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Anabela Mota Ribeiro

Fernando Gil

24.11.24

«Come chocolates, pequena; come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida».

A partir deste excerto do «Tabacaria» do Pessoa, gostaria de falar de inocência e de Filosofia. Uma das palavras associadas à Filosofia é Libertação, e depois de reler esta passagem, não consigo deixar de pensar na leveza de comer chocolates e na tragédia que o saber representa.

A Filosofia é um acto de inocência porque é uma interrogação sobre o que o mundo tem de admirável. Aristóteles, no começo da sua «Metafísica», e numa célebre frase, diz que a Filosofia é espanto. É espanto, e por isso interrogação, e por isso questionamento. A Filosofia não é inocente porque questiona, e é inocente porque faz uma pergunta que é um puro risco e que aparentemente não tem sentido. As coisas, elas próprias, já responderam, porque são o que são, porque são diferentes, porque se dão. Penso que é um acto de inocência fazer-se uma pergunta para que se sabe que nunca pode haver uma resposta, uma resposta boa. Talvez por isso, algo que é misterioso na Filosofia: os filósofos nunca estiveram de acordo uns com os outros, não só nas soluções e nos problemas, mas mesmo no significado da própria Filosofia, sobre o que é filosofar. Sendo a disciplina mais antiga, deveria ter tido já tempo para se normalizar um pouco, para haver um reportório de boas e más perguntas e respostas.

 

Extrapolando do universo filosófico para o da quotidianeidade, não sente nostalgia de uma inocência? Ou consegue, apesar de todo o seu saber, espantar-se com as coisas?

Não sei se me espanto com as coisas, mas não me canso do que, apesar de tudo, é a beleza da vida e do mundo. De algum modo, fico sempre um pouco maravilhado.

 

Insisto na dicotomia inocência-sofia. Numa ocorrência específica, a palavra sofia, que vulgarmente se traduz por sabedoria, assumia o conteúdo semântico de sensatez. Como se o estatuto da sabedoria fosse equivalente ao da sensatez. Não sei se isso pressupõe um pensar dissociado da coisa maravilhosa de comer chocolates com verdade.

A Filosofia de sensato tem pouco. Para um praticante da Filosofia, é detestável fazer parecer que a Filosofia é algo de extraordinário, de arriscado; mas é um pouco assim mesmo. É pouco sensata a pergunta de um filósofo: «Porque é que há Ser em vez de Nada?» Há alguma pergunta mais insensata que esta? E é uma pergunta que faz talvez sentido. Sofia, sensatez..., não sei se estou de acordo com essa tradução.

 

Trata-se de um texto muito específico. Pareceu-me curioso que, ainda que numa ocorrência específica, uma das palavras nucleares da Filosofia pudesse assumir a tradução de sensatez.

Está a dar-lhe uma coloração positiva, ao termo sensatez?

 

Pessoalmente prefiro a inocência de comer chocolates com verdade.

Eu penso que, apesar de tudo, a Filosofia é mais para esse lado que para a sensatez.

 

Como é que surge a Filosofia para si? O seu percurso é algo atípico. Fez uma breve incursão na Sociologia, licenciou-se em Direito, e em 61 decidiu-se pelo estudo da Filosofia em Paris.

Nessa altura, em 61, já tinha escrito um livrinho de Filosofia.

 

Não foi uma espécie de ousadia escrever um livrinho de Filosofia sem antes a ter estudado?

Foi com certeza o exemplo de um mestre, José Marinho, que eu frequentava em cafés da Avenida de Roma, que podia animar um jovem, que tinha tido alguma revelação da Filosofia através do prefácio da «Fenomenologia da Percepção» de Merleau-Ponty, a avançar sozinho. O José Marinho era, justamente, um filósofo insensato, e animava tudo o que pudesse parecer um caminho pessoal. Não fui só eu; várias pessoas à volta dele beneficiaram desse apoio. Talvez tenha sido ainda mais insensato porque escrevi o livro sabendo muito pouco de Filosofia.

 

Esse livro, «Aproximação Antropológica», é apresentado por si como sendo sobre a morte, o amor, o sexo e a subjectividade.

Está a ver, ah?, que programa! [sorriso] Não fui por aí; era preciso baixar a pretensão e ir para a escola.

 

Mas porquê estes quatro temas?

Certamente porque são o que é mais importante para nós.

 

Uma espécie de quintessência da vida toda? Ainda que em diferentes acessos, foi ainda sobre isso que se debruçou ao longo dos anos?

Directamente, não. Hoje talvez esteja a voltar a esse tipo de questões. Na altura dei-me conta de uma enorme ignorância. Para não se dizer disparates em demasia, é preciso realmente estudar, aprender a criticar, informar-se. Não se pode falar do mundo, se o mundo é diferença... O que é que quer dizer diferença? Diferença é informação. Aristóteles, logo depois de falar do espanto, na mesma página da «Metafísica», diz que os sentidos nos dão a conhecer as diferenças e a vista ainda mais que os outros por ser a que melhor percebe diferenças. Ora, diferença é informação, o que é indiferenciado é o que é redundante. Então, o estudo é para isso.

 

Porque está agora a voltar a esses quatro temas?

Não estou exactamente a voltar a esses quatro temas. Volto a esse tipo de preocupações, se quiser. Não lhe sei dizer bem.

 

Há subjacente a isso uma ideia de circularidade?

É mau sinal. Quer dizer que estou a chegar ao fim. Se o círculo se fecha outra vez...

 

O que é interessante é que ao cabo de todos estes anos, e apesar do carácter enciclopédico que caracteriza a sua obra, volte aos temas que instintivamente escolheu.

Posso dizer uma coisa sobre o enciclopédico?

 

Sim.

Tenho visto essa palavra ligada à minha humilde pessoa... Eu não tenho a vocação de pretender esgotar o saber, de pretender conhecer tudo, era o que faltava! Mas se quero ter uma vaga aspiração a isso, entendo que para se saber a menor coisa sobre seja o que for, no limite seria preciso saber tudo. E se me interesso por muita coisa diferente, é por essa razão, não é por nenhum gosto de armazenar saber. Um dos grandes fundadores da ideia moderna de enciclopédia é Leibniz, que tinha pouco de armazenador. A ideia dessa gente, do final do século XVII e XVIII, era a de que o enciclopedismo consistia no poder de estabelecer ligações entre aspectos diferentes do saber e do mundo, e não inventoriar.

 

Quanto aos quatro temas.

Dou-me conta que algumas coisas que estou a fazer hoje... Por exemplo, a Maria de Sousa convidou-me a participar num colóquio sobre «Razões de Ser», e fui obrigado a pensar nesse tipo de questionamento. Porque é que volto a isso agora? Certamente porque estou perto, porque não estou muito longe do fim da vida. Posso viver uns anos mais, mas já estou muito para além do meio do caminho, como falava Dante. Não me analiso muito, sabe?

 

Não?

Não me acho suficientemente interessante.

 

O que é que verdadeiramente pode fazer uma pessoa interessante? O que é que interessa na vida de uma pessoa?

Não lhe sei dizer. O que é que interessa do ponto de vista do que é válido, do que se deve admirar na vida de uma pessoa?

 

Não. Perguntava sobre o que provoca interesse, porque o senhor dizia que não é suficientemente interessante para se interrogar sobre si.

Não me acho suficientemente diferente de si, e não sou muito informativo. A minha personalidade não tem coisas muito apaixonantes para mim, provavelmente porque as conheço de cor e salteado. O que é mais importante? Desculpe a palavra, ela é um pouco pomposa, mas aquilo a que os filósofos chamam o problema da Verdade para mim é mesmo decisivo. É extraordinário que tenha havido uma espécie animal, que somos nós, que foi capaz de se inventar, na Verdade sobre si e sobre o mundo, sobre o homem e os bichos e as coisas. Sabemos, por outro lado, ser extremamente problemática a ideia de Verdade. Talvez seja um fantasma, mais que uma ideia, mas é algo que aparece como um imperativo, não só a quem se ocupa de Filosofia; a quem se ocupa de ciência a sério, a mesma coisa.

 

Os filósofos remetem-nos para um registo endoxal, como se não fosse nunca possível aceder a essa Verdade.

Há os filósofos que são partidários do endoxal, do opinativo, mas o primeiro dos filósofos que teorizou isso (Platão falou muito disso), foi Aristóteles. Para Ariostóteles, os endoxai não eram opiniões no sentido de serem em princípio não válidas. Pelo contrário, a opinião dialéctica, que ele opunha à verdade demonstrativa, era também verdade. Era uma verdade plausível, menos segura de si que a verdade demonstrada, mas o endoxal não era o lugar da confusão e do erro, era o lugar do plausível.

 

Quando sente que caminha no sentido de completar o círculo, sente-se mais próximo da Verdade?

Ah, não, com certeza que não. Mas espero que esteja um bocadinho mais longe do erro. Tenho um bocadinho essa pretensão, de me enganar menos. Isso significa ter ideias mais claras sobre os corpos de saber, mas também sobre... Vai achar-se muito vaidoso, mas hoje penso que me engano pouco com as pessoas.

 

O que é que isso quer dizer?

Que ao fim de pouco tempo de conversa, sei um bocadinho com quem estou a lidar.

 

Significa que está a fazer-me um diagnóstico?

Não faço diagnóstico. Não sou eu que o digo, cito-o de um filósofo francês que em relação a muitos ensaios de crítica, muito populares nestas últimas décadas, fazia esta pergunta: «Mas quem é que tem a competência de diagnóstico?» Eu não sinto nenhuma competência de diagnóstico, nem sobre o mundo nem sobre as pessoas. Não é um diagnóstico, é sentir se o interlocutor... Era o Platão que o dizia: O Bom, o Belo, e o Verdadeiro. Com os anos, e talvez porque a vida foi um pouco reflectida e não apenas experimentada, podemos distinguir um pouco mais rapidamente o que é bom do que não é, o que é belo do que não é, o que é verdadeiro do que não é. Uma teoria sobre o Bom, o Belo e o Verdadeiro, é outra coisa mais complicada.

 

Nesse processo de sensibilidade adquirida, mesmo que o primeiro encontro surja puramente empático, as suas relações pessoais estão mais facilitadas? Ou, ao contrário, é maior o espaço entre si e os outros?

Não lhe sei responder em geral, em relação a todas as pessoas. Digamos que tenho menos pudor em declarar sentimentos, embora tenha ainda dificuldade nisso. Isso solicita em algumas das outras pessoas um movimento do mesmo género. Porque uma das dificuldades das relações humanas é não sermos capazes de declarar sentimentos. Mas talvez precise menos disso, dessa proximidade com as pessoas, do que já precisei. Terá também a ver com o envelhecimento.

 

Precisa-se menos do assentimento daqueles com quem se está?

Precisa-se menos de um acordo a cada momento. É-se um bocadinho menos angustiado, numa palavra. Estar em silêncio em grupo, não ter que falar sempre. Um dos grandes problemas do nosso tempo, e ouso dizer uma generalidade, é que cada vez mais temos menos confiança em nós próprios, cada vez mais estamos angustiados, ansiosos, a pedir que nos amem. É isso que quero dizer, que talvez peça menos que me amem. Não é que precise menos dos outros; mas preciso menos que estejam de acordo comigo, que me apreciem.

 

Tanto quanto sei só tem 63 anos.

Posso viver mais, sei lá, 10 anos, 20 anos, dois anos.

 

Quando é que o começou a apoquentar a ideia da morte?

Apoquenta menos do que apoquentava quando era novinho! [riso] Dizer que não me apoquenta seria falso, mas hoje adiro menos a mim que quanto tinha 20,21 anos, quando escrevi esse livro. Invisto menos no duro desejo de durar, como dizia o Paul Éluard. Não é que esteja desinteressado por mim, de modo algum, mas também não estou apaixonado.

 

Não percebo completamente o que é que isto tem que ver com a idade.

Temos de ser muito claros, há um tempo de vida estatístico, e estou muito mais perto, ou relativamente perto dese fim. Eu acredito nas estatísticas.

 

Lembro-me de incontáveis pessoas que começam uma outra vida com a sua idade.

Eu estou contente com a minha, não quero começar outra vida. Gostaria de fazer algumas coisas ainda, de viver bem com as pessoas que amo e que estão à minha volta, e devotar-me na minha humilíssima medida a contribuir para que as coisas mudem. O mundo está um horror, vive-se horrivelmente. Não se pode abrir a televisão, sem ter logo vontade de a fechar. E isso afasta-me também da minha pessoa. Vi ontem na televisão, entre a fome na Etiópia e a guerra na Tchétchénia, pode parecer um pouco pomposo, mas fico com vontade de fechar a boca. Sou mais sensível a isso do que fui. Fui muito sensível quando era jovem; era comunista de alma e de algumas actividades. Hoje não sou comunista, mas reencontro-me com preocupações que vêm dessa altura e que o interesse pela minha pessoa e pelo meu trabalho de algum modo ocultou. Provavelmente nunca farei nada de jeito pelos outros até ao fim da vida, mas acho que era isso que devia fazer.

 

Quando ainda vivia em Moçambique, integrou o grupo de jovens que se rebelou contra o colonialismo.

Sim, sim. Foi uma rebeldia muito modesta, no nosso caso foi apenas ler livros. E fomos presos uns dias, não teve nada de heróico. Era um pequeno grupo anti-colonialista, fez muito barulho por causa disso, por estarmos no lado ensolarado da estrada.

 

Representou também uma rebelião contra a figura do seu pai, que era um alto funcionário colonial?

Nessa altura, já talvez não. Começou por ser uma extensão do que o meu pai e a minha mãe me ensinavam, que era pura e simplesmente o cristianismo. Ver como a população negra era humilhada (já não falo das condições materiais!), era algo intolerável e contraditório com aquilo que nos ensinavam. O que via em Moçambique não se parecia nada com o Evangelho. Não é que tivéssemos estudado o Evangelho a sério, mas era preciso ter os olhos bem fechadinhos para não ver como era contraditório com o mundo que era o nosso. Isto começou cedo, pelos 12 anos, 13 anos. Depois vieram os escritores brasileiros que me marcaram imenso, o Jorge Amado e outros.

 

Foi também aos 12 anos que publicou pela primeira vez um texto seu num jornal. Chamava-se «Impressões Poéticas», não era?

Como é que sabe isso?

 

Sei. Já se tinha esquecido?

Não, mas acho que nunca falei disso. Havia um jornal literário que se chamava «Itinerário», um jornal de oposição. Mandei um textozinho com um nome que não era o meu.

 

Qual foi o pseudónimo que escolheu?

Sou capaz de estar enganado, porque não guardei o jornal, mas penso que era Fernando Augusto, que são os meus dois primeiros nomes. O texto chamava-se «1,2» (um vírgula dois), disso lembro-me bem. Era esse o tipo de escrita, John dos Passos e Jorge Amado; passar do número romano ao árabe, parecia-nos muito moderno. A influência foi da minha mãe, que era poeta e publicava muito.

 

Mostrou-lhe o texto antes de o enviar para o jornal?

Não, não. Os meus pais não viram o jornal e não creio que lhes tenha dito. Ah! E a minha influência era também um jornalista brasileiro chamado Franklin de Oliveira que escreveu um livro absolutamente maravilhoso; com certeza fiz um pastiche disso.

 

A quem confessou a autoria do texto? Quem eram as pessoas do seu grupo?

Era um grupo que incluía naturalmente o meu irmão, que era mais novinho. Houve uma influência, mais tarde, do Hermínio Martins, sociólogo em Oxford, e havia pessoas do liceu: o Luís Soares Barreto, o José Carlos Horta.

 

A literatura era o seu interesse primordial? O que é que pensava para o seu futuro?

Sempre pensei, sem pensar, na literatura e nas letras. Nunca tive muitas dúvidas sobre o que queria fazer na vida.

 

Acabou por fazer imensas coisas.

Deve ser o enciclopedismo, deve ser o enciclopedismo! Há uma grande parte de contingência, de acaso. Por exemplo, tornei-me em parte enciclopedista para ganhar a vida. Eu não tinha grandes apoios materiais, e foi-me oferecido um trabalho interessante.

 

O dinheiro era uma motivação?

Era dinheiro para sobreviver. Não era para fazer dinheiro, era para ter com que comer. Comecei uma carreira universitária aos 40 anos. Até lá vivi aos baldões, como muitíssima gente que vivia fora de Portugal e que não tinha apoios particulares ou não era rico.

 

Apesar desse quadro não muito desafogado financeiramente, não completa o estágio de advocacia e vai para Paris estudar filosofia.

Eu sempre quis fazer isso. Logo depois do meu sétimo ano, como se chamava ao fim dos estudos liceais, queria estudar, não sei se filosofia, mas fora. Os meus pais opuseram-se com uma espécie de pavor que o comunismo internacional me apanhasse, e eu não tive forças nem coragem nem conhecimento... Fiz um curso de direito sem vontade nenhuma de o fazer. Tive muito boas notas nos dois primeiros anos, depois foi uma descida considerável nas minhas classificações até ao fim.

 

Manteve alguma ligação política ou partidária?

Como toda a gente, fazia parte do grupo de estudantes de direito que eram contra o Regime. Actividade política, sempre a tive; nunca tive foi coragem suficiente para ir muito longe no meu militantismo. De modo que fiz, mas foi pouca coisa.

 

Apesar de pertencerem a diferentes gerações, foi nessa altura que conheceu Mário Soares? Ou foi nos anos de Paris?

Conheci-o em Lisboa, já depois do 25 de Abril. Foi o meu amigo Manuel Villaverde Cabral que mo apresentou numa tarde em que fomos à sua casa em Nafarros obter dele apoio para um centro de investigação que queríamos criar. Passámos uma tarde inteira, nós falámos, ele não abriu a boca, tomou notas; acho que acreditou em nós e apoiou-nos.

 

Teve o privilégio de estudar na Sorbonne numa fase apaixonante.

O que foi realmente inesquecível para tanta, tanta gente, e também para o meu irmão, foi uma intensidade filosófica e de várias naturezas. Os estudantes de filosofia da Sorbonne, não pensávamos noutra coisa, debatíamos dia e noite o que estudávamos, tínhamos muito bons professores. Foi de facto exaltante.

 

Foi aluno do Paul Ricoeur, não foi?

Sim, e o assistente do Ricoeur era um jovem brilhante chamado Jacques Derrida. Fui seu aluno em 62, era um admirável explicador de texto. Mas o outro ingrediente era um certo romantismo que tinha a ver com os surrealistas e com os filmes do Godard. O «À bout de souffle» e o «Pierrot le fou» marcaram-me extraordinariamente. São anos ainda antes de 68, magníficos, de paixão.

 

O seu irmão, José Gil, vivia consigo em Paris? Os dois irmãos são filósofos.

Vivemos juntos um certo período, durante um ano. Ele foi para Paris antes de mim. O que acabo de dizer sobre a vida intelectual de Paris, julgo que ele subscreveria.

 

Em Paris, sobrevivia fazendo traduções.

Graças ao Pedro Tamen, fazia traduções para a Moraes. O Pedro Tamen apoiou-me, nomeadamente pagando-me muito além daquilo que a casa editora podia pagar, por amizade. Tive também uma bolsa do governo francês durante dois anos.

 

Como é que se organizou o seu pensamento filosófico a partir desses anos de Paris?

Nunca estive inserido em correntes dominantes, e cada vez estou menos, excepto nos primeiros anos de Paris em que o que fazia tinha a ver com Heidegger e com Husserl, sobretudo, e, como toda a gente, interessei-me pelo lacanismo quando ele apareceu. O carácter demasiado não científico, puramente especulativo de toda essa filosofia fez com que deixasse de estar dentro dessa hoste. Então, interessei-me por Wittgenstein e por uma Filosofia de pendor mais rigoroso, mais decidível. (A Filosofia nunca é decidível; em todo o caso, há graus de indecibilidade). A pura especulação sobre o sentido da metafísica ocidental, de tipo heideggeriana, não me interessa, não sei como mover-me dentro desse tipo de pensamento. Na «Flauta Encantada», a certa altura, o Papageno é apresentado ao Tamino, que diz «Ah, é um príncipe»; Papageno responde «É um príncipe? Ah, isso é algo demais para mim». Em relação a esse tipo de especulação, é alta demais para mim, também. Não concebo um pensamento que não se obrigue a pôr-se à prova.

 

Foi difícil não ter sido permeável, pelo menos tanto quanto era suposto, às questões do seu tempo?

Foi muito difícil. Para dizer a verdade, só recentemente me sinto mais à vontade comigo mesmo a esse respeito. Vivi paralisado muitos anos por estar fora de tudo o que era dominante. As viagens das minhas ideias próprias aconteceram muito tarde na vida. Até lá, sem incorrer na loucura de me opor a tudo e a todos, não tinha caminho próprio. O resultado sempre foi uma enorme dificuldade em avançar, um sentimento de grande solidão, uma falta de reconhecimento. Se a pessoa tem uma grande alternativa a propor, então não há dificuldade. Hoje tenho alguma alternativa, não é grande, mas é um caminho suficientemente interessante para ter novas coisas para fazer a partir desse pequeno capital de hipóteses.

 

Numa entrevista antiga, sublinhei um aspecto que parecia traduzir a essência do seu interesse: «Os processos de validação do pensamento, as continuidades que criam ilhas de sentido, as condições da moralidade e do amor, e a afirmação do conhecimento».

É, é exactamente isso que me parece importante.

 

Ainda nessa entrevista, dizia mais à frente: «A história da filosofia obriga-nos a um recuo relativamente à miopia do contemporâneo». Perguntava-me do que ficará de si...

Ah, nada.

