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Anabela Mota Ribeiro

Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (s/ Brasil)

27.10.24

Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling quiseram, não “contar uma história do Brasil, mas fazer do Brasil uma história”. Traçar uma biografia, destacar personagens que habitam uma casa grande (e não apenas os senhores), apontar datas fracturantes, movimentos subterrâneos, convulsões que mudam o mundo de lugar. Violência, mestiçagem, desigualdade, liberdade são alguns dos vocábulos centrais. “Brasil: uma Biografia” é um livro que nos permite olhar para o Brasil actual e perceber heranças, continuidades e rupturas.

 

“Deus é brasileiro”, como diz o ditado? O que quer isto dizer?

Lilia – Como diz Roland Barthes num livro chamado “Mitologias”, todo o povo é profundamente etnocêntrico. Os brasileiros também são. O ditado vem da ideia de que esse é um país sem furacões, terramotos, maremotos. Uma terra abençoada por Deus. O problema desse provérbio, que é muito usado no Brasil, é que pode causar uma grande acomodação. Não é preciso fazer muita coisa. Tudo se resolve no poder mágico das ideias.

 

É contar com uma força providencial, no fundo.

Lilia – É. Só muito recentemente os brasileiros se têm dado conta de que Deus pode não ser brasileiro.

Heloísa – Essa ideia de um país com uma natureza que tudo resolve, com a ausência de qualquer tipo de exigência porque tudo vai cair do céu, produz um povo que não actua no sentido de construir a sua própria história.

 

Qual foi o momento de viragem? Quando é que os brasileiros começaram a sentir que Deus podia não estar pondo a mão, resolvendo tudo?

Lilia – A noção de um país pacífico é um dos grandes mitos nacionais. O Brasil nunca foi pacífico. Vejamos o extermínio dos indígenas no primeiro encontro/desencontro com o mundo ocidental. Vejamos o sistema escravocrata que naturalizou um regime de trabalho forçado, cuja base é a violência. Existiram revoltas o tempo todo. O Brasil fez esse caminho inconcluso – a democracia é um projecto sempre em melhoramento, como Heloísa me ensina. Vem vivendo anos de democratização e isso tem dado aos brasileiros a oportunidade de vivenciar os seus direitos civis. Entrámos tarde na linguagem dos direitos civis, do direito à diferença na igualdade.

Heloísa – Construir uma democracia não é fácil.

 

Em nenhum país.

Heloísa – O povo brasileiro viu-se diante de algumas questões. Saiu de uma ditadura [1964/85], fez uma longa transição. O período dos dois últimos governos militares, do general Geisel [74/79] e do general Figueiredo [79/85], é muito engenhoso. A sociedade teve de se haver com uma escolha: ou temos um governo autoritário ou vamos ter que nos responsabilizar [por nós mesmo]. Foi um momento importante para deixar de pensar que Deus é brasileiro. O segundo momento: ao se deparar com a democracia, o povo tem que se reconhecer dentro de um catálogo de direitos em que todos são iguais. O que, para uma sociedade que tem uma raiz escravista, que passou séculos lidando com o privilégio, é dificílimo. Esta experimentação significa, já no século XXI, ter de reconhecer como meu igual as camadas pobres da população, o negro.

Lilia – É um país que continua sendo campeão de desigualdade. Que continua praticando homofobismos.

 

Sob vários pontos de vista, nomeadamente em questões ligadas aos costumes, é um país conservador.

Lilia – Muito conservador. É também um país de problemas ecológicos seriíssimos. Que faz uma discriminação silenciosa e perversa. O jogo de lidar com a experiência virtuosa da democracia... As eleições têm sido resolvidas na urna, absolutamente fiáveis, os resultados saem em poucas horas. As instituições democráticas estão consolidadas. Mas é um país com problemas de res-publica muito fortes.      

Heloísa – Talvez Deus tenha deixado o seguinte: “Vou ali, não volto já e deixo no meu lugar a democracia e a república para vocês se virarem”.

Lilia – E o jeitinho não funciona mais.

 

Não? Em Portugal usamos uma palavra equivalente ao jeitinho: desenrascanço (em que os portugueses são pródigos). Muitas das coisas que escrevem sobre o Brasil poderiam ser sobre Portugal. Por exemplo, a dificuldade em planificar, organizar, contar com uma presença salvífica, encarnada em Deus ou numa entidade exterior, que tudo resolve.

Lilia – Há um livro fundamental no nosso livro, do Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”, escrito em 1936. Parte da nossa origem portuguesa. E parte da figura do ladrilhador e do semeador. Usa estes termos dicotómicos que mostram certas tendências. É um modelo de colonização de que não se sai de forma incólume. Há muito em comum. Para voltar ao Sérgio Buarque de Holanda: brasileiros e portugueses têm um inflacionamento da esfera privada em detrimento da pública.

 

Aqui, tudo é fulanizado, tratado como se fosse uma questão pessoal.

Lilia – É o império da pessoa, do diminutivo.

 

Escrevem no livro que no Brasil até os santos são tratados pelo diminutivo.

Lilia – Exactamente. Os presidentes são chamados pelo primeiro nome.

Heloísa – Há um outro autor que também chama a atenção para a influência dos portugueses que incorporámos, o Raymundo Faoro. N’ “Os Donos do Poder” mostra o tipo de Estado – patrimonialista – que se produz a partir da relação com Portugal. Aqui também deve ser forte a burocracia. A quantidade de papel. O documentar tudo.

 

Traduz-se num controlo absoluto sobre todos os passos.

Heloísa – É uma dimensão importante, que não é exclusiva do brasileiro, e que mostra sociedades que tiveram um longo caminho para começar a pensar a democracia. A democracia é problemática para esse tipo de sociedade. Essa coisa de todo o mundo ser igual é muito complicada na cabeça dessa sociedade.

 

Ainda se ouve dizer, a propósito da igualdade: idealmente, sim, na prática, ainda não estamos preparados para isso?

Heloísa – No Brasil não se ouve mais isso. Mas ou essa cultura política começa a atravessar o quotidiano das pessoas, e nunca vai estar pronta porque a democracia não tem fim, e novos direitos vão ser colocados em cena, ou não vai caminhar.

Uma coisa [relacionada com a forma como os políticos são tratados]: os ditadores não têm um diminutivo.

 

Porque são figuras distantes, inacessíveis?

Heloísa – Exacto. Nenhum ditador foi chamado pelo primeiro nome. Nenhum deles tem apelido [alcunha].

 

Em Portugal, os políticos homens são tratados pelo apelido de família, as mulheres pelo primeiro nome. Normalmente é assim. A ministra das Finanças é a ministra Maria Luís. O seu predecessor era o ministro Vítor Gaspar.

Lilia – A Dilma [Rousseff] é Dilma. A Marina [Lima] é Marina.

Heloísa – O Aloizio é Aloizio Mercadante. O Levy é o Joaquim Levy.

Lilia – Não tem muita regra. Mas não é como com os militares.

 

Desigualdade, violência e mestiçagem são palavras nucleares para compreender a biografia do Brasil dos últimos 150 anos?

Lilia – Vamos aumentar essa conta.

Heloísa – Com este livro, o esforço que a gente fez foi dizer que o Brasil não é uma coisa ou outra. O Brasil é uma coisa e outra. Concordo com você: o Brasil tem uma sociedade muito violenta, muito desigual e isso tem a ver com a mestiçagem. Mestiçagem nas suas duas faces – que é um conceito importante que a Lilia trabalha de uma maneira nova. O que está faltando [nessas palavras nucleares] é que, simultaneamente, essa é uma sociedade que desde a sua origem, desde o encontro com os portugueses, luta desesperadamente pela construção da liberdade.

 

E são diferentes conceitos de liberdade.

Heloísa – Nas minas, no século XVIII, era autonomia. Em 1940, são os direitos civis. A forma como a liberdade vai aparecer, o nome que ela vai receber varia no tempo. O conteúdo é dado pelo tempo e pelas demandas das pessoas. Mas a liberdade é um traço de permanência.

Lilia – A mestiçagem é uma questão fundamental. Durante muito tempo, a noção oficial de mestiçagem teve a ver com mistura. É uma perspectiva. Eu acho que não há mestiçagem sem separação. É próprio da mestiçagem acumular mistura e separação.

 

Pode explicitar esses aspectos?

Lilia – O Brasil carrega modelos de inclusão muito claros. Sobretudo em termos culturais, somos um produto mestiçado. Desde que o Brasil não é Brasil. Desde antes de os portugueses chegarem. Essas populações praticavam a antropofagia, que era o contacto entre diferentes grupos que levava a um produto diferente. Antropofagia era um contacto ritual, comer o inimigo significava comer a sua alma, comer a sua força e deglutir algo novo. A entrada dos africanos de maneira compulsória (o Brasil recebeu de 40 a 48% das populações africanas que saíram para trabalhar nas plantações da América), gerou outro tipo de mestiçagem. Houve uma mestiçagem cultural desde esse momento? Claro que sim. Veja a nossa linguagem. Veja a nossa culinária. A nossa religião é profundamente mestiça. O candomblé não veio directamente de África, modificou-se no Brasil. A capoeira é uma criação brasileira resultado da mistura.

Ao mesmo tempo, excluiu-se muito. Não há como negar que a sociedade do açúcar é pautada pelo trabalho escravo. Isto criou sociedades profundamente divididas. O universo da casa grande: o Brasil exportou uma determinada arquitectura que separa rigidamente os espaços sociais dos espaços do serviço.

Heloísa – Tem no Brasil, até hoje, elevador de serviço.

 

Em Portugal, os prédios de há 50 anos tinham elevador de serviço.

Lilia – Nós continuamos a exportar [esse modelo]. Em Miami, onde estão os brasileiros agora, estão introduzindo o elevador de serviço.

Heloísa – Nos prédios que os brasileiros endinheirados estão fazendo em Miami, há o quarta da empregada e o elevador de serviço.

 

Como é que os empregados eram e são chamados no Brasil? Aqui, houve um tempo em que eram “criadas de servir”. Agora são “empregadas”.

Lilia – Nos inventários são os “bens semoventes”. Os bens eram divididos em bens imóveis (propriedades), móveis (ouro) e semoventes (os escravizados, com o gado). Os escravos podiam ser leiloados, penhorados, segurados, mortos.

Não se fala criado, hoje. É doméstica. O trabalho doméstico não era registado, não tinha limite de horas, a pessoa vivia no mesmo local mas apartada (na área de serviço).

 

Foi uma grande cartada de Dilma, no período que antecedeu as últimas eleições: o estatuto da empregada doméstica. Milhões de mulheres foram tocadas pela medida.

Lilia – Foi uma grande cartada da democracia. É um projecto que fomos criando no sentido de limitar o horário das empregadas domésticas.

 

É importante perceber como é que essa matriz se foi metamorfoseando nas últimas décadas. A abolição data de 1888. Na Constituição não há qualquer espaço para falar de escravidão. Mas há uma herança que está longe de desaparecer. Não podemos entender estes tumultos recentes sem perceber o subterrâneo, a história que lhe dá origem.

Heloísa – A escravidão continua. Não a escravidão do século XVIII, mercantil. Mas continua a ter formas de trabalho escravo no interior do Brasil. Há um esforço da polícia no sentido de o detectar.

Lilia – O trabalho com a borracha era um trabalho escravo. E era pós-abolição. Os trabalhadores eram colocados em locais isolados da Amazónia, sem nada, em regime de escravidão. Dito isto: 1888 foi nada? Não. Foi a lei mais curta e mais popular que existiu no Brasil.

 

Lei revolucionária. Não tendo resolvido tudo, marca um antes e um depois.

Lilia – Concordo totalmente. Sabe-se hoje que Pedro II não estava no Brasil e que fez isso tentando garantir um terceiro reinado para Isabel. Não conseguiu. Na batalha pela República, os negros foram leais a Isabel. “Sabemos que a Monarquia nos deu a abolição. Não sabemos o que a República fará.” O problema é que durante muito tempo essa lei foi vendida pelo Estado como um presente!, e não como um processo de luta. Muitas das cartas de alforria eram compradas pelo próprio escravo. E sabe qual era a primeira condição para ser reconduzido à escravidão? A infidelidade. A linguagem da dependência e a linguagem do favor perpetuou-se na lei da abolição. Isso sem esquecer os racismos que começam logo após.

 

O que é que fica de uma sociedade esclavagista, mais do que tudo?

Heloísa – Fica o nó da origem escravista. Que reaparece no Brasil contemporâneo das mais diferentes formas. Tem uma canção que Chico Buarque fez recentemente com João Bosco. “Sinhá”. Profundamente dolorosa. É bem o Chico filho do Sérgio Buarque falando.

 

Como é?

Heloísa – Chico flagra o momento anterior à tragédia. O escravo vai ter os olhos furados pelo senhor porque viu a mulher branca no açude. O escravo diz: “Não faz isso, não”. No final da canção, a gente descobre que o escravo é filho da senhora, da Iaiá.

Há um censo feito pela Lilia em que as pessoas dizem: “Eu não sou racista”. “Conhece alguém racista?” “Sim. Meu pai, minha mãe, minha avó...”. Todo o mundo é racista, menos o próprio.

 

O racismo é uma herança óbvia da escravatura, desse período. É a principal?

Heloísa – O racismo e a violência. A violência que, na sociedade brasileira, está cada vez mais escancarada. Não é que tenha aumentado. Está é para quem quiser ver.

 

As pessoas têm embaraço em dizer que são racistas?

Lilia – Nessa pesquisa, 97% diziam não ter preconceito e 99% diziam que conheciam alguém que tinha. O detalhe é que não pedíamos nomes, as pessoas é que queriam dar. E eram todos próximos. “A minha avó não entra no elevador com [um negro]”: era um clássico! O racista é o outro.

As acções afirmativas não têm, por milagre, a possibilidade de acabar com o racismo num país que sempre foi racista. Mas é inegável que trouxeram isto: não é mais possível dizer “Eu não tenho esse problema”. Este é um turning point no Brasil. As acções afirmativas trouxeram o estudo de África nas escolas. “Para quê estudar África?” Houve um momento em que a elite achou que era desnecessário. Mas o Brasil é um país negro e mestiço, também.

 

E muito. Cerca de 60% a 70% da população é constituída por negro e pardo. Por pardo, deve entender-se mestiço?

Lilia – Não. É et cetera. Esse é um país que se define por cores. O que já é um problema. O Brasil é branco, até há pouco tempo era vermelho (agora é indígena), amarelo (os orientais), preto (negro). E aí vem essa quinta categoria que é pardo. Pardo: ninguém é. É categoria de acusação. Ninguém se autodefine como pardo. De novo, é o racismo silencioso. Pardo é: nenhuma das anteriores. Todos nós sabemos que pardo é moreno. Só que os morenos não dizem: “Sou pardo”. Dizem: “Você é pardo”. “Não, você é que é.”

Heloísa – Nas notícias policiais, até há pouco tempo, o criminoso era sempre pardo. Não era mestiço, não era mulato. Era pardo.

Lilia – Pardo vem de pardal. Pássaro vagabundo, sem cor.

 

A palavra que me ocorreu quando estavam a descrever pardo foi pobre. Pode ser o que sobra de todas as categorias e que, sobretudo pela pobreza, não cabe em nenhuma delas. Faz sentido?

Lilia – Todo.

Heloísa – Pardo e pobre: as duas coisas estão associadas.

Lilia – A sociedade constrói marcadores para determinar hierarquias. Se diz: “Só estudo o racismo”, está cristalizando o problema. Essas marcas de diferença estão associadas a outras. Raça associa-se com frequência a género e a classe social. Se fizer uma política de bónus (não de quotas), como fizemos na Universidade de São Paulo... “Pessoas que durante três anos estudaram na escola pública, ganha tantos pontos”...

Heloísa – Se fizer isto, muda a cor da universidade.

Lilia – Serão pessoas de classe social mais pobre e serão negros.

Heloísa – Em Medicina, você não via negro. A partir de políticas [de promoção dos que vêm] da escola pública, mudou a fisionomia.

Lilia – A convivência com a diferença não é só uma obrigação: é uma vantagem. Aumenta o seu repertório.

 

O outro, sobretudo se é pobre, sendo negro, sendo amarelo, é visto normalmente como uma ameaça. A atitude dominante não é a de achar que aumenta o meu repertório.

