro mundo, que não estão sozinhas, e que é uma coisa que é trabalhável e ultrapassável, ficam mais tranquilas. Há pessoas que querem ser normais, formatadas, e há outras que não querem. Querem ter a sua individualidade e a sua maneira de estar. Não querem é sofrer com isso.

 

Voltando à história dos seus pais. Parece uma coisa muito passional, quase animal. Conte o resto.

Veio o 25 de Abril, o meu pai podia ter-se divorciado e nunca se divorciou. A minha mãe também nunca quis o divórcio. O meu pai morre bastante tempo antes da minha mãe. Tem um AVC e fica com uma demência vascular durante quatro ou cinco anos. Morre em 1987. A minha mãe faz um luto complicado. Nunca foi vê-lo, nunca conheceu a mulher com quem ele vivia. A história acaba assim. Até esse AVC a relação deles é muito frequente, quase todos os fins-de-semana se encontram. Creio que não tinham encontros só os dois.

 

Ela continuava a arranjar-se especialmente para esses encontros ao fim-de-semana, nas casas dos filhos?

Não sei dizer. Ela arranjava-se sempre bem. Havia um charme, tanto quanto a minha mãe conseguia ser charmosa. A vida fê-la dura. O meu pai esbanjava charme. Não havia nenhuma mulher que não gostasse dele.

Mais tarde soube muita coisa através do Ayala, que foi secretário do meu pai. O Ayala tinha sido secretário do Humberto Delgado. Nunca disse ao meu pai que trabalhava na oposição. O meu pai era apolítico. Era contra o Salazar, mas não tinha actividade política. Venho a encontrar o Ayala quando estou na Câmara de Lisboa, com o Jorge Sampaio.

 

Quis ouvir as histórias do seu pai?

Quis. Eram sobretudo histórias de relações com mulheres. E histórias de dificuldades económicas que teve.

 

Houve alguma coisa que o desapontasse muito? Há coisas que não devemos saber quando estamos a falar da família.

Houve. Uma vez o meu pai tentou falar da relação íntima com a minha mãe, a meio de um almoço já bem regado. Disse: “Pai, isso não quero”. Foi a única vez que me lembro de ter sentido incómodo. Nunca falei com a minha mãe sobre isso.

 

Na vida de todos os dias, devemos saber tudo dos nossos pais, do nosso marido, da nossa mulher? Impõe-se a verdade?

Não. Quando se fala de dizer tudo, normalmente fala-se de relações extraconjugais. Não é disso que estou a falar. Um exemplo: se a minha mulher, numa conversa com a mãe dela, disser mal de mim, não quero saber. E a minha mulher terá o bom senso de não me dizer. Pode ser um desabafo do momento e vai inquinar a minha relação com a minha sogra e dificultar a minha relação conjugal.

 

Nas relações extraconjugais, deve-se dizer?

Será que preciso de saber que a outra pessoa teve uma relação ocasional com alguém? Se não souber, não me importo, se souber, importo-me. O que sei é que algumas relações conjugais estão paradas no tempo porque uma das pessoas tem uma relação fora do casamento e essa relação não é clara. A outra pessoa não sabe, ou se desconfia, [faz de conta que] não sabe. E a relação não avança nem recua porque há uma energia amorosa que não está investida ali.

 

Intervém de que modo?

Digo às pessoas – e são muitas as que me procuram numa situação desse tipo –, individualmente: “Há duas hipóteses: ou você diz e há uma crise, e a partir daí as coisas ficam diferentes, e não vai ser fácil; ou você não diz e isto não mexe”. O problema de uma pessoa que é casada e que tem uma relação extraconjugal, já com algum tempo, e que não consegue nem dizer nem sair da relação, é que aquilo fica parado. O sistema equilibra-se num certo sentido, tornando a relação conjugal numa relação tensa, sem resolução.

 

Uma boa parte das pessoas, diz?

É apanhada. Não diz. O ser apanhado é bom no sentido da evolução. O casamento pode rebentar. A maior parte das vezes não rebenta. A partir daí nada será igual.

 

As pessoas não dizem, e não provocam o rebentamento, porque não conseguem decidir-se, porque não sabem o que querem?

O dizer tem duas consequências: a primeira é o medo que a outra pessoa lhe ponha as malinhas à porta. A outra: perde também a clandestinidade.

 

Que é um picante.

Dá uma força às relações, a clandestinidade...

 

Só a relação adúltera é que é picante? Muitas vezes, a pessoa, para compensar o facto de estar a pisar o risco, compensa o cônjuge, em casa.

Quando alguém se apaixona de facto fora de casa, é difícil manter uma energia na relação em casa. Se é uma relação “só física” (com todas as aspas), aí sim, pode trazer energia à relação de casa.

 

Continuam a usar os filhos para justificar o não saírem de casa?

Menos.

 

E é uma ficção?

É. Os filhos não gostam que os pais se separem, mas sobrevivem. Sobrevivem mal é ao conflito depois da separação, se ele é violento e longo. Contudo, há quem fique porque acha que isso é traumático para os filhos. E há muita gente que adia cada vez mais a separação (agora os filhos têm um exame, depois vão fazer anos, depois há o Natal). Há a quem faça muito impressão que os filhos fiquem sem os pais juntos.

 

Tornou-se relativamente comum a guarda conjunta. Uma semana com o pai, uma semana com a mãe. Foi uma evolução muito rápida.

Sim. Hoje os pais mudam a fralda, limpam o cocó, dão banho. O vínculo que se cria com as crianças é muito mais forte. Tenho homens na consulta que sofrem horrores com a ausência dos filhos. E que se culpabilizam da separação.

 

E essa coisa de dizer ao amante, ou à amante, que não se tem sexo em casa há um ano?

Às vezes, é verdade, outras vezes é uma grande treta [risos]. Às vezes, a relação física em casa mantém-se muito boa. E ambas as relações físicas são muito boas.

 

É engraçado como as pessoas acreditam, ou fingem acreditar...

Alguém que está sozinho e que tem uma relação com um homem ou com uma mulher casada, vai acreditando que ele ou ela se vai separar. Até que há uma altura em que começa a não acreditar. E depois leva muito tempo a conseguir separar-se. A vida das pessoas é à base dos bocadinhos, das fugas, das coisas rápidas. Essas pessoas isolam-se muito para estarem sempre disponíveis. Têm vergonha em relação aos amigos. As relações de amantes têm uma semi-vida que não é eterna.