 

Do que ficará de si e do seu pensamento filosófico.

Não podemos prever a menor coisa do que vai acontecer depois de nós. Não penso que de mim grande coisa fique como pensador. Como pessoa limito-me a citar-lhe uma frase que diz isto: «Morremos definitivamente quando morreu a última pessoa que nos conheceu». Não fica nada de mim, como não fica nada de ninguém. Só os contemporâneos, e aí não é ser-se míope, é que podem apreciar certas coisas que viveram. Por exemplo, os filmes de Bergman foram entendidos pela minha geração como nenhuma outra geração os poderá entender, como nós já não entendemos os filmes de Dreyer ou de Buster Keaton. As coisas morrem com as gerações, morrem mesmo, e as grandes obras ficam. As pequenas obras ficam cinco anos, dez anos, 30 anos, mas veja o que é isso.

 

Nos filmes do Bergman e do Dreyer, além da componente filosófica, há uma religiosidade que os envolve. O que é que identifica quando pensa na obra destes cineastas?

Não sei. Mas estou muito de acordo com o que disse sobre a religiosidade, e gostaria de valorizar uma outra palavra a que chamaria espiritualidade.

 

Mas então voltamos ao mesmo; depois do conhecimento da religiosidade e da espiritualidade já não poderemos comer chocolates com verdade.

Há uma coisa que está a esquecer; essa rapariguinha comia chocolates com verdade no poema do Fernando Pessoa. Provavelmente não estava a comer chocolates como o Fernando Pessoa a via comer chocolates.

 

Significa que a pureza e a verdade estariam no Fernando Pessoa.

No limite estariam só no Fernando Pessoa. Como aspiração, como mito. Talvez a inocência seja o mito, porque justamente é a mais alta espiritualidade.

 

Qual é o seu sentimento em relação à religiosidade e à espiritualidade? Perdeu a esperança de encontrar A Palavra numa acepção religiosa, de conversão e de fé?

Confesso que é uma questão que me é estranha. Basta-me a música de Schumann. Não me faz falta a religião. E a si faz?

 

Basta-me «A Palavra» do Dreyer. Fixemo-nos, agora, nos anos 70. Porque é que decidiu regressar a Portugal?

Porque Portugal me faltava, terrivelmente. Estive 13 anos sem cá vir. Faltavam-me as pessoas, a língua, faltava-me reencontrar uma comunidade. Em França resisti sempre a integrar-me: falei sempre com sotaque, recusei propostas de carreira interessantes.

 

Consegue dissecar essa resistência?

Não sei explicar. O mais curioso é que não posso queixar-me de França. Deve ser um atavismo nacional. Tem a ver com aquilo que nos constitui.

 

Não consigo perceber, até porque não tinha vivido aqui o grosso da sua vida.

Está a ver?, mas o meu imaginário sempre foi português.

 

Quando foi a primeira vez que veio a Portugal?

Acompanhava as licenças graciosas, como se dizia, do meu pai. Vim uma vez quando era muito pequeno e fiz cá o sexto ano no liceu Pedro Nunes. Da primeira visita não tenho ideia senão por fotografia, tinha três anos. Mas tenho lembranças mais antigas, consigo lembrar-me da casa em que nasci, que era no mato. Com dois, três anos, tenho a impressão extraordinária de ver dezenas de patinhos acabados de nascer a correr no quintal. A mancha amarela que se deslocava a correr ao sol, é uma imagem muito forte, talvez a mais antiga que retenho.

 

Quando regressa a Portugal nos anos 70 a sua posição ficou particularmente vincada pela dinamização da vida universitária e pela fundação do curso de Filosofia na Universidade Nova.

Que se fundou sem mim! Fomos fundamentais todos quantos lá estávamos e todos quantos vieram depois. Se houve alguém fundamental foi uma pessoa que já morreu e que dirigiu o departamento, o João Morais Barbosa. Mas já agora conto-lhe uma história. Em 76 vim cá para ficar. Vendi as coisas, pouquíssimas, que tinha em França e vim com a família; seis meses mais tarde voltei porque não me entendi com Portugal. Havia um miúdo que tinha na altura sete anos, que estava no Liceu Francês e que tinha dificuldades de integração, como eu tinha na Faculdade de Letras (fui muito bem recebido, eu é que não funcionava bem). Ia buscá-lo ao Liceu às quatro e meia, e em geral estava triste. Um dia vejo-o a jogar futebol com os outros meninos, fiquei felicíssimo e pensei que finalmente começava a integrar-se; uns minutos mais tarde vinha ele cabisbaixo e disse que o tinham posto fora do jogo porque corria depressa demais. Nesse momento mesmo decidi, e um mês mais tarde estava novamente em França, para não mais voltar.

 

O que mudou o curso dos acontecimentos?

Os anos todos que vivi em França e não me integrei, era também animado, sem que pensasse muito nisso, da ideia de que um dia Portugal me caberia em sorte. Quando regressei a França, cortei mesmo amarras com Portugal. Só não as cortei de vez porque o António Marques insistiu e conseguiu que eu fosse para a Faculdade, e uns anos mais tarde, quando se formou o departamento de Filosofia, fui convidado para integrar a Universidade Nova. Até aí, nesses dois ou três anos, a minha atitude passou a ser outra, a de me integrar em França. E depois, naturalmente, houve um processo de crescimento de trabalho que surtiu alguns efeitos. Foram-me oferecidas condições de trabalho invejáveis em França, e tive imensa sorte no facto deste meu duplo regime ter sido aceite pela minha universidade.

 

Desde então vive nos dois países?

Passo uma parte do mês cá nos meses em que há escola, e o resto do tempo passo-o em França. São duas vidas, são. Às vezes digo para mim mesmo que sou um esquizofrénico feliz! As diferenças são as mesmas de sempre: a língua, o tipo de trabalho que faço em França não é exactamente o mesmo que faço cá; os seminários são os mesmos, mas cá faço-os em português, o que para mim é precioso.

 

A língua enquanto identidade própria?

Como o meu francês não é admirável, invento (com muitas, muitas aspas) mais dificilmente em francês. Sou capaz de afinar um pouco melhor as minhas ideias com os seminários que faço cá. Em relação ao resto, bom, aí há uma grande diferença entre Portugal e França. A minha escola é um grande laboratório de trabalho, com imensas e sistemáticas inter-acções entre as disciplinas, e há uma vida interna que não se traduz em publicações mas que é uma presença constante em seminários. Por maiores que sejam os avanços em Portugal, que são consideráveis, ainda temos um caminho a percorrer.

 

O seu pensamento filosófico ocupa lugares distintos no contexto português e no francês, ou eles equiparam-se?

Não, nem pensar. Sou muito menos reconhecido em França. O universo é muitíssimo maior e não luto muito pelo reconhecimento: não tento publicar todo o tempo e o máximo que posso publicar, não estou em grupo nenhum, e isso não me ajuda. Eu trabalho muito isolado. Em Portugal, um pouco por acaso e porque o meio é mais pequeno, as coisas têm sido mais fáceis.

 

Como é que sentiu a atribuição do prémio Pessoa em 93?

Senti o Prémio Pessoa como um acto de amizade e de consideração que me tocou imenso. Mas creia que rarissimamente penso nele. É muito generoso dar-se um prémio, é muito agradável recebê-lo, e é tudo. Não são coisas que me alimentem. Como lhe digo, sou um pensador muito modesto. A pensar nesses termos, a única coisa que faz sentido é a posteridade, aí sejamos ambiciosos. Penso que o meu trabalho, se servir para alguma coisa, talvez tenha contribuído para abrir caminhos que estão ainda fechados e que merecem ser abertos. Mas não terei feito uma obra definitiva. Portanto, não vai ficar grande coisa de mim. O que quer dizer uma posteridade depois da nossa morte?, como é que isso nos pode satisfazer?, como é que se pode compensar o facto de morrermos? Se me dissessem que iria ser celebérrimo daqui a 200 anos, para já não acreditaria um só segundo, e depois não mudaria nada a ideia que tenho de mim mesmo.

 

Acha que Kant imaginava que iria ser celebérrimo passados duzentos anos da sua morte?

Penso que era a última coisa em que ele pensava.

 

Falei de Kant por ser um filósofo cujo estudo o ocupou bastante e porque me impressionou fortemente o seu epitáfio: «Sobre mim o céu estrelado, em mim a lei moral»

A «Crítica da Razão Prática» termina assim.

 

Esta conversa foi perpassada pela ideia de sobrevivência à morte e pela ideia de Moral. O que poderia constar do seu epitáfio?

[silêncio] Se houvesse alguma coisa que pudesse ficar num epitáfio meu, que gostaria que ficasse, não seriam palavras, seriam notas de música. Sabe que às vezes penso qual seria a música que gostaria de ouvir na minha morte?

 

E qual seria?

Estou sempre a mudar.

 

O que me merece curiosidade é o desejo de deslocar-se de si para assistir à sua morte, é esse excentramento.

Vejo isso apenas como um presente às pessoas que estão à volta, seria um adeus.

 

Quem estaria à sua volta, quem são as suas pessoas, para lá de toda a pompa pública e filosófica?

Pessoas que não conhece. Tenho um filho que é advogado em Paris, e tenho uma mulher que admiro muito.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2000

Fernando Gil morreu em 2006

 

José Gil

24.11.24

Onde é que nós fomos? Ao Tonio Kröger, de Thomas Mann, e ao que significava discutir isto na adolescência. Ao Quartier Latin onde Derrida era assistente, e onde coexistiu um grupo de excepção. À Córsega, onde a minha casa é a tua. Ao tumulto íntimo. A Deleuze e a uma convivência decisiva. À implosão do edifício Língua Portuguesa, há muitos anos, em Paris. À mãe, que no meio do mato, em Moçambique, sonhava com um pouco de Paris. Ao que é ter criados e dar-lhes ordens. Ao que constitui a identidade. Ao reconhecimento. A Portugal, onde tudo era, (ou ainda é?), interdito. Aos sonhos que não foram esquecidos. A Pessoa, porque somos muitos. Outra vez, sempre, ao tumulto íntimo. “Eu era uma espécie de tumultozito que andava por aí”.

José Gil, o desassossegado, é muitos. Fomos a muitos.

Ensaísta e filósofo, nasceu em 1939 em Moçambique. Em 2004, o seu livro Portugal, Medo de Existir tornou-se um best-seller. Pouco depois da sua publicação, o Nouvel Observateur apontou-o como um dos 25 pensadores mais fulgurantes do mundo contemporâneo. Que importância teve a menção na vida dele? Foi professor na Universidade Nova até ao ano passado. Dava aulas de Estética. Nos últimos anos tem intervindo no espaço público, sobretudo nas áreas da Educação e Política. Mas recusa tornar-se um comentador político. Reservado em relação à vida privada. Irmão do filósofo Fernando Gil, falecido em 2006.

Em duas horas falámos de quem é, do seu percurso, dos seus objectos de estudo. Em frente, árvores. Por perto, as cores de Ângelo de Sousa e de Álvaro Lapa.

 

A Identidade é uma questão essencial para si, é objecto do seu estudo. Podemos começar pela descoberta e definição da sua identidade?

Nasci sem as determinações habituais – sociológicas, linguísticas – da identidade. Se tenho hesitações quanto à minha identidade? Possivelmente. Mas a um nível muito profundo. Sou filho de colonos. Nasci numa pequena cidade em Moçambique, em Quelimane; uma cidade onde viviam mil brancos, e ao lado vivia uma multidão de dezenas de milhares de negros. Nós constituíamos uma ilha, pequena. Não tínhamos o que eles tinham relativamente ao espaço. Não tínhamos o nome das árvores, da terra, das colinas.

 

Era uma espécie de fusão com o espaço?

Eles tinham a sua linguagem. Nós é que não tínhamos vocabulário para designar esse espaço. Tínhamos um espaço reduzido, empobrecido. Os elementos: tudo em África é muito forte. O calor, o sol, a chuva. Em Quelimane, lembro-me de um mês em que choveu todos os dias, consecutivamente. O nosso vocabulário era para os lírios do campo, que não existiam lá. Cantávamos canções na escola primária, que eram sobre o campo, em Portugal. Portanto, vivíamos em distância.

 

Deslocados.

Sim. Nascemos já, de certa maneira, em estado de exílio. Mas não acho que esse estado fosse sentido como uma falta de identidade. Compensámos isso com outras simbolizações. Tínhamos a nossa maneira de nos sentirmos moçambicanos. Que era à parte da maneira de um negro, um africano. Não tenho problemas de identidade. Só tinha – só tenho – se me pergunto, semi-abstractamente, onde é que quero ser enterrado. O ser enterrado implica um sítio a que se pertence.

 

Back to basics.

Exactamente. Não sei onde quero ser enterrado. Uma vez vi aqui um cemitério lindíssimo, e pensei: gostaria de ser enterrado aqui. Mas só tem a ver com razões estéticas, e não sentimentais. Não acho que tenha problemas de identidade, mas talvez tenha. Se quis pensar o problema da identidade portuguesa foi porque o vejo à minha volta, e ele afecta-me. Conheci bem um país pequeno onde se discutia a questão da identidade: a Córsega. Discutiam se tinham uma identidade própria, se tinham uma origem italiana, toscana, francesa, se tinham de ser anexados. Li muito sobre o problema nacionalitário (é assim que se designa na literatura). Mas essa não é para mim uma questão principal.

 

Porquê?

Poderá ser por uma patologia qualquer… Serei esquizóide e não terei problemas desses? Quem sou eu?, relativamente aos meus compatriotas, à minha Pátria, ao sol, à História, ao meu passado? Eu, eu, eu.

 

Quem sou eu? – é uma questão essencial em Filosofia. Depois, pode deslocar essa questão para diversos campos.

E até posso mostrar que “quem sou eu?” pode ser uma questão subordinada a outras, mais importantes. O que me surpreende mais – e isto não é uma glosa snob do Fernando Pessoa – é que somos muitos. E isso todos nós vivemos, sentimos, experienciamos.

 

O tal ser múltiplo.

Somos. Estamos em transformação permanente.

 

O sermos muitos, a transformação: é por causa do desassossego? “José Gil, o desassossegado”: serve-lhe?

Sim, absolutamente. Isso não tem uma conotação necessariamente má.

 

Introduzi o desassossego como gérmen de mudança.

É isso mesmo. A transformação de nós próprios é uma riqueza fundamental em nós. Há uma frase do Kafka que adoro: “Desgraçado daquele que perdeu o poder de se transformar”. Nós é que não olhamos, julgamos que somos sempre os mesmos. É uma maneira de viver socialmente sem tumultos. Mas numa escala microscópica, estamos sempre a ser outros (emocionalmente, do ponto de vista da inteligência…). Com tudo isto, há qualquer coisa que tem de se manter; senão, há o perigo de psicose. É a identidade.

 

Fale-me da descoberta de si em mutação, em desassossego.

Há pessoas que aos 15 anos têm uma instabilidade, uma condensação, uma pluralidade de emoções, de sombras, de vidas neles… Sei lá. Passou por tanta coisa. Desde o facto de cada experiência mínima, desde miúdo, serem experiências radicais, cruciais. Tenho uma certa resistência – não é pudor – em falar de mim porque começo logo a objectivar. Pois, posso falar-lhe daquele facto, na igreja, de quando fiz a primeira comunhão e tive aquela visão… mas para quê?

 

Então, fale do que acha que importa.

Muita coisa importou. Tive uma experiência de exilado. Há vários tipos de exilados, e não estou a contar com os emigrantes operários, lavradores portugueses. Estou a falar de uma classe média, média-rica que podia exilar-se. Exilei-me também por razões políticas, mas não foi sobretudo por isso. Não foi por que estivesse ameaçado. Emigrei. Pertenci a uma das categorias em que se dividiam esses exilados.

 

Que categorias eram essas?

Uma delas eram grupos que não se abriam à sociedade francesa e europeia; fechados sobre si, só falavam do que estava a acontecer em Portugal, da Avenida da Liberdade, das notícias que chegavam de Portugal. Outros abriam-se malgré eux – sem que eles o quisessem; e como não estavam preparados para isso, perdiam-se. Entravam em loucura, em alcoolismo, as promessas de juventude de que seriam grandes poetas iam por água abaixo, suicidavam-se. Uma terceira categoria: rapazes e raparigas que se abriam à sociedade francesa, e que o queriam. E aí começava um tumulto de outro tipo: não ser integrado pela sociedade francesa, e perder todos os benefícios secundários que se tinham em Portugal. Em Portugal, quando havia problemas emocionais, desregulamentos, havia sempre em família.

 

Uma casa, uma asa.

Ali não havia asa. Se isso rebentava, ninguém estava ali para proteger. Tive experiências desse tipo. Não há ninguém! Não há o pai e a mãe – que estão em Moçambique –, não há o irmão, não há os amigos – que estão ali mas não servem para nada. E você vê-se na rua, paralisado, a olhar para a esquerda e para a direita, “o que é que vou fazer de mim agora?”. São experiências borderline, que não estão longe da psicose. Aos 20 anos, tive uma experiência de meses, e veio-me uma ideia fortíssima, uma ideia que me agarrou: é preciso pensar, porque é uma questão de vida ou de morte. Tenho de me salvar disto. Tenho de saber. Aí é que apareceu [a questão da identidade]: saber o que sou, de onde é que venho, os pais, porque é que estou aqui, para quê.

 

E pensar tornou-se uma forma de salvação.

Sem dúvida. E em Portugal também havia explosões. Um exemplo: vi casais que vinham de Portugal e passados uns meses de Paris, separavam-se. Havia um ajustamento forçado pelas circunstâncias que fazia com que as pessoas fossem sobrevivendo. Sem as protecções de Portugal, lá fora – como se dizia – explodiam. Chegava-se ao osso. Essa experiência, dos jovens portugueses, artistas, estudantes, de um certo grupo, não foi maravilhosa.

 

Isso que diz, apesar de ser noutro tempo, faz pensar em Mário de Sá Carneiro. Exílio, desamparo, suicídio. Os acontecimentos a que alude são coisas que nos habituámos a ler nos livros.

Os tempos mudaram. Nós nascemos e vivemos sob uma ditadura. Mudava tudo. Mudava a nossa vida emocional, intelectual, profissional, a acção, o espaço de iniciativa. Os nossos conflitos eram todos metidos para dentro. Quando íamos para fora, e porque não havia as tais salvaguardas, vinham para fora, e estilhaçava-nos.

 

A razão política não foi a fundamental que o fez exilar-se. Houve uma razão mais forte?

A razão foi que vim de Moçambique, inscrevi-me em Matemática, tinha as coisas bem arranjadas, e no entanto não suportava viver cá. Não reconhecia esta maneira de viver. Em Moçambique, apesar de estar num regime político que era o mesmo, tudo era diferente. Em Portugal, tudo estava reduzido, tudo parecia sem possibilidades. E tem a ver com a idade: lá estava no liceu, sob a alçada dos meus pais. Aqui, na universidade, eu queria mais do que a Matemática.

 

Porquê a Matemática?

Gostava. Havia um ensino, lá, que puxava pela memória. Tivemos que saber de cor tratados de Biologia, Cristalografia. Sabe que eu gostava disso tudo? Sobretudo de Cristalografia. Memorizei centenas de páginas. Por razões afectivas, porque estava apaixonado, miudinho, perdi tempo… Tive só três meses para meter tudo na memória. Saí de lá dizendo: agora quero é uma disciplina de que goste e que não me obrigue a memorizar. A Matemática era pegar num ponto e zzzzzzzz, sem decorar, raciocinando, chegar a outro ponto. Foi uma causa menor. A causa maior foi gostar de Matemática.

 

É interessante perceber como as causas acidentais, tantas vezes, têm uma força propulsora.

Justificam a outra… [riso]

 

Quando vai para Paris, ainda é para estudar Matemática. Só depois é que muda para Filosofia. Foi a grande transformação?, perceber que era por essa via que se salvava?

Não, aí não houve crise nenhuma. Em Paris tinha de estudar seis horas por dia, além das aulas, para fazer tudo o que nos mandavam. Interessavam-me pouco pelas questões teóricas, e insistiam sobre o como fazer problemas. Trabalhava em grupo. Íamos cinco para um café, às vezes estávamos duas horas para resolver um problema.

 

O que queria, mais do que tudo, era levantar questões? Ou resolver problemas.

Em França, insistiam na prática na resolução de problemas. Aqui, podíamos levantar problemas.

 

Nesse percurso, Moçambique, Lisboa, França, Matemática, Filosofia, que vida queria para si?

Não sabia. Queria rebentar uma série de amarras que sentia. Só muito mais tarde tive consciência disso: eu era uma espécie de tumultozito que andava por aí. Sempre insatisfeito com o que tinha, com o que me davam, com o que podia fazer. Não queria só Matemática, queria também escrever. Eu queria ter uma linha em que me reconhecesse do ponto de vista afectivo. Havia a questão do estudo, de eu querer escrever, do meu interesse pela Filosofia, e havia a questão da vida. Eu quero viver! A que é que chamava viver? Ter experiências que não podia ter em Portugal. O que é ter uma experiência? É poder transformar-se de encontro a qualquer coisa. Num encontro. Encontrar um livro, uma mulher, um homem, uma criança, um bêbedo, um russo…

 

E ser tocado por isso?

Ser tocado e transformado. Há aquelas pessoas que podem ser tocadas por mil coisas fortíssimas e não se mexem no interior; e há aquelas que são tocadas por uma brisa, finíssima, de vento, e aquilo provoca uma revolução. Eu era um bocadinho assim.

 

Já era assim em Moçambique?