Heloísa – O desconhecido, o estranho é sempre uma ameaça.

Lilia – É uma ameaça, também, porque ele tira a minha vaga. Concordo com a ideia de que raça, existe uma, a humana. Raça é um conceito biologicamente falacioso. O que os homens fazem é construir em cima de raça, e constroem raças sociais.

 

Há uma canção escrita por Chico e Caetano e interpretada por Tom Jobim, Miúcha, também Chico e Caetano, “Vai levando”. Quando se olha para a fúria das manifestações recentes, a esperança de que “a gente vai levando”, já não funciona. Sobretudo depois de 20 milhões de brasileiros ascenderem à classe média. Parece que estamos numa situação pré-cataclísmica, que qualquer coisa vai mesmo ser mudada de lugar.

Heloísa – A gente só tem noção da História depois que ela passa. Mas quero arriscar dizer: talvez o Brasil esteja vivendo nesse momento o início de um novo capítulo da História do Brasil. Em 2013, as primeiras marchas talvez sejam o ponto de inflexão. O processo que começou em 88 com a redemocratização encerrou-se. O passado não é mais. Mas o futuro não é ainda. É para este tempo que os brasileiros têm que construir uma agenda – com ferramentas que a democracia os obriga a manipular. Como você disse, tem 20 milhões de brasileiros que saíram de uma posição...

 

Que querem manter.

Heloísa – Querem direitos. Que é que estava se reivindicando em 2013? Transportes, saúde. Que é que estava se dizendo? Que há um profundo gap entre o governo e a população.

 

O génio saiu da lâmpada, não quer voltar mais para o interior. E uma vez cá fora, exige direitos.

Lilia – Quem chegou num lugar, não volta [atrás]. Falamos tanto da ascensão da classe C... Tem consequências. Tem um filme muito bom, “A Família Braz” (de Dorrit [Harazim e Arthur Fontes], que acompanha uma família que faz esse caminho. Sai da favela, passa a comer comida japonesa, viaja para o exterior pela primeira vez, anda de avião pela primeira vez, entra na universidade pela primeira vez. Tem acesso. Tem o sonho da casa própria, o sonho do carro, o sonho da mobilidade.

Heloísa – Havia uma discussão recente que dizia assim: “Esses milhões de pessoas foram incorporados como consumidores”. Desde 2013 estão mostrando que não são consumidores. São cidadãos. Isso significa que querem que a agenda de direitos se expanda e se complete.

 

Os direitos têm que ver com o básico, a vida de todos os dias.

Heloísa – O transporte nas grandes cidades brasileiras é de facto apavorante. Lembro uma classe média tradicional nervosa, dizendo: “A gente agora vai para o aeroporto, parece rodoviária”. Mas não estamos lidando só com consumidores. O que é positivamente bom é o facto de estas pessoas se comportarem como cidadãos.

 

Brasil faz parte dos BRIC’s. No passado recente, o comportamento dos países emergentes tem sido muito diferente. O crescimento do Brasil não é o mesmo que era não há muitos anos. Por causa destas questões sociais e desta convulsão, há quem comece a desconfiar seriamente que o Brasil possa chegar onde prometia. Há um custo social que entra na equação de uma maneira muito forte.

Lilia – Sabe que há um bom tempo que dou aula nos Estados Unidos. Comecei em Brown, depois Columbia, agora Princeton. Vi essa emergência do Brasil e essa queda vertiginosa. Acho que não é nem o céu nem o inferno. Quando comecei a ser chamada para dar aula no exterior, eu causava uma profunda decepção. Não sou morena, não tenho tatuagem, não tenho pena no cabelo, não sou exuberante. Esperavam um Brasil exótico. A imagem do Brasil, antes dos BRIC’s, era a do país da capoeira, do candomblé.

 

E era uma imagem muito sexualizada? De corpo exposto.

Lilia – Muito. Sobretudo da mulher.

Heloísa – Era a mulata.

Lilia – A visão comum é a de que toda a brasileira tem uma coisa sensual. Depois disso virámos o país das favelas e só se falava da violência das favelas. Não digo que não somos. Assim como não digo que não somos o país do candomblé. Ao contrário: o meu argumento é que somos. Mas não somos só. Depois foi a voga dos BRIC’s. De repente, o país das favelas virou o país da solução. De repente éramos a solução criativa para o mundo. Eu já dizia que isso era uma bolha que ia estourar... Veja o movimento pendular. As pessoas não prestavam atenção ao facto de não termos enfrentado os problemas estruturais. Transportes, saúde, educação, desigualdade.

 

Portanto, o Brasil crescia, prometia, mas era um gigante com pés de barro.      

Lilia – Exactamente. Não tinha jeito de não estourar. Junto com isso, uma grande promoção do Brasil.

 

Com a Copa, as Olimpíadas.

Lilia – Parte das manifestações era para dizer: “Não queremos estádios, queremos dinheiro para professor”.

 

Também se considerou que, uma vez que havia esse comprometimento com o exterior, pelo menos até 2016, não havia outro remédio senão crescer. E que a bolha ia rebentar a seguir.

Lilia – A verdade é que a maquilhagem não dá conta. Para construir isso tudo, é preciso tirar de algum lugar. O cobertor era curto. O Brasil fez uma promoção para o exterior sem que existisse a compensação...

Heloísa – E não contaram com o povo brasileiro. Tem uma população que vai colocar uma agenda de direitos no lugar do estádio de futebol. Foi essa equação que, quando se vendeu o Brasil para a Copa ou para as Olimpíadas, não se considerou.

 

Grande erro?

Lilia – Penso que sim.

Heloísa – E teve consequências para os governos.

 

O livro é uma biografia do Brasil. Pensemos que é uma biografia de uma família. Quem é quem?

Lilia – O Brasil é a família composta e complexa. Este Brasil que estamos trazendo como biografia compõe o mando, géneros, gerações e trabalho.

Heloísa – E traz tanto os grandes personagens, o pai e a mãe, os personagens médios, os filhos, como traz os personagens que estão ao rés do chão, e que vão ser determinantes no momento em que o país tiver que fazer escolhas.

Lilia – E, como toda a biografia, traz a trajectória do imponderável. Terminamos desconfiados.

Heloísa – Por isso dizemos que achamos que vai começar um capítulo novo. O máximo que pode pensar é o seguinte: há uma agenda a ser construída. As questões dessa agenda estão colocando uma desfasagem entre o Estado e a sociedade. Os direitos. A luta contra a corrupção.

 

Por onde é que essa agenda vai?

Heloísa – Eu espero que vá pelos valores republicanos.

Lilia – Há um movimento (a gente é contra), que é forte, pelo impeachment, pela direita, pelo governo militar. Isto é muito plural.

 

Está tudo a acontecer – essa é a noção que fica.

Lilia – E isso é impressionante. Esses lados todos que não são convexos. O livro está em primeiro lugar no top de vendas há dez dias. Estando dividindo o primeiro lugar com os livros de colorir! [riso] Acho que é um livro republicano, indignado. E é um livro de duas mulheres. Os nossos historiadores são todos homens.

Heloísa – Vou roubar uma frase da Lilia. Ela fala que o nosso presente está carregado de passado. O passado fornece as ferramentas. Talvez o facto de o livro estar a receber essa aceitação do povo brasileiro tenha a ver com o momento que esse povo está vivendo e o desejo de saber mais da sua História. O Guimarães Rosa dizia que um livro é quase sempre maior do que a gente. Não sei se esse é maior. Se for, uma parte do tamanho dele vem de poder oferecer a um público não académico alguns elementos para pensar a sua própria história.

Lilia – Não é o [Jacques] Le Goff que diz que os historiadores voltam ao passado com as perguntas do seu tempo? Então acho que a gente está voltando com perguntas, que são minhas e da Heloísa, mas que são do nosso tempo.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2015

 

 

 

 

Carlos Amaral Dias (s/ BES)

24.10.24

Portanto, há um ano o BES era um banco sólido, o único a prescindir dos CoCos disponibilizados pela Troika. Ricardo Salgado era o Dono Disto Tudo, (DDT em versão resumida), eleito repetidamente como o mais poderoso da economia portuguesa nas páginas deste jornal. Eram comentadas em voz baixa as dificuldades no grupo, eram relegados para um plano de tensão familiar os nomes de José Maria Ricciardi ou Pedro Queiroz Pereira. Mesmo Álvaro Sobrinho, e Angola era toda outra peça de teatro, era um antigo delfim.

Como foi possível que tudo isto acontecesse? Ante os nossos olhos, sem que o pudéssemos antecipar? Isto: o fim de um império que parecia tão lustroso quanto o romano. E que ruiu, como aquele. Sem safa.

Fernando Ulrich disse que era bom que um psiquiatra explicasse o que não tem explicação. Talvez quisesse dizer: o que é do domínio do inconsciente, do simbólico, que está do lado do que não se vê. O resto, vemos todos: milhões a irem ao ar, uma fúria incontida, um terramoto que não deixou um pedra no lugar. O psicanalista Carlos Amaral Dias põe-nos outros óculos para compreender este cataclismo.

 

A incredulidade é o sentimento dominante que há em relação ao caso BES (e ao caso PT). Esta sensação deriva sobretudo do poder desmesurado que aquelas pessoas tinham? De a fortuna parecer sólida?

O Banco Privado, o BPN e o BES parece que fazem parte da mesma coisa, mas não fazem. Os Espírito Santo são uma família de banqueiros há muito tempo. Não se pode comparar os parvenu, os chegados há pouco tempo, com aqueles que sempre estiveram lá.

 

É uma diferença tão substancial assim, entre os parvenu e aqueles que estão no negócios há 100 anos?

É uma diferença que reenvia para a graça narcísica. São famílias que foram abençoadas. Receberam, como as famílias aristocráticas, a graça narcísica de serem assim. E de repente estas pessoas…

 

São tão mortais como nós.

De repente as pessoas caem. E quando caem do cavalo, não caem como os outros, caem de outra maneira. Aliás, caem da mesma maneira, mas no nosso imaginário não é assim. Eles correspondem às nossas imagens idealizadas. Se há sítio dentro de nós onde essas figuras estão colocadas, é o do romance familiar. O romance familiar é uma coisa de que Freud falava. Em algum momento da nossa infância, todos imaginamos que os nossos pais não são os nossos pais. São outras pessoas quaisquer, que habitualmente imaginamos com posses, nobres. Os nossos pais são uma espécie de sobreviventes a uma ideia de pais idealizados. Essa fantasia povoa muito a cabeça dos seres humanos. Daqueles que vão aos cabeleireiros e não só.

 

Dos que vão aos cabeleireiros?

As revistas dos cabeleireiros dão vazão a isto. Aquelas páginas, aquelas vidas correspondem a qualquer coisa, a esta idealização.

 

No caso do Banco Português de Negócios, são pessoas que não tinham este passado, e não tendo este passado são mais próximas da realidade. As pessoas da família Espírito Santo, que há bocado localizei no romance familiar, não são desta realidade. Na nossa fantasia são famílias nobres.

 

O facto de os Espírito Santo serem uma família com uma tradição longa, faz com que tudo isto seja mais incrível para nós. Mais incrível do que a gravidade dos eventuais crimes que ali foram praticados?, dos montantes perdidos? É sobretudo a destruição de um conceito, de um mito.

Exactamente. Há quem pense que o que se passa com o BES é mais grave do que aquilo que se passou com o BPN. Não sei se é verdade. Há uma coisa que sei: ninguém dedicou tantas páginas de jornais a descrever os arguidos no caso BPN [como aquelas que se dedicam aos envolvidos no caso BES].

 

Começamos também a fantasiar como é que serão os ricos em casa? Não há a mesma curiosidade em relação a Oliveira e Costa que há em relação a Ricardo Salgado.

É o que estou a dizer.

 

Conseguimos imaginar como será uma discussão de Oliveira e Costa com o seu contabilista. Mas como é que será uma discussão de Ricardo Salgado com o seu contabilista?

É mais fácil imaginar a de Oliveira e Costa. Oliveira e Costa é um produto, dizem, (todas as generalizações podem ser perigosas), um filho do cavaquismo. Era uma figura que conhecíamos como secretário de Estado. Depois montou um banco. Vi uma fotografia dele, publicada num jornal sério, um jornal que faz opinião, em que estava com o filho a comprar peixe no Algarve. Isto era uma notícia de jornal, porquê? Não imaginamos ninguém a pôr Ricardo Salgado a comprar peixe.

 

Seria uma coisa exótica.

Sim. No caso de Oliveira e Costa era uma coisa banal.

 

Vamos voltar ao momento em que as pessoas caem do cavalo. O estardalhaço que provocam é diferente. Além do crime, em termos de percepção pública, o que é que faz as pessoas cair?

Em primeiro lugar é o lugar onde a ferida narcísica está colocada. O nível, o tamanho, o que é que foi apanhado. No caso dos Espírito Santo não é uma pessoa, no caso do Oliveira e Costa é uma pessoa. No caso Espírito Santo é uma pessoa e toda a família nos seus vários ramos. Não quero ser cáustico, e não quero que seja mal entendido o que vou dizer, mas é como o desaparecimento da família real depois da tomada da Bastilha. Quando cai uma família não cai apenas uma pessoa, cai uma pessoa e caem os possíveis herdeiros do nome dessa pessoa.

 

É preciso mais do que uma geração para recuperar a honra de um nome?

Não sei se não pode ficar um nome maldito... (Um amigo meu, psicanalista francês, disse-me: “Só mesmo vocês para terem um banco chamado Espírito Santo” [risos].

 

Dinheiro abençoado.

Era um nome fantástico para um banco. Também em termos da nossa visão do nome e da família, tudo isto é uma coisa já abençoada.)

 

Como é que não tinha eclodido ainda este ódio entre ricos e pobres? Nós, os pobres, a olhar para os então ricos, Espírito Santo... A zanga, a cobiça, a inveja. Todos esses sentimentos foram calcados. Até que agora, assim como um génio que sai da lâmpada, vem tudo ao mesmo tempo.

Como é que pensa que foi com Luís XVI? Os franceses, durante muito tempo, deram-se bem com o sistema. O caminho [da revolução] é feito devagar.

[No caso do BES], diz-se que havia sinais que seriam fáceis de detectar para algumas pessoas. Diz-se que o próprio Banco de Portugal tinha dados. Uma situação como esta pode despertar uma figura de recusa. Recusamo-nos a admitir que aquilo pode mesmo ser verdade. Repare, quando foi da zanga entre o Ricardo e o Ricciardi, nunca imaginámos que fosse por questões deste tipo [financeiras]. Eram questões de poder.

 

Uma coisa é o drama familiar e a disputa pelo poder, outra coisa é a ruptura financeira e os eventuais crimes praticados. Se estamos todos incrédulos com isto, e também com a rapidez com que esta deflagração aconteceu, consegue imaginar como é que o próprio Ricardo Salgado está? Ele imaginava que isto lhe podia acontecer?

Não. Aquela ideia que se tinha sobre ele, de ser o “dono disto tudo”…

 

Ou o Papa. Eram os dois cognomes.

Ora, o que é que se acha do Papa?

 

Que é infalível, e mais poderoso que tudo.

Exactamente. Ao mesmo tempo não se pensa que o Papa, excepto no filme O Padrinho, possa ser devasso e corrupto. Havia os Bórgia, mas foi lá para trás.

 

O Ricardo Salgado achava de si próprio que era o “dono disto tudo”?

Sim, e que por isso mesmo estava a coberto de qualquer coisa. E nós criámos em relação a este caso uma figura de recusa. Esta relação entre o meio [financeiro/a sociedade] e ele é da ordem do imaginário. A imagem reflectida no espelho é aquela que as pessoas lhe devolvem.

 

E a ideia que temos de nós está completamente investida da imagem que aparece reflectida no espelho.

Sim. Nós começamos por saber que somos nós a partir do olhar que nos deitam os pais. Essa é a primeira identificação.

Nós, a comunidade, éramos também o espelho do Ricardo.

Já revi tudo para trás e para a frente, e não temos mais nenhuma família com esta dimensão. Nem a família real portuguesa. A queda de Salgado, a queda dos Espírito Santo, foi, em termos de realeza, o acontecimento mais importante em Portugal depois da morte do D. Carlos.

 

As características físicas de Salgado, dos Espírito Santo importam? Aquele olho azul, a pinta aristocrática cultivada há várias gerações, parece superficial mas…

Ajuda.