 

Algumas são muito longas.

Mas é muito difícil manter uma relação deste tipo durante muito tempo. Nos primeiros meses há projectos de vida em comum. Depois há um tempo em que, se esses projectos não se concretizam, a relação começa a decair. Há um tempo útil para a separação, após o qual é muito mais difícil separarem-se porque se instalam na situação. É muito raro, da minha experiência clínica, um casamento que acabe ao fim de anos de relação extraconjugal. É a relação extraconjugal que vai acabar, ou que se vai espaçando.

 

Fala-se da infidelidade como o grande fantasma das relações conjugais. É?

Não. O grande problema das relações conjugais é as pessoas deixarem de gostar uma da outra, obviamente.

 

Obviamente?

Hoje as pessoas separam-se porque são infelizes na relação conjugal. E são infelizes quando deixam de gostar ou quando deixam de sentir que a outra pessoa gosta delas. As razões por que isso acontece podem ser várias, mas é o que desencadeia a relação. E quer se queira, quer não, continuamos a acasalar para o resto da vida. Mesmo que estatisticamente isto seja um disparate.

 

Sonha-se que é para sempre, que daquela vez é que vai ser.

Quando as pessoas se juntam com alguém, nunca há a ideia da separação. E quando se confrontam com a situação de que são infelizes começam a pôr a relação em causa. Isso é um luto que tem que se fazer. Não é fácil para ninguém separar-se.

 

Custa o reconhecimento do falhanço?

Sim. Mesmo que queira separar-me (já passei por isso), mesmo que seja um alívio, é um falhanço. É uma coisa que não resultou. As relações falham porque as pessoas não conseguem adaptar-se a viver em comum. Viver em comum não é nada fácil. Há pessoas que estão sempre a criticar, a culpabilizar, a apontar defeitos. A coisa mais devastadora numa relação conjugal é a crítica.

 

A crítica? Pode esmiuçar?

Isto está estudado. É muito diferente dizer a uma pessoa: “Não ponhas a camisa aí, põe ali”, ou não dizer nada e mudar a camisa. Ou então dizer: “És uma besta, és desarrumada”, e atacar a pessoa por causa da porcaria de uma camisa.

Numa relação conjugal é muito fácil criticar porque conheço a pessoa muito bem, sei onde é que vou atingi-la. Desde as coisas mais íntimas, ao nível da sexualidade, até às coisas banais do dia-a-dia. Ninguém sobrevive a um ataque sistemático. Posso gostar muito de alguém, mas não consigo aguentar estar sempre a ser posto em causa.

 

A questão do poder, que é diferente da crítica mas que pode derivar da crítica, é um ponto sensível das relações. Quais são os outros grandes problemas? A maneira como lidam com o dinheiro, com os filhos?

A relação com as famílias de origem. Se tenho uma relação difícil com a família da minha mulher, ela está metida num conflito de lealdades. Na cultura latina as relações com a família são muito importantes. Há sogras muito intrusivas, difíceis de controlar. Se uma sogra chega a casa e começa a mandar palpites, aquilo ao fim de pouco tempo está estragado. E o marido, coitado, fica ali entalado no meio.

 

E que fazer quando há uma sogra que é essa mamma latina?

As sogras não são controláveis. Ninguém consegue controlar uma mãe quando ela tem o nariz empinado. São pessoas de uma certa idade que acham que fazem tudo muito bem. Tem que se viver com isso e aceitar que aquilo que a sogra diz, paciência, disse.

Outra questão: os modelos diferentes de educação dos filhos. Quando se tem um filho adolescente que começa a querer sair, e um é mais liberal, e outro mais repressivo, há uma negociação que não é fácil. Uma negociação que passa muitas vezes pelo não verbal. (Nos casais o não-verbal é muito importante. Posso estar a desqualificar o que a minha mulher está a dizer sem abrir a boca. São coisas muito finas, não explícitas, e que dão conteúdo à relação.)

 

Escreveu em várias crónicas que as pessoas se queixam muito de não ser ouvidas pelo outro. E que sentem que não são amadas porque não são ouvidas naquilo que é mais autêntico nelas.

E que a outra pessoa não tem disponibilidade, não tem pachorra, ou que está farta de a conversa ser sempre igual.

 

Também sei que não gosta de dar receitas, mas como é que se ouve o outro?

Em relação a isso dou uma receita. Digo isto mais aos homens do que às mulheres. As mulheres têm mais pachorra para ouvir, gostam de dar palpites. “O casamento tem uma folha de serviços, que varia de casamento para casamento, mas há uma tarefa que tem que se habituar a fazer: ouvi-la”. É quase uma perspectiva machista.

 

Quase? E paternalista. Enquanto leitora feminina já estou chocada.

“Ela está a falar do trabalho, você tem que ouvir. E tem que ouvir sem ler o jornal ao mesmo tempo, com a televisão desligada e com um ar atento, mesmo que seja a maior seca. Segunda coisa: não pode criticá-la nessa altura, mesmo que ache que aquilo é uma parvoíce. Mais tarde, fora desta conversa, se achar que há coisas que deve dizer, diz”.

Pode dizer que isto é paternalismo. Por um lado, sim, por outro, não. Tenho que fazer muita coisa na relação conjugal em nome da outra pessoa. Desculpe a brutalidade do que vou dizer: qual é a diferença entre ter que ouvir a minha mulher, e mais tarde ela ter que me lavar o rabo quando for velho? São duas coisas que podem não ser agradáveis, mas que devem ser feitas em nome da relação.

 

Essa receita choca com a ideia romântica de que se deve fazer o mínimo de fretes.

Não é possível um casamento sem fretes. Por exemplo, está-se com uma pessoa para quem é muito importante todas as semanas almoçar com a família. Até se acha a família simpática, mas não se tem grande conversa. Pode-se ir só uma vez por mês, se isso for possível e não for um problema. Se para ela for importante que o outro vá, e se não ir for sentido como uma coisa de desprezo pela família dela, tem de ir.

 

Sim, mas engole, engole sapos, e um dia saem todos pela boca fora.