Sim. Por causa do meu irmão e dos amigos do meu irmão, que eram todos marxistas, comecei a ler o Marx, sem perceber nada, muito jovem. A partir dos 15 anos comecei a perceber mais dos autores marxistas, que eram importados clandestinamente para Moçambique, e comecei a ser iniciado a outras coisas. Uma dessas iniciações foi ao jazz. Tinha 15 anos e adorava jazz! O jazz era classificado pela vulgata marxista como um produto da decadência burguesa americana. Uma estupidez completa. Isso chocava com o meu gosto. Se larguei brutalmente o marxismo, aos 17 anos, foi em parte porque muitos dos meus gostos – sobretudo o jazz – não me eram admitidos. Não podia despegar-me daquilo em nome de uma ideologia.

 

Era também uma recusa de uma formatação?

Isso mesmo. Está a ver?, é uma experienciazinha pequena em que se jogam muitas coisas, muitas coisas mesmo.

 

Significa que ficou longe daquele grupo.

Fiquei.

 

Naquela altura, ser de esquerda, ser da oposição, era ser comunista.

Sim. No entanto, enquanto fui próximo deles, ia a reuniões de associações marxistas, de grupos como o MUD juvenil, (a que nunca aderi). Fazia-me muita coisa culturalmente. 

 

Explique melhor do desejo de pertença a um grupo. Ou da confiança que tinha em si para viver à margem dos grupos. Flirtando com eles, mas nunca se comprometendo.

Isso tem a ver com a tal inquietação. Não me reconhecia neles. Eles não tinham as minhas preocupações, que eram de outra ordem e que não via formuladas na doutrina. Os meus gostos em literatura não eram os clássicos que anunciavam o realismo socialista. Eu gostava era de autores como Beckett. Aí não havia referências marxistas.

 

E aí joga-se num plano individual. Numa altura em que tudo se jogava num plano colectivo.

Absolutamente. Eu não tinha consciência disto. Agia como uma criança: que sabe por instinto, numa sala, a quem se dirigir. Porquê? Porque temos ali forças do mesmo ritmo. Eu estava com essas pessoas, mas eles não eram do meu mundo. Que eu não tinha feito, que eu não tinha formado. Mas não eram.

 

Havia algum interlocutor preferencial? Podiam ser os livros.

Havia um amigo em Moçambique, António Paulo de Sousa Santos. Fizemos o liceu juntos. É hoje arquitecto em New Jersey. Discutíamos ao telefone durante uma hora, (ele vivia na Baixa e eu na Ponta Vermelha, em Lourenço Marques), os problemas do Tonio Kröger do Thomas Mann. Problemas vitais, para nós! Isto aos 16 anos. Em Moçambique, Tonio Kröger? Está a ver…, dá-lhe todo um mundo.

 

Um mundo todo ele construído nas vossas cabeças.

Claro. Qualquer mundo, ali, podia florescer.

 

Se pensarmos naquele que foi professor de liceu na Córsega, parece outra vida, outro sujeito.

É verdade. Não sei se já viveu numa ilha… Ou se é apanhado ou não se é apanhado. A Córsega é uma ilha onde a violência de tudo (dos afectos, sobretudo) é concreta. Se alguém gostou de si, como amigo, e lhe diz: “A minha casa é tua”, isto significa literalmente que se você tiver problemas de dinheiro, vai falar com essa pessoa, diz-lhe: “Preciso de vender a casa”, e ela deixa-a vender a casa. Aconteceu-me isso. Era uma violência que a Máfia ainda não tinha corrompido. No meu tempo não havia Máfia. 

 

Um carácter vulcânico? O seu relato coincide com a violência de Stromboli, como a retratou Rossellini. 

Vulcânico. A ilha era, ela toda, uma espécie de interioridade exterioridade. Senti-me assim lá. Quer dizer, eu não vivia para dentro de mim, como em geral vivem os insulares. Tudo o que se fazia era intenso, tudo o que se podia escrever era intenso. Na relação com a terra, as pessoas. E era o ódio. E o amor, a amizade. Era uma sociedade violenta e cruel, ao mesmo tempo. Era o que me convinha.

 

O mundo que se passava dentro de si, afinal estava por todo o lado…

Sim. [Essa afinidade] traduziu-se numa aproximação política que tive com os independentistas. Que punham bombas, mas que avisavam as pessoas para retirarem tudo, os seus cães, e só faziam atentados às instituições. Era outra coisa. Tudo aquilo se passava em família – eram 150 mil pessoas. Depois descambou.

 

Assistiu ao declínio?

Saí quando isso começou. Houve divisões entre o movimento independentista, e começou a haver uma violência real. Ou seja, começaram a matar. Ao mesmo tempo, entrou a Máfia. A Máfia Corsa, dizem, é pior do que a Siciliana. É uma ilha, hoje, corrupta. Quando o aparelho judiciário passa a ser corrompido, a sociedade deixa de funcionar. Foi o que aconteceu.

 

Como é que foi lá parar?

Por amor por uma corsa, por uma mulher.

 

Mais uma vez, tudo se decide na petite histoire.

La petite histoire qui amène une grande histoire. Só ensinei um mês e meio no liceu. Queriam escapar à segurança social, no colégio onde estava, e puseram-me fora. Fiz queixa. Estive dois anos na Córsega, apanhei o cume dos movimentos autonomistas. Em Aléria, houve um assalto a caves de vinho, tiroteios, muita coisa.

 

Estamos outra vez dentro da literatura. São os episódios que poderiam estar num livro de Lampedusa. Que lia nos livros e queria experimentar na sua vida cá fora.

Mas não era por causa dos livros! Ou talvez fosse. Talvez fosse. Os livros, o que é que fazem? Eles induzem, reactivam qualquer coisa que está em si em ebulição ou adormecido. A personagem tutelar de tudo isto é uma mulher: a minha mãe. Que era explosiva! Era uma mulher à parte. Um dia, hei-de procurar compreendê-la. Ela estava no meio do mato, onde só havia dois brancos, e recebia revistas de moda de Paris. O seu universo era uma casa. O meu pai criava crocodilos, pequenos leões. Tenho fotografias minhas e do meu irmão com leõezinhos pequeninos. No meio do mato, a minha mãe aprendeu a fazer vestidos como se faziam em Paris. Aprendeu joalharia. Dava indicações aos criados para fazerem casacos de pele de leopardo. Os criados são muito importantes.

 

A sua aproximação à estética, ao Belo, pode ter que ver com este comportamento da sua mãe? Um desejo de se manter ligada à sofisticação, à beleza, no meio do mato.

É possível. A minha mãe era poeta. Publicava. Era jornalista, dirigiu uma página. Uma boa, média poetisa. Ela considerava-se e era considerada assim.

 

Porque é que os criados eram importantes?

O facto de existirem criados cria nos filhos de colonos uma horrível noção de se julgarem eleitos. Os jovens saídos de lá não são como os outros: são de eleição. Tenho horror a isso! Se me livrei disso, demorei anos. Sabe o que é ter cinco criados, alguns deles com barbas brancas, (um para fazer a roupa, outro é o cozinheiro…), e você, com três, quatro anos dá-lhes ordens? Fica julgando que é o rei do mundo. E isso continua. E isso forma-o. É um estrato que lhe provoca o pior. Uma consciência de uma superioridade que não tem! Nada lhe permite esse sentimento de superioridade. Não tinha esta consciência, mas tinha este sentimento. Como todos os brancos.

 

Alguma vez se sentiu proscrito? E abaixo, numa determinada escala? Invertendo a situação da infância.

Socialmente, nunca. É essa a perversão desse estrato inconsciente. Pode ser miserável, minable, nunca fez nada na vida, anda para aí a vegetar; mas tem consciência superior. De onde é que lhe vem isso? Dessa relação.

 

Apesar de ter estado muito tempo exilado, foi sempre um exílio voluntário. O que faz toda a diferença.

É. Quando fui para a Córsega, esse estrato tinha sido bem estilhaçado, em Paris. Portanto, já tinha o meu narcisismo muito podado… [riso] 

 

Quis escrever. Escreveu de facto?

Aconteceu-me uma coisa muito esquisita aos 24 anos. Escrevia português, lá. Peças de teatro, contos. E falava francês desde os 10 anos; não era bilingue, mas falava bem. De repente, senti que um edifício, que era a língua portuguesa, implodiu. Caiu! Uma semana depois, já não podia escrever em português e pus-me a escrever em francês. Foi um acontecimento dramático porque nunca consegui escrever em francês como já na altura escrevia em português. Hoje, escrevo muito pior em português do que quando tinha 24 anos.

 

O que é que terá acontecido?

Não sei. Contei isto a um filósofo que tive a sorte de conhecer, e de quem gosto muito, o Deleuze. Abriu os olhos e disse: “Ah, muito interessante!”. Mas não me disse mais nada! [riso] O que perdi foi a capacidade que tinha de inventar em português. Desde os 19 anos, eu inventava. Perder essa capacidade, para mim, era o fim. Acabei! Nunca tive essa capacidade em francês, em ficção. E aí se vê a língua materna.

 

A ficção radica no medo, na inveja, na dúvida? Tudo isso é primário, infantil, e aconteceu em português.

Pois. Eu tinha uma inveja portuguesa, uma dúvida portuguesa, os meus amores eram portugueses… É isso que está a dizer. Há uma identificação da vida emotiva com o português. Porque é que as emoções não hão-de ser as de um país? Há uma maneira portuguesa de ter medo, diferente da maneira francesa. E foi isso que fez barreira.

 

Todo o seu trabalho a seguir é, não de invenção, mas de dissecação e análise.

Excepto um livro de ficção que escrevi em francês, La crucifiée.

 

Que importância tinha para si a confirmação que vinha do exterior?

A confirmação é fundamental. Não é bem confirmação: é o reconhecimento. Hesitei até muito tarde entre duas linhas. Uma era ser escritor, a outra era pensar filosoficamente. Não se pode fazer uma com a outra. Para não me dividir, eu segui a linha do pensamento. Talvez tenha feito mal.

 

Por isso é tão importante o que lhe aconteceu aos 24 anos. Sem esse acontecimento, a linha da escrita…

Teria continuado. Tenho textos, que nunca publicarei, dos 19 anos. Era capaz de uma plasticidade no português de que nunca mais fui capaz. Não publicarei porque são coisinhas sem interesse.

 

De quem esperava esse reconhecimento? Trabalhar com Deleuze foi importante a esse nível? Foi importante o reconhecimento da Nouvel Observateur, que o apontou como um dos 25 maiores pensadores vivos?

Não passa por aí. Tenho consciência de que há milhares de indivíduos hiper-dotados, e outros milhões que são mais inteligentes do que eu. Se eu tenho alguma coisa a dizer, se eu disse qualquer coisa, foi no espaço de uma singularidade que não foi ocupada por ninguém. O espaço de singularidade é um espaço de risco. [pausa] Estou a falar-lhe como não tenho o hábito de falar… Em Portugal não se fala assim. Tudo é um bocado interdito de ser dito.

 

Porque é que decidiu voltar, apesar de tudo?

Não decidi. Fui mais ou menos entalado. Em França, fiz o doutoramento, fui falar com o meu orientador que me disse: “Você chega num mau momento”. Fechou-se tudo, não se recrutava ninguém. Entretanto, tinham-me convidado, para a Universidade Nova. Pensei: “Vou, fico um, dois anos, e depois volto”. Estou em Portugal porque era o único sítio onde eu podia ganhar dinheiro ensinando, fazendo aquilo que eu sabia.

 

Em 76, esteve em Portugal onde foi adjunto do Secretário de Estado do Ensino Superior. Era a curiosidade em ver de perto a revolução? Ou havia um amor por este país?

Ah, com certeza, havia. Porque eu tive sonhos de que não me esqueci. O [António] Brotas mandou-me um telegrama convidando-me para adjunto. “Estás a fazer uma tese sobre poder? Vem ver o poder, de dentro”. Hesitei um dia, dois dias. Peguei no carro e vim. Foi uma experiência extraordinária! Saí de lá diferente. Saía do ministério, olhava para as ruas e tinha uma percepção diferente das coisas. 

 

O que é que muda tanto assim quando se vê o poder por dentro?

Que o poder não é piramidal. Que o poder da instituição governativa, nesse período tumultuoso, não era o verdadeiro poder. Que os governantes governam segundo as forças que atravessam o campo social. Que batem na mesa como Napoleões – estou a contar coisas que vi – e tudo aquilo é bggggg! Eles não têm poder nenhum.

 

Diz no seu livro Portugal, Medo de Existir que o espaço público deixou de existir e que foi substituído pela comunicação social. É esta que dita que o movimento se faça numa direcção ou noutra.

Acho que é cada vez mais isso. A comunicação social suga essas pequenas forças, que não estão ainda institucionalizadas.

 

Que importância teve para si a convivência com Deleuze?

Decisiva. Para mim e para muitos outros. A minha geração teve grandes mestres. O período que se viveu ali foi um período único, daqueles que existem uma vez em cada século. Coexistiam Sartre, Merleau-Ponty, Lacan, Levi Strauss, Barthes, Althusser. Ali, no Quartier Latin. Víamos passar o Lacan e o Merleau-Ponty em grande conversa. 300 pessoas enchiam o auditório Descartes na Sorbonne para ouvir Deleuze falar da linguagem em Husserl. Estava tudo colonizado pela Fenomenologia, por Heidegger, por Husserl. Ao mesmo tempo, já não podíamos ouvir mais daquilo! Era tão desajustado da vida que vivíamos… Decidi: rebento com tudo.

 

Que é que fez, concretamente?

Vendi a minha biblioteca – uma estupidez imensa – na Feira da Ladra – belos livros que eu tinha. A seguir ao Maio de 68, na rentrée, ouviu-se um rumor: o Deleuze está em Vincenne a dar um curso fabuloso sobre Desejo. Eu nunca tinha ouvido falar assim. Aquilo tinha a ver connosco, com aquilo que queríamos. Com a vida. Não por acaso, ele é vitalista. Havia loucos lá dentro, psicanalistas, estudantes, uma fumarada enorme, um tipo tímido que falava lá no meio, de uma luminosidade e intensidade extremas. Reconciliei-me com o pensamento filosófico.

 

Encontrou-se. Deu-lhe um novo fulgor.

Absolutamente. Agora posso pensar. Aí, comecei a escreveu ensaios, que mostrei ao Deleuze. Só depois do meu doutoramento, de que foi júri, comecei a dar-me com ele. Ia vê-lo a casa.

 

Sempre na perspectiva aluno-mestre? Ou era um encontro de iguais?

Ele não era um mestre, sabe? Abandonei os cursos do Deleuze porque senti que estava a pensar demasiadamente como ele. Cortei. Foi no tempo em que ele publicou o Mille Plateaux. Mas tudo começou com o Anti-Édipo. Frequentar o Deleuze impedia essa fascinação pelo mestre. Era um tipo extraordinário. Nunca conheci ninguém que entrasse tão bem no pensamento do outro.

 

Um exemplo.

Uma vez, eu vinha de Portugal, e tinha uma muito má relação com Portugal. Quis explicar isso ao Deleuze. Sei que lhe falei de artigos do Gaspar Simões, do ambiente, da universidade, do que era a Filosofia aqui. Ele ouvia, atentamente. Às tantas tive a impressão: “Mas o que é que estou a dizer? Este tipo não pode compreender, é de outro universo”. E calei-me. Que é que ele faz? Continua o meu discurso. Continua ele a falar-me de Portugal, e era Portugal.

 

Tinha também a capacidade de sair dele. Raro, num homem assim.

É. Aprendi uma frase com ele: “A partir daqui, põe-se este problema. Mas este, só você pode resolver. Já não o posso ajudar”. Muito pedagógico. Cortava um laço. Satisfazia a sua necessidade narcísica de acreditar em si. E mostrava-lhe a originalidade do que poderia fazer.

 

É um homem feliz? Há uma frase no seu último livro, Em Busca da Identidade, em que se fala da possibilidade de sonhar, até de sonhar com a felicidade.

Eu acho que não é a felicidade que procuro. Nem sei mesmo dizer-lhe se sou feliz – não é o que me interessa. Há um estado a que o Espinhosa chama “beatitude” e que se define por imanência. O que é estar num estado de imanência? Podemos ter uma ideia pensando em como as crianças estão. Quando está a brincar, ela é o mundo, ela confunde-se e não se confunde com as coisas com que brinca. Sabe perfeitamente que não é o avião que está a fazer aterrar, mas é ao mesmo tempo o avião. Acontece que eu já vivi isso, todos já vivemos.

 

Num estado de paixão?

Um estado de paixão é um estado de imanência. Em que não há diferença entre sujeito e objecto. O mundo passa e nada pode quebrar a continuidade do seu tempo, interno e externo. E isso é que lhe permite viver num mundo profundamente quebrado pelo mal, pela guerra, pela infelicidade. Não quero ser grandiloquente nem demagógico, mas não é possível ser feliz quando crianças, como ontem no Iraque, rebentam, explodem. O Iraque somos nós. Mas é possível estar em estado de beatitude e saber que há esse mal no mundo. Ser feliz? Não sou. Não sou infeliz. Eu procuro outra coisa.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011

 

José Gabriel Trindade Santos

24.11.24

José Gabriel Trindade Santos é filósofo. “Não há nada mais espantoso do que estarmos aqui a conversar, do que haver um sentido para isto. Tenho quase 70 anos, a única coisa constante na minha vida foi ter sido professor.” A entrevista são três horas de pé, em movimento, como os peripatéticos, à procura das passagens exactas que exprimem o que quer dizer. A mais bela citação: “Que inútil fardo seria eu, caminhando entre as naus, se não lutasse?”. Ouvi-lo é encontrar algumas respostas para a pergunta “para que serve a Filosofia?”.

Doutorou-se em Platão. “Li dezenas de milhares de páginas, tirei muitas páginas de notas. Se vir a minha tese, são duas. A tese propriamente dita, e a bibliografia, as notas críticas. São 900 páginas feitas em quatro anos e meio.” Em 1988 estudou em Oxford. A orientadora, Maria Helena Rocha Pereira, tinha-lhe dito: “Agora tem que viajar, precisa de explicar porque é que isto é uma tese”. Antes disso, no pós-revolução, começou a ensinar. No liceu Passos Manuel, no Pedro Nunes e no Camões. Depois no departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O seu primeiro livro foi Filosofia no Liceu (“que ainda hoje é citado, para dizer bem e para dizer mal, como todos”). Tem uma obra extensa, traduções do grego, análise crítica. Ainda este ano deve ser publicada uma tradução do Sofista de Platão, de cujo projecto é o coordenador geral.

Desde 1998 que se transformou “cada vez mais num investigador, e cada vez menos num professor”. Mas o que faz no Brasil, onde vive desde 2003, é ensinar na Universidade Federal da Paraíba. O Saber é o tema da sua vida.

  

Comecemos por um verso da Antígona: “O homem nada sabe até queimar os pés no fogo ardente”. Sendo um dos temas da sua vida o Saber, mesmo enquanto estudioso dos clássicos, como é que lê esta frase?

[Procura na estante a Antígona ] É muito difícil responder sem saber do contexto. Não gosto da tradução, não estou a reconhecer o grego por baixo. Entendo a vida como uma luta. “Queimar os pés no fogo ardente”: acontece-me constantemente. A todo o momento, e aqui vem a lição de Sófocles, o sofrimento é aprendizagem. O sofrimento pode manifestar-se das mais variadas formas, nomeadamente na ignorância, e na presença da estupidez, que é o maior inimigo.

 

O que entende por estupidez, neste contexto?

A estupidez é a incapacidade de distinguir o essencial do acessório, a incapacidade de estabelecer uma prioridade, de perceber o que está em causa num problema. É o caso da Antígona. Creonte põe a sua prioridade à frente das outras. Não vê os sinais, não ouve os avisos; vai em frente, fiel apenas ao desígnio que traçou. A consequência é a morte, primeiro, da mulher e, depois, do filho.

 

Antígona é um texto ao qual regressa no seu estudo. As leituras que vem fazendo divergem muito umas das outras?

O primeiro texto que escrevi foi entregue em homenagem à Prof. [Maria Helena] Rocha Pereira, em 1995, cinco anos depois do doutoramento. A minha última interpretação da Antígona diverge das anteriores, e é uma interpretação ritualista. O drama da peça é o conflito entre dois rituais. Creonte percebe que tem de atender aos desígnios dos deuses olímpicos, mas não pode infringir os decretos dos deuses infernais. Não pode deixar mortos ao cimo da terra, e não pode sepultar vivos. A única forma de compreender que não pode misturar os reinos é ver partir dois entes queridos, pela sua própria mão.

A maioria dos comentadores da Antígona, até 1990, insistia em análises psicológicas ou políticas do conflito, a partir das personalidades dos protagonistas. Antígona é obstinada, Creonte é obstinado; mas a obstinação não é a causa do comportamento, é a qualificação que se dá ao comportamento. Há um antecedente e um consequente.

 

Há dois tipos de compreensão. Aquilo que só se sabe quando queimamos os pés no fogo ardente, e o saber livresco, distinto daquele.

A última palavra da Antígona é “aprendeu”. Não é saber, é aprender. Aprender é uma coisa que acontece a uma pessoa. Saber é uma coisa que acontece quando, em função do exercício de uma capacidade, algo é efectivamente sabido.

O acto da aprendizagem é um episódio na vida de uma pessoa. O saber é um estado: ou se sabe ou se ignora. Pode haver processos que medeiam entre estes dois estados – a opinião, a sensação. São falíveis. Nunca se sabe efectivamente.