 

Não têm ar de pobre, não há vestígios de mãos calejadas.

Não. Veja os nossos ricos, os Amorim: não têm esse lado [aristocrático]. O Amorim pode ser o nosso vizinho. Mesmo agora, que é o homem mais rico de Portugal, não lhe atribuímos essa aura. Esta atribuição é do imaginário [colectivo]. O imaginário devolve à pessoa essa imagem. Sendo que é uma identificação alienada, é o outro/o espelho que está a dizer: “Isto sou eu”. Então, como libertar-me daquilo que a imagem me devolve? Criou-se uma situação em que a verdade sobre ele próprio ficou completamente alienada. Ela só veio agora ao de cima porque o espelho partiu.

 

Partiu deveras?

Não penso que o Ricardo tenha ficado destruído só pela situação [de ruína financeira]. É também pela perda [da imagem], pelo espelho partido.

 

Pelo dano reputacional. Por deixar de se poder rever nessa imagem de “dono disto tudo” que durante anos apareceu reflectida no espelho?

Sim. O espelho partido é a pior coisa que pode acontecer. O Ricardo deve ter esse sentimento neste momento.

 

Ninguém ousaria há uns meses dizer mal de Ricardo Salgado, e pouco depois, quem é que poderia dizer bem de Ricardo Salgado? A volatilidade deste poder é uma coisa surpreendente para Salgado?

É. Este lugar é um lugar que o prendeu no pior sentido do termo. “Estive neste lugar, posso tudo, nada me é estranho em termos de poder”. Quando vemos a quantidade enorme de coisas em que aquela família estava metida, é mesmo caso para dizer que podiam tudo.

 

Quando as pessoas estão habituadas a ter poder, e têm mais e mais poder, é muito difícil manter uma relação com a realidade, manter os pés no chão, e perceber que há coisas que não se pode ter.

Há coisas que as pessoas não perceberão. Em Marrocos, na Tunísia, até há pouco tempo perguntava-se: “Quantos camelos custa uma noiva?, quantos camelos queres pela tua filha?”. Por que é que essas perguntas nos chocam? Porque sabemos que há coisas que não têm preço. Mas há pessoas que pensam que não é assim. Quantos camelos vale uma noiva, quantos camelos vale uma filha? Há pessoas que pensam que há uma resposta para isto.

 

Mas não é normal que as pessoas pensem assim se a vida toda acreditaram que tudo lhes era permitido, que podiam ter tudo?

Com certeza. Essa é uma dimensão mais omnipotente, que tem a ver com a maneira como fomos educados, mas também com a maneira como fomos mal educados. Não no sentido de ter modos. Mal educados porque não fomos criados nem crescemos com algum suporte da realidade.

 

Ocorreu-me agora o que a família viveu há 40 anos, no pós-revolução. Foi um grande abalo, mas não teve nada que ver com isto.

Foram postos, sem poder, fora Portugal. Mas não perderem nunca a imagem, nem sequer as relações ligadas à imagem. Mesmo lá fora mantiveram toda uma rede de contactos com pessoas ligadas às finanças. Nunca deixaram de fazer parte da família, estes contactos.

 

Outra diferença: o contexto do país. Não eram a única família a passar pelo que passaram.

Sim.

 

O que não havia em 75 era a vergonha, é isso?

Sim. E acha isso assim tão pouco?

 

Não. Estou apenas a marcar de uma forma nítida o contraste entre uma situação e outra.

Isso é importante. Há algum afecto mais narcísico do que a vergonha? Não há. Freud diz que há três sonhos, cada um de nós tem pelo menos um, e pelo menos uma vez. O sonho dos exames, em que voltaria a um estado em que estava a ser examinado, e tinha medo de não corresponder àquilo que pediam. O sonho de “o rei vai nu”.

 

Quer dizer, alguém ver que não valemos o que achamos que valemos?

Exactamente. E o sonho de voar. Ora, o sonho de “o rei vai nu” é aquele que nos envia para o narcisismo. Agora, despido, quem sou eu? Enquanto que o primeiro sonho é o sonho do super-eu, da autoridade, que dentro de nós nos continua a julgar, neste sonho estamos nus. E quando dizemos que ficou posto a nu, estamos a dizer que qualquer coisa que não poderia ser vista, foi vista. Tem sempre a ver com o narcisismo. Quando fala da vergonha está a falar do afecto mais primário (em conjunto com a humilhação).

 

A vergonha, a humilhação: vão logo dar à rejeição.

Há dois tipos de vergonha, a primária e a secundária. A vergonha mais secundária é as pessoas saberem qualquer coisa da nossa vida íntima, que só a nós diz respeito. A vergonha primária está muito naquela frase portuguesa: “Se houvesse um buraco no chão, metia-me lá”.

 

Onde é que entra um sentimento de ter sido injustiçado, ter sido traído? Estou a pensar em Ricardo Salgado. As traições, as perseguições, as injustiças. A noção de ter feito o que outros fizeram, mas ter sido apanhado. Como é que isto ajuda a pessoa a viver com ela própria e com uma situação tão desmesurada quanto esta?

É muito difícil. Vamos imaginar que eu era banqueiro, que me tinha acontecido isto: eu não pintava a minha cara de preto, eu ia-me embora. “Ia-me embora” não é assim tão distante do suicídio. Se agarrar em mim e for viver para a Guatemala, onde ninguém sabe quem é o Ricardo, eu morri. Morri no espelho, não está lá ninguém. Era o que eu faria. Apesar de tudo ainda tenho algum amor à vida.

 

Surpreende-o que não haja sangue?

Por enquanto.

 

Apesar de serem coisas diferentes, dois filhos de Madoff suicidaram-se. No Japão acontece com alguma frequência o suicídio entre líderes de empresas caídos em desgraça.

O suicídio poderá acontecer. Aquilo que estou a propor é até uma medida de prevenção do suicídio. “Não pense em suicidar-se, pense em ir-se embora”.

 

Neste caso, há ainda um ingrediente adicional: tudo isto se passa dentro de uma família, onde as coisas têm uma dimensão mais dramática.

Ser uma família complica muito. É uma família como eram os Stuarts em Inglaterra. Quando morre desta maneira um rei, ou uma rainha, a família desaparece.

 

José Maria Ricciardi imaginava que ia também na enxurrada?

Não.

 

E Salgado?

Pelo que ouvi dizer, o Ricardo pensou até ao último minuto que ainda podia salvar as coisas. E aí, mais uma vez, há uma recusa. Há uma recusa nossa de imaginar que isto pode acontecer. E há uma recusa dele. Depois de ficarmos estupefactos, voltamos à realidade e começamos a destruir dentro de nós, camada a camada, todas as camadas da família. Hoje já não estamos no período da negação, estamos no período em que sabemos que isto é assim. Penso que o Ricardo deve ter convencido os “contabilistas” que o rodeavam de que ia resolver a situação.

 

Há uma pessoa de que não falámos ainda, Pedro Queiroz Pereira. Tanto quanto se sabe, entregou no Banco de Portugal, um ano antes, um dossier com informação detalhada das irregularidades que estariam sendo praticadas no grupo. Não acha extraordinário que estas disputas (via Pedro Queiroz Pereira, via José Maria Ricciardi) sejam intra-grupo, intra-família?

Não. Isso é o mais normal nas famílias com o tal poder narcísico. A pergunta de César: “Também tu, Brutus?”. O amor que apesar de tudo está presente aqui...

 

Do Brutus para o César?

Sim. “Eu quero o teu poder, isto não é nada contra ti”. Como na Máfia. As pessoas faziam parte da mesma família. Puxam da pistola e dizem: “Isto não é pessoal, são negócios”. O Brutus amava César quando o matou.

 

Portanto, aquela imagem do traidor hediondo…

Não é o traidor... É o que quer estar no lugar do outro.

 

Isso não é traição?, essa usurpação do poder do outro?

Não é o outro que se quer destruir. O que se quer é ficar com o poder do outro. Aquelas pessoas são capazes de fazer uma clivagem entre o outro e o poder do outro. Este outro é morto por causa do poder. Mas não é ele. É ele como sítio onde eu não posso chegar ao poder.

 

Ricciardi queria o poder. Mais do que tudo, era uma disputa pelo poder e pela sucessão?

Sim. Se fosse só um problema de dinheiro... É um problema de poder. Será que Brutus teria uma vida miserável enquanto protegido de César?

 

É uma forma de dizer: “Eu tenho mais poder do que tu”. Ou então, no exercício infantil masculino: “A minha pilinha é maior do que a tua”.

Exacto. Que não é só masculino. A representação grega do phallus é muito engraçada, tem duas asas na parte final.

 

Vi isso nos despojos de Pompeia (frescos, esculturas, objectos). Era como se fosse um super phallus, em pose priápica, e muitos deles com asas e guizos.

Acho muito engraçado. O poder dá-nos asas? Se calhar dá-nos asas para fora do território onde devemos ter os pés assentes, na terra. Não há coisa que mais cure as pessoas do que o poder.

 

Como assim?

Vamos imaginar uma pessoa que tem uma estrutura obsessiva. Esta pessoa que acredita nas virtudes sem as contestar, que acredita na honestidade, no método, não percebeu que isso são apenas aspectos reactivos da sua personalidade. Se consegue fazer isso tudo e se o espelho devolve isso tudo, pensa que é perfeito. Nunca procuraria um analista. Se tenho tudo aquilo que penso que são as virtudes, para que é que preciso de ser tratado? Estas pessoas são curadas no seu imaginário. O poder cura no imaginário.

 

Na prática, chegaram lá.

No espelho (que são os outros) somos vistos de uma maneira que nunca nos põe nenhum defeito.

 

Então o poder cura. Também se pode dizer que o poder cega. As pessoas perdem a noção.

O poder cega precisamente porque cura. Cega-nos perante o espelho. Quer coisa onde haja mais cegueira do que perante o espelho?

 

Há um ofuscamento.

Se não houvesse a Branca de Neve, a Rainha continuava presa no espelho a dizer: “Espelho meu, espelho meu, há alguém mais bonita do que eu?”. E o espelho diria: “Não”. Qual era a forma que ela tinha de continuar a ser a mais bonita? Era fazer desaparecer aquilo que lhe tirava esse lugar de mais bonita. A partir de um certo momento da história do narcisismo é preciso algumas mortes – para podermos chegar lá. E aí entendo que essas mortes podem ter várias formas. Como “mato-te entregando-te”. Entregando-te por um crime que cometeste mas que eu e tu sabemos que cometeste em nome de qualquer coisa que eu e tu acreditamos que vale a pena.

A Branca de Neve nunca podia deixar de ser aquela que ganha. A Branca de Neve é aquela que, apesar da bruxa, tem acesso ao espelho. Para isso é preciso que não se coma a maçã, que o espelho já não devolva a imagem. É o que se passa com esta família. De repente, o espelho deixou de os ver assim. Eles, de certa maneira, morreram como imagem.

 

Simbolicamente, isso aconteceu quando foram buscar Ricardo Salgado a casa para prestas declarações? Foi uma espécie de humilhação pública, de machadada final?

Esse foi um momento que nos deixou a todos atónitos.

 

E a perguntar: “Era preciso aquilo, porquê aquilo?”.

Exacto.

 

Tanto quanto se sabe Ricardo Salgado dispôs-se a ir, voluntariamente, prestar declarações. Era um exercício de poder? Neste caso, o judicial.

O poder judicial implica uma lei. E implica que eu possa ser preso, ou julgado, em nome de uma lei. Podemos estar fora da lei porque estamos abaixo da lei ou porque estamos acima da lei, mas não estamos na lei. O sítio onde a lei existe já é um princípio de qualquer coisa. No totalitarismo, o espelho dos ditadores, e da ditadura, é quebrado no momento em que as pessoas passam a ser sujeitas a um tribunal comum. Os tribunais foram feitos para nós e para aqueles que têm que ser julgados. Alguma vez Luís XVI imaginou que o sol dele acabava dentro de umas prisões? Alguma vez essas pessoas se imaginaram a ser julgadas?

 

Do ponto de vista simbólico, em Portugal, aquela detenção para interrogatório quis dizer qualquer coisa. Alguém que julgávamos acima da lei passou a caber naquela porta.

Sim.

 

E se é aquele, podem ser todos.

Exacto. Será que de facto conseguimos que os ideais da democracia sejam cumpridos?

 

Entre Ricardo Salgado e Ricciardi, quem é que acha que, aos olhos da opinião pública, é mais vilipendiado?

Na aparência, o Ricardo. Não acha interessante, em termos de fenómeno mediático, a fixação da imagem do Ricardo como uma esfinge? De jornal para jornal, de notícia para notícia, é sempre aquela cara invisível, e ao mesmo tempo com aquela imagem do banqueiro.

 

É como se fosse uma imagem de uma moeda, distante, com um recorte fixado.

É isso.

 

Não falámos ainda de duas pessoas que tinham um poder imenso e que caíram também, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava. A queda da PT, tão rápida, é outra surpresa, subsidiária da queda do BES. Granadeiro tem relação com a família Espírito Santo desde que era um jovem estudante universitário. Recentemente, no jornal Público, dizia-se que nos anos mais recentes as grandes decisões eram tomadas pelo Banco Espírito Santo. Sabia-se que a palavra de Ricardo Salgado era determinante, por exemplo, para a nomeação da administração da PT. À luz disto, e contando com o muito que não sabemos, a que o próprio Granadeiro aludiu na sua carta de demissão, parece-lhe que o presidente da PT podia ter feito outra coisa que não o investimento dos 900 milhões?

São figuras que não podem pôr no mesmo firmamento. A Ursa Menor é a Ursa Menor, a Ursa Maior é a Ursa Maior. E depois ainda há aquelas estrelas que não brilham. O Granadeiro, as relações de Granadeiro com a família vêm de quando era novo. Ele dependeu um bocadinho da magnanimidade dos Espírito Santo.

 

Mas Granadeiro não é um peão menor. A sua vida profissional foi muito estimada. Sobretudo depois da vitória sobre a OPA da Sonae, foi olhado como um grande gestor, alguém com existência própria, e não como uma criatura subsidiária do BES. Se assumirmos como boa, – e não sabemos se as coisas foram exactamente assim – a ideia de que foi o principal responsável por um empréstimo avultado à Rio Forte, isto diz-nos das características psicológicas de Granadeiro, da sua gratidão?

E indo por esse lado, com o qual estou de acordo, não acha que isto prova que há uma gratidão que nunca se paga? Até que ponto há uma espécie de cegueira que tem a ver com uma dívida de gratidão? De que maneira é que isto funciona? O grande problema da nossa vida é que Chronos devora-nos o tempo, mas nunca vi escrito em lado nenhum que Kairós [filho de Chronos, deus do tempo], conseguisse comer as recordações.

 

A memória está sempre lá.

Sim. E numa área que não é cronológica, que é uma área kairológica (isto é, de tempo inconsciente), o que Henrique Granadeiro “devia” à família, dentro dele, é num tempo de ontem. Se não fosse desse tempo de ontem, será que emprestaria dinheiro à Rio Forte?

 

Como é que vê o governador do Banco de Portugal no meio disto tudo?

Faz parte daquelas figuras de recusa que não quiseram saber. Ele não quis assumir a posição interior de que isto é mesmo assim. Se foi difícil para nós… porque foi. Ainda estou para conhecer alguém que me diga: “Eu contava com isto”. Quando conhecer essa pessoa gostava de lhe dar os parabéns: está num lugar em que mais ninguém está.

 

Não esqueçamos que numa primeira fase, e foi um processo voraz, era uma luta familiar pelo poder. Depois começou a haver notícia de irregularidades e problemas relacionados com Angola.

A primeira vez que [a crise do grupo] apareceu com alguma intensidade foi aquando do buraco em Angola. Para onde é que tinham ido aqueles milhões? Parecia que as notas tinham asas. Uma pessoa chegava ao fim da notícia e não percebia para onde tinham ido as notas. Isto correspondia à parte final da vida do Ricardo, quando o Ricardo tenta resolver as coisas. Um bocadinho como o fim dos impérios.

 

Então começaram a circular narrativas, ficções (umas mais ficcionadas que outras), de que havia medidas de segurança severas envolvendo alguns dos protagonistas da história. Que tinham guarda-costas treinados pela Mossad, escritórios duplicados, viagens triplicadas, coisas que parecem de um filme de espionagem. Coisas que não estamos à espera que aconteçam em Lisboa.