Há pessoas que entendem isto como engolir sapos, e há pessoas que sentem isto como uma coisa que faz parte.

 

A maior parte dos casais que conhece fora do consultório são felizes?

[riso] Enquanto são casais, são felizes. Alguns já se separaram, voltaram a casar. Hoje, mais do que antigamente, a maior parte dos casais que estão em casal são felizes. Uma grande parte dos casais que estão infelizes, ao fim de um tempo separam-se. Isto não quer dizer que não haja momentos de infelicidade na vida dos casais.

 

Mudou alguma coisa nestes anos de crise?

Com esta crise económica muitas pessoas estão infelizes no trabalho, estão desempregadas, e cada vez mais a casa, a família, o casamento, é o local da sua felicidade. O casamento tornou-se uma coisa muito mais viva, muito mais forte do que era.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2015

 

 

Sérgio Godinho

06.06.24

Sérgio Godinho, o experimentador. Poeta, além de escritor de canções, performer, realizador, desenhador, homem dos sete instrumentos. Interventor. Escreveu canções que todos sabemos de cor (Com um Brilhozinho nos Olhos, A Noite Passada, Liberdade, É Terça-Feira, Barnabé... Chega?). Em fins de Abril de 1971, gravou no Stawberry Studio de Paris o seu primeiro disco. "Que força é essa" abria as hostes e testemunhava um tempo, um sentir, um modo de comunicar.

Desse disco inaugural, Os Sobreviventes, ao disco que acabou de ser lançado, Mútuo Consentimento, vai a distância inevitável de quem percorre uma longa viagem e se descobre outro. Outros. Depois há os versos que nos permitem perceber que ele é também o mesmo. Quem escreveu "A paz, o pão, habitação, saúde, educação (...) só há liberdade a sério quando houver..." é o mesmo que escreveu no livro de poemas "Liberdade é uma palavra/ A ser usada extremamente/ Com devida parcimónia: Contrafacção da liberdade é ignomínia/ Eis tudo palavras ajustadas". Pode alguém ser quem não é?

Sérgio Godinho tem 66 anos, nasceu no Porto. Nesta entrevista, vai ao fundo do mundo, vai ao fundo de si. O mais tentador, quando se escreve sobre ele, é deslizar, adoptar, copiar as frases contundentes, exímias, lapidadas que já disseram o que queremos dizer. Ironia e subtileza incluídas. Uma questão de música. É esquivo a falar da vida privada. Tem três filhos e três netos. Tem dois irmãos que vivem fora. Desmanchou a casa que era dos pais não há muito tempo. Tem um fulgor criativo raro.

 

Comecemos por um verso do seu livro de poemas, O Sangue por um Fio. "Tragam as mãos por limpar, mas saibam-nas limpas". Foi um mote para a viagem que empreendeu quando saiu de Portugal?

Quando parti de Portugal, e já lá vamos às mãos, parti para estudar. É uma outra história. O que eu queria era sair de Portugal e ter outras vivências. E meter as mãos na matéria, noutras vidas. As mãos podem não estar sempre limpas, porque estiveram sempre a mexer na massa das canções. Les mains dans la farine. A mão na farinha, como numa canção do Nougaro. A levedura. O meu fito, muitas vezes não cumprido, é estar bem comigo mesmo. Nem sempre se consegue. Muitas vezes no voo se arrastaram algumas penas mais pesadas. Penas que nos arrastam para o chão. Todos passámos a linha divisória em relação aos nossos valores. A certa altura sentimos que já passámos, e o pior é não saber em que dia foi. ("Em que dia é que foi que viraste às avessas...") São movimentos subtis. Não são cataclismos. Há portanto auto-alertas que é preciso conservar.

 

Para que saiba as mãos limpas, é preciso que os seus valores não estejam manchados. Isso leva-nos à sua construção enquanto indivíduo. Na sua formação foram fundamentais a sua mãe e o seu pai, mas também os livros e os discos.

É isso, e nas artes não é só isso. Os meus pais foram dos primeiros sócios do Teatro Experimental do Porto, que o António Pedro formou, e onde me habituei, ainda adolescente, a ver teatro ousado, actual. Grandes peças. O João Guedes a interpretar o Ratos e Homens do Steinbeck, a Dalila Rocha. Tive a sorte de crescer numa família que me dava inúmeras referências. Em relação à minha mãe, há o lado humano, cúmplice, que sempre me fez continuar a ter uma relação muito próxima com mulheres. Sempre percebi o universo feminino. Não só através dela. Se calhar estou a dizer isto de uma maneira errada... O que a minha mãe me traz, de facto, é: alguém que me ouve, que sabe responder e que sabe interagir. O irmão dela, o meu tio Carlos, o meu querido tio Carlos, que foi um segundo pai para mim, tinha as mesmas características.

 

No disco novo há uma canção em que traça um pequeno mapa genealógico. Coisa rara em si, falar da família. Fala da sua avó, da sua mãe, da sua filha, da sua neta. Fala também do pai, dos irmãos, do filho, do neto (no tempo da canção ainda não tinha nascido um outro neto). Contudo, eles estão excluídos do título, que é Linhagem Feminina.

Aconteceu circunstancialmente. Quando a minha mãe morreu há cerca de dois anos, e morreu já para lá dos 90, comecei a árdua tarefa de desmanchar a casa. Aquilo a que se chama desmanchar a casa. Estava no meio de memórias. A minha avó, que, aliás, era madrasta da minha mãe, e que me fez ter um grande apreço pelo termo madrasta, ao contrário do que todos os personagens do imaginário infantil e do Walt Disney veicularam, era a avó de quem eu gostava.

 

A avó Maroquinhas? É dessa que fala na canção.

A Maroquinhas. O gesto de guardar as caixas como repositório de segredos, ou de coisas com que se teve prazer, ou de cartas. Vestígios. O amor que a minha mãe tinha pelas flores – por isso o verso "guarda numa caixa uma flor que nunca murcha".

 

Verso comovente, de um grande amor.

É. Gostei de transmitir isso de uma forma quase lúdica, com uma rima propositadamente pobre, concretista, toda em inhas e inhos. É preciso também fazer estas coisas, com um lado meio gratuito.

 

Um lado de vida de todos os dias?