 

“Só sei que nada sei”, parafraseando Sócrates. Na modernidade, fala-se de ignorância e de irresponsabilidade. Ouvimos pessoas dizer: “Não tenho culpa, não sabia”.

Mas têm. A noção de culpa não se aplica na Grécia antiga como se aplica hoje. O homem grego tem noção das suas limitações, e sabe que quando as excede, paga por isso.

 

Quando é que a noção de que a vida é uma luta, e de que o aprender e o saber são essenciais, aconteceu na sua vida?

Em momentos diferentes. A noção de que a vida é uma luta surgiu algures nos meus 17 anos, quando num jornal de estudantes, para o qual concorria, o director me encarregou de fazer uma entrevista ao Dr. Rogério de Freitas, que veio a ser secretário de Estado da cultura, muito depois do 25 de Abril. Uma das perguntas que me sugeriu que fizesse era “Porque luta?”. Achei uma pergunta estúpida. Naquele tempo, e para a minha formação, a minha cultura, a minha superficialidade, essa não era uma pergunta que se fizesse. Calcule que ela dizia que era do Partido Comunista…

 

O perigo era fazer perguntas inconvenientes?

Entendi-a como uma pergunta inconveniente. Disse ao Dr. Rogério de Freitas: “Instruíram-me para lhe fazer esta pergunta”; ele respondeu: “Excelente pergunta”. Pus-me imediatamente em causa. Mas tem que haver qualquer coisa que justifique a luta. Tem que haver um princípio, um fim, um ideal.

 

O que está em causa é a força das palavras. As palavras que se usam para interpelar o outro. Anos mais tarde, a questão da linguagem acabou por ser central no seu estudo.

As palavras sempre foram importantes na minha vida. A primeira palavra é “filósofo”. Filósofo era a minha alcunha no primeiro ano do liceu, em 1950. A minha ligação à Filosofia começou quando não fazia a mínima ideia do que isso era. Com 11 anos comecei a ler a História da Filosofia de August Messer, e não percebia rigorosamente nada. Se eu era o filósofo, se estava ali um membro da filosofia, chamado História da Filosofia, e se não entendia uma palavra, alguma coisa estava errada. Havia que lutar para enfrentar esse erro.

 

Livros em casa?

Nenhuns.

 

Quando é que se dá o encontro com essa construção do que era um filósofo?

O professor de Desenho pediu-me que desse provas de um trabalho, e respondi qualquer coisa como: “Ninguém consegue dar provas de um trabalho absolutamente realizado”. Ele, que se chamava Calado Lopes, voltou-se para mim, apertou-me no pescoço, e disse: “Sr. Trindade Santos, o senhor é um filósofo”.

 

Qual é a primeira memória que tem de si?

As primeiras memórias são fabricadas. A primeira memória segura que tenho de mim é do dia do meu 4º aniversário. A minha mãe deu-se um sobretudo creme, com muitos botões. É claro que essa memória é condensada numa fotografia tirada nesse dia, nos Restauradores.

 

A noção de memória está umbilicalmente ligada à de identidade, outro dos temas essenciais do seu estudo.

Quando alguém me chama filósofo, e reconheço essa qualificação, o que estou a fazer é tentar construir uma identidade, que não tenho. Não sei quem sou, não faço a mínima ideia, mas sei o que quero ser: um filósofo. E como é que se é filósofo? Estudando Filosofia. Tenho dez, 11 anos, os meus encontros com a História da Filosofia realizam-se na biblioteca do liceu. É como uma imagem poética muito gasta, a imagem do espelho partido, um fragmento de espelho. Um menino sentado a uma mesa, com um livro enorme em frente, tentando compreender qualquer coisa. Mas que acaba por ter um peso na vida dele (peso que ele vai impondo a si próprio).

 

Uma procura de quem era?

Não tinha noção disso, bastava-me um papel que estivesse de acordo com a minha natureza. Aquele papel era o que me estava a ser concedido, e aceitei-o. Aprendi a amar esse papel. Estranhamente, ao longo da vida, continuo a ser devorado pela vontade de saber, e provocado pela minha ignorância. Isto tem consequências terríveis na acção. É-me muito difícil decidir qualquer coisa, estou sempre a pensar noutra.

 

Isso contraria a ideia de que, quando sabemos, decidimos melhor.

Na minha perspectiva, o estado de Saber nunca é atingido. Há sempre uma relação entre o que nos é pedido e o que somos capazes de dar. Quando essa relação se exprime de forma adequada, conseguimos realizar os nossos objectivos, pelo menos parcialmente. Mas é uma vida levada nas sombras em busca da luz. Também não são trevas completas. É procurar, chegar a qualquer coisa. E é terrível, isto? Não, não é. Sempre que se encontra uma resposta, sempre que se publica um texto, se dá uma aula, se dá uma entrevista, faz-se luz.

 

Na Odisseia, quando Ulisses vai ao Hades, um mundo de sombras, encontra Aquiles que lhe diz que mais vale ser servo da gleba na Terra do que rei de todos os mortos no Hades. Ocorreu-me esta passagem a propósito do desejo de encontrar a luz, viver na luz. Nem que seja na condição de servo da gleba.

Um momento de luz. Conseguir encontrar uma resposta. Neste momento tenho que resolver um problema de um texto que estou a escrever, conseguir compreender o sentido da tese defendida por Sócrates no Fedro – de que o Amor é uma divindade. Para um grego, dizer que o Amor é uma divindade é como dizer hoje que o amor é a mais imediata expressão da nossa transcendência. Amando, transcendemo-nos.

 

Somos outros, saímos de nós.

A força que nos faz sair de nós só pode ser encarada como uma força divina. Nessa medida, saímos de nós quando amamos. E todos temos em nós, a todo o instante, a medida da nossa transcendência e a capacidade de a efectivar, através do Amor. No amor físico, evidentemente, e em todas as outras espécies de amor que estão associadas ao amor físico. Dizer que o Amor é divino é dizer que é a força que pode levar todos os homens, machos – não estamos a falar de mulheres – a transcenderem-se.

 

Parece que estamos a falar de coisas de todos os dias.

E estamos. Isso é que é a grande vantagem da Grécia: está viva todos os dias. A Grécia não está fechada em bibliotecas, em museus, em rituais absurdos, nas universidades. Tudo o que há para além da Grécia são reconfigurações da mensagem grega. Isto não acontece, por exemplo, a um árabe.

 

É outra matriz.

No séc. IV, V, VI, VII, não era outra matriz, depois é que se transformou noutra matriz. É preciso não esquecer que a mensagem da Grécia ao ocidente, às universidades medievais, chega também através dos árabes. Aprendemos muito com eles, e há ainda muito para aprender. Khadafi disse recentemente uma coisa terrível: “O Mediterrâneo está em guerra”. Outra vez?, pensei eu. A luta no Mediterrâneo éum enorme problema político que a Europa tem que resolver. E vai pagar a conta, seja qual for o resultado do conflito. O Mediterrâneo é o centro do mundo.

 

Nas últimas décadas achamos que o centro do mundo é o Médio Oriente.

O Médio Oriente ainda é o Mediterrâneo, é o levante. De novo estamos a voltar a uma antiga matriz. Desta vez não é por causa de deuses, de impérios, de civilizações, é apenas por causa do petróleo, que foi escolhido como instrumento do nosso desenvolvimento.

 

As pessoas têm a ideia de que os mitos gregos, as palavras dos filósofos, são coisas longínquas, sem aplicação no mundo em que vivemos.

É possível. Esses textos estão a falar de um tempo que não é o nosso, numa linguagem que não é a nossa, mas os problemas desses homens são os nossos. É através do exame do nosso comportamento, a partir da nossa própria experiência, que esses textos podem ser compreendidos, que essas perguntas se actualizam. Enquanto forem encarados como documentos de outros tempos, que por acaso acabam por acontecer aos alunos, nunca serão compreendidos.

 

Exemplifiquemos com dois mitos, dos mais populares na cultura ocidental, o de Sísifo e o de Orfeu e Eurídice. Como interpretá-los à luz dos nossos dias?

No caso de Orfeu parece-me evidente: o amor nunca pode refugiar-se no passado. Daqui a algumas horas, quando a minha mulher chegar a casa, vou-lhe perguntar onde é que ela esteve, e ela vai-me dizer. Se eu conceder importância demais a essa pergunta e a essa resposta, estou a fechar o amor num círculo de factos passados. Estou a transformar a minha vida, e também a dela, num episódio inquisitorial. Eurídice não pode olhar para o mundo de onde foi afastada. A morte não se pode observar por cima do ombro – a morte agarra.

 

Podemos ser engolidos pelo passado?

Toda a gente é. Creonte deixou-se engolir pelo passado. Antígona deixou-se engolir pelo passado. E o resultado é a morte, a destruição, a loucura. É preciso sempre ter os olhos, abertos, para a frente.

 

O que implica aprender a distinguir o essencial do acessório. Só assim podemos olhar para a frente.

Exactamente. Somos o nosso passado. A lição vem-me de um autor que pouca gente que me conhece acreditaria que tivesse tido tanta influência em mim, [Henri] Bergson. O nosso passado está a refazer-se constantemente no nosso presente. Isso implica que não possamos parar e olhar para trás. O nosso passado está a acontecer agora.

 

Está a ser reconstruído à medida que é recuperado. Por isso se diz que a memória é reconstitutiva, que não é exacta.

Ela apareceu no começo da nossa conversa, quando falei da memória do sobretudo creme, aos quatro anos. Tenho uma memória da tarde desse dia, em que havia uma luz na casa de jantar. Guardo carinhosamente memórias de luminosidades. Mas pode não ser verdade.

 

Que leitura faz do mito de Sísifo?

O mito de Sísifo não é independente do Sísifo, que é uma tragédia da autoria de Crítias, onde pela primeira vez é defendida a crença de que os deuses são uma invenção dos homens. Crítias é um dos 30 tiranos, um dos perseguidores de Sócrates, um dos que morrem lapidados no dia em que a revolução democrática corre com ele e com Cármides, e acaba por matá-los à pedrada.

Depois há o famoso suplício de Sísifo, que empurrava uma pedra até ao alto de um monte, e depois a pedra caía de novo. Essa é uma forma de ver a vida. Nalgum momento a pedra escapa-nos, o terreno falta-nos debaixo dos pés. É uma das muitas possíveis formas de consciência da mortalidade e da limitação do ser humano. Não é isso a vida, empurrar uma pedra e vê-la cair? Como a sua própria vida, a perder-se.

 

Se a vida fosse a pedra e a viagem fosse única. Mas no mito de Sísifo acontece um movimento contínuo, ininterrupto. Ele não desiste de pôr novamente a pedra no cimo do monte, e ela acaba sempre por rolar.

E eu não desisto de conferir sentido à minha vida. E, pelo menos até agora, tenho a consciência de que sempre algo me escapa [riso]. Só que a minha atitude não é trágica. Quando se está a jogar um jogo, o jogo é a nossa forma de estarmos vivos enquanto o jogo dura. A única diferença entre uma concepção lúdica e uma concepção trágica da vida, neste ponto, é que o jogo acaba quando o jogador diz: “Acabou”.

 

Ou: “Acabei de jogar este jogo”.

Sim. Na concepção trágica o jogo nunca acaba. Temos de continuar a empurrar a pedra. Afligiu-me muito quando tive contacto, muito cedo, com os mitos de Sísifo e de Tântalo. Havia um livro de leitura na minha escola primária onde estavam apresentados. Somos nós que operamos a queda da pedra. E temos a ideia de que Sísifo ainda lá está, empurrando a pedra. E Tântalo ainda lá está, olhando a água; quando se baixa, a água baixa com ele. Terrível ou não, foi esta vida que me deram para viver.

 

Quando disse que se afligiu muito, com oito anos, antes de o ouvir falar das imagens de Sísifo e Tântalo, achei que ia dizer que teve nessa altura um primeiro contacto com a morte.

A primeira morte real na minha vida aconteceu com um amigo muito próximo, que teve um acidente, em 1965. Depois foi o ano da morte do meu pai, em 1988. No funeral não entendi nada do que estava a acontecer. Não estava em mim. A minha relação com a morte não é frontal.

 

Uma reacção paradoxal, para um estudioso dos gregos, em cujos textos esta questão aparece continuamente.

A questão que aparece continuamente é a da natureza humana, dos conflitos, e esses são os nossos, não são gregos. Como é que as pessoas fazem umas às outras o que fazem? Como é que consigo fazer coisas horríveis? Isto perturba-me. Isso é trágico.

 

Numa leitura muito redutora, e pela rama, as tragédias gregas surgem-nos pejadas de situações desmedidas, de uma enorme violência, de um carácter sangrento. Medeia é uma mulher que mata os seus filhos. Como compreendê-lo?

Medeia mata-os porque são filhos dela, ela vai ser posta fora daquela terra, vai ficar sem os filhos. O melhor é matá-los para não os deixar a qualquer homem. O homem não é portador de vida, e a mulher é, e se é portadora de vida tem o direito de matar.

 

Esse é o entendimento de Medeia.

É.

 

Isso contraria aquela leitura, muito apressada, de que o faz enlouquecida de ciúme.

Qualquer leitura da história de Medeia é redutora. O que está em causa é a figura da mulher, e o questionamento que faz do seu lugar no mundo. Todas as mulheres são Medeia, podem é não matar os filhos [riso].

 

Significa que todas têm a capacidade de gerar vida, é nesse sentido que o diz?

Não só porque têm a capacidade de gerar vida, mas também porque os homens que geram a vida nelas não têm essa capacidade. É essa diferença que gera o conflito.

Medeia tinha uma terra e era alguém. De repente trocou tudo isso por um homem. Foi proscrita, teve que fugir. Entregou tudo àquele homem, que a abandona, que lhe tira o futuro, o presente. O passado, já lho tinha tirado. Resolve cortar com isso, e cortar com isso é cortar com o seu próprio corpo, com os filhos. Mata-os amando-os. (Isto aprendi: as mulheres são capazes de sacrificar o seu próprio amor, os homens, não, são muito mais egoístas.)

As mulheres ainda hoje fazem isso. Não matar os filhos, mas ritualizarem esse acto nas inúmeras formas de separação. A forma como as mulheres se separam dos homens, e estou a falar das que estão conscientes do processo em que se encontram, é diferente do modo como os homens se separam. Eurípides percebeu isso, e pôs tudo isso naquela peça. Todos matamos os nossos filhos.

 

Amputando-os, castrando-os? Infligindo-lhes sofrimento.

Isso. Amputando-nos, separando-nos deles. É muito mais frequente do que a excepcionalidade do mito pode dar a entender.

 

“Nada do que é humano me é estranho”, como dizia Terêncio. Mesmo o que parece ser monstruoso.

Tento compreender. Os outros são a única oportunidade que me é concedida de me compreender a mim mesmo. Perante eles tenho a noção do outro. Tento aprender a lição de Sócrates: perceber-se a si mesmo como um outro. Vendo-me de fora como alguém que, perante todas as tentativas que fez de saber alguma coisa, compreendeu que eram ridículas, e descobriu que não sabia nada. Quando descobriu que não sabia nada, descobriu que sabia que não sabia nada.

 

Quando se fala de transcendência, normalmente, isso aponta para a existência de um deus.

Mas não é um, nem dois, nem cinquenta. É o reverso da consciência da minha limitação. A transcendência é aquilo em que eu me situo. Não tenho memória de nenhum sucesso. Tenho memória de muitas derrotas. Não me lembro de nada na minha vida para que possa olhar e dizer: “Olha que bem”.

 

Parece uma frase humilíssima, mas tendemos a descrer dela. Se não ficamos, pelo menos de vez em quando, contentes com o nosso existir, é a desesperança absoluta.

Não tem nada a ver com desespero. É a profunda esperança de encontrar um sentido para isto. Isto é positivo: continuo a ter esperança de me encontrar, de fazer, de deixar alguma coisa a alguém. Sou nada, ou muito pouco, em algo que é maior do que eu.

 

Pensei que fosse ateu.

Pelo contrário. Nunca deixei de ser religioso. Tive uma conversa muito importante com um padre no final de um retiro espiritual, no Seminário dos Olivais. (Um retiro espiritual é um fim-de-semana que é concedido para, num local determinado, fazer contas com a própria vida. As contas e o local que me eram proporcionados eram fornecidas pela igreja católica, que me deu a noção de transcendência e a noção de Amor, de que falo constantemente, e que transponho para a Grécia com alguma aventura.) Tive um encontro comigo mesmo, através do modo como fui visto por alguém, que olhou para mim e disse: “Está tudo a andar. Não te preocupes, hás-de chegar onde queres”.

 

Havia um objectivo estrito para o retiro?

Era responder à pergunta: “Sou cristão ou não sou cristão? Sou crente ou não sou crente?”. Depois dessa conversa, a lição com que fiquei é que não tem importância. Já estou no caminho. Todo o mal que acontecer vem por acréscimo na viagem que estou a fazer, na qual entrei e da qual não vou sair.

 

Parece haver nisso uma certa impotência em relação a um destino.

Não entendo assim. É como se dissesse: não consigo deixar de amar. Só sou afligido pela consciência de que não amo suficientemente bem. Mas não me passa pela cabeça abandonar este caminho e começar outro. Acho que foi isso que me foi dito. Saí da igreja naquele momento, mas não saí da religião. Saí contente por ter descoberto que estava vivo, que cria no amor, cria na força. Nos momentos mais difíceis, dos quais também me esqueci, isso persistiu.

 

Novo verso da Antígona: “Não se pode ter a grandeza sem a desgraça”. É assim?

A grandeza é encontrar uma resposta a uma pergunta. A desgraça é a inevitabilidade de não ter encontrado a resposta, até a ter encontrado. Não faço outra coisa na minha vida que não seja procurar respostas a perguntas. Sou mais feliz do que a maioria dos outros homens porque posso pôr essas respostas em papel, e alguém as publica.

Estou a escrever sobre Parménides desde 1981, já dei a volta a mim mesmo não sei quantas vezes. Estou muito contente com a última resposta a que cheguei, e muito aflito com o facto de as pessoas continuarem a ler coisas que escrevi e publiquei em 1997, e que hoje, para mim, estão completamente erradas. Para conseguir chegar à resposta que encontrei, e que acho que está certa, e que me dá muita felicidade, tive de dizer asneiras durante 30 anos.

 

Errar.

Uma coisa é errar, outra é publicar. Tenho uma grande convivência com as minhas limitações, e com a dimensão minúscula dos meus conseguimentos. Isto não é trágico, é o estado natural da vida. Quando me põe diante dos olhos e dos ouvidos frases em que há uma desgraça absoluta, reajo. Nunca senti a desgraça absoluta. As pessoas não sabem ler as mensagens. Até porque não são capazes de se ler a si próprias. Mas isso não é grave, é sério.

 

O que é que é grave?

O grave é o irremediável da desgraça, é não haver saída. Por exemplo, a dívida soberana de Portugal, não é grave, é séria, vai ter uma solução qualquer.

 

Nesse caso, o único irremediável é a morte.

Claro. O homem é o único animal que sabe que vai morrer.

 

Não sabe é o quando.

Mas sabe que. Os gregos têm a profunda consciência da inevitabilidade da morte, e de que nessa medida, é preciso dar um sentido à vida. Aquiles, o Príncipe dos Aqueus, pode, olhando de fora a sua vida, lamentar tudo o que perdeu, lamentar as razões que o levaram a pôr em perigo a sua vida. É citado por Sócrates quando diz: “Que inútil fardo seria eu, caminhando entre as naus, se não lutasse?”. E depois morre. E depois de morrer diz: “Aquilo é que era”.

 

Muitos destes de que estamos a falar são os heróis. É menos comum falar dos derrotados. Como se recusássemos para nós essa dimensão? Na Ilíada, fala-se mais de Aquiles do que de Heitor.

É impossível não amar Heitor.

 

É aquele que é morto.

E é morto de uma forma terrível. Ganhar é óptimo, sobre isso não estamos em desacordo. É bem melhor que perder. Mas um ganhador, eu? Ganhador é qualquer coisa que se põe no túmulo de uma pessoa: “Este foi um ganhador”.

 

Depois, de nada serve, porque está no túmulo.

Deixou filhos, deixou uma memória, deixou uma lição. Ser lembrado com um sorriso é um triunfo. É algo que se pode ambicionar. Quando se lembrarem de mim, que seja com um sorriso.

 

Isso podia ser um epitáfio.

Podia. Ser lembrado com um gesto de tolerância, carinho. Carinho já não é grego.

 

Não conhecem esse conceito?

Não posso responder com segurança, porque estou a responder sobre páginas e páginas de literatura, e estaria a dizer-lhe: “Não está lá”. Mas posso dizer que abundam os sinais em sentido contrário.

 

Qual seria o sentimento semelhante?

A compaixão, a amizade. Carinho é talvez aquilo que uma mãe sente por um filho.

 

Porque é que decidiu doutorar-se em Platão?

Quando comecei a tentar entender qualquer coisa de Filosofia, percebi que faltava sempre qualquer coisa antes. Fui recuando, recuando, e quando cheguei a Platão não precisei de recuar mais. Depois tornei-me platonista, e de algum modo, platónico (não no sentido mais corrente). Ser platónico é ter uma visão estruturada e estruturante da realidade. É ter noção de que a realidade é uma estrutura de formas, e compreender a realidade é descobrir as formas. Nenhuma realidade é compreensível, nem sequer abordável, se não pensarmos que resulta do encontro da matéria com a forma. Quem sou? A resposta de Platão: és um homem, porque tens uma alma, e tens uma alma porque viste as formas, porque compreendes que a realidade tem uma estrutura. Compreendes que o único sentido da vida é perceberes e comungares dessa estrutura, e encontrares o teu lugar nela.