Claro. Acha que essas histórias sobre a presença de uma polícia quase igual à polícia secreta israelita faz algum sentido? Não faz sentido.

 

Fernando Ulrich disse no começo deste terramoto que era bom que viesse um psiquiatra explicar isto, porque era tão inimaginável que não se entendia.

Li e ele tinha razão, como se prova [risos]. Coisas tão básicas da humanidade..., de repente elas assaltam-nos quando menos esperamos.

 

Essas coisas básicas têm que ver com narcisismo, com a imagem reflectida no espelho, a fractura desse espelho?

Com a posição fálica, que é a posição do poder. O phallus não é masculino nem é feminino, é uma ideia de poder. O phallus também é o deus menor que protegia as pessoas do roubo. Não é uma coisa fantástica? Na Grécia, quando se ia de férias, – não sei se seria como agora vamos, os 30 dias – punha-se um falo à porta e os ladrões não se sentiam muito à vontade para entrar.

Quando se tem um phallus tão grande, tão grande, com 100 anos de existência, e sempre priápico, acha que se esperaria que o phallus nos deixasse de proteger? É difícil. Mas há sempre um momento em que já não há phallus. E a história é outra.

 

 Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014

 

 

José Reis - Os Filhos da Madrugada

24.10.24

Nota biográfica e curricular, breve: José Reis nasceu em 1977, raízes cabo-verdianas, a sua vida durante anos foi funcionalizada ao kickboxing, é jurista, trabalha na Alto Comissariado para as migrações. As palavras pulmão-músculo-coração deste atleta: reinserção, integração, combate ao racismo e à discriminação, entender as dificuldades como combustível. Além da licenciatura, fez uma pós-graduação em criminologia. Tem trabalhado na promoção da integração, na escola e em geral, de crianças e jovens de bairros pobres, em particular através do desporto.

 

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Os Filhos da Madrugada: 25 entrevistas a homens e mulheres, nascidos e criados em democracia. Diferentes sensibilidades políticas. De diferentes áreas de trabalho e geografias. Um retrato concreto, particular do quotidiano do Portugal que hoje somos, 47 anos depois da revolução. De 1 a 25 de Abril, cerca das 22.30, na RTP3. 

Autoria e condução das entrevistas de Anabela Mota Ribeiro, jornalista, 1971. 

 

Fotografia de Estelle Valente. 

Flávio Almada - Os Filhos da Madrugada

24.10.24

Quando foi agredido por forças policiais, em 2019, Flávio Almada ouviu: lugar do lixo é no chão. Foi pisado, ficou com a cara feita num bolo, inchada. Passou dois dias detido. Por fim, o procurador deixou cair os crimes de racismo e tortura. Quase 50 anos depois do 25 de Abril, o racismo estrutural da sociedade portuguesa é, ora negado, ora orgulhoso. Essa foi apenas uma das vezes em que Flávio sentiu no corpo o preconceito racial e social. Vive na Cova da Moura, conhece a estigmatização dos habitantes dos bairros, o difícil acesso ao trabalho e à habitação dos negros. Nasceu em 1984 em Cabo Verde, tem um mestrado em Estudos Internacionais, é também rapper, membro da Plataforma Gueto, um movimento social negro que desenvolve a descolonização mental, e membro do movimento Vida Justa. Foi coordenador da Associação Moinho da Juventude.

Flávio Almada, trabalhador social, rapper, 1984
Os Filhos da Madrugada
RTP3, 28 Abril, 20h
Fotografias de Estelle Valente

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Michelle sabe cantar a Grândola

15.10.24

Michelle e Evelyn conheceram-se na infância. Os seus pais, militares da Força Aérea, foram amigos próximos. A relação foi brutalmente interrompida em 1973. Alberto Bachelet foi acusado de traição à pátria e torturado por militares, Fernando Matthei aderiu ao golpe de Pinochet e integrou a Junta Militar. Quarenta anos depois, as duas mulheres defrontaram-se em eleições presidenciais. 

 

1. Ángela

Antes de Michelle Bachelet, foi Ángela Jeria, a sua mãe, que cruzou o átrio do hotel San Francisco. É um hotel de quatro estrelas, com veludos puídos e apliques de latão, que recebe tradicionalmente as campanhas dos candidatos de esquerda. Fica a dois passos do palácio presidencial La Moneda, numa zona da cidade onde as avenidas são largas e se encontram pobres duas ruas atrás. O ambiente não era eufórico. Às nove da noite já era seguro que haveria uma segunda volta das eleições presidenciais. Mas o contentamento de uma vitória folgada misturava-se no ar quente, ouvia-se nos brindes com pisco sour.

A candidata da coligação de esquerda Nueva Mayoria tinha 46, 68% dos votos contra 25, 01% de Evelyn Matthei, a candidata da coligação de direita (Alianza). Os resultados eram avançados pela CNN Chile, visíveis em vários ecrãs.

Ángela Jeria descia do quarto andar onde Michelle Bachelet ainda se encontrava. Era abordada a cada passo, a cada olhar. É uma mulher tesa, de 87 anos, expressão corajosa, quase desafiante. “De Portugal? Vem de Portugal?”, perguntou à repórter da revista 2. “A Michelle sabe cantar a Grândola de cor”.

A Grândola Vila Morena aprendida do outro lado do mundo. Talvez entoada como uma oração. Ou um grito de resistência. Sabida verso a verso. De cor. Uma senha de liberdade. Um sonho.

Quando Portugal celebrava a democracia, Michelle Bachelet tinha 23 anos, estudava medicina e militava no Partido Socialista do Chile. O pai, um general da Força Aérea, havia morrido de ataque cardíaco na prisão, em Março desse ano, na sequência da tortura a que tinha sido sujeito. A fidelidade a Allende e à Constituição, após o golpe de Pinochet, custou-lhe a vida.

Foram a mulher e a filha que reconheceram o corpo nos calabouços do cárcere público de Santiago. As duas mulheres prosseguiram a luta num país em fogo e em Janeiro de 1975 foram presas no centro de tortura Villa Grimaldi. Um ano depois, exilaram-se, primeiro na Austrália, depois na Alemanha.

 

2. Michelle e Carolina

Michelle não é Carla nem Francisca nem Macarena, as personagens da peça de Guillermo Calderón de 2010. Villa é uma hora de agonia emocional e põe três mulheres de 33 anos (ou seja, nascidas no ano do golpe) a discutir o que fazer no espaço antes ocupado pela Villa Grimaldi. Um museu?, um parque?, um centro documental?

“Quando terminou o antigo regime, nenhum presidente foi a correr a Villa Grimaldi, dizendo deixem-me passar. Que crime espantoso. Ai. A partir deste momento, este vai ser o novo umbigo do mundo, o quilómetro zero da justiça. Esta terra. Neste país não se dança mais uma cumbia, não se constrói nenhuma escola, não se borda nenhum pano até que solucionemos o problema desta Villa. Mas não. É como se isto nunca se tivesse passado.”

O texto de Calderón, nascido em 71, um dos dramaturgos mais reputados da sua geração, é uma maneira de interrogar o passado e saber como fechar esta ferida na sociedade chilena.

Três anos após a estreia da peça, o problema a que alude uma das personagens não tem solução. Mas aqueles anos deixaram de ser uma sombra de chumbo de que os mais novos tinham uma notícia pálida.

Os mais novos: os que nasceram depois do plebiscito de 1988, que formalmente afastou Pinochet do poder, e que viveram toda a vida em democracia. Esses, diz Carolina Tohá, a actual presidente da câmara de Santiago, começaram a interpelar os pais. “Quiseram saber o porquê de esta história tão dramática estar tanto tempo submergida. Quando se comemoraram os 10 anos do golpe, estávamos ainda em ditadura. Quando se comemoraram os 20 anos, estávamos numa frágil democracia. Quando se comemoraram os 30, fizeram-se as primeiras acções públicas e abriu-se um debate político. Mas agora, que se comemoraram os 40 anos, abriu-se um debate na sociedade em geral, e em especial nas novas gerações”.

Carolina Tohá nasceu em 65. Tinha oito anos quando o pai, ministro do Interior e da Defesa de Salvador Allende, foi estrangulado, seis meses depois do golpe de Pinochet. Estrangulado. Carolina viveu boa parte da infância exilada. Quando terá adquirido a gravitas que acompanha o discurso, os modos, e que o sorriso constante não apaga? É uma mulher franzina e assertiva. Militou em acções políticas desde a juventude, doutorou-se em Ciência Política em Itália, foi ministra no primeiro mandato de Bachelet (2006/2010).

Se ela podia ser outra coisa que não política? “Podia. Mas teria de ser outra pessoa. Se eu fizesse cinema, seria um cinema político. Se fosse académica, faria uma reflexão política. O meu irmão vive nos EUA, é arquitecto, tem uma cabeça tão política como a minha. A política está entalada na nossa biologia.”

As histórias de Michelle Bachelet e Carolina Tohá não são a mesma história, apesar da cicatriz comum – os seus pais foram vítimas da ditadura. As duas podem encontrar do outro lado do passeio uma personagem sinistra da sua tragédia pessoal. “Antes de se tornar chefe de Estado, Michelle Bachelet costumava ver um dos seus torturadores no elevador do edifício em que morava. Um dia ela disse-lhe: “Eu sei quem o senhor é. Eu não esqueci”. Embora ele nada respondesse, todas as vezes que ela o via, depois disso, o homem baixava a cabeça e ficava olhando para os sapatos. Os tempos mudaram, e o indivíduo no elevador finalmente foi processado e preso”, lê-se no livro A Sombra do Ditador, do político e embaixador chileno Heraldo Muñoz.

Michelle e Carolina encarnam o novo Chile que acerta contas com o passado e consolida a história numa diferente direcção – a democrática. Mas tudo foi ontem e foi há uma eternidade. “Há maneiras distintas de viver a dor e guardar a memória. Quando alguém reconhece outro que o torturou e a sua reacção é encará-lo e gritar-lhe e agredi-lo, não podemos condenar. É humano, profundamente humano. Também é profundamente humano dizer: “A minha forma de julgar-te não é agredir-te. É olhar-te nos olhos e constatar como somos diferentes,” diz Tohá.

A sua voz tem força física, ocupa todo o gabinete de trabalho. Encontramo-nos num sábado de manhã, véspera do dia de eleições (16 de Novembro). A câmara municipal fica na Plaza de Armas, ao lado da imensa catedral e do Paseo de Ahumada. É um ponto nevrálgico da cidade antiga, ruidosa e pobre. Nas galerias comerciais vendem-se próteses, utensílios de todo o tipo, pilhas, relógios, correias de relógios. (Nada se perde, tudo se recupera.) No meio da praça há um coreto onde se joga xadrez ao fim da tarde. Dezenas de tabuleiros, só homens. Há um piano público que convida “Play me, I’m Yours”.

O tema da reparação tem diferentes reverberações quando vivido familiarmente ou no espaço público. Porém, a resposta de Tohá é unívoca. “Eu estou do lado dos que acham que o grande acto de justiça é uma aprendizagem cultural desta história. Que nunca mais possa acontecer que, com a condescendência da sociedade, se matem chilenos. Pinochet morreu sem ser julgado. É uma história com a qual vamos ter que viver. Há casos em curso, como o da morte do meu pai. Há tentativas de encerrar julgamentos. Ou de fazer uma espécie de amnistia. Mas o nosso drama não é só penal. Os nossos familiares morreram e os que os mataram conseguiram deixar uma marca de sangue no país por décadas. Esse é o seu maior triunfo. Eles e o seu projecto continuam a definir os limites do que o nosso país pode fazer, os sonhos que podemos ter.”

Era a primeira vez que ouvíamos a palavra sonho. Não pareceu uma palavra deslocada, mas uma palavra assombrosa. Como uma flor que irrompe do cimento. Onde cabe a palavra sonho no discurso de uma política que perdeu o pai por razões políticas e que fez da política o instrumento para falar da palavra sonho?

 

3. Heraldo

Heraldo Muñoz passou 17 anos a lutar. Participou na resistência à ditadura, foi um dos fundadores do movimento que restabeleceu a democracia no Chile, em 1990. Foi ministro do governo de Ricardo Lagos (2000/2006), publicou o livro de memórias políticas A Sombra do Ditador (2010), é subsecretário geral da ONU e responsável pelo PNUD (o programa da ONU para o desenvolvimento) para a América Latina e Caribe. Quando lhe perguntámos se o passado está enterrado, assumiu um tom contundente. “Não totalmente. É difícil dizer: acabou, esquecemos, olhemos o futuro. Evidentemente uma sociedade não pode viver no passado, e o Chile tem feito um bom exercício no sentido de avançar. Mas estes crimes foram crimes de lesa humanidade. São crimes que não podem ser amnistiados.”

Está em Santiago para votar, vindo de Nova Iorque, onde mora. Acompanha a noite eleitoral no hotel San Francisco. Troca impressões com velhos compagnons de route, com o ex-presidente da Guatemala (que dirá, dias mais tarde, que a grande vantagem de um ex-presidente é poder dizer tudo o que um presidente não pode dizer), circula com elegância entre as várias esferas do poder. Muñoz sabe que é um nome que conta. A participação no governo de Lagos liga-o a um momento histórico da vida do Chile. O lugar que ocupa na ONU destaca-o na esfera internacional. Três dias depois das eleições, apresentou um relatório sobre Crescimento e Insegurança na América Latina, na sede da ONU no Chile.

Ricardo Lagos foi o primeiro socialista a ocupar o palácio presidencial depois do golpe e depois de Pinochet ter garantido que nunca mais um socialista se sentaria em La Moneda. Em termos simbólicos, foi uma vitória retumbante sobre o pinochetismo. Em termos efectivos, foi um governo de mudanças substanciais nos planos político e valorico (como se diz no Chile). Foram expurgados da Constituição os elementos mais militaristas e restituída a autoridade presidencial em relação às forças armadas; foram eliminados os senadores vitalícios; foi introduzida a lei do divórcio, a sodomia deixou de ser crime. O mais importante: provou que era possível manter um bom desempenho económico em democracia. Desse modo derrotou a diabolização da besta comunista que Allende encarnava.

“Vivo no exterior há muitos anos e as pessoas continuam a dizer-me: “Houve assassinatos e violações dos direitos humanos. Mas não foi com Pinochet que começou o milagre chileno?” Em Setembro, quando passavam 40 anos sobre o golpe, escrevi uma crónica para o Washington Post deixando claro que Pinochet não mudou o Chile. O Chile tinha mudado há muito tempo. Antes da ditadura tínhamos um banco central sólido, tínhamos instituições, tínhamos níveis de educação dos mais altos da América latina”, detalha Muñoz em entrevista à revista 2. A ideia de que os resultados em termos económicos e sociais são melhores com um congresso a funcionar e uma imprensa livre tinham sido explicitados no seu livro de 2010: “Os custos sociais das políticas económicas de Pinochet foram imensos. Ele não construiu um único hospital enquanto esteve no poder. (...) O Chile é o país da América Latina que mais cresceu entre 1990 e 2006.”

Estes foram os anos da transição para a democracia, de consolidação da democracia – o pior de todos os sistemas com excepção de todos os outros e que, no caso do Chile, tem sido “vigoroso, mas imperfeito”, na definição de Muñoz. “Não derrotámos militarmente o governo de Pinochet. Foi uma derrota política, num plebiscito. Uma situação idêntica à espanhola. Mas aqui “Franco” [Pinochet] ficou vivo. E não só ficou vivo como ficou chefe do exército. Imagina a transição em Espanha com Franco vivo e chefe do exército? Pinochet tentou ser o poder por trás do trono. Tivemos que negociar muito”.

 

4. Antonio

Foi em 1989, em plena transição para a democracia, que Antonio Skármeta regressou ao Chile. O autor do livro que deu origem ao filme O Carteiro de Pablo Neruda passara os últimos 15 anos exilado na Alemanha. Partira por razões políticas, com o propósito de voltar.

Santiago continuava repleta de ceibos, que em flor assumem uma cor escarlate, e de jacarandás iguais aos de Lisboa. A modernização era notória. Mas havia algo que não era o mesmo. A cara das pessoas tinha mudado. Estava mais crispada, menos exuberante, como se um manto de desconfiança as toldasse. “A energia espiritual, a espontaneidade, haviam sido mitigados. Pareceu-me que tinham transformado o Chile num país convencional. Era um período de uma repressão fina e cínica, mas sistemática, unida a uma abertura e tolerância, que trabalhei muito nos meus livros. Viver em águas turbulentas requer uma técnica muito especial...”