Sim, e de não termos de estar sempre a tentar fazer a grande obra. Mesmo que se torne rigorosa a feitura. Nessa canção refiro-me aos homens. "Homens com H. Todos RH meu." Continuando no capítulo da descendência: a minha avó paterna era uma pessoa estimulante intelectualmente. Alfarrabista. Tinha vindo do teatro, tinha um programa na Ideal Rádio do Porto.

 

Ideal Rádio?

A sigla era: Ideal Rádio, Rua Alferes Malheiro, 147. Perto da Batalha. Onde gravei o meu primeiro 78 rotações. A tocar piano, entre os dez e os doze anos. Estou a acotovelar a história. Essa avó: não gostava muito dela. Prepotente. Não comigo, mas eu testemunhava situações de conflito. Tinha atracção-repulsa por ela. Mas, uma vez por mês (comecei por estudar francês, antes de estudar inglês), ia à livraria Lello comigo e comprava-me um álbum do Tintim em francês. Curioso que percebesse que o Tintim era uma leitura atraente para mim. E é até hoje!

 

Era por ser uma personagem ambivalente e mais contrastada que o atraía?

Não. Tinha admiração intelectual por ela. Dizia coisas interessantes. Do programa de poesia que tinha na rádio – poesia dita –, ficou a transmissão oral da poesia. Uma oralidade da poesia que sempre prezei. Mas o carácter humano da minha outra avó, que era de ascendência brasileira, e que me trouxe algumas referências brasileiras, era algo com que me sentia muito mais confortável.

 

Que coisas lhe deu a ler a sua avó alfarrabista e que foram formativas?

Eu folheava muitas coisas. Muitos deles eram os mesmos livros que existiam na casa dos meus pais. Sempre passou por ali uma grande admiração pelo Eça. O meu pai lia-o com fervor, citava-o de cor. E outros da mesma altura, como o Ramalho Ortigão. Depois o José Rodrigues Migueis, o primeiro livro da Fernanda Botelho. A minha mãe era também uma ávida leitora; fez o curso superior de piano, fez a educação de uma menina bem comportada. A mim faltava-me no Eça uma certa transcendência. Sempre gostei de ler poesia ou coisas que me transportassem para outros mundos. Os livros de viagens ou aventuras, o Júlio Verne, davam-me também essa dimensão. Comecei a ler o Eça aos 13 anos com o Crime do Padre Amaro. Mergulhei logo no pecado, e desde aí não me tenho regenerado. [riso]

 

Já falamos do amor. A tarefa de desmanchar a casa é evidentemente muito dolorosa. Mas há ao mesmo tempo um reencontro com quem se foi, com aquilo que o formou. Alguns dos autores que apontou tratam de coisas que identificamos consigo. Como o desejo da viagem, uma procura, uma ligação íntima com a palavra.

Nunca deixei de olhar para as fotografias antigas, de encontrar papéis que tinham sido guardados. A minha mãe tinha um jeito diabólico para fazer versos. Versos alusivos, versos para amigos num jantar lá em casa. Uma agilidade surpreendente. E humor. Uma noção de musicalidade que me influenciou muito. Eu sempre falo de começar uma canção pela música; só depois a palavra ou o texto se vem grafar.

 

Quando se pensaria, olhando para a força das suas palavras, que o processo era inverso.

Descobri, na prática, que o Chico Buarque trabalha da mesma maneira. No Coincidências há letras minhas para músicas do Milton [Nascimento], do Ivan Lins; mas no caso do Chico quis que fosse ele a escrever uma letra. O Chico é um feitor de imaginários poéticos extraordinário. Um Tempo que Passou é o único tema do álbum em que a letra não é minha. O Chico: "Dá-me uma música e eu ponho uma letra sobre isso". É também assim que eu trabalho nas parcerias; acontece neste disco, com o Bernardo Sassetti [Em Dias Consecutivos], aconteceu com O Sopro do Coração [Clã]. Mesmo com o Tom Jobim ou o Edu Lobo, era assim que o Chico trabalhava.

 

Aprendeu essa modalidade com o Chico? De escrever uma letra sobre uma música já feita.

Não. Mas quando comecei a compor canções mais consistentemente, pelos 18 anos, já o Chico tinha feito coisas que me abriam a boca de espanto. Como o Caetano. São um bocadinho anteriores a mim. Ia dizer que são mais velhos. Quando se tem 60 e tantos anos, dois ou três anos não têm importância. O que tem importância é já não ter os 20.

 

Aprendeu antes, em casa, com a sua mãe, da importância da musicalidade? Mesmo o modo como se trabalham as palavras: como se fossem música.

De certeza. Com a minha mãe e o meu pai, que era melómano e ecléctico. Ouvia-se lá em casa muita música brasileira, mesmo pré-bossa nova. Ary Barroso, Dorival Caymmi, até Noel Rosa.

 

Uma das 40 canções, as suas 40 canções, sobre que escreveu na coluna no Expresso, foi Conversa de Botequim, de Noel Rosa. "Seu garçon fava o favor de me trazer depressa (...) Telefone ao menos uma vez para 344333".

O Chico diz na Rita: "... e um bom disco de Noel" e muita gente pensa que é um disco de Natal. Não. É Noel Rosa. Que é, de facto, um antecessor do Chico em termos estilísticos.

 

E seu. Ouviu-o muito, formou-o muito.

Havia em Noel uma crónica do quotidiano, um retrato de personagens, tantas vezes a resvalar para a comicidade, como no Gago Apaixonado. E no meu caso, até há um Fado Gago! Foi acontecendo. Em casa havia também muita música francesa. Ouvi Le déserteur, que é do Boris Vian, pela primeira vez, pelo Mouloudji, num disco que o meu pai tinha trazido de França. Ouviam-se os standards americanos. E música clássica, tocada pela minha mãe e tocada em discos. Música popular que eu ouvia no Minho. Referências tão múltiplas. Bem. Fui educado neste gosto. Outras coisas vieram por mim. João Gilberto. Na prosa, Cardoso Pires. Na poesia, Alexandre O'Neill. O O'Neill foi extremamente estimulante na minha escrita, porque me permitiu perceber que era possível ser profundo e lúdico ao mesmo tempo, e que as referências não têm de ser evidentes, e que não temos de esparramar sabedoria e erudição por todo o lado. Elas estão no subtexto.