 

Há alguma pergunta que não tenha feito e que este perguntador teria feito?

Porque luta?

 

Porque luta?

Luto para me encontrar nesta sociedade a que pertenço. Ser português é uma condição que não se pode perder. E acima de português só consigo ser lisboeta. Esta é a minha cidade. O sentido da vida é descobrir a que pertencemos. Tudo isto é inquieto, mas a quietude é a morte. A vida é a inquietação.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2011

 

Maria Helena Rocha Pereira

24.11.24

Nasceu em casa, num tempo que já não se respira. Um tempo em que as meninas tinham preceptoras que iam a casa, diariamente, dar a lição. A casa era um palacete, no meio de um jardim grande e bonito, no Porto. Quando aos 18 anos se mudou para Coimbra, sentiu falta do jardim. E hoje, à entrada da porta, há «um jardim de vasos», que é seu.

A casa é recatada, tem as paredes revestidas de livros, algumas prateleiras abrigam uma segunda fila. Os Livros, o Saber, são a sua vida.

Maria Helena da Rocha Pereira tem 78 anos. Foi a primeira professora catedrática da secular Universidade de Coimbra. A primeira em 666 anos. A primeira a prestar provas. Carolina Michaelis tinha sido convidada.

Viveu sempre com os antigos. Abraçou o estudo dos gregos e latinos como se abraça o sacerdócio. Não casou, não teve filhos. Tem quatro sobrinhos que adora.

É por causa dessa dedicação exclusiva que podemos ler em português a «República» de Platão ou «As Bacantes» de Eurípides, por exemplo. Elaborou a «Hélade», antologia da cultura grega, porque os alunos provenientes dos mais diversos cursos nem sempre sabiam grego. Traduziu a «Medeia» ou a «Antígona» a pedido do grupo de teatro da universidade. Mas diz que detesta traduzir. Gosta muito de estudar e ensinar e a isso votou a sua existência. Ensinou durante quarenta anos, é professora jubilada desde 1995. Deixou de dar aulas, mas continua a orientar mestrados e doutoramentos.

Tem uns olhos muito azuis que ainda sorriem e se emocionam.

 

Aos seis anos já ensinava as empregadas a ler.

A maior parte das empregadas, ou quase todas, não sabiam ler. Gostavam de trabalhar na cozinha e eu lia-lhes poemas simples. Fazia-me confusão que alguém não soubesse ler. Considerava o saber ler, não direi um privilégio, mas uma vantagem. Aprendi muito cedo, aos quatro anos. Quem andava a aprender, era a minha irmã, mais velha dois anos. A minha mãe ensinou-me as letras, e depois fiz o resto. A leitura foi pouco menos que automática. Portanto, ensinava-as. Isto mais ou menos até aos onze, doze anos; de maneira de ensinei muitas. Nesse tempo era frequente que uma casa tivesse duas ou três empregadas.

 

A sua mãe tinha uma formação académica?

Tinha estudos, mas não como hoje é corrente. O pai sabia e naturalmente tomava decisões, mas quem se ocupava de perto da nossa educação era a mãe. Este tempo é-lhe totalmente alheio, mas vou dizer-lhe: foi um certo escândalo que a minha mãe quisesse matricular-nos no liceu. Porque as meninas bem iam para o colégio. Foi uma escolha de qualidade, o ensino no liceu era infinitamente superior ao do colégio. Segundo escândalo: irmos para a universidade.

 

Foi para o liceu com que idade?

Fiz exame com nove anos. Estava preparada aos oito, mas não era permitido entrar quem não completasse dez até ao final ano civil. Tive de esperar um ano. O que não foi mau, porque fiz uma quarta-classe extremamente sólida, que é fundamental para a continuação dos estudos, e está na base do insucesso de hoje. Depois andei no Carolina Micaelis, do primeiro ao sétimo ano. Havia o inconveniente de o liceu ser gelado... Eu era o que se chama uma criança fraca, débil; doenças do frio, anginas, gripes, eram umas atrás das outras.

 

Depois do liceu, vem estudar para Coimbra. Era claro que queria seguir a carreira universitária?

Nesse tempo a carreira universitária era impensável para uma rapariga. Havia duas ou três senhoras assistentes em Ciências; mas estavam um tempo e depois iam embora. A minha faculdade era totalmente avessa à contratação de senhoras. Isto não me impedia de estudar! Porque eu queria saber. Embora nunca o dissesse, tive sempre o plano de seguir uma carreira universitária. A minha mãe e a minha irmã sabiam. Mais tarde, os meus condiscípulos diziam que sempre tinham percebido que eu queria seguir a carreira.

 

Era o afinco com que estudava?

Comecei a estudar a fundo, a estudar noite e dia. Na universidade, se uma pessoa se limitar às aulas, por muito bons que sejam os professores, sabe muito pouco. Estudei nos anos da Guerra. Lembro-me muito bem porque era dificílimo conseguir os livros, que eram todos estrangeiros. Mas tarde, acabei por ir estudar para Inglaterra.

 

Já lá vamos, a Oxford. Antes, deixe-me perceber porque é que foram as letras que exerceram fascínio sobre si. Na família havia um pendor para as ciências: a sua irmã formou-se em matemática, o seu pai era médico e professor de medicina.

Estudou medicina, mas era do tempo em que se tinha sete anos de latim do liceu. Gostava muito das coisas latinas e dizia versos da «Eneida» de cor. Há um verso do canto primeiro, que um professor dizia ser o verso mais sonoro de toda a latinidade; o meu pai gostava muito de o repetir: «Nimborumque facis tempestatumque potemtem».

 

O que é que significa?

«Fazes-me rei das nuvens e das tempestades». É muito sonoro, de facto. A deusa Juno vai ter com o rei dos ventos para que desencadeie uma tempestade que faça naufragar Eneias; quando lhe dá esta ordem, ele responde, satisfeito: «Fazes-me rei das nuvens e das tempestades».

 

O seu interesse pela cultura clássica radica aí?

Tive sempre a ideia de que o latim era uma língua excepcional, que seria maravilhoso estudar. Grego não sabia ainda, aprendi-o em condições particulares a partir do sétimo ano. E gostava muitíssimo de português. Digamos que os valores estéticos, incluindo os da linguagem, me eram extremamente gratos. Aprendi as línguas como acesso às respectivas literaturas: era para ler os grandes autores no original. Não há nada que substitua o original, por muito bem feita que seja a tradução.

 

Na universidade começa a estudar noite e dia. Porquê?

Para saber, tinha de estudar muito. Fui estudando, fui sempre estudando ao longo dos anos. Mas quando cheguei ao fim do curso ainda era tudo muito insuficiente. Regressei a casa dos meus pais, cheguei a ensinar algum tempo no Centro de Estudos Humanísticos. Passaram-se três anos e foi mesmo a minha mãe que viu que aquilo não era futuro. Se queria doutorar-me... Porque isso estava assente na minha vida: que ia doutorar-me.

 

Já sabia o que queria fazer à vida? Ainda era pensável o mais previsível dos futuros para uma menina do seu meio, que era constituir família?

Não se proporcionou ocasião de resolver essa questão tão difícil. Tão difícil porque eram pouco compatíveis as duas situações: uma dedicação total ao estudo e a vida de família, que eu entendia também como uma dedicação total. Não cheguei ao ponto de ter de optar. A minha ideia era, contra tudo e contra todos – sabia muito bem o que pensavam aqui na Universidade de Coimbra – fazer o doutoramento.

 

Não havia ninguém a estimular o seu propósito?

Havia aqui um professor de grego que considerava, talvez por ser casado com uma mulher muito inteligente, que as mulheres, se tivessem mérito, deviam seguir a carreira. Mas era só ele. Ele mesmo me deu o conselho de ir estudar para o que era então o melhor centro de estudos clássicos: a Universidade de Oxford. E foi isso que fiz. Pedi uma bolsa de estudo, deram-me uma bolsa que não chegava..., o meu pai punha o que faltava.

 

Que vida era a da sua irmã?

A opção dela tinha sido outra. Queriam que ficasse na faculdade de Ciências do Porto, ela é que não quis. Casou pouco depois, teve aqueles quatro filhos seguidos [aponta para a fotografia sobre o móvel].

 

Não teve pena de não conhecer aquela dimensão, a da família e dos filhos?

Ajudei muito no que pude na educação dos meus sobrinhos. A minha irmã acompanhava-os na parte das ciências e eu na parte das letras.

 

Isso é o contacto com as matérias. Outra coisa é o amor e a dedicação.

Ah, era total. Era e é. Tenho uma grande afeição pelos meus sobrinhos, eles também a têm por mim.

 

Então não lamentou não ter tido filhos?

Não. Digamos que tinha a compensação dos meus sobrinhos, que iam muito para casa dos meus pais.

 

Mas nunca é a mesma coisa.

É claro. Senão, é porque a mãe não presta. 

 

Quando chegou a Londres a Guerra tinha acabado há cinco anos. Vivia-se ainda o racionamento dos bens de consumo.

O racionamento estava ainda no máximo. Quando cheguei tinham acabado de se tornar livres o leite e o sabão. Tudo o resto era com pontos, cumprido fielmente e muito bem pensado. Dietistas estudaram o racionamento com o mínimo necessário com o que uma pessoa podia andar em pé. E havia pontos extra, «Old age tea» por exemplo, para as pessoas de idade que estavam habituadas ao seu chá. É uma coisa muito bonita, não é?

 

O que foi para si Oxford em 1950?

Foi uma oportunidade única. Tinha professores de uma qualidade extraordinária, mundialmente conhecidos, entre os quais dois alemães que tinham fugido ao nazismo, notabilíssimos. E ao mesmo tempo... Eu tinha estado em França nas férias grandes, a estudar, a ler livros na biblioteca nacional. Cá não havia nada. E era um país caído. Em Paris havia por todos os lados raminhos de flores: «Aqui caiu fulano, lutando pela liberdade». Aqui caiu. A Inglaterra era um país de pé. Era extraordinária a consciência cívica, o espírito de resistência e de vitória.

 

A ocupação em França foi sentida como uma faca no peito.

Pois foi. Mas também foi o país que se rendeu. A Inglaterra foi o país que nunca se rendeu. Até à entrada dos Estados Unidos, lutaram sozinhos, com Londres a ser bombardeada – na cidade ainda havia marcas disso.

 

A sua tese de doutoramento é sobre o conceito de Felicidade no Além. Porque é que escolheu este tema?

Acho um tema sedutor: o que é que um homem entende por Felicidade. E neste caso, transposto para o Além.

 

O primeiro elemento que destaca é Felicidade. Aparentemente o mais sedutor seria o Além, por ser a incógnita absoluta. 

A minha primeira ideia era o quadro do Além em geral, incluindo os Infernos – que os gregos chamavam de outra maneira: Hades. O que levaria a um trabalho sobre a estética do horror. Na literatura latina (eu tinha começado por aí), havia várias descrições do Inferno, do Além. A mais famosa e extraordinária é a da «Eneida». É a tal estética do horripilante. Do medo, também. Depois verifiquei que o tema era inesgotável. Acabei por ficar com a Felicidade no Além, de Homero a Platão, e o que isso implica na ideia de julgamento moral.

 

Pode explicitar a noção de julgamento moral?

A noção vai-se formando aos poucos. Em Homero não existe. Todos vão para o Hades, incluindo Aquiles, que Ulisses encontra. Encontra-o e diz-lhe que ele é feliz, porque é rei no Hades. E Aquiles diz que mais vale ser servo da gleba na Terra do que ser rei de todos os mortos. A vida no Além é imaginada como compreendendo uma série de sombras. Todos continuam as actividades que tinham, mas numa terra triste. Aquiles, como era rei em vida, continua a ser rei no Além.

 

Na «Odisseia», Ulisses encontra no Hades um dos seus homens, que tinha morrido sem que este o soubesse. Aparece a Ulisses porque não tinha tido rituais fúnebres. Porque é que estes rituais eram tão fundamentais para os gregos?

Em todos os povos existe a ideia do ritual fúnebre. A ideia de que a alma (não ainda no sentido filosófico, mas a tal sombra), não terá descanso se não tiver os rituais fúnebres. Isto tem um pouco que ver com a necessidade de nos separarmos materialmente dos mortos. Não só a necessidade de marcar esse afastamento, mas também a de que é preciso dar-lhes sepultura. Na «Ilíada» há momentos em que a acção guerreira é suspensa para cada um dos povos em confronto sepultar os seus mortos.

 

A pessoa não tinha honra se o ritual não fosse prestado?

Não tinha honra, não tinha descanso.

 

O que é que se pode entender por descanso?

Uma ideia primitiva da morte é a de que ela representa o descanso. O nada. Dizendo o nada estou a importar uma ideia que é posterior. Os vivos consolam-se um pouco com a ideia de que aqueles que lhes eram caros estão em descanso. Ainda hoje está nas fórmulas da Igreja Católica: Descanso Eterno. A aparição dos mortos sob a forma de fantasmas está ligada a isto: vêm atormentar os vivos porque não estão em descanso eterno. 

 

Aquiles diz que preferia ser servo da gleba na Terra do que ser rei de todos os mortos. Isto não pressupõe uma inquietação ou tristeza que contraria o que se imagina que seja o descanso eterno, a paz definitiva?

Digamos que a ideia está ainda em formação. Voltando a Aquiles, há depois a tradição de que vive na Ilha dos Bem Aventurados, um lugar de delícias, com clima privilegiado, e atrás dele vão outras figuras. Começa a noção, que poderá ter vindo da ilha de Creta, de que há um lugar melhor para pessoas muito valentes, como ele. Aos poucos, essa noção vai sendo substituída pela noção de superioridade moral. Isso consubstancia-se nos mitos escatológicos de Platão: há um julgamento post-mortem com destinos diferentes de acordo com o comportamento moral em vida.

 

Temos ainda uma herança disso quando pensamos que vamos pagar depois de mortos o que andamos a fazer em vida.

Pois temos. Essas ideias gregas passam aos romanos, estão na «Eneida». Na «Eneida», ao lado do Hades, há já os Campos Elísios, que nesta altura não são ilhas distantes mas uma parte privilegiada do Hades. A «Eneida» tem uma influência incomensurável. Não é por acaso que Dante escolhe Virgílio para o guiar [«Divina Comédia»].

 

Como pai espiritual.

Não só como poeta, mas como pai espiritual. Está a ver os pontos de passagem?

 

Quando fez a tese qual era o seu conceito de felicidade?

Pessoalmente? Não arranja uma pergunta mais difícil para me fazer? [risos]

 

Porque é que é tão difícil?

Naturalmente que fazia parte a noção de felicidade familiar, que era e continua a ser fundamental. E particularmente, para mim, a felicidade no saber, no estudo. Essa nunca a perdi.

 

A felicidade são momentos fulgurantes?

É mais isso. Posso dar-lhe um momento fulgurante, muito curtinho: quando subi as escadas da Via Latina da Universidade pelo braço do meu pai para fazer concurso para Professora Catedrática.

 

Porque é que esse momento foi tão mais significativo que o do doutoramento?

Para aquele momento, queria ter a felicidade de ter o meu pai, ainda.

 

E quando foi à Grécia pela primeira vez e se abraçou a uma coluna?

Ah, eu nem acreditava! Nesse tempo ia-se de barco para Atenas. Tinha havido grandes tremores de terra e por isso não se podia passar o canal de Corinto. Demos a volta toda ao Peleponeso e chegámos a Atenas ao entardecer. Ao entardecer os últimos raios de sol brilham sobre o Pártenon numa luz mais ou menos rósea – as colunas de mármore vão mudando de cor conforme a hora. É uma vista!, é um deslumbramento!... É uma colina íngreme, a colina da acrópole. Quando cheguei à base, quase não podia andar.

 

De?

De emoção. E depois acaba no abraço à coluna! Nessa altura podia entrar-se no Pártenon, agora não – já estaria destruído por tantos pés.

 

Ao abraçar a coluna pôde experimentar a mesma emoção que se tem quando se abraça um pai, alguém que se ama muito?

Talvez fosse parecido. Só que a coluna é tão larga, tem um diâmetro tão grande, que não dá para abraçar tudo ao mesmo tempo.

 

Chorou?

Não. Tanto não!

 

Não chora?

Habitualmente não. Às vezes acontece. Eu não era o género de lágrimas... Talvez porque fosse predominantemente intelectual a alegria desse encontro.

 

Quando subiu as escadas com o seu pai chorou?

Não. Ia felicíssima. Contra tudo e contra todos tinha chegado onde queria.

 

A tenacidade que a levou a subir degrau a degrau até ser professora catedrática, sente orgulho nela?

Tenho gosto em tê-lo feito. O meu doutoramento foi o primeiro de uma senhora numa universidade que tinha 666 anos, na altura. Eu queria atingir essa meta, indispensável para poder continuar e para ensinar. Gosto muito de ensinar.

 

A sua ambição era Saber.

Mas isso não é orgulho.

 

Sente orgulho em Saber?

Não! Até porque nunca se sabe tudo, nem coisa que se pareça. Somos sempre uns ignorantes e temos de ter consciência disso.

 

«Só sei que nada sei», parafraseando Sócrates?

É isso que acontece. Estamos sempre a verificar os limites do nosso saber. E à medida que aparecem novidades, e há muitas relativas à Antiguidade Clássica, trazidas sobretudo pela arqueologia, está sempre tudo a alterar-se. A procura do saber é constante. Não somos senão uns humildes aprendizes. Eu costumava dizer no começo das aulas: «Vou ensinar aquilo que sei. Em muitos casos vamos ficar na dúvida. A dúvida é científica. Às vezes é mais científica que a verdade». Muitas vezes fazia uma exposição o mais completa que podia, chegava ao fim e dizia: «Daqui para diante não sabemos mais».

 

Na sua tradução da «Antígona», de Sófocles, pode ler-se o seguinte: «O homem nada sabe sem queimar os seus pés no fogo ardente». O que é que se pode saber? O que é que significa queimar os pés no fogo ardente?

Penso que esse fogo ardente simboliza a dor, o sofrimento. Na «Oresteia», de Ésquilo, está dita em duas palavras apenas: «Pathei Mathos». Isto é, «No sofrimento está o aprendizado». Por outras palavras, o homem aprende sofrendo. Aprende as suas limitações.

 

Escreve-se na «Antígona»: «Não se pode ter a grandeza sem a desgraça».

É. Nas tragédias gregas, quando menos se espera, desencadeiam-se desgraças sobre o homem, que ele muitas vezes provocou sem saber. Isto tem que ver com um dos conceitos mais discutidos na «Poética» de Aristóteles: «Hamartia». Discute-se, e discutir-se-á, e há livros só sobre o assunto, o que é que ele entende por «Hamartia». Muitos pensam, e eu também penso, que esta «Hamartia» é um errar por desconhecimento. É o que acontece particularmente no «Rei Édipo», de Sófocles. No fundo, é sempre a ideia das limitações do homem, que não pode ultrapassar a sua medida e tentar igualar-se aos deuses.

 

Por isso é que o pecado maior é o do orgulho e soberba, a «Hybris»?

Exacto, a insolência, a «Hybris». Geralmente diz-se que os deuses eram muito vingativos. Um conceito muito primitivo. O que está por detrás disto é a ideia de que há uma entidade superior que castiga os homens se eles tentarem ultrapassar a sua condição. Portanto, a condição humana é frágil, é sujeita a errar e todo o orgulho é punido.

 

A primeira limitação do homem advém do horizonte da morte? «O Hades é insaciável» («Antígona»). Todos podem escapar a todo o tipo de infortúnio, mas ninguém escapa à morte.

Ninguém escapa a esse.

 

Nesse sentido, a morte é o primeiro sinal da nossa limitação.

É.

 

O que é para si o Saber?

Há bocado perguntei se não tinha nenhuma pergunta mais difícil... Faz-me outra! O Saber não se pode atingir. Identifico-me bastante com a Teoria das Ideias que está exposta na «República» e noutros diálogos [de Platão]. As ideias puras, não as atingimos. Atingimos reflexos dessas ideias. Geralmente os caminhos do saber não chegam lá. E quanto mais a ciência avança, mais vemos até onde vão as nossas limitações. É um pouco paradoxal, mas é o que acontece.

 

Deixe-me voltar ao excerto «O homem nada sabe sem queimar os seus pés no fogo ardente». Tanto quanto percebo, resguardou-se sempre de queimar os seus pés no fogo ardente.

Fiz o possível!

 

Mas então, se não nos expusermos ao sofrimento, não podemos conhecer deveras. Uma exposição à vida.

Eu acho que me expus bastante. Não é muito fácil a uma pessoa que teve uma vida e uma educação no género que descrevi, ir sozinha estudar para Oxford, sem conhecer as pessoas, com hábitos diferentes. Nos países latinos há uma solidariedade maior, por exemplo, quando uma pessoa está doente e todos à volta procuram ajudar. Na Inglaterra não é assim, e experimentei isso. Houve um longo período em que estava débil, uma ciática muito forte, provavelmente provocada pelo clima. Quase não podia andar, para poder ir às aulas tive de ir e vir de taxi. Mas nunca deixei de ir.

 

Essa tenacidade, já é o tipo de coisa de que se orgulha?

Eu acho que fiz bem, tornava a fazer o mesmo.

 

Porque é que o mito de Orfeu e Eurídice é um dos seus preferidos?

Não é meu preferido, é dos poetas. Eles é que andam sempre com o mito de Orfeu e Eurídice. Tem uma grande beleza, sem dúvida.

 

O que há neste mito é o amor de Orfeu por Eurídice, tal que tenta vencer a morte.