O que Antonio Skármeta viu quando regressou foi a expressão do medo. Um medo incorporado, nem sempre consciente, que ficou como uma membrana pela qual não se dá.

Passaram quase 25 anos desde o regresso. Falámos no seu gabinete de trabalho, ao lado do jardim, ao lado de casa. Cirandam por ali um gato que parece feroz e um cão que tem o pêlo de um peluche. Tudo ao contrário, uma estranheza boa. No gabinete há livros, memorabilia de O Carteiro, papéis.

“O medo era uma coisa que nós, os que vínhamos de fora, notávamos. Os que tinham ficado, acostumaram-se. Agora o país está estabilizado, a democracia está consolidada. Mas sabe como é uma casa que está degradada e que antes tinha uma cor colorida? É isso. É um país marcado pela prudência. Os chilenos puseram-se limites.” Os anos do governo de Allende foram o desregramento, a ausência de limites? “Não. Quando falava de energia criativa, não falava do período Allende. Os anos de Allende foram uma exacerbação disso. É preciso notar que o golpe de 73 é um golpe contra toda a tradição democrática chilena. Não é só um golpe contra um governo socialista que estava no poder há três anos.”

Skármeta também sabe cantar a Grândola, símbolo de terra de fraternidade. Canta alguns versos com a sua voz tonitruante, faz o corpo andar de um lado para o outro, como um pêndulo, como um alentejano da terra. Nesse momento ele é do povo, quer ser do povo. Alimenta-se de um “horizonte épico” que desapareceu da esquerda. “A palavra mais significativa que desapareceu do vocabulário político é “povo”. Desapareceu completamente! Agora diz-se “gente”. “É o que a gente quer”. “Há que estar ao lado da gente”. “Oiçamos o que a gente diz”. Recentemente escrevi um artigo e dei-me o prazer de escrever “povo” – conclui, com um riso provocador.

Povo é uma palavra com peso ideológico. Não é fácil encaixá-la no léxico reformista mas não revolucionário de Michelle Bachelet. Quem quer uma revolução no Chile? “Outra palavra que deixou de se usar: revolução”, aponta Skármeta. Ainda assim, a Alianza, a coligação encabeçada por Evelyn Matthei, usa esse fantasma para agitar o centro-direita que confia na temperança de Bachelet. É no centro que se joga o destino eleitoral. Não é despiciendo que na primeira volta um candidato à esquerda de Bachelet e um candidato à direita de Matthei tenham conquistado cerca de 10% dos votos, cada. Um quinto do eleitorado estava com eles, mas os dois juntos não obtiveram tantos votos quantos os de Matthei, e Matthei teve um dos piores resultados eleitorais da história da direita chilena (25, 01% foi a votação final).   

 

5. Victor

Skármeta saiu do Chile no ano em que se fundava em Portugal a Brigada Victor Jara. Saber da existência de uma banda que presta tributo ao músico e activista iluminou a cara do escritor. Foi quando cantou Grândola Vila Morena que lho dissemos.

Victor Jara morreu com 44 disparos no corpo no dia 15 de Setembro de 73. Quarenta e quatro. Quatro dias depois do golpe. Foi preso no Estádio Chile, com milhares de dissidentes, em grande parte estudantes e professores universitários, torturado e fuzilado. O seu corpo foi atirado para uma valeta. Tinha quarenta anos e um álbum chamado El Derecho de Vivir en Paz.

Oito oficiais foram acusados do seu assassinato. O principal vive nos Estados Unidos. A extradição foi pedida a despeito de o então tenente ser casado com uma americana (o que torna praticamente impossível a extradição). A acusação foi formalmente feita no final do ano passado, 39 anos depois. Trinta e nove anos.

O Estádio é um dos locais de voto mais populares de Santiago. Votam ali 68 mil eleitores distribuídos por 180 mesas de voto. São duas da tarde do dia 17 de Novembro, o calor está nos 26 graus. A circundar o estádio há militares de camuflado, postos da Cruz Vermelha, activistas que lembram os muertos invisibles. A afluência às urnas não é extraordinária. (A abstenção será próxima dos 50%.) Alguns poucos milhares de pessoas circulam com a descontracção de quem vai ao futebol. Votam porque querem votar. (É a primeira vez numas eleições presidenciais que o voto não é obrigatório.) Além das eleições presidenciais, há eleições para o senado, o parlamento e para conselheiros regionais. As urnas são de madeira, têm uma parede transparente e é possível ver a quantidade de votos que se amontoam. As mesas e as cabines sucedem-se ao redor do estádio, debaixo de um anel de betão. Lá dentro é o recinto de jogos, as bancadas, aquilo que há quarenta anos foi um campo de concentração. Mas é impossível visitá-lo naquele dia.

 

6. Pinochet e o pinochetismo

O golpe foi há 40 anos, o fim do pinochetismo formalmente aconteceu há 25 anos. Mas já aconteceu de facto? Desmontar pedra a pedra o pinochetismo teve marcos significativos. Um dos pilares, considera Heraldo Muñoz, derrocou em 2005 quando Pinochet foi preso por fraude fiscal e falsificação de passaporte. “Pela primeira vez, era processado e preso por acusações que nada tinham a ver com direitos humanos. Alguns pensaram estar testemunhando uma situação tipo Al Capone... (...) O caso custou a Pinochet grande parte do seu apoio entre políticos e empresários conservadores. No Chile, o país menos corrupto da América Latina, roubar era considerado um crime mais grave, digamos, do que ser indirectamente responsável pelo assassinato de presos políticos” (A Sombra do Ditador).

Antonio Skármeta destitui de importância real o pinochetismo. “Se houver uma missa para Pinochet, ainda encontrará 150 velhas e três jovens. Mas o pinochetismo acabou-se quando os partidos de direita aceitaram o jogo democrático. Falo dos grandes partidos, a UDI (Unión Demócrata Independente) e o Renovación Nacional. Há três, quatro anos, numas eleições municipais, neste bairro, que é um dos mais ricos do Chile, e completamente de direita, apresentou-se como candidato a um cargo de conselheiro um neto de Pinochet. O seu único lema era: sou neto de Pinochet. Não o aceitaram no Renovación Nacional nem na UDI. Apresentou-se isolado. Não conquistou mais do que 800 votos, coisa assim.”

Apesar desta recusa, sintomática de um desapego emocional que a classe abastada tem em relação ao pinochetismo, há uma sombra de Pinochet sobre a vida do Chile. Está expressa na Constituição e no sistema político binominal.

Resumido a traço grosso, este sistema eleitoral obriga a que haja dois candidatos por círculo. A coligação que tiver 33,4% tem tantos deputados e senadores eleitos quanto a coligação que tiver 66,6%. Na prática, o mecanismo impede que mudanças estruturais sejam aprovadas e concretizadas. Uma proposta menos consensual esbarra na força hercúlea da oposição.

O sistema político binominal foi imposto por Pinochet após a derrota no plebiscito de 88. O jogo continuou a ser jogado consoante as suas regras. “Foi o golpe legal de Pinochet. Um golpe genial”, acusa Skármeta. Um segundo golpe, depois do golpe militar de 73, que mantém a esquerda refém do seu jogo político 25 anos depois.

Carolina Tohá faz uma pequena pausa quando lhe perguntamos se o fim do pinochetismo já aconteceu. “Nos últimos meses viveu-se um dos capítulos mais importantes: a derrota do esforço que foi feito para matar a memória. Neste aniversário [Setembro 2013], o tema entrou massivamente nos meios de comunicação de todo o tipo”. O tema entrou inclusive em séries de televisão e documentários que abordavam o impacto emocional que o golpe teve nas famílias chilenas. Um passo na lua.  

Mas o grande passo talvez tenha sido dado pela direita, que começou a fazer um exame da herança pinochetista. Não a direita militar, mas a direita política, especifica Tohá. “Os protagonistas interpelados são os militares que exerceram directamente a repressão. Mas o suporte político deste governo ficou invisível. Esses políticos são os predecessores dos actuais políticos de direita. E alguns – muito poucos, mas relevantes – fizeram condenações categóricas. Afirmaram que havia uma responsabilidade por assumir.”

O presidente cessante Sebastián Piñera foi um desses quando falou de “cúmplices passivos” em Setembro passado. Um discurso audaz que não foi acompanhado pelo seu partido de centro-direita, o Renovación Nacional. “Nenhum dos candidatos de direita, nas primárias, se atreveu a dizer que o governo de Pinochet foi uma ditadura”, recorda a alcaldesa de Santiago tocando num ponto sensível. Falar de “ditadura” ou “governo militar” não é uma questão semântica.  

 

7. Lily e Evelyn

A senadora de direita Lily Peréz usa a expressão “governo militar” para se referir aos anos de Pinochet. Vamos ao seu encontro na sede de campanha de Evelyn Matthei, no hemisfério da cidade onde se situa o poder económico. É aí que ficam os bairros Providencia, Vitacura e Las Condes, com os seus edifícios espelhados e vivendas resguardadas por um muro. Nas ruas não se encontram índios mapuches nem homens pobres a engraxar sapatos. As pessoas têm (ou gostariam de ter) o ar lustroso de Evelyn Matthei. Os cartazes dependurados nas árvores ou nos edifícios são quase exclusivamente de candidatos de direita. Não é raro ver um cartaz de Michelle com a cara desta recortada. Explicam-nos que o vandalismo eleitoral é frequente e acontece dos dois lados da barricada.  

A sede é uma casa alugada para o efeito, com dois pisos, em frente à sede da UDI, o partido de Matthei. Lily é a porta voz da campanha e dá uma conferência de imprensa quando chegamos. Explica qual vai ser o calendário da sua candidata e tenta disfarçar o desalento que está no ar. As sondagens são catastróficas.

A entrevista com Lily não era sobre Evelyn. A senadora do Renovación Nacional, que proclama ser a mais liberal dos senadores do seu partido, não tentou desviar a conversa para a campanha ou para questões políticas imediatas. O grande tema era o momento de definição que a direita atravessa. “O mês de Setembro e estas eleições, independentemente dos resultados, vão implicar uma crise profunda e uma revisão sobre o lugar onde nos encontramos” começa por dizer.

Talvez por ser uma entrevista a um órgão de comunicação estrangeiro, Lily foi especialmente crítica em relação ao seu partido e à UDI, os partidos que apoiam a candidatura de que é porta-voz. “O que me decepcionou nos últimos anos foi o meu sector político.” Parece uma pessoa que traz um fato que sabe que não é o seu, mas que não pode despir completamente. Cola-se “100%” a Piñera no tom que o presidente assumiu em Setembro (além de falar de cúmplices passivos, Piñera encerrou a Penal Cordillera, uma cadeia exclusivamente dedicada a militares acusados de violação dos direitos humanos) mas não é capaz de usar a palavra “ditadura” para se referir ao pinochetismo.

A escolha de palavras não é aleatória. Mas o fervor com que é discutida diz respeito sobretudo ao sector político, pensa Lily. “As pessoas estão mais reconciliadas do que a sua classe política. Há pessoas de direita que votam em Bachelet. Houve pessoas de esquerda que votaram em Piñera (que ganhou com 53% em 2010).” O que falta então fazer para sanar este conflito ideológico? “É preciso que tenhamos um diagnóstico comum. Que não existe, de todo. Um diagnóstico que explicite que existiu violência política, que o golpe militar produziu violação de direitos humanos, que houve tortura, exílio, prisões. Há elementos de esquerda que justificam as acções de luta armada [nos anos subsequentes ao golpe]. Já são poucos os elementos de direita que justificam a violação de direitos humanos.”

O discurso da senadora Lily Peréz aponta numa direcção: destrinçar pinochetismo e direita. Não são equivalentes, mesmo que tenham coincidido ou que episodicamente coincidam. “O pinochetismo não é a direita. É um sector da população. É um sentir de algumas pessoas que viveram em carne viva os maus momentos do governo de Allende. Mas não são pessoas que ideologicamente sejam de direita. Não sei qual é o voto que identifica o pinochetismo duro... O voto é um fenómeno muito mais social do que político. No fundo, depende do candidato.”

Lily Peréz e Evelyn Matthei não defendem uma nova Constituição. “As reformas constitucionais que se fizeram foram as necessárias”, defende a senadora. Todas as intervenções da candidata presidencial são no mesmo sentido.

A esquerda considera que esta Constituição, no essencial, e apesar de todas as alterações que foram introduzidas, continua a ser a que Pinochet escreveu. Michelle Bachelet fez desta uma das linhas do seu discurso eleitoral. Os outros dois pontos foram reforma tributária e educação gratuita. (Na apresentação do relatório da ONU que coordenou, Heraldo Muñoz foi minucioso: “A educação universitária chilena é a mais cara do mundo! Os protestos [dos últimos anos] não são só dos estudantes, são também dos pais dos estudantes, que se endividam para pagar uma educação tão cara e de má qualidade.”)  

Há um aspecto em que Lily está ao lado da esquerda: a urgência de mudar o sistema político: “Os círculos binominais têm artificialmente dividido o país em duas metades”. Porque é que não se muda? Porque para isso é preciso ter uma maioria altamente qualificada (26 em 38 senadores e 81 em 120 deputados) para mudar a lei e a Constituição.

 

8. Michelle

Este domingo, 15 de Dezembro, é a primeira vez na história do Chile que duas mulheres estão na segunda volta das eleições presidenciais. É também a primeira vez que a direita está nas eleições presidenciais com uma candidata mulher. Não é um detalhe num país que tem “cafés com pernas”. Quer dizer, cafés frequentados por homens onde as mulheres atendem com micro-saias e sapatos vertiginosos.   

Um taxista explica-nos porque são duas mulheres que concorrem. “Porque as mulheres não roubam. Os homens roubam um bocadinho”. A mulher é a mãe de família, e numa sociedade tão tradicional e machista quanto a chilena, esse valor é importante. O taxista votará em Evelyn, ainda que considere que Michelle fez um bom trabalho no primeiro mandato (a Constituição não permite que os mandatos sejam consecutivos). “Pero a mí me encanta la derecha.”

Pode não ser só conversa de taxista. Pode ser que estas eleições, onde duas mulheres se apresentam, representem também a derrota de um período militar, masculino, com mácula. O que fica desses anos? Fica a perda da inocência para milhares de chilenos, cicatrizes emocionais que acompanham milhares de famílias. Segundo os relatórios da Comissão de Verdade e Reconciliação (conhecido como relatório Rettig) e a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura (relatório Valech), o número de vítimas directas da violação dos direitos humanos no Chile ascende aos 35 mil. Trinta e Cinco mil. Presos, perseguidos, desaparecidos, torturados, mortos. Camponeses, professores universitários, estudantes, militares, donas de casa. Pessoas iguais a outras pessoas.

Quando Michelle surgiu no espectro político, era uma pediatra socialista que Ricardo Lagos convidava para o Ministério da Saúde. Lagos lançou-lhe um repto impossível: terminar com as listas de espera nos hospitais públicos em 90 dias. No nonagésimo dia, Michelle reconheceu não ter sido capaz de acabar com o problema. Havia 750 mil operações em espera, baixou o número em 90%, ainda assim não cumpriu o pedido. Pôs o lugar à disposição. De repente, os chilenos deram por esta mulher que renunciava ao cargo por não ter sido capaz de resolver integralmente um problema que se tinha proposto resolver.

Depois houve a transição para a pasta da Defesa e uma fotografia que se converteu num símbolo da reconciliação nacional. Michelle, a pediatra socialista, torturada em Villa Grimaldi, filha de um militar morto pelos militares, chefia os militares, e está, num cenário de catástrofe natural, ao lado de militares, envergando um fato militar, num carro militar. Era uma metáfora do tempo que aí vinha. Que já era, incipientemente. Mas que já era, e que prometia muito. Não tudo, mas muito.