 

Essa subtileza está em muitos dos poemas que compõe. Engraçado ter dito poemas que compõe... Queria dizer poemas que escreve. Mas o lapso revela até mais fielmente o que queria dizer: que a poesia e a música aparecem em si umbilicalmente ligados.

Quando inventei o epíteto escritor de canções, quis que parecesse estranha a tradução do termo songwriter. Nós consideramos um escritor aquele que escreve ficção (senão, diz-se um poeta). Um escritor de canções parecia, no limite, pretensioso. Mas tinha o lado do artesão, da canção como artefacto, e, como se diz em inglês, brings it down to reality. Torna-a mais concreta.

 

O que está contido na expressão escritor de canções é uma pulsão narrativa. Que é uma das fundamentais do seu processo criativo. Nas suas canções há a descrição de personagens; neste disco fala de uma mulher famosa. Noutro disco, de um velho samurai. Muito lá atrás, a Etelvina.

É um pôr em situação. É um determinado momento da vida de uma pessoa. A Etelvina é isso: os comportamentos na rua daquela rapariga. É mais comportamental do que análise psicológica. Era um conflito do cinema dos anos 60: o que define melhor uma personagem?, o seu comportamento ou a análise psicológica?

 

O cinema interessou-lhe de tal maneira que realizou alguns filmes, e foi actor noutros.

A psicologia do personagem aparece nos comportamentos. Neste disco há personagens que nem sequer têm nome, mas continuam a ter uma personalidade vincada. Naquela canção, que muitas vezes foi paradigmática para uma certa geração, que pessoas ouviram quando tinham 20 anos, 2º Andar Direito, "ele 20 anos, ela 18, há cinco dias sem trocarem palavra", é só um ele e um ela; e no entanto existem.

 

Neste disco há uma outra canção, de sonoridade citadina, e com uma forte pulsão narrativa, Eu vou a jogo. Essa tem ido a sua atitude. Se voltarmos a pensar na metáfora da viagem, o que acontece é que não se furta ao risco de quem está no jogo.

Se tenho uma cobardia ou outra, ultrapasso-a na prática. Todos recuamos numa determinada altura. N'O baú de Sigmund Freud, canto: "O cobarde é uma pessoa que foge para trás, o herói é uma pessoa que foge para a frente". Temos muitas vezes que parar para pensar, isso pode ser visto como uma forma de cobardia, ou não. Na construção do Eu vou a jogo há duas personagens. Encontram-se numa avenida, há uma conversa que supõe vidas passadas. Todas as frases dizem qualquer coisa sobre a vida deles sem dizerem tudo. Ela andou um bocado depressiva, mas provavelmente foi mais longe: "Gosto sempre de correr perigos quando o tempo vai mudar." A vida regenera-a. "Está-me a saber p'la vida encontrar vida em redor".

 

Ousar e ímpeto são palavras fundamentais no ir a jogo. Na sua biografia musical, Retrovisor, confessa: "Tornou-se claro que o meu caminho teria de ser pelas artes, e a curto prazo precisava de experimentar alguma forma de vagabundagem". Porque é que para se encontrar, e para fazer isto que queria fazer, tinha que passar pela vagabundagem?

Porque sempre senti que não se consegue criar sem ter tido alguma vida. O livro que me fez sair de Portugal foi o On the Road, do Jack Kerouac. Foi o Manuel António Pina que mo mostrou. Fomos colegas de liceu. Também me mostrou outras coisas, Neruda. Ele era um grande leitor. Curioso, porque as nossas estruturas mentais são extremamente diferentes. Eu tinha que partir e o Pina é daqueles que ficam. Tem na mesma o universo, lá dentro, das viagens. Sou geneticamente um experimentador. Tinha que experimentar sair, viver sozinho. Quando fui estudar Psicologia, talvez tenha sido falta de ousadia. Já sabia que era pelas artes. Mas não foi tempo perdido.

 

Foi aluno do Piaget, deve ter aprendido alguma coisa.

Sim, mas o ângulo de estudo era demasiado centrado no seu trabalho. Foi sobretudo um tempo de transição. Até que entrei em crise. Percebi que o que queria era ser um criador e um performer. E junto bem as duas coisas, são as duas coisas que pratico. No teatro, sim. No cinema (cheguei a pensar cursar cinema). E na música (já a tocar viola, a andar de viola às costas). Era a pré-história das Pré-histórias.

 

Nome do segundo álbum, de 1972.

Sabia que ao mesmo tempo me apetecia fazer outras coisas. Andar à boleia pela Europa. Trabalhar num barco, atravessar o oceano. Fiz isso tudo. Apetecia-me vagabundear e absorver as pequenas experiências que ia adquirindo. Mesmo quando fui para Paris estava completamente precário. Não tinha cheta nenhuma. Ia tendo trabalhos de sobrevivência. Trabalhei como recepcionista (era o veilleur de nuit) em hotéis de prostituição.

 

Numa zona de desconforto. Procurava isso ou ia dar a isso?

Ia dar a isso. Não era procurar no sentido de mergulhar no vício. Aliás, não mergulhava no vício, mergulhava na virtude. O vício era para os outros [riso]. No caso, a virtude era que tinha uns dinheiros extra, porque elas eram muito simpáticas e pediam aos senhores para me darem umas gorjetas.

 

Queria estar nessas franjas, no bas fond.

Não procurava, mas havia uma atracção. Assim como experimentar várias drogas. Bebedeiras, já tinha apanhado no Porto. Nem é o marginal duro. É estar e não estar, é estar em trânsito. O ambiente dos bares dos portos. O ambiente transitório de quem vem e de quem vai partir. As gares de comboios. Os quartos de hotel, uma espécie de lugar neutro.

 

Nesses anos de vagabundagem e procura, o que é que o fazia sentir em casa? Ou, pelo contrário, o que não queria era sentir qualquer amarra com casa?

Transitava, não tinha casa. Também não foram tantos anos como isso. Dois anos. Quando veio o Maio de 68 estava em Paris. Não tinha amarras nenhumas. Podia ir para o meu quarto, um chambre de bonne, num 7º andar sem elevador, às tantas da manhã, com os olhos cheios de gás lacrimogéneo, ou podia ficar a dormir na Sorbonne.