Tenta vencer a morte, mas depois não é capaz de se vencer a si próprio.

 

É vencido pela curiosidade?

Olha para trás. Há quem tenha encontrado outras motivações, além da curiosidade. Os mitos vão recebendo adições e tratamentos diferentes. Na sua formulação que se tornou mais conhecida, que é a das «Geórgicas» de Virgílio, Orfeu não resiste mais e esquece por momentos a condição que a rainha dos mortos lhe tinha tornado obrigatória: não podia olhar para trás antes de chegar à luz do dia. Ele olha e ela desaparece. E depois, em Virgílio, há aquelas últimas palavras de Eurídice: «Não mais tua»...

 

Posso perguntar-lhe se alguma vez amou?

Eu? Que pergunta tão indiscreta! [risos] Que pergunta tão indiscreta!

 

Se este mito não é o seu preferido, é qual?

Não tenho uma preferência. Estes mitos que mostram a limitação e ao mesmo tempo a persistência do humano... Como o mito de Sísifo. A pedra cai, mas ele volta a rolá-la. Está na parte final do canto XI da «Odisseia». Em grande parte traduz a condição humana, é por isso que tem um apelo tão grande em todas as épocas.

 

No mesmo canto há outro mito famoso, o de Tântalo.

O mito de Tântalo tem mais do que uma versão. Uma delas é esta: ele está morto de sede e mergulhado na água que não pode beber; está morto de fome e vê frutos ao alcance da mão, se tentar tocar-lhes, eles desaparecem. Mas há outra forma do mito: tem uma pedra suspensa sobre a sua cabeça e essa pedra ameaça cair a todo o momento. É só isso. A pedra de Tântalo. É uma versão completamente diferente, que aparece já em Píndaro, por exemplo.

 

Numa e noutra há qualquer coisa que pende. Há sempre a dúvida.

Num caso há, não direi a angústia, porque a angústia existencial é uma noção moderna, mas o terror de ver cair a pedra, que não se sabe como é. Este mito, nesta versão, reflecte, talvez como nenhum outro, a condição humana.

 

Não sabemos nunca quando a morte impende sobre nós.

E as catástrofes. Muitas são previsíveis, mas a maioria não. A outra versão do mito de Tântalo, a da fome e da sede, é outra maneira de mostrar as limitações do homem. Parece que tudo está ao seu alcance, e não está.

 

Nos gregos a questão da sepultura é fundamental. Como é que gostaria de ser lembrada?

Gosto da imortalidade à moda de Platão. Isto é, é só a «Psyche», a alma, com o sentido que já tem nele. A «Psyche» em Homero é a vida, a respiração; tanto assim que o que está no Hades é a «Psyche», o corpo ficou na Terra. A alma será algo de imaterial. Nos mitos platónicos, a alma é o que sobrevive e é feliz porque contempla as ideias puras, o Saber, ao qual, em vida, não podemos aceder.

 

Os antigos escolhiam os seus epitáfios. Se escolhesse o seu, o que seria?

Nunca pensei fazer o meu epitáfio! Agora nem se põe! [pausa] Julgo que é inseparável o gosto do magistério e o estudo. Não tenho a noção antiga do suposto sábio na torre de marfim. Um professor que não crie discípulos não é completo. Bem, estamos outra vez no «Fedro» de Platão, quando diz que o livro diz sempre a mesma coisa... O que interessa é o mestre vivo.

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias em Dezembro de 2003

 

Vinicius de Moraes

23.11.24

Vinicius foi o mais viniciano dos homens. Tinha dito sobre Oxford: “Toda uma religião, mas nada de vivo: de lawrenciano, de rimbaudiano, de dostoievskiano, de shakespeariano ou quem você queira de fundamentalmente humano em si”. Vinicius imprimiu um adjectivo. O que só se faz sendo um substantivo e peras. O é que ser viniciano? É saber “comungar com um crioulo do morro e bater um samba com a faca na garrafa”. É ser “um poliedro cujo número de faces tende para o infinito – Jobim dixit.

Tom chamava-lhe o seu Poetinha. Vinícius chamava-lhe Tomzinho, Maestrinho Querido. Toda a gente era inha ou inho alguma coisa. Para Carmen Miranda, ele era “Vesúvio” – “coisa que me derrete”. Para os amigos, Vinô. Outros, depois de uma noite de estroinice, acenavam-lhe na rua, “Hello De Moraes”.

Foi Vinicius porque o pai admirava o herói romano de Quo Vadis, Marcus Vinitius. A epopeia, o desígnio, a heroicidade estavam-lhe predestinados. A sua biografia começa invariavelmente pela seguinte linha: “A música chegara a Vinicius antes mesmo que a palavra, pois ainda bebé, cantarolava uma canção de ninar com a primeira letra que compôs: “Ê batetê, ê cabidu”.

Nasceu na Gávea, bairro de classe média do Rio em Janeiro, no dia 19 de Outubro de 1913. A rua era assim: “A minha rua é longa e silenciosa como um caminho que foge”. O pai tinha o nome improvável de Clodoaldo: “Se trocámos dez palavras durante a sua vida foi muito. “Bom dia”, “Como vai?”, “Até à volta”. Há pessoas com quem as palavras são desnecessárias. A vontade mesmo era a de abraçar com ele, sentir-lhe a barba na minha, e prantearmos juntos a inépcia para construir um mundo palpável”. O pai era latinista, arranhava o violãozinho. A mãe adorava cantar. Lydia Cruz de Moraes. “Caminito, os primeiros tangos argentinos, fox-trotes, as primeiras valsas, tudo ouvi através do canto de minha mãe”. Levavam uma vida tranquila. Empobreceram. Mudaram-se para a Ilha do Governador. Anos antes da poesia luminosa, em contacto com o sol de Ipanema, a aproximação ao mar, aos pescadores, à existência dos simples fez-se ali. “Uma grande liberdade que a Ilha proporcionava, né?”

O carácter viniciano talvez tenha começado nesses primeiros anos: na abolição de fronteiras “entre o erudito e o popular”, na junção da “poesia com o samba e o asfalto com o morro”. Talvez tenha começado, nessa experiência de liberdade, a ser “o branco mais preto do Brasil”. Ainda não era (não podia ser) o que viria a ser mais tarde: poeta, músico, diplomata, jornalista, crítico de cinema. De whisky na mão, "O uísque é o melhor amigo do homem, ele é o cachorro engarrafado”. E “tombeur de femmes” – como se escreve na biografia editada pela JobimMusic (de onde provêm as citações deste texto). Casou nove vezes. Sobre o amor: “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!". Teve cinco filhos. “Filhos… Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos, como sabê-los? Porém, que coisa linda, que coisa louca que filhos são”.

Podia ter sido tudo. Não sabia o que queria ser. Estudou Direito. Na faculdade conheceu Otávio de Faria e Augusto Frederico Schmidt. Mais importante: leu Baudelaire, Rilke, Proust. Ancorou-se nos simbolistas e românticos, escreveu poemas místicos. Um nervo que demoraria a extirpar. O ascetismo ia bem com a forma poética, mas violentava-lhe a forma quotidiana. Praticava a volúpia como quem nada na Lagoa Rodrigo de Freitas. Acariciou as pernas de uma amiga da mãe, “moça de pernas atraentes”, escondido debaixo da sala de jantar. Tinha 15 anos quando compôs uma canção-declaração a “Louras e Morenas”. Foi a sua estreia na composição, ofício a que voltaria, apenas, daí a 25 anos. Já era então diplomata e o poeta fundador da Bossa Nova. Era outro homem.

“Poderia este livro ser dividido em duas partes, correspondente a dois períodos distintos na poesia do autor. A primeira, transcendental, resultante de uma fase cristã. Na segunda parte (…) estão nitidamente marcados os movimentos de aproximação do mundo material, com a difícil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos”. A advertência de Vinicius, que consta da “Nova Antologia Poética”, originalmente editada em 1954 e reeditada recentemente no Brasil, alude ainda à “luta mantida pelo autor contra si mesmo no sentido de uma libertação dos preconceitos e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação”. A advertência data de 49. A deriva, ou o desejo, ou a necessidade dela, eram antigos. O viniciano estava prestes a ser.

Mostrou o Rio a Orson Welles, my friend Welles, foi íntimo de Manuel Bandeira, o Mané. Ouviu Sarah Vaughn, “a última grande cantora negra, uma maravilha que vou ver sempre que posso”, queixar-se dos atrasos constantes de Tommy Dorsey. Louis Armstrong era “o camarada”. Também havia Carmen Miranda, Pablo Neruda, havia everybody. Era o homem a quem o presidente Kubitschek, Juscelino para Vinicius, encomenda uma sinfonia para celebrar Brasília [“Sinfonia da Alvorada”, com Tom Jobim]. Mas quem ele gostaria de ter sido era “meu grande irmão negro Pixinguinha. Foi o ser mais lindo que encontrei dentro da escala humana. Eu tiro o chapéu para ele”.

Era uma “usina de ideias” imparável. Era um purista que defendia o cinema mudo. Foi crítico, fundou um cineclube, assistiu a projecções privadas em Los Angeles. Concebeu e desenhou a arquitectura poética de “Orfeu Negro”, uma revisitação do mito de Orfeu e Eurídice passado numa favela e transposto para cinema.  

Estava sempre apertado de grana. Escreve numa carta, em 1955, “estou precisadíssimo de dinheiro”. Noutra, de 48, confidencia: “A Carmen ofereceu a Tati um pequeno job, como uma espécie de secretária dela. Isso é segredo absoluto (a questão monetária), porque o Itamaraty pode não gostar. Mas ela vai ganhando uma gaitinha bem boa. E são só dois meses, um em Miami e um na Europa”. Ganhou uma gaitinha menos boa com o consultório sentimental Abra o Seu Coração, que assinava sob o pseudónimo Helenice, no tablóide Última Hora. Escrevia para aqui e para acolá, escrevia canções, escrevia livros de poemas. Nunca chegava – “Estou gastando como um verdadeiro Onassis”.

Supostamente ganhava a vida como diplomata. Primeiro em Los Angeles, depois em Paris, depois Montevidéu, novamente Paris, na sede da Unesco. Foi exonerado do Ministério das Relações Exteriores com um telegrama famoso: “Despeça-se esse vagabundo”. O surpreendente é que, apesar do deboche, do percurso errático, da afronta aos códigos do poder, o despedimento tenha tardado tanto: surgiu em 1969. O viniciano havia tomado conta de Vinicius.

As mulheres: Beatriz, como a amada de Dante – Tati para todo o mundo, com quem casou por procuração; Lila, Lucinha, Nelita (que foi raptada, para casarem na Europa), Cristina, Gesse, Marta, Gilda. “Eu sou um ser muito fiel, embora não pareça e digam que não sou. Esse negócio de parceria é um pouco como o casamento. De repente, sem que a gente saiba prevenir ou explicar, o negócio começa a mixar”.

Os parceiros: Tom Jobim, Baden Powell, Carlinhos Lyra, Chico Buarque, Toquinho. Ficou como um dos fundadores da Bossa Nova, mas esteve pouco tempo na Bossa. Zé Miguel Wisnik, um intelectual paulista, resumiu: “Vinicius sempre decepcionou a todo o mundo!”. Suzana Moraes, a filha mais velha, prossegue: “A primeira metade da obra é metafísica, e tem um rompimento disso para uma poesia do quotidiano, directamente influenciada por Manuel Bandeira e pelos poetas modernistas. Quando começou a fazer música, o pessoal da poesia, inclusive João Cabral de Melo Neto, ficaram horrorizados. Depois, largou a Bossa Nova e foi fazer afro-sambas com Baden [Powel]. Depois foi ser “pop star“ com Toquinho, fazer shows para estádios. Aí, passou para uma fase completamente hedonista. Que também foi muito criticada”.

Faz parte dos atributos do viniciano o hedonismo. Vinícius recebia na banheira, onde passava parte do dia – com uma temperatura e uma aquosidade uterina. Com metros de fio de telefone, uma garrafa de whisky e um copo. “De manhã escureço, de dia tardo, de tarde amanheço, de noite ardo”. Era um fauno. Depois do anjo que pretendeu ser nos primeiros anos. Apolínio e dionisíaco ao mesmo tempo. Internava-se numa clínica perto de casa para recuperar dos excessos, “para fazer plástica no fígado”.

Escrevia cartas; a maior parte, não chegava a mandar. “Tomzinho Querido, estou aqui num quarto de hotel, que dá para uma praça que dá para toda a solidão do mundo” (1964). É 7 de Setembro, dia da independência do Brasil. Lamenta estar longe. Pede os seguintes menus no seu regresso a casa: “Um tutuzinho com torresmo, um lombinho de porco bem tostadinho, uma couvinha mineira, e doce de coco”. Era diabético.

Participou num movimento musical a que poeticamente se pode chamar “A Onda que se Ergueu no Mar”. “Chega de Saudade” foi a canção inaugural do movimento. Em 1958, o poeta com a reputação intacta, Oxford e a diplomacia no currículo, atrevia-se a escrever: “Pois há menos peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que eu darei na sua boca”. Neruda invejava-lhe a liberdade: “Não tive a coragem dele. Era o que mais gostava de ter feito: letras de música. Mas tive medo que me desprezassem”.

Escreveu abundantemente. Começou a compor quando Lila, a segunda mulher lhe perguntou “Porque é que você não compõe?” – 25 anos depois de uma canção para louras e morenas. Partilhou palcos com Tom e João Gilberto – timidamente. Transformou-se num pop star que enche estádios no mundo todo – com Toquinho e Miúcha, por exemplo. Deu azo a que o folclore ofuscasse a poesia. “A minha vocação fundamental, definitiva, digamos assim, é lírica”.

Morreu num dos seus “langorosos banhos”, no dia 9 de Julho de 1980. O seu epitáfio poderia ser: “Nasço amanhã, ando onde há espaço, meu tempo é quando”.

 

 

Publicado originalmente no Público

Antonio Tabucchi

18.11.24

No dia em que aconteceu esta conversa, corriam os últimos ventos e as pessoas circulavam na rua sob uma chuva áspera. Por causa do tempo, Antonio Tabucchi questionava um exílio alentejano, onde deveria escrever o seu próximo livro. É por isso provável que esta entrevista só lhe vá parar às mãos muito mais tarde. Pelo sim, pelo não, acordámos que seria enviada para certa morada em Itália. Algures entre Pisa, Siena, Florença, as cidades onde nasceu, ensina, vive. Em Portugal, a casa fica numa rua íngreme para os lados do Príncipe Real. No cimo de umas escadas, entra-se para uma sala ampla onde se destaca um Pessoa pintado por Pomar. E uma mesa baixa preenchida de livros e de pequenos cadernos, quase cadernos de merceeiro fechados com um elástico, onde escreve os seus livros. Prefere-os porque são facilmente transportáveis. Não sei se por acaso, estava em cima da mesa uma edição especial que compilava os textos manuscritos de Jean Arthur Rimbaud. Foi uma conversa que se demorou pela tarde, interrompida por um café que decidiu preparar, talvez à hora do lanche. Fumou incontáveis cigarros que colocou pacientemente numa boquilha pequena e transparente e que se destina, como, por fim, confessa, à domesticação do vício, mais que aos benefícios prometidos à saúde.

Foi através de um poema chamado «Tabacaria» que o escritor soube de Portugal. Há trinta e cinco anos, ou coisa parecida: uma vida. O poema tinha sido escrito por um homem que, como ele, usava bigode e se chamava Fernando Pessoa. «Tabacaria» foi comprado num quiosque de Paris e trá-lo-ía ao nosso país no ano seguinte. O resto, presumo que saibam. Sobretudo depois de Antonio Tabucchi e a sua obra terem sido revolvidos em dias de colóquio, quando a primavera ainda ia no adro e as andorinhas estavam longe. Tudo dito? Eu diria que não.

  

Com quem almoçou hoje?

Com a Maria José, a minha mulher.

 

Ao telefone disse que a entrevista não poderia ser cedo porque tinha um almoço. Imaginei que pudesse ser um almoço de trabalho ou que aproveitasse a sua estada em Lisboa para rever amigos.

Na realidade, estávamos à espera de pessoas que não puderam vir. Vamos ter um jantar.

 

Cozinha habitualmente?

Gosto, mas não sei qual poderá ser o resultado das minhas andanças pelas cozinhas. Não garanto: às vezes dá, outras não dá. A actividade em si é uma forma de distracção. Ter o rádio ligado e tentar fazer uma receita é uma maneira de passar um domingo.

 

É também uma forma de amor: o resultado depende do que lá se coloca, para lá dos condimentos.

Sim. E tocar nos ingredientes básicos do que é o nosso corpo; as coisas que se transformam depois em células, em átomos, em vida. Tiram-nos a fome, o apetite, e dão-nos a linfa, o sangue. 

 

A propósito do tocar, não escreve no computador. Imaginamos os escritores como pessoas muito cerebrais e desligadas do prazer do tacto. Até que ponto valoriza o seu trabalho que é feito pelas mãos, sem um intermediário que pode ser uma máquina?

A literatura está dentro da nossa vida quotidiana, não vive num sítio a que os platónicos chamavam «Hiper Urano» (para lá de Urano). Há várias formas de literatura e cada uma tem a sua plausibilidade de ser. Como a cozinha não tem só uma receita. Um dia temos vontade de ler um poema do Pessoa, outro uma reportagem sobre ciganos, noutro ainda as memórias sobre um campo de concentração, e noutros dias temos vontade de ler uns versos, sei lá, sobre a cenoura, como fazia o Neruda. A cenoura também existe, não é?

 

Quando falava das diferentes esferas lembrava-me de conversas com outros escritores que se diziam quase inibidos quando interpelados sobre os mundos da sua escrita, porque eram outros quando escreviam.

Não sei se somos a mesma pessoa quando estamos a conduzir o carro no meio do trânsito ou estamos a tomar banho no mar. O comportamento, o ambiente, a relação com o mundo, fazem com que tenhamos de ser diferentes. O nosso ser, e visto que o ser coincide com a maneira de ser, varia durante o comportamento quotidiano. Como varia durante a vida. Uma pessoa é muitos. Somos plurais e tem de ser assim.

 

Há uma coisa que aparece sublinearmente em todos os livros, e no «Afirma Pereira» chama-se «Confederação das Almas», que vai ao encontro desse ser plural. A «Confederação das Almas», elaborada pelos chamados Médicos Filósofos, implica vários eus e um eu hegemónico numa determinada altura da vida. Esta descoberta, que encaixa também no arquétipo do Pessoa, é anterior a Pessoa para si?

Essa sugestão vem antes do conhecimento do Pessoa. Vem, sobretudo, com o Pirandello.

 

Que idade tinha quando descobriu Pirandello?

Quando descobri o Pirandello, vírgula, sem o descobrir, vírgula, foi no liceu. Era uma leitura obrigatória. Mas logo a seguir, no intervalo que tive entre o liceu e a universidade, senti o desejo e a curiosidade de descobrir certas coisas e de reler certos autores, entre os quais o Pirandello. A partir daí as descobertas foram por analogias. Foram as leituras de uma analogia que me parece muito importante no século XX na literatura, na filosofia, na psicologia: a psicanálise. A descoberta que a alma cristã, que é o arquétipo, não é una e indivisível, mas que o homem tem dentro de si quase um exército que constitui nesta multiplicidade uma especificidade e unidade que é aquela pessoa. Isto passa-se com o Pirandello, com o Pessoa, com o Unamuno, com o Freud, enfim, com uma grande parte da grande literatura do século XX.

 

Se pensar quais são os seus pilares enquanto escritor, e no que é possível extrapolar para si enquanto homem, um dos traços fundamentais é essa «Confederação das Almas». O outro assenta numa errância permanente, numa procura desmesurada até atingir o fio do horizonte, que, por sua vez, é inatingível. Concorda com a minha análise? Esses nomes de que falou foram fundamentais nesta construção?

A sua análise tem uma certa razão de ser. Eu preferia falar de funções. Se pensarmos bem, essas pluralidades através das quais nos exprimimos e frequentamos, são as diferentes funções da vida. Num escritor exprime-se com vários livros, várias temáticas; não só com os diferentes personagens mas também com as várias atitudes. É uma espécie de salto nas trevas porque não sabemos onde nos vai levar. É uma ideia arbitrária, e é a minha, de que é este o fascínio da literatura: cada livro é uma coisa diferente. A pior imitação que podemos fazer, ou influência que podemos ter, é de nós próprios. Há pessoas que escrevem sempre o mesmo livro.

 

Não há um fundo de verdade nisso?

Acho que não. Há umas coisas básicas, claro, mas há pessoas que é como se tivessem aprendido uma receita de cozinha: são sempre os mesmos ingredientes e sabem ligá-los muito bem. As pessoas que se sabem imitar muito bem são os maneiristas. Há uns maneiristas de altíssimo nível. Eu gosto mais dos autores, dos pintores que tentam sempre uma aventura nova, mesmo que seja um falhanço.

 

É apologista da imperfeição?

Quando como fico cheio de manchas na camisa.

 

Agora não tem nada.

Era para dizer que não conseguiria conceber uma literatura depurada, perfeita.

 

Consegue dar um exemplo de uma obra imperfeita de que goste particularmente?

Mais do que imperfeita, prefiro falar de literatura com manchas na camisa. Poderia ser uma lista muito grande. O próprio Pirandello de que falávamos; o italiano dele é muito marcado pelo siciliano, não é o italiano que se adopta para se ensinar nas escolas. Sou capaz de gostar mais do português do António Nobre, que parece menos impecável para servir de paradigma nas aulas de liceu. Mas são só os meus gostos. E os gostos... non est disputando! (Do latim: De gustibus non est disputando - Os gostos não se discutem).