No táxi, o rádio emite anúncios das candidatas. A voz de Evelyn tem uma tonalidade dura e metálica, uma oscilação nervosa. A voz de Michelle é quente e maternal. “Chamo todas as pessoas moderadas, que não acham que é preciso fazer uma reforma completa da Constituição, que não acham que é preciso deitar abaixo a casa, a votar no número 7”, diz a candidata de direita. Michelle não se desvia do seu âmago e faz com que só se ouça a palavra desigualdade. O crescimento económico imparável, situado entre os 5 e os 6%, não é suficiente para resolver o problema – “a principal ferida do nosso país”, diagnosticou ela no comício de encerramento da campanha.

(A América Latina, diz Heraldo Muñoz, é região mais desigual do mundo. Não a mais pobre, mas a mais desigual. E ainda que o Chile seja o menos desigual dos países da América Latina, é mais desigual do que Portugal, que até à entrada da Bulgária e da Roménia era o país mais desigual da União Europeia.)

A não ser que se abata um cataclismo sobre a Primavera chilena, não é expectável que Michelle Bachelet não saia presidente destas eleições. Além de cumprir as promessas eleitorais, tem como tarefa para os próximos anos devolver o sonho a diferentes gerações de chilenos.

O sonho. Palavra assombrosa. Que durante anos pareceu deslocada. 

O dramaturgo Guillermo Calderón, a quem o teatro serve para pensar, resume o sentimento de muitos. “A diferença que tenho com a geração dos meus pais é que eles, sim, conheceram a democracia. Eu, ao contrário, cresci em ditadura. Eles queriam recuperar algo perdido. Mas eu sempre quis algo imaginário, que nunca vivi. Talvez por isso, o Chile nunca chegará a ser o que eu quero”.  

O que quer Michelle para o Chile? Talvez seja o mesmo que Michelle quer para si, honrando o pai, suturando o passado. A sua provável vitória não será uma vitória de uma mulher sobre um homem..., e talvez sim, talvez seja, se esse homem for Pinochet. Também é a vitória de uma mulher sobre outra mulher que tem manchas do passado. É seguramente a vitória de um tempo que supera outro. Uma forma de continuar a dizer “No”.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013

 

 

As Casas de Pablo Neruda

15.10.24

Quando se fala das casas de Pablo Neruda, fala-se de Isla Negra, La Chascona, da casa de Valparaíso. São casas-barco de onde se vê o mar, porto seguro do poeta chileno. Parecem-se umas às outras e não se parecem às outras casas. Em todas há objectos recolhidos entre os sete mares, mercados, antiquários. São uma ode às coisas simples.

“En mi tierra desierta, eres la última rosa.” A última flor de Pablo Neruda e Matilde Urrutia não foi uma rosa. A campa onde estão sepultados, com a dimensão e o formato de um leito conjugal, está coberta de bromélias. Não especialmente coloridas ou raras. Bromélias simples, não muito diferentes das alcachofras que se vêem nos mercados. Em qualquer caso, bonitas como rosas.

Primeiro há uma camada espessa de relva, e depois flores a despontar. Na cabeceira estão os nomes dos amantes. Ao lado, um caminho de pedras rugosas, degraus, um jardim que Neruda quis que fosse selvagem. (Alguém imagina o poeta Neruda a preferir um jardim de buxo?) Em frente, o mar. A casa fica na parte mais alta do jardim, tem vários módulos, objectos inesperados (como uma pequena locomotiva – como terá ido ali parar?), e chama-se Isla Negra. Não é uma ilha, apesar do nome, mas fica numa costa bravia, junto a um mar insubmisso, e de certa maneira forma uma ilha.

Isla Negra é uma das três casas de Pablo Neruda no Chile. As outras ficam em Valparaíso e em Santiago. A primeira está empoleirada num morro altíssimo e dela vê-se a baía de Viña del Mar, um mosaico de casas coloridas, a chegada e partida de navios, passageiros e mercadorias. Há eléctricos como o elevador da Glória que sobem na vertical, e unem o centro histórico de Valparaíso e as colinas. Há também escadas, íngremes de cortar a respiração, para os mais afoitos. Trespassa-se um pequeno jardim e cremos que estamos na proa de um barco, reis do mundo, de braços abertos.

A outra casa tem um nome poético. La Chascona. A tradução literal pode ser: a despenteada. É uma homenagem ao cabelo emaranhado de Matilde, a terceira mulher de Pablo, o seu amor. É um nome carícia, uma casa ninho que acolheu durante anos o amor adúltero de Pablo e Matilde e que depois ganhou a forma do casal.

É difícil imaginá-la pilhada, incendiada, os vidros destruídos, as páginas rasgadas. É difícil imaginar um carro da DINA, a polícia política de Pinochet, a guardar os passos de Matilde depois da morte de Pablo, noite e dia, quem a via, o que falariam. A DINA à porta era uma maneira de a manter presa, dentro de casa, fechando-a por fora.

Foi nessa casa, que tem um muro azul cobalto e o ambiente de amigos numa noite de Verão, que Neruda foi velado. Isto ainda é mais difícil de imaginar. Pablo Neruda morreu no hospital no dia 23 de Setembro de 1973. Exactamente 12 dias depois do golpe que incendiou La Moneda e depôs Salvador Allende.

O presidente suicidar-se-ia, cercado pelos militares, e despediu-se dos chilenos pela rádio: “Eles têm a força. Poderão submeter-nos. Porém, não se detêm os processos sociais nem com crimes nem com a força. Fiquem sabendo que muito mais cedo do que tarde se abrirão as grandes avenidas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são as minhas últimas palavras e tenho a certeza de que o meu sacrifício não será vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a cobardia e a traição.”

Neruda e Matilde souberam pela rádio da morte do presidente, um amigo. O poeta, escreve Matilde no livro Mi Vida Junto a Pablo Neruda, repetia, atordoado: “Esto es el final”. O fim. O fim de um sonho. “Todo o júbilo do povo, a esperança de uma vida com igualdade, com justiça, desvaneceu-se; esta grande esperança de Pablo, pela qual trabalhou toda a vida, veio abaixo bruscamente, como um castelo de cartas. (...) Sempre o vi animado, falando com o povo, tratando de despertar a consciência adormecida e fatalista dos pobres que se contentam com quase nada”.

Estavam na Isla Negra quando souberam da derrocada de um mundo no qual estavam empenhados. Não havia muito, em 1970, Pablo e Matilde eram embaixadores do Chile em Paris, nomeados por Allende. Esse era o Chile que eles queriam representar, de que eram representantes.

Durante anos, muitos anos, não se creu que Neruda morresse devido ao cancro na próstata. A doença comia-o por dentro, o estado de saúde era frágil, mas era um daqueles seres imortais, de onde irradiava o sol. E nessa manhã de 11 de Setembro, antes das bombas caírem sobre o palácio presidencial, o dia tinha amanhecido tranquilo. Nada pressagiava o fim próximo, o começo do fim que estava nesse dia 11 e que fez Pablo “quebrar-se por dentro”. Haviam-se levantado com um sorriso. Esperavam um grande amigo que era ministro da Justiça e que trazia os estatutos da Fundação Pablo Neruda, o testamento de Pablo... Tanta vida para viver.

A suspeita de que tinha sido assassinado só foi dissipada este ano, depois de exumado o cadáver e atestada como falsa a possibilidade de ter sido envenenado com uma injecção letal. Quarenta anos depois da sua morte. Não foram os militares que mataram Neruda, ainda que tenham sido os militares e Pinochet que mataram o mundo de Neruda. O corpo foi velado em La Chascona, La Chascona foi refeita por Matilde, a memória de Neruda que Pinochet tentava apagar foi mantida viva por Matilde. Mas os murais em frente a La Chascona, onde se dava as boas vindas a Neruda, depois de o poeta ter recebido o Nobel em 72, foram apagados. Só em 1992 o seu corpo foi transladado para a Isla Negra. É lá que está, ao lado de Matilde, que morreu em 85, vítima de cancro.

A Isla Negra fica 120 quilómetros a norte de Santiago. No livro de memórias Confesso que Vivi, Neruda refere-se a essa casa de pedra em frente ao Pacífico como um lugar de trabalho. “A costa selvagem da Isla Negra, com o tumultuoso movimento oceânico, permitia-me entregar-me com paixão à empresa do meu novo canto [Canto General]”. Esta era a intenção quando o comprou, em 1939.

Mas os movimentos tumultuosos da sua vida foram muitos e a casa foi um projecto adiado.

De resto, no fim dos anos 30, Matilde não fazia parte da sua vida. Esta mulher de boca rasgada começou por ser um amor clandestino. Viveram um casamento que era só deles em Capri, em 52. Casaram no papel em 1966. Foi para ela que ele escreveu Os Versos do Capitão e Cem Sonetos de Amor. Tinham uma cadela chamada La Panda, uma vida onde era sempre Primavera, madressilva a trepar pelas escadas. Compunham um cenário de felicidade em que é difícil acreditar por ser tão evidente, e de que não é possível duvidar por ser tão evidente. Talvez fosse mais correcto dizer que a Isla Negra é a casa de Pablo e Matilde, e não apenas “a casa de Pablo Neruda”. Porém, é ao encontro de Pablo Neruda e dos seus passos que milhares de pessoas vão, todos os dias, todos os anos. (É bom saber que deve reservar a sua visita. É difícil conseguir um bilhete para o próprio dia.)

“Na minha casa reuni brinquedos grandes e pequenos, sem os quais não poderia viver. Um menino que não brinca não é menino, mas o homem que não brinca perdeu para sempre o menino que vivia nele. Edifiquei a minha casa como um brinquedo e brinco com ela de manhã à noite. Juntei os brinquedos a minha vida toda com o propósito científico de me entreter sozinho. Vou descrevê-los para os mais pequenos e para os de todas as idades.” Portanto, a Isla Negra é um brinquedo onde estão reunidos todos os brinquedos. Representa uma regressão constante a esse tempo em que Neruda era um menino e se espantava com o mundo, e o descobria com amor.

É preciso visitar a casa para perceber que isto não é uma figura de estilo. Na casa está, por exemplo, um cavalo de madeira, de tamanho médio, que era um cavalo que o menino Pablo via todos os dias, numa loja a caminho da escola. E acariciava-lhe o focinho, como quem acaricia um animal de verdade, e se afeiçoa ao bicho naquele encontro diário.

Demorou tempo a que estivesse entre os seus brinquedos. Foi cobiçado, de novo cobiçado, recusado pelo proprietário, terminantemente recusado pelo proprietário – “É inútil” – e por fim resgatado do fogo por amigos de Pablo quando um incêndio consumiu a loja onde se encontrava.

É o cavalo de Temuco, localidade a dois passos da aldeia onde Neruda nasceu, no sul do Chile. Para ele, foi construído na Isla Negra um compartimento “muy lindo”, “la pieza del caballo”. Ah, sim, a casa ia crescendo à medida dos objectos, como uma peça que se desdobra consoante as necessidades, e desenhada por Neruda para dar forma à sua fantasia. A casa estava sempre em obras, “foi crescendo como as pessoas e as árvores”, dizia.

Na descrição que faz da casa no livro de memórias, a que voltamos mais tarde, Neruda não fala do telhado de zinco. Mas Matilde, sim. “Tudo tinha zinco, para ouvir o canto da chuva. A mim espantou-me a ideia de pôr zinco numa casa tão próxima do mar. Arquitectos e amigos asseguravam-me que não duraria mais de três anos.” Não podiam dar-se ao luxo de mudar o telhado cada três anos, argumentou Matilde, armada de bom senso. “Muito calmo, fez-me notar que nada sabia de números, que esse era um assunto meu. Ele só sabia que na contabilidade há um deve e um haver. E que na casa “devia haver” um telhado de zinco”, conta em Mi Vida Junto a Pablo Neruda.

O canto da chuva, os objectos erodidos, a infância por perto compunham a atmosfera de que Neruda precisava para criar. Talvez criar e criança estivessem ligadas na sua etimologia sentimental. Um objecto não é só um objecto. Matilde põe bem a questão quando escreve: “Como fazer o inventário de tudo o que está nesta gaveta? Que nome pode ter cada coisa? Sinto que cada objecto me grita as suas recordações. Estas garrafas antigas de whisky e de cognac foram compradas em Paris, em antiquários e no Mercado das Pulgas. Durante semanas tivemos que comer em restaurantes de estudantes por causa destas garrafas que nos arruinaram...”.

Neruda confessa. Começa pelas garrafas quando fala dos brinquedos. “Tenho um veleiro dentro de uma garrafa. Para dizer a verdade tenho mais do que um. Tenho uma verdadeira frota. Um dos mais bonitos foi mandado de Espanha, para pagar os direitos de autor do meu livro de odes”. Um veleiro numa garrafa em troca de um maço de poemas...

Depois fala dos mascarones de proa, as figuras talhadas a madeira que cruzaram mares e que Neruda coleccionava como se fossem objectos portáveis. A mais pequena tem o corpo de uma mulher franzina e chama-se Maria Celeste. Pertencia a um barco francês e provavelmente não conheceu mais do que as águas do Sena. “Ainda que pareça estranho, os seus olhos choram durante o Inverno, todos os anos. Ninguém consegue explicá-lo. A madeira escura tem talvez alguma impregnação de humidade...”

O mistério é tanto como o carinho, e Maria Celeste, a mais melancólica das figuras, transforma-se numa pessoa de todos os dias. No livro Uma Casa na Areia Neruda descreve também o fenómeno: “Durante o largo Inverno da Isla Negra algumas lágrimas misteriosas caem dos seus olhos de cristal (...) E depois passam os meses frios, chega o sol, e o rosto doce de Maria Celeste sorri como a Primavera. Mas, porque chora?”          

Porque chora?

mascarones que ficam na diagonal, como nos navios de onde provêm. Há uma de nome Micaela, que foi a última a chegar. Há a Medusa. Há aquelas que olham simplesmente para o mar, como nós olhamos. Há a de cara impenetrável: “Por aquele rosto não passou nada. Nem a guerra do mar, nem o naufrágio, nem a solidão tempestuosa de Magalhães. (...) Ficou-se com o seu rosto inabalado, as suas feições de boneca, vazia de coração”, escreve em Uma Casa na Areia.

Falta falar de tantos objectos da casa... Mapas antigos, bússolas, objectos de navegação. Esculturas da Ilha da Páscoa. Máscaras, sapatos, uma ovelhinha que estava aos pés da cama como um animal de estimação, uma colcha de renda que cobre a cama e que lembra a espuma do mar. Os livros que amou e cuidou com esmero. De Quevedo, Cervantes, Rimbaud (tinha manuscritos de Rimbaud oferecidos por Paul Éluard). Uma mesa onde trabalhava e que tinha “patas” rugosas e velhas. O seu quadrúpede. “A mesa fiel sustém o sonho e a vida, titânico quadrúpede”, pode ler-se em Navegaciones y regresos.

Qual seria o objecto preferido e indispensável a Neruda? Matilde pensava que as pessoas que visitavam a casa não viam as coisas mais amadas. “Porque essas eram sempre as mais simples, as de menor valor material. Pablo amava e procurava as pedras suavizadas pela acção do tempo; as raízes fascinavam-no, tinha muitos pedaços de madeira que encontrava nos bosques e que dizia que eram pequenas esculturas. Esta casa era para ele o seu universo alucinado.”

Mas há uma colecção de que é obrigatório falar e que é apontada por Neruda em Confesso que Vivi como sendo a maior que construiu. É a colecção de conchas e búzios. “Deram-me o prazer da sua prodigiosa estrutura, a pureza lunar de uma porcelana misteriosa.” No poema “No me hagan caso” fala da sua presença singular num universo pejado de objectos. “Os búzios são os mais silenciosos habitantes da minha casa. Todos os anos passados no oceano endureceram o seu silêncio. Agora, têm agregado o tempo e o pó.”

Conchas, barcos em garrafas, mascarones... Tudo nas casas de Pablo Neruda, e não apenas na Isla Negra, nos remete para o mar. Era um marinheiro de coração. “O mar era-lhe tão necessário como o ar, e amava-o sobre todas as coisas”, precisa Matilde. “Rodeia-me o mar, invade-me o mar”, acrescenta ele. Um mar cor de lápis-lazuli, que golpeava os rochedos e mantinha intacta a casa, porto seguro. Era aí que os amigos discutiam o amanhã, que Matilde lhe estendia a mão, que ouvia o seu canto de poeta. Era assim na Isla Negra, em Valparaíso, em La Chascona. Todas casas-barco. “Não saberíamos o que fazer nas ruas, entre gente apressada, nas lojas, nos bailes. As nossas mercadorias foram algas reluzentes...”.