 

O que é que o fazia sentir bem? Por mais compulsivo que fosse o movimento da procura, e o desejo de continuar a viagem, havia, emocionalmente, um reduto final, seguro?

Era mais o sentir que estava a cumprir o que queria fazer. Nessa viagem de barco, fui até à Jamaica, Trinidad. Trabalhava na cozinha de um barco holandês. Primeiro trabalhei como estivador no porto de Amesterdão. Fiz anos no meio do Oceano Atlântico. Estava uma lua magnífica, e senti-me bem comigo mesmo. Não disse a ninguém que fazia anos. A única coisa que fiz foi mandar um telegrama aos meus pais a dizer: "Parabéns a nós todos". Qualquer coisa assim. Aquele aniversário em solidão absoluta [constitui] uma belíssima recordação. Sentia que as coisas estavam certas naquele momento. Há uma cena num filme do Woody Allen, o Stardust Memories (um filme injustamente ignorado), em que a Charlotte Rampling está de barriga para baixo, no chão, a ler. Ele, naquele momento, sente que está tudo certo. E então ela levanta os olhos e faz-lhe um pequeno sorriso.

 

O telegrama foi o sorriso? O sorriso que mandou aos seus pais.

Exactamente. Esse sorriso foi uma coisa suplementar. Achei que eles deviam saber que estava bem.

 

Como se fazia a comunicação nesses anos em que esteve fora? Foram nove anos sem poder vir a Portugal?

Para ser exacto, foram sete. A comunicação não era frequente. Houve uma altura em que o meu pai viajava e passou por Genève e por Paris. Quando eu estava a estudar em Genève ainda pude vir cá. Mas nessa altura não havia tanto a obsessão da comunicação.

 

Escrevia cartas? (Uma canção, de muito mais tarde: "Manda-me uma carta em correio azul para afastar essas cinco nuvens negras..."). As canções eram uma forma de registar a descoberta e o processo que estava a viver?

Escrevia cartas, claro. E recebia. As canções, no que toca à língua portuguesa, foram também uma maneira de me continuar a ligar a Portugal.

 

Começou a compor em francês.

Não conseguia encontrar uma voz própria. Soava-me tudo a José Afonso. Até que se tornou luminosa a evidência de o português ser a minha língua de expressão. Mas há quatro canções d' Os Sobreviventes que tiveram primeiro letra em francês. A Linda Joana, que não era ainda a minha filha [Jwana], começou por ter um tema diferente – Les tendres jardiniers, os ternos jardineiros. Os conteúdos musicais e verbais, muitas vezes, podem ser independentes. Já fiz essa experiência. Tive um espectáculo chamado Troca por Troca, em que acoplava a letra do Desafinado com a música da Garota de Ipanema. Foi um jogo técnico, um gozo.

 

Parêntesis para dizer que as inversões são constantes naquilo que faz. Seja nos jogos de palavras, seja na maneira como olha para as situações. A imagem dos espelhos e do reflexo também é recorrente.

A imagem do espelho é importante, para lá dos clichés do narcisismo. Há três canções neste disco em que falo de espelhos. No Intermitentemente: 'Todo o passado em dois espelhos que de mágoas são omissos'; como se a força de um amor presente apagasse as dores do passado... Mesmo na Vida Sobresselente, a mulher famosa já não sabe qual é a imagem de si mesma; quando vê nos vidros duplos da janela, é um reflexo dela e dos temores dela.

 

Fala de uma "vida sobresselente nas imediações da vida verdadeira". Está sempre à procura de uma imersão na vida verdadeira?

Acho que sim. Seja lá o que for a verdade. (Parece aquela frase do Príncipe Charles quando casou com a Princesa Diana. Perguntam-lhe: "Are you in love with Diana?". E ele responde: "Sim, seja lá o que o amor significa" [riso]. Seja lá o que a vida verdadeira for. O que é que pode ser? É sempre uma procura. São encontros em que nos encontramos com lados de nós mesmos. Tenho muitas vezes uma espécie de dissociação do eu em relação a mim mesmo. Sinto muitas vezes que estou a co-existir com outras pessoas que estão ao meu lado a pensar uma coisa ligeiramente diferente, mas que também sou eu. Um está a interrogar o outro, está a pô-lo em confronto. Às vezes é um cansaço, estou sempre em auto-questionamento. Mas não é ter dúvidas que me impede de ir a jogo.

 

Estávamos a falar da importância da língua portuguesa quando começou a compor, quando se libertou do francês e encontrou a sua voz.

Estando longe, fi-lo como um exercício consciente, para não perder a ligação com Portugal. A língua podia ser um veículo para manter essa ligação activa. Queria falar de mim, do meu país, do país em que tinha crescido, do momento social, político, da guerra. Falei disso de várias maneiras. O Charlatão refere isso, muitas canções referem isso. No Pré-Histórias está expresso em mais do que uma canção. Quando falo da mulher que está na praia, em frente ao paredão, imaginei-a em Leça [da Palmeira].

 

E não na Foz, que é mais o seu sítio, onde viveu com os seus pais.

Sim, mas ia muito a Leça. (Lembro-me de nadar no porto de Leixões. E não é para rimar com cagalhões, mas de vez em quando cruzava-me com alguns. Acho muito bem que as praias sejam limpas, mas a gente sobrevive a tudo.) Sobretudo na canção Porto, Porto, que depois retomo no Porto aqui tão perto, há um relato da maneira de estar do cidadão do Porto, daquele povo profundo, das piadas, tolas ou não, que são um bocado a essência do povo do Porto. Quando digo: "Vindo desde Vigo ao Porto, sem mala nem passaporte, o comboio era tão velho que o fumo cheirava a morte", entro em todo o imaginário da minha infância, do Porto. Foi uma coisa para não me esquecer, e para reflectir numa canção mais ou menos existencial, jocosa, o advento de um novo momento: a liberdade.

 

Já disse que os títulos Os Sobreviventes e Pré-Histórias reflectem dois momentos da vida de Portugal.

Os Sobreviventes refere-se àquele peso que está para trás. O Pré-Histórias, àquilo que se anuncia. À Queima Roupa, o terceiro disco, é em pleno PREC, e também o reflecte.

 

Ainda não falámos do seu lado político, que durante anos lhe colou o rótulo de cantor de intervenção. As canções dos primeiros discos são marcadamente políticas?