 

Estudou muito o latim?

Sim, no liceu, na faculdade. Os meus estudos foram clássicos.

 

No ano de intervalo, entre um e outro, foi para Paris. Como foi essa decisão?

Inscrevi-me como Ouvinte Livre nas aulas de Filosofia da Sorbonne. Era mais um álibi para os meus pais. Ia de vez em quando; mas gostava mais de ir ao cinema. Aqueles cineclubes de Saint Germain onde se podiam ver filmes de vários países do mundo... Paris era uma janela sobre o mundo inteiro.

 

No princípio dos anos 60?

63.

 

O cinema foi uma descoberta? Ou já era um fã?

Por acaso o filme que me enviou a Paris, que teve uma certa responsabilidade, foi «La Dolce Vita» de Fellini. Quando era criança as primeiras emoções vêm com o cinema, não vêm com a leitura. Ia ao cinema com os meus pais e o meu tio; tinha dez, onze anos, ou menos. Era o momento do grande neo-realismo italiano, do De Sicca, do Rossellini, etc.

 

Iam em família, como no «Cinema Paraíso»?

Anda perto. É uma imagem um pouco adocicada para os americanos verem e gostarem. Na minha infância era o pós guerra de um país que tinha sofrido muito. Era a primeira vez que os italianos podiam ver a imagem do seu país, que tinha sido proibida durante 22 anos pelo fascismo. Os meus pais tinham podido ver até então só os filmes dos telefones brancos.

 

Telefones brancos?

São as comédias que também se passavam aqui na época do Salazarismo: uma realidade virtual em que uma senhora anda de boquilha no apartamento, o telefone é branco e fala com o grande amor que vive em Londres.

 

Viu o «Alemanha Ano Zero» do Rossellini? É um filme muito cruel sobre os efeitos da guerra numa cidade e num país completamente devastados. Na Itália não seria tanto; mas não foi por acaso que o filme foi feito por um italiano.

Também era devastada, muito. Sobretudo nas cidades, que tinham sido bombardeadas.

 

Tem imagens vivas disso?

Quando nasci houve um grande bombardeamento sobre a minha cidade. Tenho recordação das cicatrizes que ficaram até, pelo menos, 1950. A reconstrução da Itália foi lenta e feita com certo esforço. Lembro-me perfeitamente de ir para a escola e ver feridas enormes dentro da cidade, casas que ainda não tinham sido reconstruídas. Sabe, aquelas paredes... Um papel de parede do que foi um quarto, ou então uma banheira, e o resto não existe. Mas voltando ao cinema, as primeiras emoções vieram com esses filmes. Um miúdo da minha idade não podia perceber o que se passava, mas ao mesmo tempo sentia as emoções. Sentia electricamente na plateia, por exemplo. As pessoas reagiam, ou mandavam injúrias contra o ecrã, coisas assim.

 

Quando é que começou a vibrar com a Sofia Loren? Ou era mais a Silvana Mangano?

Um pouco mais tarde, já nos anos 60, naquilo que se chama o segundo neo-realismo. A Silvana Mangano, do ponto de vista da imagem feminina no cinema italiano, talvez tenha sido das mais bonitas.

 

Se gostou tanto do «La Dolce Vita», o tipo da Anita Ekberg não o seduziu?

Um momento, não gostei do «La Dolce Vita»; desgostei, que é diferente. Deu-me um grande desgosto, ou, pelo menos, provocou em mim uma profunda reflexão. É de 1960, eu vi em 61 quando acabava o liceu. É um filme extremamente cruel, mas mantém uma grande força. Cortava com uma faca em sentido vertical a sociedade italiana.

 

Não se encaixava naquele quadro do mundo?

Ou talvez me encaixasse sem o saber. Não sei, não quero ser arrogante e dizer que estava fora. O filme incomodou-me de uma forma construtiva. Deu-me curiosidade de conhecer outros panoramas.

 

Pelo que sei, o seu berço não encaixa naquele universo felliniano. Vivia numa cidade de província e não na capital; e a sua família era laica, antifascista, republicana.

A imagem que dava de um país era chocante, provocava um certo traumatismo. Desassossegava o suficiente para dizer «Vou dar uma volta, vou ver». Depois há outros desejos subterrâneos, que não são tão extravagantes, pertencem àquela idade.

 

Desejo de liberdade?

Liberdade e, sobretudo, conhecimento.

 

Porque arranjou um álibi para os seus pais? Eram opressivos?

Na lógica de todos os pais, um rapaz acaba o liceu e inscreve-se na universidade. Se não há uma grande necessidade urgente, uma guerra...

 

Foi à tropa?

O exército italiano achou melhor não pôr nas suas filas uma pessoa como eu! Gozei de uma privilégio que ainda tinha a minha geração: a avó que tivesse tido o único filho varão morto na guerra, o neto tinha o privilégio de não fazer o serviço militar. Ele aparecia, no registo civil, como único sustento da mãe e da avó. Era o contrário, porque a minha avó e a minha mãe é que me sustentavam. Mas oficialmente era assim. Além deste tio, que não conheci e se chamava António como eu, tinha outro tio que também morreu quando eu tinha 15 anos. Acompanhou-me durante a minha adolescência, era um grande amigo. Era um pouco o intelectual da família. Morreu num desastre.

 

Foi uma figura tutelar para si?

Sim. Graças a ele descobri o prazer da leitura. Eu tinha tido um desastre que me obrigou a ficar de cama, de perna estendida, muitos meses. Naquela época, tinha 13 ou 14 anos, a ortopedia e a medicina em geral não eram tão sofisticadas. Tive que ficar com muita paciência, e gesso! Conheci o aborrecimento, o tédio.

 

O que é que fazia?

O meu tio começou a dar-me livros. Ele gostava muito de autores anglo-saxónicos. O meu primeiro livro, que continua a ser o meu «Livre de Cheveux» é «A Ilha do Tesouro», que acho soberbo. Depois foi Kipling, Jack London, um certo Conrad, mais aventuroso e que podia entender. Foram as minhas primeiras descobertas.

 

Começou a desejar escrever e ser escritor?

Não. Não fiz ideia do que queria fazer até muito tarde. Debutei na escrita e publiquei o meu primeiro livro quando já era um homem bastante madurinho. Escrevi o primeiro livro em 73 e publiquei-o dois anos mais tarde. Escrevia porque gostava, para me divertir. O prazer da escrita é fundamental; mas sem pensar em vir a ser escritor. Não era minha ambição.

 

Então era qual? Ser cineasta?

Não! Ser aquilo que sou agora, no fundo.

 

Ser professor?

Sim senhor!

 

Os meninos quando andam na escola primária querem todos ser professores.

Se está a falar dos meus sonhos infantis, teria gostado de ser astrónomo. Sempre sonhei com astronomia. O meu avô, na pequena quinta que tínhamos (não era bem uma quinta, porque dizer quinta em Portugal já é muito elegante; era uma pequena propriedade de uma pessoa que era pouco mais que um camponês), conhecia muito bem o céu. Lembro-me das noites de Verão, na eira, e das coisas que me contava. Isto depois fecunda a imaginação de um miúdo, mas não passa de um desejo infantil. Quando voltei de Paris e fiz os meus estudos clássicos e filológicos na universidade, o meu interesse era, não digo ser professor universitário como viria a ser, mas estudar. Pelo menos, posso dizer-lhe que não tinha ambição de vir a ser escritor. E foi um acaso. Escrevi o romance em 73, a minha mulher estava à espera do nosso segundo filho. Era um Verão, fazia um calor bastante grande na cidade, em Florença. Estava a fazer-lhe companhia porque não podíamos ir para lado nenhum e comecei a escrever um romance, o «Piazza de Itália», para passar o tempo.

 

Escreveu-o para ela, para lho ler?

A ela é dedicado, e aos meus filhos. Ficou aí porque não pensava efectivamente em publicar. Um dia veio jantar um amigo meu que naquela época dirigia uma casa editora. Viu em cima da mesa umas folhas e, como era curioso, perguntou: «O que é isto?», «É uma coisa que escrevi», «Então vou levá-lo». E pronto.

 

É um acaso espantoso. Não sei até que ponto acredita no acaso...

Às vezes as coisas estão aí à espera de alguém que as descubra. Telefonou-me a dizer: «Vou publicá-lo», «Está bem». Publicar significa tornar público um pensamento, uma maneira de ser, uma ideia. Já não fica para as paredes domésticas. A responsabilidade deste acto só vem depois.

 

Trata-se também de pudor? Justamente porque as partes íntimas deixam de estar confinadas às paredes domésticas.

Nos meus livros falo muito pouco de mim próprio e gosto mais de falar dos outros.

 

O que é uma excelente forma de defesa.

[sorriso] Eu também sou mais curioso dos outros que de mim próprio.

 

Ora.

Sim, gosto muito dos outros, e sou curioso. Aliás, conheço-me há 55 anos, quase.

 

A partir dos olhos dos outros vemos os nossos.

É um espelho.

 

Está farto, foi o que disse em surdina?

[risos] Acho que me conheço muito bem. De maneira que talvez seja mais interessante conhecer o outro. Talvez tenha a arrogância de me conhecer. Se calhar não me conheço e estou à procura de mim através dos outros. Mas enfim. Uma pessoa publica uma vez e depois...

 

Voltando à «Confederação das Almas». O seu eu hegemónico de há vinte anos não era seguramente o que tem agora. Portanto, essa coisa de se conhecer demasiado bem...

Não era. Mas não seria sequer aquele que foi ontem.

 

Considera que tem, pelo menos, duas vidas? Uma anterior e outra posterior à publicação.

Temos muitas vidas. Se penso nos livros que escrevi, é como olhar um álbum de fotografias da minha existência. Cada livro retrata a pessoa que era naquele momento e a relação que tinha com a vida de então, as pessoas de então. Sempre achei um perfeito disparate as teorias de um certo formalismo ou estruturalismo que pretenderia estudar o texto literário prescindindo completamente do ambiente em que nasceu e da pessoa que o produziu. Como se o texto fosse um balão que cai dos céus, uma dádiva dos deuses!

 

Mas consegue identificar o que mudou, se não estruturalmente pelo menos substancialmente, com o sucesso e a publicação?

Mudou pouca coisa. Não mudou nada.

 

Gosta de ser um escritor de sucesso?

Não sou, no sentido em que para ser um escritor de sucesso é necessário viver o sucesso. 

 

Viver o sucesso é andar de país em país a dar conferências e autografar livros?

É seguir a onda. E começar a fazer uma vida diferente da que fazíamos antes. Continuo a dar as minhas aulas, a ter escrito no meu passaporte «Profissão: Professor Universitário» e não «Escritor» (que não considero profissão). Não quis aceitar profissionalmente esta actividade que até pode ser extremamente importante. Isso defende-me das editoras, dos contratos, dos compromissos.

 

Há os mínimos, presumo que tenha de fazer apresentações de livros.

Não, não faço.

 

Podia vender muito mais. Não tem essa gula de ter mais pessoas a lê-lo e admirá-lo?

Não é porque seja uma pessoa sem apetites, seria estúpido dizê-lo. Todos nós queremos ganhar uns tostões a mais. Acho que apresentar um livro não aumenta nada as vendas. São as ilusões que têm os editores e a máquina editorial nas quais é possível não cair. Uma apresentação o que seria em termos numéricos?, não seria nada. É muito mais cómodo ficar em casa e não gastar tempo e paciência.

 

É uma maçada dar entrevistas?

Se as pessoas são simpáticas como é a menina, não.

 

Obrigada.

Há pessoas que são demasiado não sei quê e começo a ficar encolhido, encolhido, encolhido, e desejo que termine rapidamente.

 

É verdade que comprou o Pessoa num quiosque de Paris, foi lê-lo para Itália, e ficou de tal modo estarrecido que decidiu aprender minimamente a língua?

Mais ou menos. Desconhecia completamente o português, o mundo português, a cultura portuguesa e até a geografia de Portugal. Estava a voltar para Itália, depois da tal passagem de um ano em Paris. Comprei por mero acaso um livrinho que era a primeira tradução francesa, e acho que em todas as línguas, do Pessoa. Mesmo que naquela altura não tivesse uma grandíssima intuição ou cultura, suspeitei que aquilo era um grande, grande poema («Tabacaria»). Como acontece naquela idade, a uma descoberta como esta seguiu-se o entusiasmo. Pensei que seria interessante aprender um bocadinho a língua na qual este senhor escreveu o seu poema. Regressando à universidade vi que entre as várias disciplinas, no âmbito da Filologia Românica, havia a língua portuguesa. Comecei a estudar português e, meses depois, cheguei a Portugal.

 

Veio de mochila às costas? Não é fácil imaginá-lo, jovem de 20 anos, à descoberta de Portugal com o «Tabacaria» do Pessoa.

Então, se não consegue imaginar, tenho aqui uma fotografia! Era assim!

 

Tinha um bigode farfalhudo!

Cheguei aqui com um Fiat 500 comprado em segunda mão.

 

Comprado com o seu dinheiro ou o dos seus pais?

Um pouco, um pouco.

 

Trabalhava nas férias para ganhar uns trocos?

Passei o meu ano em Paris trabalhando. Lavava os pratos na «Cité Universitaire». Não quero magnificar as épocas, mas na altura, quando os miúdos saíam de casa e iam viver os seus caprichos, tinham de se manter com os seus próprios meios. Claro que os pais ajudavam sempre, mas lavar os pratos era a minha tarefa.

 

Era suficiente para sobreviver?

Mais ou menos. Ter pequeno-almoço, almoço e jantar na cidade universitária já não era mau. Depois havia outras maneiras de ganhar dinheiro: dar aulas de italiano e outras pequenas coisitas.

 

Então veio no seu Fiat.

500, Fiat 500! Era um carrinho óptimo, mas era preciso muita paciência porque aquilo não corria. Grão a grão, cheguei. E conheci a Maria José, por acaso.

 

Foi um amor à primeira vista?

Agora está a fazer-me perguntas muito mais pessoais e íntimas! Não, foi à antiga. Pertenço a uma geração em que os namorados escreviam cartas e trocavam ideias sobre livros.

 

Também pertence a uma geração que viveu a euforia do amor livre e cujos casamentos foram definhando pelos anos fora.

Em 63, a minha geração ainda mantinha formas de tratamento interpessoais que não previam aquelas euforias. Um rapaz conhecia uma rapariga e começava a ter com ela umas conversas, uma amizade intelectual, uma troca de impressões. No ano seguinte viria com uma bolsa. Resultei num bom aluno e deram-me uma bolsa. Depois a vida faz o resto, encarrega-se ela.

 

Em que língua fala com a Maria José?

Como calha. Quando estamos com os filhos normalmente falamos em português. O meu filho vive em Itália; a minha filha neste momento está a viver em Portugal. A língua na nossa família é um pêndulo, oscila. Quando conheci a Maria José falávamos em francês; não conhecia suficientemente o português para ter uma conversa decente.

 

Nestes 30 anos andou sempre cá e lá. Nunca pensou viver em Portugal?

Porque não? Já pensei muitas vezes nisso. Mas provocaria uma mudança radical na minha vida. Gosto muito de ser professor universitário.

 

Não poderia ser professor aqui?

Já fiz a experiência no Instituto Italiano de Cultura e é outra coisa. Gosto de estar com os meus alunos, é um oxigénio bastante importante, conviver com gente daquela idade.

 

Vêem-no muito como o escritor Tabucchi?

Procuro ser o mais profissional possível. Quando dou as minhas aulas, aí, fala-se de Gil Vicente e aquilo tem de ser uma aula de Gil Vicente. É verdade que sendo Siena uma cidade bastante pequena, como Coimbra, e com um perfil bastante universitário, quando o curso acaba há uma parte de convívio. Há raparigas e rapazes que querem que leia as coisas que estão a escrever e aí nascem outras discussões.

 

Sente o peso da idade?

Não excessivamente. Fisicamente não. Do ponto de vista das recordações, do calendário, as pessoas não podem evitar sentir a idade. Sobretudo quando pensam nas pessoas que conheceram e já não existem. Os mortos pesam muito na avaliação da idade. Mais do que na morte, que é uma ideia muito abstracta na qual pensam os filósofos, pensamos nos mortos.

 

É a dor dos mortos ou o medo da morte?

Não é o medo da morte. É a saudade, a nostalgia. É o facto de estas pessoas já não estarem cá, e nós gostaríamos que continuassem a estar. O que é a morte? É um desaparecimento, uma ausência. É constatar este espaço que já não é preenchido.

 

Nos seus livros há sempre mortos.

E fantasmas. O meu «Requiem» está cheio de fantasmas. Que são alegres.

 

É um devaneio muito prazenteiro.

É verdade. Há uma oscilação: às vezes dão melancolia, outras alegria. Recordar é uma forma de recuperação, mesmo que não seja corpórea e seja só memorial, também isso alegra-nos. Como se num instante, como por magia, a pessoa que não existe voltasse a existir. É este miserável milagre que nos é concedido a nós, humanos: recordar. E continuar a manter a vida ou fazer viver dentro de nós o que já não existe.

 

Trata-se também de cortar o cordão umbilical. Justamente no «Requiem» o momento mais esperado é um encontro com Fernando Pessoa. Aquilo que lhe diz é que andou a vida toda a aventar hipóteses sobre ele, e que estava agora cansado e precisava de se libertar.

Aquele eu (que diz «eu» no livro) não corresponde necessariamente ao António Tabucchi como pessoa. Há sempre uma modificação romanceada e romanesca que torna o protagonista muito diferente de quem o escreveu, embora possa haver partículas ou quocientes de autobiografia. É claro que a autobiografia nos escapa sempre; nós fechámos a porta e ela sai pela janela. Mas aquele eu não sou eu. Estamos na alteridade da ficção.

 

Tendemos a olhar para o personagem central, mais ainda naquele caso, como o alter-ego do escritor. Até porque presumo que seria uma felicidade incomensurável para si ter uma ceia com o Pessoa.

Ah pois claro!

 

Seria o presente da sua vida?

Isso não sei, poderia haver más surpresas. Muitas vezes, nós escritores, do ponto de vista humano somos uma desilusão terrível, sabe?

 

Numa entrevista recente, Salman Rushdie dizia que a maior parte dos escritores tinha uma vida desinteressante porque, ou bem que escreviam, ou bem que viviam.

Há uma grande diferença entre as vidas muito extrovertidas e cheias de aventuras que são próprias dos escritores do século XIX e as vidas pardas dos escritores do século XX que tiveram, pelo menos aparentemente, vidas muito pouco interessantes ou mesmo desinteressantes.

 

Encontra alguma justificação para isso?

Não sei, seria necessário ser um sociólogo da literatura. Já nos séculos antigos, Camões tinha perdido um olho nas batalhas e salvo «Os Lusíadas» do naufrágio. O Schiller, o Byron, o D’Annunzio, toda esta gente, umas vidas extremamente agitadas. Joyce foi professor em Trieste e depois em Zurique, mais nada. Pessoa? Tradutor de cartas comerciais!, uma espécie de Bernardo Soares (seu semi-heterónimo e guarda-livros). E o Kafka? Empregado de escritório de uma companhia de seguros. As vidas deles são do mais banal possível. Mas não. As vidas interiores que tiveram é que são enormes. Se se põe a ler o diário íntimo do Kafka, que não teve uma vida prática de grande interesse, é que descobre uns abismos, uns universos, muito mais interessantes que o D’Annunzio que andou a pelejar para aqui e para lá. Então, como é que é? Como se pode sanear esta contradição? É difícil.

 

Como dizia o Freud, há esse infinito inconsciente.

Se calhar podemos dizer que no século XX, a vida imaginária, a vida virtual, a vida interior, é mais larga e mais importante que a vida exterior que se vive todos os dias.

 

Quanto à sua vida. Não corresponde ao italiano típico, que esbraceja e é muito extrovertido. Parece mais o português típico, melancólico e quase solipsista.

O italiano típico não existe, como não existe o português típico. É um paradigma normalmente apanhado no cinema e que acaba por ser uma caricatura que sobe um bocadinho de oitavas. Itália é um país mesclado e com proveniências culturais completamente diferentes. Vivi uma vida que não escolheu como umbigo e ponto referencial a cultura do seu país. Talvez esse facto me possa dar as características que me tornam diferente de um italiano segundo o qual Roma ou Florença, a Renascença italiana ou Dante são o umbigo do mundo. As minhas raízes, não quero renegá-las, mas também sei que é tudo relativo. Se lá há um Ariosto, aqui há um Camões. O sentido relativo significa não ter ficado sempre aí, agarrado à imagem paterna ou materna e pensar que o mundo é todo diferente. E é todo igual. [sorriso]

 

Considera-se solipsista?

Não. Detesto a solidão. Seria um escritor incapaz de fazer de si próprio o objectivo e objecto da sua escrita. Gosto mais de observar gestos alheios que escrever uma auto-análise. Acho mais interessante ver se a vizinha saiu, está a dar as migalhas aos pombos, se a neta chegou.

 

Não há uma aparente incongruência quando se pensa em Pessoa como a obra da sua vida? Ele sim, era tremendamente solipsista.

O Pessoa passou a vida a inventar vidas alheias, a criar personagens, como o Balzac fez de uma outra maneira. Cada personagem dele é um protótipo, deve corresponder a pessoas que conheceu. Talvez devesse dizer que o Pessoa é um autor muito importante, sim. Mas não é o autor da minha vida.

 

Ah não?