Na campa da Isla Negra não chegam as ondas. Mesmo se o mar está revolto. Mas cobre as bromélias um ar de maresia.  

 

 

Guia prático:

Das três casas, só La Chascona fica em Santiago, no bairro Bellavista. É um bairro boémio, com muitos bares e restaurantes. A casa de Neruda, onde funciona a fundação com o nome do poeta, tem um pequeníssimo bar. As visitas são feitas por um guia que explica, passo a passo, o que há em cada compartimento.

Pode ajudar a fundação comprando ímanes, canecas, livros e outros objectos que se vendem na loja. Atenção: no Chile os livros são absurdamente caros. Podem facilmente custar três a cinco vezes o preço de um livro em Portugal. Reserve entrada. Este conselho é válido para todas as casas, frequentemente inundadas por grupos escolares, estrangeiros e locais.

A Isla Negra e Valparaíso ficam a norte de Santiago. Não é mais do que uma hora, uma hora e meia de viagem para cada uma das casas. O melhor é alugar um carro, comer uma empanada ou o delicioso milho assado que se vende na berma da estrada e acompanhar a estrada da costa. Chegado a El Quisco, avista-se a Isla Negra depois de um pequeno pinhal.

Supostamente é aqui que se passa o filme O Carteiro de Pablo Neruda, uma adaptação do livro de Antonio Skármeta que ficciona a relação do poeta com o seu carteiro, Mário. Na verdade, Il Postino foi filmado em Itália.

Se for directamente para Valparaíso, passa pela zona das vinhas e pode visitar facilmente uma quinta. Pode também ir de Valparaíso para a Isla Negra. A ideia de seguir os passos do poeta, além de tentadora, compensa.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013

 

 

 

      

 

António Damásio

12.10.24

António Damásio já tinha falado de coisas tão complexas quanto a construção da consciência ou o peso das emoções nos momentos decisionais. Nunca tinha falado do dia que passou com Orson Welles, em Lisboa, quando tinha 20 anos e procurava respostas para o mundo. Esse dia importa? Que importa o seu eu-biográfico (expressão do neurocientista)? O que importa é o resultado, apesar dos factos e dos acasos (responde o sujeito). 

“Tive imensa tosse no fim do ano. E tenho estado a falar constantemente, desde que cheguei a Lisboa, no domingo. Hoje tive de fazer um discurso na escola e a voz estava constantemente a falhar.” “Hoje” era quarta feira, cinco da tarde, no hotel Ritz. A escola fora inaugurada de manhã e levou o seu nome.

António Damásio nasceu em 1944. É neurocientista. Recebeu o prémio Pessoa e o prémio Príncipe das Astúrias (para mencionar os mais importantes). Dirige com a mulher, Hanna Damásio, o Brain and Creativity Institute, na Califórnia. Hanna não estava presente na entrevista – nunca dá entrevistas. Mas esteve presente o tempo quase todo. António Damásio raramente diz “eu”. Quase sempre se refere a um “nós”.

Os seus livros (O Erro de Descartes, O Sentimento de Si, Ao Encontro de Espinosa, O Livro da Consciência) estão editados no mundo todo. Uma vez um editor disse-lhe que eram indigestos. Damásio sabe que não. O papel da emoção e do sentimento na tomada de decisões, as emoções sociais ou a construção do cérebro consciente são os seus temas preferenciais. Outros temas: o cinema. A sua condição de emigrante. Ser português. A vida que podia ter tido. De que (quase) nunca fala. E de que falou na mais longa entrevista que alguma vez concedeu (disse ele). Pareceram horas. Não foram mais do que duas, entre as fotografias e a conversa.

Pediu um chá de camomila. “Quanto tempo temos?”, perguntei. “Comece por aquilo que é mais importante para si. Se a minha voz acabar, pelo menos fica com o que é mais importante.”

 

O que é mais importante para mim? Saber o que o comove.

Ahhh. É uma pergunta espectacular. Sabe porque é que é espectacular? Porque nunca ninguém me perguntou isso. Há imensas coisas que me comovem. Talvez a música seja aquilo que me comove mais frequentemente. Uma enorme variedade de peças musicais. Comovem-me cenas de reencontro.

 

Mais do que de despedida, que é uma estratégia narrativa normalmente usada para provocar a comoção?

A despedida faz-me menos impressão. Faz-me mais impressão o reencontro, a surpresa do reencontro (personagens que não esperavam voltar a encontrar-se e se reencontram), e a surpresa de um desfecho. Por exemplo, o fim do Casablanca. O Michael Curtiz sabia perfeitamente o que estava a fazer, pensou em vários cenários finais, e [o escolhido] é verdadeiramente comovente. A última vez que me comovi foi quando revi esse filme, há muito pouco tempo. A Hanna e eu, todos os fins de ano, revemos uma série de filmes de que gostamos.

 

A Hanna acha que a personagem interpretada por Ingrid Bergman fez bem em partir com Victor Laszlo, o marido, ou devia ter ficado com o Humphrey Bogart, o amante?  

[riso] Pois tem de lhe perguntar. Tenho impressão que a Hanna acha bem que ela parta com o Victor Laszlo.

 

E a sua resposta?

Claro que o desfecho seria completamente diferente [se ela ficasse]. A satisfação imediata, tanto para o Humphrey Bogart como para a Ingrid Bergman, seria ficarem um com o outro. Mas seria não-surpreendente. Seria aquilo para que a história se encaminha. Do ponto de vista dramático, funcionaria menos bem.

O que funciona muito bem é uma das great lines do filme, quando o Bogart diz ao Claude Rains (o inspector): “This is the beginning of a beautiful friendship”.

 

Falou da música como um foco de comoção...

A comoção é uma coisa, a emoção em geral é outra. Há aspectos da comoção que são extremamente positivos, há aspectos menos positivos. A música traz-nos ambos, pode trazer-nos ambos. A forma mais directa de obter esse efeito é a dramatização.

(É curioso fazer o catálogo das emoções. Nunca o tinha feito. Está a forçar-me a fazer isso.)

Há uma grande poetisa americana, Jorie Graham. Se não a conhece, devia conhecer. Ganhou há pouco o Forward Prize, que raramente é ganho por poetas não-ingleses. Recebeu-o pelo último livro, P L A C E. Há um poema sobre um pôr do sol em Omaha Beach; ela está na areia e ouve um cavaleiro; vira-se para o cavaleiro exactamente no momento em que o sol se está a pôr. A descrição é estarrecedora. Funciona.

 

Por coincidência, li hoje um texto no qual Freud diz que não consegue sentir prazer com a música. “Uma inclinação mental racionalista, talvez analítica, revolta-se contra o facto de me comover com uma coisa sem saber porque sou afectado ou porque é que me afecta”.

Onde é que isso está?

 

No Moisés de Miguel Ângelo, que Freud escreveu em 1914.

Espantoso. E não-espantoso, ao mesmo tempo. Claro que Freud se pode revoltar à vontade, mas [esse comentário] revela a não-compreensão daquilo que é o fundamento das respostas emocionais. As respostas emocionais operam automaticamente e de uma forma predestinada. Operam dessa maneira porque têm um valor adaptativo, e funcionam de forma estável, relativamente inflexível. Temos muito pouco controle sobre elas. É como levar a sintonização do seu rádio para uma determinada banda na qual vai aparecer uma certa estação.

Freud não percebia isso. Ou, se percebia, revolta-se contra isso. Porque não conseguia dominar essa pré-sintonização e esse funcionamento automático das emoções.

 

A epígrafe de O Livro da Consciência é de Fernando Pessoa: “Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem (...) Só me conheço como sinfonia”. De certeza que sabe de si, da sua biografia, dos instrumentos que tangem e rangem em si.

Hum. Às vezes sei, outras vezes não sei. Às vezes é preciso procurar e ver o que é que acontece. Precisava de saber mais profundamente de música para poder fazer essa apreciação completa. Mas há coisas que sei e que dizem respeito à voz, ao frasing de um pianista, de um violoncelista. Há certos instrumentos que têm um enorme poder emocional [sobre mim]. Há pouco tempo fizemos a inauguração do nosso novo auditório no edifício do Brain and Creativity Institute – um auditório magnífico, com uma acústica feita pelo Yasushia Toyota, que tem feito alguns dos grandes teatros de música da Europa, do Japão, dos Estados Unidos. Para o dia da abertura escolhemos uma peça de violoncelo de Bach e uma peça de piano que, por razões de puro show off, [riso] porque queríamos mostrar um magnífico Steinway que temos, era de Tchaikovsky, que não é sequer um dos meus compositores preferidos. 

 

Tenho de confessar que quando perguntei o que o comovia tinha a esperança e a expectativa de que a resposta fosse menos velada. Que pudesse ser mais explícito em relação à sua biografia. É como se não soubéssemos nada de si.

Oh, que ideia. Sabem tudo de mim. Quando se escreve sobre a maneira como se vive o dia a dia, como se vive a arte, como se vive a ciência, como se vivem as relações com amigos, as pessoas revelam-se por inteiro. Não há mais nada a dizer.

 

Realmente?

Não. Há factos da biografia. Dizer qual foi a idade do primeiro amor? Ou o que é que senti ao emigrar? Claro que as biografias são feitas de muitos acasos e factos. Mas verdadeiramente o que conta é o resultado dos acasos e factos. [É assim] quando se chega a um certo ponto da vida.

 

O ponto em que está agora? O ponto do sucesso? O ponto em que se olha para a posteridade.

Não olho para a posteridade. Você devia ter estado esta manhã [na inauguração da escola]. Teria imensas oportunidades para fazer novas perguntas e saber o que é que penso da posteridade.

 

Então diga-me.

Tomo muito a sério que pessoas com muito boa intenção quisessem que fosse o patrono, vivo, de uma escola. Ao mesmo tempo não me consigo tomar a sério a mim próprio. Quando as pessoas se tomam a sério ficam empoladas. Ficam intoleráveis. Não tenho gosto nenhum em ser intolerável. Para se ser tolerável, é preciso que a pessoa se ria um pouco do seu sucesso, é preciso que ria um pouco – sem ser ofensivo – daquilo que as outras pessoas dizem dela.

Esta manhã, não sei se o ministro da Educação, ou o director da escola, ou o presidente da Câmara, falaram de um artigo que saiu na [revista] Sciences Humaines, onde sou posto como um dos grandes intelectuais americanos, e onde se fala, muito à francesa, de um “sistème Damásio”. No outro dia perguntaram-me: “O que é que pensa do “sistème Damásio?”. Não faço ideia! Fico contente que haja um “sistème Damásio”; mas a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa é acreditar na sua própria publicidade.

 

Mantém essa reserva – não se permite aderir a isso que dizem de si – para não ficar refém dessa publicidade?

Não, não. Fico contente. É preciso ser estúpido para não ficar contente quando as pessoas dizem (e eu sei que é verdade) que os meus livros estão traduzidos em mais de 30 línguas. É notável. Porque não são livros populares. São livros difíceis de ler. Um editor português disse-me uma vez, a carregar nos “erres”: “O senhorrr prrrofessorrr é uma estrrela, mas os livrrros são indigestos”. [riso] Não escreva isso, senão a minha editora mata-me.

 

Basta olhar para os números: se se vendem tanto, não podem ser indigestos. Mas é uma bela boutade.

É, não é?

 

Se muito do que faz é uma cartografia da alma...

É o que me interessa. Veja o coitado do Freud: teve uma posteridade enorme. Tem mais posteridade do que vida própria.

Lembro-me de o [Noam] Chomsky, que aqui há uns dez, 20 anos, era um dos autores mais citados, me dizer: “É, sou um dos autores mais citados; mas 98% das citações são a atacar-me”.

O que é preciso é saber que se fez qualquer coisa que resolveu um problema. Que avançou um pouco o pensamento ou a ciência. Coisa curiosa (vou dar-lhe uma resposta do ponto de vista biográfico): a perspectiva muda um pouco com o passar do tempo. Quando comecei a minha carreira queria fazer coisas boas. Contribuições. Queria resolver certos problemas. Mas não estava a pensar, de todo!, em posteridade. Uma pessoa quando tem 25 anos, 30, ou mesmo 40, não pensa em posteridade.

 

Pensa em mudar o mundo? Em encontrar respostas para o mundo?

Pensa em encontrar respostas. Houve uma altura em que a minha carreira era tanto a de neurocientista como a de neurologista. Era tentar encontrar respostas para melhorar diagnósticos, melhorar tratamentos, compreender melhor o mecanismo de uma doença. Em relação à doença de Alzheimer ou em relação a certas afasias. Grande parte do trabalho que fiz, em conjunto com a minha mulher, era desse tipo. E aí, não é a posteridade, mas é desejar fazer qualquer coisa que seja bom e prático para outros.

 

Que deixe uma cicatriz na vida de outros, nos livros?

Pensa-se nas pessoas que sofrem determinada doença e cujo destino pode melhorar. Mas não se pensa – ou não se deve pensar – em tentar resolver um problema porque isso nos vai trazer um prémio. Ou porque isso vai pôr o nosso nome no panthéon. Posteridades são coisas muito relativas. Continuamos, no nosso laboratório, com os estudantes novos que temos, a desencorajar o carreirismo.

 

É espantoso, numa sociedade como a americana.

É.

 

E num mundo desenfreadamente competitivo, ambicioso, como aquele em que vivemos.  

As ambições não podem ser ambições próprias. Pode-se ter ambições como investigador (ter um trabalho que mereça subsídios de investigação ou promoções académicas). Mas a incidência tem de ser sobre o trabalho. É extremamente fácil detectar, quando se trabalha com 30 investigadores jovens, quem são aqueles cuja preocupação é, exclusivamente, avançar na carreira. Avançar na carreira, normalmente, pondo os pés em cima de outros.

 

São esses os traços que habitualmente identifica?

Uma enorme gama de sintomas. É como diagnosticar doenças. Aquilo que é preciso é ter a certeza que as pessoas que têm esse tipo de personalidade se sentem embaraçadas se estiverem num ambiente em que isso não é encorajado, se estiverem num ambiente em que o trabalho intelectual e a qualidade das ideias é o mais importante.   

 

Se olhássemos para o seu mapa, se fizéssemos a sua cartografia, e apesar de, como diz, serem os resultados o que conta, que pontos são os importantes para o compreender? Que momentos decisionais, que bifurcações aponta?

É uma pergunta séria, complicada. Há pedaços que são fáceis de responder, outros não. Está a pensar num ponto de vista de carreira, pessoal?

 

Pessoal. Mas quando toma decisões como a de emigrar, a carreira está aí implicada.

Há uma opção pessoal, que é também uma opção de carreira: decidir estudar Medicina. Foi uma opção extremamente importante, e isso não quer dizer que tenha sido a primeira. Aos 15 anos podia, perfeitamente, ter sido realizador de cinema. Ou podia ter-me tornado filósofo.

 

Uma das opções não está completamente excluída do que faz. Há quem olhe para si, também, como um pensador.

Exacto. Mas realizador de cinema já não vai acontecer. Embora goste muito de cinema.

Tive a boa sorte de ter como professor o Joel Serrão. Um estupendo pensador e professor de História e Filosofia. Não era aceitável no quadro universitário do salazarismo, portanto tinha que ensinar no liceu. Foi ele, com textos que me deu a ler do Egas Moniz, que me fez pensar na opção de ser neurologista. Já depois de estar em Medicina, outra opção fundamental: escolher um internato que me permitisse fazer a carreira neurológica. Foi uma decisão importante porque podia, simplesmente, ter optado pela carreira científica. Mas nessa altura já tínhamos começado [a trabalhar] com um outro mestre, muito importante para nós: Norman Geschwind. Era professor de Neurologia em Harvard e foi a pessoa com quem, tanto eu como a Hanna, trabalhámos a partir de 1967, quando éramos ainda estudantes de Medicina. Várias razões tornaram isso possível. Falávamos bem inglês. Aliás, falamos sempre inglês um com o outro.

 

Interrompo a compreensão do mapa e das escolhas para perguntar porque é que falam em inglês um com o outro. A Hanna é portuguesa.

É portuguesa e meia alemã. A primeira vez que nos encontrámos, em Medicina, por qualquer razão falámos em inglês um com o outro e nunca mais deixámos de falar em inglês um com o outro.

 

Como se fosse uma música própria... da vossa relação.