Talvez metade, não sei. Do segundo disco, Pode alguém Ser Quem Não É não é abertamente política. E A Noite Passada, que é a canção paradigmática, também não é. A política entra naturalmente no meu universo, que é mais vasto. É uma questão estafada. Nas entrevistas do projecto Três Cantos, com o Zé Mário e o Fausto, enterrámos esse epíteto redutor do cantor de intervenção. Intervenção é tudo. Regressamos a casa, novamente, para falar da consciência política? Foi muito natural, porque cresci nesse forno. Na família havia pessoas que tinham estado presas, comunistas. Antes disso havia uma longa tradição republicana e maçónica. O meu bisavô, o Actor Verdial, foi quem leu a proclamação do 31 de Janeiro, o primeiro golpe republicano falhado. Era o Miguel Verdial. A minha avó participou em comícios e discursou em jantares republicanos, o que não era comum para uma mulher. O meu pai não podia com Salazar. Considerava-o o grande responsável do atraso português. Em relação às colónias, achava que se lhes devia dar a independência, à maneira do que aconteceu com a Gra-Bretanha. Era muito anglófilo.

 

Quer dizer que não lhe cobram quando, primeiro, quer rasgar a sua própria vida, nem, depois, quando se torna refractário?

De maneira nenhuma. Acharam natural. O meu pai e a minha mãe eram contra essa guerra. Quando parti sabia que nunca iria à guerra. Se fosse apanhado teria arranjado maneira de fugir. Fui-me embora antes que fosse tempo de me chamarem. Tinha muitos relatos de pessoas que tinham ido. A certa altura havia uma directiva do Partido Comunista a dizer para não se desertar, para participar a fim de fazer o trabalho de sapa dentro da própria guerra.

 

Proselitismo à comunista.

Talvez. Mas conheci muita gente que fez um trabalho notável a esse nível.

 

Fez trabalho em Paris, nas fábricas, por exemplo?

Isso aconteceu em pleno Maio de 68, não foi uma coisa constante. Eu, o Zé Mário [Branco], uma cantora francesa chamada Colette Magny, e outros, construímos um grupo informal que ia cantar nas fábricas ocupadas. Eu cantava ainda em francês. Fiz uma canção a quente, coisa que não faço geralmente, sobre o Maio de 68, que se chamava Les Milles et Une Nuits. O Zé Mário lembrava-se de parte dessa canção (isto está documentado no making of dos Três Cantos). Compus muitas canções que se perderam. Sinto que muitas boas ideias que tenho se perdem. Ou porque adormeci, ou porque estava num sítio onde não as podia anotar. Mas é preciso perder para guardar outras coisas. É preciso ter tempo para ver uma coisa inútil. Traz-nos sedimentos para aquilo que fazemos. Às vezes exagero nesse aspecto; tenho intenção de trabalhar numa coisa e depois disperso-me.

 

Sente a dispersão ou o caos em que muitas vezes está como uma ameaça?

Já é uma forma de vida. Mas devia ser mais produtivo. Quando me perguntam, em relação ao Mútuo Consentimento, porque é que se passaram cinco anos desde o Ligação Directa, posso dizer que não foi silêncio; às vezes foi um bocado de barulho. Os Três Cantos, que levou muito tempo a ser arquitectado. O Sangue por um Fio, que me tomou um tempo criativo maior do que pensava. A volta ao teatro, como actor, com o Jorge Silva Melo e os Artistas Unidos (quando abri os olhos já tinha dito que sim). A banda sonora do Equador. Outras coisas. Sempre gostei de estar nesse tempo pretensamente parado. Mas também tenho inquietudes criativas. Uma preocupação que se mantém: quando é que estou a imitar-me a mim próprio?

 

O perigo é fazer Sérgios Godinhos?

Tem que se ter cuidado para não estar só a preencher as expectativas dos outros. Isso reflecte-se na criação.

 

Parece muito confiante.

Sou confiante. A confiança existe porque já dei provas a mim mesmo de que sou capaz. Essa confiança vem da prática mas não exclui as dúvidas, e o sentir que às vezes não estou bem lá.

 

Canta no Mútuo Consentimento: "Duvidar é ter certezas".

Falo muito de dúvidas e certezas. Tenho uma canção chamada As certezas do meu mais brilhante amor, e até aí falo dessas dúvidas.

 

Essa canção, que genericamente se intitula Coisas do amor, forma um díptico com Não vás contar que mudei a fechadura.

Que acaba com uma certeza. "Não vás dizer que o amor é relativo, se o relativo fosse coisa que se visse não era amor o porque morro e o porque vivo". Acaba com a noção de absoluto. As interrogações que há nas minhas canções são dúvidas. Dúvidas para serem respondidas pelos outros. São interpelações.

 

Uma interrogação/interpelação numa das suas canções mais famosas, Pode alguém ser quem não é.Quando deixamos de ser aqueles que julgávamos que éramos, e vamos sendo coisas diferentes dessa que éramos, nessa viagem, com tantas deambulações, o que é que se mantém?

Há um olhar sobre os outros que sempre me interessou. Uma certa visão humanista. O reflectir sobre os outros, o tentar compreender os outros. As pessoas interessam-me para lá da condição social. Valem por si. E estão ali para se cumprir naturalmente a si mesmas. Essa ponte com os outros tem sido uma das coisas mais enriquecedoras. É também um desencadeador da criação, e das ficções.

 

Porque é que as canções, mais do que tudo, são a forma de comunicar as suas ficções? Porquê esta fórmula?

Representava papéis quando era pequenino, sozinho. Dizia o Cântico Negro porque ouvia o Villaret na televisão ("Não sei para onde vou, sei que não vou por aí"). Tinha uma memória completamente adesiva. Ainda tenho um bocadinho, mas já são muitos charros depois. Escrevia uma espécie de conto e não acabava, cansava-me. Sou de fogo curto na criação. O meu pai censurava-me por isso. Dizia: "Aquilo que se começa é preciso acabar". E tinha razão. Se calhar foi a razão de fazer canções. Uma canção, conseguia acabá-la. Embora trabalhando muito nela, consigo encerrar o assunto. Um romance, não. Encerrar o assunto é muito importante. "Mudemos de assunto, sim?"