Como se fosse uma música própria. Estamos constantemente a ajustar a língua a situações. Há variadíssimas situações de humor em que utilizamos francês ou italiano. Há situações em que falamos em português; geralmente se tivermos que falar [privadamente] ao pé de pessoas que não sabem português. E há situações em que falamos inglês. Aquilo que já não falo nada é alemão. O pouco alemão que falava não foi possível utilizar quando falava com a Hanna... Eu abria a boca e ela corrigia-me: “The accent is awful! Stop.” [O sotaque é horrível. Pára.]

 

Retomando o ponto: o encontro com o professor Norman Geschwind.

Com quem passámos várias temporadas nos Estados Unidos. Foi daí que nasceu o nosso trabalho. Muito cedo tivemos um laboratório. Por causa do nosso interesse sobre linguagem, foi um laboratório de estudos de linguagem. O primeiro que fez Neuro-Psicologia em Portugal e que começou em 1971/72. Formámos várias pessoas. O Alexandre Castro Caldas, o José Manuel Ferro, o Nuno Lobo Antunes (o irmão, o João, era nosso colega de curso), e muitos outros.

 

E isso durante a ditadura em Portugal. Duplamente difícil? O país era muitíssimo mais fechado.

Sim. Mas não posso dizer que a ditadura me tenha impedido de fazer alguma coisa. A ditadura era uma enorme infelicidade para o país e para nós. É claro que se estivesse a investigar Sociologia provavelmente não me tinham deixado.

Outro aspecto biográfico: começámos a receber convites dos Estados Unidos e de Inglaterra. A grande decisão foi ir ou não ir. Por um lado, queríamos ficar. Tínhamos uma situação extraordinária do ponto de vista da carreira. (Doutorei-me no início de 1974. Podia ter ficado em Portugal como professor.) A dúvida era: vai ser possível fazer aqui – em Portugal – aquilo que queremos de facto fazer? Ou será melhor fazê-lo num sítio onde há mais recursos e onde vai ser possível continuar de maneira diferente? Não foi uma decisão fácil.

 

Até porque havia, imagino, um apego emocional a Portugal.

Com certeza. O apego que continuo a ter. Enorme. Gosto de Portugal. Gosto dos portugueses. Faz-me imensa pena quando as coisas não funcionam. Tenho um enorme orgulho nas coisas portuguesas.

 

Em quê?

Nas pessoas. Em aspectos da cultura. Até mesmo na paisagem, em especial em Lisboa, que é uma cidade de que gosto imenso. Nunca deixei de vir a Portugal. Sempre que há a possibilidade de fazer alguma coisa que traga alguma vantagem, faço-o.

 

Ainda sonha em português?

É muito possível que sonhe em português, mas lembro-me muito pouco dos meus sonhos. O grande drama dos sonhos é que uma pessoa lembra-se durante umas horas, e depois tudo se esvai. Se me pedisse para lhe contar os dez sonhos mais importantes da minha vida, a resposta honesta é que não me lembro de quais são. Nem sequer sei o suficiente dos meus sonhos para pensar nos dez sonhos mais importantes.

 

Nem um sonho recorrente, se o tem?

Não. Não tenho já um sonho recorrente. Tive um sonho recorrente. Há muitos anos estivemos num quase acidente fatal de aviação. Entre o Brasil e os Estados Unidos. Durante anos tive um sonho que não tinha a ver com o acidente, mas com aviões. Era estar dentro de um avião, um Boeing 727, entrar  numa cidade (que podia ser Nova Iorque, com edifícios muito altos); o avião ia para uma rua, ao nível dos edifícios, e eu percebia que as asas iam ser cortadas. É um sonho que não tenho há muitos anos. Se calhar vou tê-lo esta noite.... [riso]

 

É angustiante, como sempre são os sonhos.

Sonhos deleitosos, só na realidade.             

 

Quando estava a perguntar se sonha em português estava a perguntar pelo estatuto que Portugal e a língua têm em si.

Respondo assim: há dados objectivos, factuais, que me fazem gostar muito de Espinosa. Mas se não fosse português, e se eu não tivesse este gosto pela coisa portuguesa, talvez não me tivesse interessado tanto pelo Espinosa. A ideia de que é um grande filósofo que poderia ter sido português é interessante [para mim]. E de certeza que a ideia de emigração, de deslocação em relação a um habitat, é também importante no meu interesse. A deslocação para Amesterdão não é a história do Espinosa, mas é a da sua família.

 

O que interessa é saber como reagimos, após a deslocação, a esse novo ambiente, tantas vezes inóspito.

A reacção a esse novo ambiente é uma reacção de adopção completa. O ano passado foram entrevistar-me para um livro que saiu agora, editado pela Fundação Luso-Americana [de Margarida Marante, com fotografias de Rui Ochôa]. As perguntas tinham muito a ver com a maneira como o ambiente local reagiu à presença do emigrado e a maneira como as pessoas se sentiam em relação a Portugal e ao local onde vivem. A única coisa que podemos dizer é que nunca fomos discriminados. Fomos para os EUA viver permanentemente em 1976; neste momento vivemos já mais tempo nos EUA do que em Portugal. Nestes anos, com muita, muita dificuldade é possível encontrar uma ou duas pessoas que, por completa ignorância do que era Portugal, do que é o mundo fora dos EUA, tiveram uma reacção anti-emigrante. Mas isso é uma raridade quando se pensa nos milhares de pessoas que conhecemos nos EUA.

 

São considerados portugueses ou americanos?

Há pessoas que não fazem ideia nenhuma de onde é que nós vimos. Falamos com pouquíssimo accent. Somos... americanos. E também somos portugueses. A maior parte das pessoas que sabem alguma coisa da nossa carreira sabem que somos portugueses e que temos muito gosto em vincá-lo. A aceitação é completa, e a maneira como nos sentimos na cultura [americana] é completa. Neste momento seria mais difícil para mim viver em Lisboa do que viver em Los Angeles ou em Nova Iorque.

 

É muito diferente viver na Califórnia, onde vive agora, e o Iowa, onde esteve alguns anos? São Américas diferentes.

São. Mas o meio científico é muito parecido. Os nossos colegas em Iowa não eram pessoas de Iowa. Eram pessoas que vinham de variadíssimos sítios do mundo e do mundo americano. As pessoas com quem convivemos como colegas em LA são também pessoas que vêm de toda a parte. Essa é que é a grande força dos EUA: uma abertura à emigração que é completamente diferente da abertura à emigração na Europa. As pessoas que emigram para a Alemanha são emigrantes na Alemanha para o resto da vida. As pessoas que emigram para os Estados Unidos, a não ser que se portem indecentemente, tornam-se americanos. Há uma aceitação, uma abertura, uma absorção das qualidades das pessoas.

A vida é diferente na Califórnia. Mas durante grande parte da nossa vida em Iowa tínhamos também uma vida na Califórnia. Desde 1982 temos posições académicas no The Salk Institute, em La Jolla. Tivemos uma casa em La Jolla. De modo que estávamos sempre de um lado para o outro. E também de um lado para o outro entre Iowa e Chicago, e Iowa e Nova Iorque. Trabalhávamos durante a semana em Iowa e passávamos o fim de semana num apartamento que tínhamos em Chicago. Foi um dos sítios onde mais gostei de trabalhar. Conhece Chicago?

 

Não.

É um sítio magnífico. Um dia tem de lá ir. É talvez a grande cidade de arquitectura dos EUA. Também temos há muitos, muitos anos um apartamento em Nova Iorque. A nossa vida, mesmo em Iowa, não era uma vida de Iowa. Iowa é um sítio extraordinário. No meio do campo, com árvores, verde, invernos white Christmas. Podíamos ir a pé para o hospital, que é um dos grandes hospitais americanos. De carro demorávamos cinco minutos entre a garagem de casa e a garagem do sítio onde trabalhávamos. Olhando em retrospectiva... [espanto na cara] Você está a fazer-me pensar em coisas nas quais não penso há anos.

 

Porque é que não pensa nisto há anos? É só fazer, fazer, fazer, trabalhar, trabalhar, trabalhar?

É, é. Para quê olhar para trás? Isso é o fado! Ó tempo, olha para trás. 

 

É surpreendente que não tenho olhado, porque, insisto, o seu trabalho é uma observação daquilo que está inscrito no nosso cérebro, para o modo como nos construímos.

Estava a pensar na decisão de ir para Iowa, em vez de ficar em Boston ou em Nova Iorque, que eram as duas grandes opções. Ninguém percebia, nem os nossos colegas de Nova Iorque nem os de Boston. Excepto o nosso mentor, Norman Geschwind, que conhecia Iowa muito bem. Respondeu: “Perfect choice” [escolha perfeita].

 

Tinha razão?

Tinha. Porque nos permitiu ter liberdade, ter espaço para criar uma coisa completamente nova.

Faz uma grande diferença em relação à Europa a possibilidade que nos Estados Unidos há de uma pessoa, jovem, poder ter o seu espaço, de fazer aquilo que quer. Inclusivamente de fazer as asneiras que quer. É muito importante as pessoas poderem fazer asneiras. Fazerem escolhas erradas e corrigi-las.

 

A grande diferença é que nos EUA pode-se recomeçar de novo. A Europa é mais penalizadora em relação às asneiras.

A Europa não deixa fazer asneiras. Se faz asneiras, é o fim. Nos EUA há a segunda oportunidade, o começar de novo. Neste momento, nos EUA, há uma certa europeização da costa Leste. As cidades do Leste estão mais perto da Europa, em termos geográficos e em termos de hábitos, maneiras, estilo. São cidades mais antigas, instituições mais antigas. À medida que se avança para o West e para a Califórnia, o espaço abre. Há mais sol, campo aberto. A Califórnia continua, apesar de todas as dificuldades, que são as do mundo actual, espoliado como está pela banca, a ser “o país” da grande oportunidade, do gold rush.     

               

Pode partilhar uma escolha errada, um falhanço? O que conhecemos em si é a conquista, o reconhecimento, o sucesso.

Ah, imensas coisas erradas. Imensas coisas erradas que têm a ver com impossibilidade e oportunidade.

Em 1990, quando o nosso laboratório fez a opção de se dedicar quase completamente aos estudos da emoção foi uma decisão extremamente importante e que foi recompensada. Ao mesmo tempo bloqueou o trabalho que estávamos a fazer sobre a memória, bloqueou o trabalho em relação à doença de Alzheimer, bloqueou um trabalho que eu tinha começado e que só agora está a ser recuperado – sem que eu tenha feito nada para isso. Um trabalho teórico sobre a convergência multissensorial em certas regiões do córtex cerebral e que apresentei pela primeira vez em 1989.

Praticamente abandonei todo esse trabalho porque era impossível [avançar nas duas frentes]. Primeiro, não me podia dividir em dois, e depois, o laboratório também não podia, não tinha recursos para fazer as duas coisas. Sei lá se foi uma grandessíssima asneira que fiz... Se teria sido melhor ter investigado a doença de Alzheimer, que teria, possivelmente, muito mais payoff [recompensa] em matéria de visibilidade, recursos de investigação...

 

O Erro de Descartes data de 1994. Quase 20 anos. Foi um grande sucesso.

O caminho pela emoção foi mais difícil. Não posso dizer que tenha sido um erro, porque as coisas correram bem.

 

Que filmes é que queria fazer quando tinha 16 anos e queria ser realizador? Estou a pensar no caminho que não fez.

Aquilo em que estava interessado era em aspectos formais. Editing, framing de imagens.

 

Que realizadores é que o impressionavam nessa altura e o faziam querer ser cineasta?

Alguns dos realizadores que me continuam a impressionar hoje. Alfred Hitchcock. Ainda é uma das pessoas de quem mais gosto.

 

É um realizador que conta histórias.

Conta-as muito bem. Este Natal revimos vários filmes do Hitchcock. O período melhor é o dos anos 50. São desse período The Rear Window, The Man who Knew Too Much, Vertigo, North by Northwest. North by Northwest é um filme perfeito. O Vertigo, viu, gosta? Tenho vindo a gostar cada vez mais. A Hanna não gosta nada. Não pode com a Kim Novak. A Kim Novak é irritante, mas perfeita para aquele papel. Revimos outro filme, Notorious, com a Ingrid Bergman e o Cary Grant, e o Spellbound, também com a Ingrid Bergman. O Claude Rains, que faz o inspector francês no Casablanca, faz o marido da Ingrid Bergman no Spellbound.

 

Outro realizador?

O meu ídolo desse tempo era o Orson Welles. Com quem tive o grande gosto de passar um dia, em Lisboa, em 1964 (julgo).

 

Como é que isso se deu?

Às vezes com o meu nome, outras vezes com outros, fazia crítica de cinema. Vi num jornal que o Orson Welles estava em Portugal, num hotel no Guincho. Mandei-lhe um telegrama. “Mr. Welles, I’m a medical student. I write reviews for university papers. I’ve a great admiration for you and would like to interview you...” [Sou um estudante de Medicina. Escrevo crítica de cinema para um jornal universitário. Tenho uma grande admiração por si e gostava de o entrevistar.] No dia seguinte telefonei para o hotel. Mr. Welles ia receber-me.

 

Esperava isso?

Não faço ideia. Esperava um não. O Orson Welles, towering figure, tinha quatro vezes a minha largura, duas a minha altura. “You said I’m a good director. What do you like about me?” [Disse que sou um bom realizador. Do que é que gosta em mim?] Sentámo-nos, com uma garrafa de whisky. Agarrou no telefone, ligou à mulher. “Paola, come down. We have a new friend” [Desce. Temos um novo amigo.] Começámos por falar no hotel. A certa altura disse: “I’m hungry”. [Tenho fome.] A melhor coisa era ir a Lisboa, ao Sol Mar. Metemo-nos no carro (ele tinha motorista), com a mulher, a filha, Rebecca. Comemos montes de marisco, bebeu montes de vinho. A meio do almoço perguntou: “Do you know this woman..., Amália?”. Fomos à Valentim de Carvalho, entre two courses of lunch [dois pratos], comprar LP’s da Amália Rodrigues. Voltámos para o Sol Mar e continuámos a falar até às seis da tarde.

 

O que é que lhe encantou nele?

A extraordinária simpatia, a extraordinária inteligência, a extraordinária simplicidade. Os jornalistas diziam que era um homem impossível, desagradável. Comigo foi de uma gentileza...

 

Alguma vez teve uma cena parecida com um fã seu? Mutatis mutandis.

Mutatis mutandis, várias. Tenho feito o possível por me comportar como o Orson Welles. [riso]

 

Ainda não me disse que história gostaria de contar.

Não me lembro, de todo, que história queria contar. Provavelmente era uma dessas histórias idióticas de amor.

 

Disfarça imenso, mas parece vagamente romântico...

Tenho a impressão que sou mais do que vagamente romântico.

 

Que é que teria sido a sua vida se não tivesse conhecido a Hanna? Diz tantas vezes “nós”... Como se tivesse dificuldade em pensar-se ou falar das experiências marcantes a título individual.

Há tantas experiências que são a dois, decisões em comum... It is romantic, it is romantic. [É romântico.]

 

Quando é que a conheceu?

Na faculdade. Ao mesmo tempo que o Orson Welles. [riso] Em 1963, 64.

 

Tinha 20 anos. Que pessoas era para trás? Dê-me uma recordação da sua infância.

Ir ao dentista com o meu pai. O meu pai era médico, endocrinologista e um grande médico de clínica geral. Os meus dentes estavam tortos e a minha mãe queria que o meu pai me levasse ao dentista. Os dentistas, naquele tempo, em Portugal, eram médicos também. O dentista onde íamos era colega do meu pai. Estavam entretidos um com o outro, falaram o tempo todo. Eu não queria que me tocassem nos dentes. O que me tinha feito aceitar ir ao dentista foi [a promessa] de ir a uma loja, a Biagio Flora, na Rua do Ouro, que tinha comboios eléctricos e Dinky Toys.

 

Isso era no tempo em que queria ser engenheiro e gostava de motores.

Possivelmente. É uma boa recordação. É claro que não é uma boa recordação quando hoje vou ao dentista e me dizem que não tenho bons dentes. Tudo culpa dos Dinky Toys.

 

Com a sua mãe brincava a quê?

De certeza que não brincava com Dinky Toys! [Olha para o relógio] Oiça, são sete horas! Agora diga-me: o que é que vai fazer com isto?

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013

 

 

  

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