 

Na vida também é assim? Quando olha para o que estava no barco, a caminho da Jamaica, quando olha para o que estudava na Suíça.

Está cumprido, está cumprido. Porque é que não voltei para o Porto? Vim para Lisboa para gravar um disco, e vim fazer uma peça de teatro, Liberdade, Liberdade. Mas o Porto estava cumprido. Adoro voltar ao Porto, mas estava cumprido. Não gosto muito de voltar, recomeçar histórias.

 

Há palavras e conceitos que reaparecem muito. Tréguas, batalhas, uma coisa belicista. O que surpreende.

Uso muito uma linguagem, sem dar por ela, catastrófica. Tempestade. No Espalhem a Notícia: "A terra tremeu ontem, não mais do que anteontem". "

 

E o sol, como é costume, foi um augúrio de bonança"... Nessa canção fala do nascer de uma criança, e fá-lo muito próximo da Natureza.

São as metáforas que valem para tudo. A canção Bomba Relógio é uma metáfora para o coração, ou para os impulsos. "O teu amor quando palpita, verdade seja dita, põe rastilho no meu peito, trinta batidas num só beijo sem defeito". Uso muito essas palavras porque são mesmo essenciais. As palavras batalha ou trégua não se referem só a uma guerra, referem-se às relações pessoais e mesmo amorosas – outra coisa constante no meu discurso. Há várias canções sobre o fim dos amores. No Emboscadas, que o Camané cantou no último disco, diz-se: "E esta dor em que me vejo de nos ver quase no fim".

 

Nunca quer falar disso, mas percebe-se, nem que seja pelas canções, que a dimensão amorosa é essencial na sua vida. É como se ficássemos sempre com um retrato amputado, por não ser possível olhar para esse lado.

Mas pode-se olhar para esse lado, eu posso é não desvendar certas coisas.

 

No Mútuo Consentimento canta: "Assim como se anda a monte quando o amor se procura". Quando andou a monte, nesses anos de aventura, era o amor que procurava?

Não, eram as vivências em geral. No primeiro disco, Os Sobreviventes, a canção Romance de Um Dia na Estrada tem um verso que é a chave disso. Ela, que é mais velha, diz: "Tu que me falas de estradas, e eu só conheço um carreiro". E ele, que é um rapaz de viola ao ombro, diz: "Eu que falava de estradas, e só conhecia atalhos, e ela a mostrar-me caminhos, entre chaminés e orvalhos". Muitas vezes pensamos que estamos a ensinar os outros, e estamos a aprender com os outros. É nesse processo transformador de nós mesmos que crescemos.

 

Porque é que se lembrou dessa frase, dessa canção?

Quando somos confrontados com experiências difíceis (das vezes em que fui preso, em que tive experiências limite), há um processo intuitivo de convocar as forças, de sentir que tem de se tirar alguma coisa de bom disso, que tem que se aprender com isso.

 

O que é que aprendeu nas experiências da prisão?

Por um lado, é o sentir que se está a viver mais uma experiência. Por outro, há um sentido romanesco que permite sair de nós mesmos e ganhar forças nisso. Apanhei choques eléctricos na cabeça, com capuz e tudo. Por nada. Porque queriam saber. Porque é ritual. Fazem a toda a gente. Há uma estranha força que aparece, um "sei mais da vida do que esta pessoa". E nesse momento sai-se de nós e entra-se numa coisa maior. Sente-se que se está a fazer parte de uma história comum qualquer. Sou irmão dessas pessoas. É evidente que não sei o que acontece a quem é torturado durante semanas. Não foi o meu caso. A capacidade de resistência é outra coisa. Respeito profundamente isso, porque andei por essas zonas episodicamente.

 

Na primeira situação, esteve preso em plena ditadura militar, com os Living Theatre, acusados de subversão e posse de maconha. Psicotrópicos, como eles diziam.

Foi um pretexto óbvio para nos silenciar. Era o primeiro dia de um festival de artes de Ouro Preto que iria reunir muita da inteligentsia brasileira. Tinha havido já uma campanha feroz de uma organização de extrema-direita contra a nossa presença, com panfletos distribuídos à porta das igrejas. Fomos expulsos dois meses mais tarde, e depois absolvidos.

 

Na segunda, no começo dos anos 80, foi igualmente acusado de posse de maconha.

É uma longa história – tipo "quem tramou Sérgio Godinho?" – e foi consequência da primeira acusação. O processo de expulsão nunca tinha sido revisto, apesar das minhas idas frequentes ao Brasil. Houve um movimento de solidariedade em Portugal e no Brasil, que me fez amar para sempre essas pessoas. A maneira como falavam e se interessavam pelo caso, a maneira como me falavam na rua, ainda sob liberdade condicional... Pediam-me desculpa, em nome do Brasil. Sentiam-se responsáveis por uma coisa que me tinha feito mal, a mim. Eles como comunidade colectiva, Brasil.

 

A canção com Chico Buarque vem no seguimento dessa segunda prisão.

Vem. Eu estava no Brasil para preparar o Coincidências, que seria quase todo feito com parcerias com brasileiros. Acabou por ser só metade. Quando estava para voltar a Portugal – fui expulso como maneira de sair, mesmo sem interromper o julgamento – disse: "Tenho que recuperar o tempo que passou, este hiato, tenho que avançar criativamente". E o Chico disse: "Já encontrei o caminho da canção".

 

Por isso a canção chama-se Um Tempo que Passou.

"Vou uma vez mais correr atrás de todo o meu tempo perdido, quem sabe, está guardado num relógio escondido, por quem nem avalia o tempo que tem". Houve muita coisa que me magoou mas tenho capacidade de resiliência. Tenho um lado muito positivo. Mesmo em cenários muito sombrios, reajo.

 

A música salvou-o?

Não, não salvou porque nunca estive perdido. Contextualizou uma procura, isso é verdade.

 

O homem que não procura a salvação, podia ser um título para si?

Mas também não sou eu que vou salvar os outros. A minha mãe dizia que lhe fazia bem ouvir Bach porque lhe organizava a cabeça. Penso que compor me organiza a cabeça. Não só a nível formal. Uma dinâmica musical é difícil de explicar, só ouvindo. E o acto da criação é essencial porque me ajuda a pensar.

 

Publicada originalmente na Revista Pública, em Setembro de 2011