Foi um autor que privilegiei no sentido que foi o autor que ousei traduzir para italiano e sobre o qual tive também a ousadia de escrever os meus ensaios. De um ponto de vista do alimento poético, há outros autores que estão no mesmo plano e me forneceram inspirações e emoções que não são inferiores às que o Pessoa me deu.

 

Por exemplo?

Montale, Kavafis, Emily Dickinson. Há encontros na literatura que uma pessoa entranha e ficam-lhe cá dentro. Mesmo que não haja uma frequentação tão contínua como tive com o Pessoa, é um alimento substancial.

 

A imagem que se tem de si é, então, algo redutora: a de um italiano que chegou a Portugal e se apaixonou por Portugal através de Pessoa.

Mas isso está certo; uma coisa não exclui a outra. Como dizia o Pessoa, tudo vale a pena se a alma não é pequena. Dentro de mim não cabe só o Pessoa.

 

Qual o heterónimo de Pessoa com que se identifica mais?

Não sei.

 

O Álvaro de Campos talvez lhe fosse bem; é um niilista.

E de uma ironia muito cortante. Gosto muito do Bernardo Soares, também. Foi capaz de fazer metafísica nas barbearias!, não é fácil.

 

No essencial é o que acontece nos seus livros: há vulgaríssimas tramas policiais para, por detrás delas, desenvolver e apresentar teorias filosóficas (a «Grande Norma» ou a «Confederação das Almas»). Como se a salvação do homem estivesse na força das ideias. Acha que o homem tem salvação?

Diria que tem esperança de salvação, que é diferente, e que é bom ter. É como dizer: «Eu não sou pessimista, sou um falso optimista», seria o mesmo paradoxo. Acho que sou uma pessoa alegre.

 

Alegre?

Sim. E depois, todas as pessoas alegres têm as suas partes melancólicas.

 

Porque esconde tanto a cara ou as expressões ou os sentimentos com as mãos e raramente olha nos olhos a pessoa com quem está a falar?

Por timidez, talvez. E por miopia, porque sou muito míope. Agora tenho uns olhos um bocadinho fracos. Também é a idade; estávamos a falar da idade, está a ver?

 

Também é por causa da idade que põe essa boquilha que corta a nicotina?

Não, isso é um álibi psicológico. É obvio que não serve para nada. Dá só a sensação que estamos a domesticar o cigarro, mas o veneno entra na mesma.

 

Contrafóbico?

Sim. Como dizer, uma pequena mania. Como tantas que nós temos.

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2002

António Tabucchi morreu em  2012

 

 

João Luís Barreto Guimarães e Jorge Sousa Braga

03.11.24

João Luís Barreto Guimarães nasceu em 1967, é cirurgião plástico e reconstrutivo. Você está Aqui, o seu livro mais recente, acabou de ser lançado. Não foi esse, mas o anterior, Poesia Reunida, que mereceu uma recensão no Times Literary Supplement. 

Jorge Sousa Braga nasceu em 1957, é ginecologista e obstetra. Editou um Novíssimo Testamento em 2012. O primeiro livro, De Manhã Vamos Todos Acordar com uma Pérola no Cu, data de 1981.

São amigos. Fazem poesia como quem vive.

Vivem no Porto. Têm uma amizade que parece existir desde sempre, mas que existe desde o livro que João Luís ofereceu a Jorge, ou, antes disso, desde a poesia de Jorge que seduziu João Luís. Têm um blogue de poesia (Poesia Ilimitada). Partilham livros e autores ignotos, verdadeiros tesouros. São médicos de diferentes especialidades que encaram a medicina de um modo semelhante. São da tribo de Manuel António Pina e de Eugénio de Andrade. Ainda estão a recuperar da orfandade.

Escrevem em cafés. Cada vez menos.

A entrevista era para ter sido num café. Uma grávida e uma criança urgente trocaram as voltas à tarde e à geografia. Acabámos na casa de Jorge. Chovia muito, mas não estava triste. Nesse dia, era lançado o livro de João Luís. O que disseram, disseram como nos poemas: rente à vida.

 

Dá-se a coincidência de nos encontrarmos exactamente um ano depois da morte da poetisa polaca Wislawa Szymborska. A celebrar a poesia. Que coisa é esta de os polacos terem tão bons poetas?

Jorge Sousa Braga – Cheguei à poesia polaca através do Zbigniew Herbert. Dizem que o prémio Nobel, quando foi atribuído à Szymborska, era para ser atribuído ao Herbert. Mas morreu entretanto. Tanto um como outro são poetas excelentes. Tenho pena de não saber polaco.

 

Faz versões a partir da tradução inglesa. Aconteceu isso com Escolhido pelas Estrelas, antologia poética de Herbert (2009).

Jorge – Na Polónia, durante anos, eram maiores as edições de poesia do que as edições de romance. Uma coisa inconcebível em qualquer outro país. 

 

O que é que aprendeu com Szymborska?

João Luís Barreto Guimarães – Muita coisa. Cheguei à poesia polaca por causa do Jorge. Por causa do Herbert. Acerca da ética que deve acompanhar um poeta, diz num verso: “Deverás ir tranquilo ao teu próprio funeral”. Herbert desempenhou diversas profissões. Chegou a vender o próprio sangue para ter dinheiro para comer.

Na poesia de Szymborska, gosto muito do desenvolvimento lógico do poema. Tem um plot interno, o mais das vezes surpreendente, e tem falsos finais.

 

Fala de um poema como quem disseca um corpo.

João Luís – Aprende-se muito a ler poesia. Se me perguntassem que conselho daria a um jovem autor seria: ler. Ler e copiar. Philip Larkin diz na sua biografia que o primeiro livro foi escrito na mesa da cozinha a copiar poemas do T.S. Eliot e do Yeats. Copiar roubando, como gostava de dizer o nosso querido [Manuel António] Pina.

 

Roubar?

Jorge – Tenho andado a traduzir um poeta místico indiano, o Kabir, que teve a sorte de ser traduzido para inglês pelo poeta indiano Rabindranath Tagore (prémio Nobel no início do século). Há um poema do Kabir que fala de um cisne. Deve ter sido tanto o impacto que aquilo fez no Yeats que este escreveu um poema sobre um cisne.

João Luís – Como se costuma dizer, roubou bem. Os maus poetas imitam, os bons poetas roubam.

 

A improbabilidade que é encontrar na mesma cidade, e na mesma profissão, alguém que se interessa pela poesia polaca ou indiana... Como é que se conheceram?

Jorge – Encontrámo-nos nos corredores do hospital de Santo António. Tanto o João Luís como eu temos uma visão da poesia não como carreira, mas como destino.

João Luís – Já tinha lido coisas do Jorge, mas não fazia ideia que trabalhava no hospital onde eu estudava. Um dia fui ter com ele aos corredores esconsos da ginecologia. Eu estava a começar, tinha um livro publicado. Achei-o extraordinariamente acessível – para poeta.

 

Os poetas são inacessíveis?

Jorge – Ele tinha a visão do Eugénio de Andrade.

João Luís – O Eugénio era uma pessoa a quem se ia bater à porta e que nem sempre abria a porta.

 

O Jorge escreveu um poema a Eugénio, no primeiro livro (1981).

Jorge – O poema chama-se Carta de Amor. Foi decorado por um amigo meu que fez daquilo um pergaminho muito dúbio... Bati à porta, entreguei-lhe. Passadas duas ou três semanas recebi um telefonema a convidar-me para ir lá a casa. Tinha ficado completamente apanhado pelo poema. Tive de pôr as coisas... nos seus pratos! [riso]

João Luís – No poema o Jorge mata-o com uma bala de pólen. Uma coisa um pouco edipiana.

 

Como é que conheceu Eugénio?

João Luís – Através de gatos. A minha mãe era criadora de gatos persa. Eu andava a recolher poemas sobre gatos (de Baudelaire a Eliot) para a antologia Assinar a Pele (2001). É um livro que tem na capa um desenho de Vieira da Silva sobre “o gato” Mário Cesariny. A minha mãe disse ao Eugénio que tinha um filho que estava a fazer uma antologia de poemas sobre gatos. Ele, com um ar distante – e isso responde à pergunta de há bocado –, respondeu: “Ele que me apareça”. Apareci. Escreveu um poema que começava assim: “Contigo chegam os gatos”. Passei longas tardes em casa do Eugénio, a escolher poemas. Só me dava um poema de cada vez. [riso] Voltei e voltei e voltei. E fiz a antologia, que dediquei ao Eugénio e à minha mãe.

 

O poema que no seu último livro, Você está Aqui (2013), dedica ao Jorge...

João Luís – ... não por acaso fala de gatos e de Veneza. O Jorge tem um livro que se chama Plano para Salvar Veneza (1981). É uma cidade-metáfora para falar de um certo estado do mundo. O que está emergente no plano para salvar Veneza é a ameaça de Veneza submergir. A amizade não se explica, não é? O gato não será o Jorge. Mas diz-se que os gatos são poesia e os cães são prosa.

Jorge – Se vir a quantidade de fotografias de poetas com gatos...

João Luís – O Manuel António Pina teve dezenas de gatos.

 

O Eugénio e o Pina são uma filiação central vossa?

Jorge – Eram os poetas que estavam acima. Há sempre um desejo, em quem começa a escrever, de mostrar os poemas a alguém conhecido. Isso, que aconteceu comigo, tinha acontecido com o Eugénio e o António Botto.

João Luís – O Eugénio não mostrou ao Fernando Pessoa porque não pôde. Eu acrescentaria o Egito Gonçalves. Foi visionário deste nosso interesse pela poesia de Leste. Uma poesia mais concreta, pragmática, escorada nas coisas quotidianas e com um leve pendor político. Publiquei na Linear, a editora dele, onde o Eugénio chegou a publicar, o meu segundo e terceiro livros.

 

E o Pina?

Jorge – Conheci-o no [café] Piolho, que era onde se conhecia toda a gente, assim que cheguei ao Porto. Tenho imensa pena que ele se tenha ido.

João Luís – O Jorge escreveu uma coisa muito bonita, quando ainda era vivo. Diz que com a morte do Eugénio de Andrade o Pina, sem se ter apercebido, e mesmo sem querer assumir esse papel (era de uma modéstia impressionante), tornou-se o chefe da tribo.

 

Falem-me da procura do reconhecimento daqueles que admiravam. Primeiro, o Eugénio, depois, o Pina. Era, mais do que tudo, a procura de um interlocutor?

Jorge – Talvez as duas coisas. Falávamos de imensas coisas. Fundamentalmente falávamos de poesia.

João Luís – Embora com o Pina se pudesse falar de Física Quântica, da sogra dele, da hemodiálise... tudo ao mesmo tempo.

Jorge – Mas a poesia estava sempre lá por baixo. Em relação ao Eugénio, conseguia que me emprestasse os livros. O que não era uma atitude frequente. Habitualmente fotocopiava e devolvia no dia seguinte. Li assim muitos poetas chineses e japoneses que eram difíceis de encontrar. Primeiro, não tinha dinheiro, segundo, não havia a Amazon.

 

Daí também a importância destas figuras tutelares. Tinham os livros na estante. A Amazon e a internet em geral modificaram o funcionamento da tribo?

Jorge – Sim, porque permitiu um acesso simples a poéticas às quais, há uns anos, era difícil chegar. Pedia-se na [livraria] Leitura, demorava uns meses e era caro.

João Luís – Espera-se o reconhecimento (ouvir o outro dizer: sim, senhor, está bem feito). E há o sonho de superar o mestre. Não se mostrava, e hoje não se mostra, a toda a gente. Mostra-se aos poetas que têm um espírito crítico. O Ezra Pound dizia: “Make it new”. Ou seja, sempre que fores fazer, faz diferente, faz novo.

Não posso falar por mim, não seria correcto. Mas no caso do Jorge gosto cada vez mais de cada livro que faz. A poesia recente tende para o silêncio, para uma economia extrema, para a gestão de um equilíbrio instável entre o belo e o feio, o sublime e o escatológico, a palavra e o silêncio. Não é por acaso que mencionou o gosto pela poesia oriental, pelos haikus.

 

A proximidade do Jorge ao silêncio e à economia, nomeadamente da poesia oriental, está, por exemplo, no interesse pelos haikus de Matsuo Bashô, que traduziu em 1985 (O Gosto Solitário do Orvalho).

Jorge – O meu interesse pela poesia oriental vem de longe. Acho que já me perdi...

João Luís – O que é bom, em poesia: perdermo-nos.

 

Veneza é um bom cenário para isso. É um labirinto e uma cidade ameaçada de submersão.

João Luís – E sem fio de Ariadne [o fio que Ariadne devia desenrolar à entrada do labirinto para encontrar o caminho de volta].     

 

Qual é o fio? Há fio? É a poesia?

João Luís – Há. Há um fio condutor: o da família poética que se vai desenhando. No fundo, o fio que estamos a deixar escrito nesta entrevista com certos nomes. Ler poesia e escrever poesia é tanto o que se escolhe como o que não se escolhe. Há uma afinidade, uma ligação.

 

Vamos à biografia. Querem fazer um auto-retrato poético? A biografia importa para compreender o vosso percurso?

Jorge – Acho que importa. Somos a soma de tudo aquilo por que passámos e que fizemos. Sou filho de um pequeno alfaiate de província, que, quando eu era pequeno, me lia os poemas do Guerra Junqueiro. Sabia O Melro (ou A Velhice do Padre Eterno) de cor. Talvez isso tenha sido fundamental (mesmo que já não me lembre de ler um poema do Guerra Junqueiro) no interesse que revelei pela poesia.

O meu pai, como os alfaiates, trabalhava em casa. A presença do meu pai e da minha mãe: era 24 horas por dia. Às vezes, punham-nos a fazer coisas. Ou punha-se o meu pai a dizer coisas. Era sobretudo uma maneira de nos entreter quando chovia. Somos quatro rapazes. Coitada da minha mãe.

 

Foi para um seminário.

Jorge – Era a única hipótese que havia, para quem vivia no interior, de continuar a estudar. Já o meu irmão tinha ido. Fui com nove anos, para Viana [do Castelo]. Estive até ao quarto ano. Acabei por sair por manifesta falta de vocação. Foi uma experiência importante. Ainda faço um exame de consciência. [riso]

João Luís – Será que o José Tolentino de Mendonça te perdoa isso? Teres saído do seminário! [riso]

 

Quando é que foi claro que queria ser médico e poeta? Foram sempre dois caminhos a correr em paralelo.

Jorge – Quando tinha oito anos, entrou em casa o padre da minha aldeia. O meu pai estava a cortar fatos. O padre perguntou-me o que é que gostava de ser quando fosse grande. “Gostaria de ser médico.” “Médico de vacas, galinhas?” “Não, quero ser médico de mulheres! Para lhes ver as pernas.” Deu-me uma moeda de 25 tostões, o padre, o que era significativo.

João Luís – Acertaste na resposta!

 

E a poesia?

Jorge – Por volta dos 13, 14 anos aconteceram as primeiras tentativas mais consistentes. Pelos 15, 16 anos, a coisa começou a bater mais fundo.

 

Isso deveu-se a quê? Ao que leu? Foi muito marcado, numa primeira fase, pelos poetas da Beat Generation.

Jorge – A poesia começou a impor-se na minha vida. Há muitas maneiras de uma pessoa se relacionar com o mundo. A mim calhou-me esta. Foi uma série de leituras. O Álvaro de Campos. Ainda não havia o boom Pessoa. Havia meia dúzia de livros na biblioteca do liceu Sá de Miranda (umas edições antigas da Ática). Foi a leitura do Rimbaud, do Walt Whitman. Os primeiros poemas que publiquei saíram no Jornal de Notícias.

 

No seu último livro, O Novíssimo Testamento (2012), faz uma pastiche dos grandes mitos da cultura bíblica. Anos e anos depois do seminário regressa a esse lugar de partida.

Jorge – Não me esqueço dos quadros que havia no sítio onde tínhamos aulas de catecismo. Ilustrações do inferno. O diabo com uma forquilha e o pessoal no meio das chamas. Vem tudo daí. Talvez tenha ficado um certo pendor místico... A maioria das traduções que tenho feito são de poetas místicos. Traduzi os poemas da Mirabai e agora estou a traduzir o Kabir. No fundo, é poesia de amor.

 

João Luís, biografia sumária?

João Luís – Há diferenças entre nós que resultam da diferença de idade. Este movimento do campo para a cidade, no meu caso, foi feito pelos meus pais. Já sou um filho da Avenida da Boavista. Nesse aspecto, sou absolutamente privilegiado. Não deixei de tentar exprimir a minha rebelião, apesar deste berço de classe média-burguesa, ao escrever, nos primeiros três livros, sonetos. Aparentemente são uma forma clássica, bem comportada; mas revoluciono os sonetos por dentro, o que os transforma num objecto mais pós-moderno. Há uma dissociação (e o jogo também é esse) entre a forma e o conteúdo.

O meu primeiro poema foi escrito com 15, 16 anos e deixou uma profunda tristeza na minha mãe. Completei o poema com umas rimas à moda do António Gedeão (que, não por acaso, existia lá em casa, porque a minha mãe era professora de Físico-Química.) Escrevi os primeiros poemas de Há Violinos na Tribo (1989) no primeiro ano da faculdade, com 20 anos, por aí.

 

Foi uma edição de autor.

João Luís – Foi, patrocinada pelo meu pai, e impressa na gráfica Firmeza da Rua da Boavista [riso]. Fui lá buscar os 120 exemplares, em casa coloquei-os em cima da cómoda. Pensei: o que é que vou fazer com isto? A Inês Lourenço, que dirigia os Cadernos de Poesia – Hífen, disse-me: “Vai fazer o que toda a gente faz: enviar alguns livros à imprensa...”. Entreguei um ao Egito Gonçalves, que passou a interessar-se pela minha poesia.

Jorge – Que visão é que o teu pai tinha da tua poesia?

João Luís – [breve silêncio] Nunca soube muito bem. Ele tinha orgulho. Mas não tenho a certeza que a compreendesse e me compreendesse. No entanto pagou integralmente a edição do primeiro livro. Portanto percebeu que havia qualquer coisa.

Jorge – Esqueceste-te de dizer que o teu pai era nefrologista. Foi o meu primeiro chefe de equipa de Urgência.

João Luís – No livro A Parte pelo Todo (2009) falo muito sobre ele num processo de luto.

Jorge – Tens um poema fabuloso logo à entrada...

João Luís – “Foi ele quem me a apresentou. Pétrea/ nívea/exangue. Meus lábios: à face da morte./ Nunca a/ tinha beijado antes.” A primeira vez que beijei a morte foi na face do meu pai. Quando, noutro poema, digo que o fato era austero, estou a falar do meu pai. Quando digo que não tem nódoa nem mácula, estou a falar do meu pai. Quando falo das unhas dos pés e digo que têm uma têmpera dura, com personalidade vincada, estou a falar do meu pai. Não se diziam as coisas directamente. Um dia, sobre outro poema, a minha mãe disse-me assim: “O teu pai gostou muito do teu poema”.

 

O seu pai gostava do que escrevia?

Jorge – Sim, sim. E chegou a vir [da aldeia] para assistir a algumas leituras de poemas.

 

Ele estimava sobretudo o poeta? Estimava a ascensão social conseguida pelo médico?

Jorge – Ele estimava fundamentalmente o filho. Sobre a ascensão social: não fomos criados nessa perspectiva. Nasci antes do 25 de Abril. Sei o que é a exclusão social. Nunca esqueci o sítio onde nasci, de onde vim, e espero nunca esquecer.

 

Porquê?

Jorge – Porque durante um tempo lutei por coisas que agora vejo que estão a ser postas em causa, e eventualmente o regresso de coisas que eu pensava que nunca mais poderiam regressar.

João Luís – Uma palavra que está muito presente na poesia do Jorge é “raízes”.

Jorge – Para o meu pai, sempre que saía um livro, era uma festa. Talvez tivesse a ver com muita coisa que gostaria de ter sido. O meu pai nasceu de mãe solteira, nunca viu um tostão da herança do pai (estava na banco do Minho, que faliu!). Acabou a quarta classe quando eu tinha 13 anos e precisou de tirar a carta. Começou a trabalhar como oleiro, foi aprender relojoaria. Na minha infância havia em casa relógios de cuco, que eu adorava, e ainda adoro.  

 

Era um homem sensível?

Jorge – Muito sensível. Há muitas coisas que herdei dele. Tinha preocupações que eram pouco frequentes em pessoas da idade dele e que viviam nas circunstâncias em que vivia. Foi revolucionário, na aldeia, o modo como apostou nos filhos.

O João Luís faz uma coisa brilhante: fala das coisas do dia a dia, da escova de dentes..., fá-lo de uma maneira que é dele. Conquistou essa voz progressivamente.

 

A voz do Jorge é também nítida. Em títulos como De Manhã Vamos Todos Acordar com uma Pérola no Cu (1981), Os Pés Luminosos (1987), ou um poema que diz: “Estou mesmo a precisar de uma injecção de essência de rosas”. Alguém o ensinou a olhar para a vida com uma atitude poética? O “poetar” ensina-se?

João Luís – No meu caso, esse trajecto surge muito pela minha mãe. É a pessoa que queria conhecer o caminho que São Paulo fez na Turquia, que tem uma memória enciclopédica sobre a santa e o presépio que viu na igreja de São Roque há não sei quantos anos.

Jorge – O teu gosto pela pintura vem da tua mãe?

João Luís – Vem pelo lado das antiguidades. A minha mãe é de Guimarães. Era de uma família humilde mas convivia com meninas que viviam em casas brasonadas, onde o gosto pelas antiguidades estava presente. Desenvolvi este gosto pela pintura porque tive a possibilidade de viajar. Fizemos férias em caravanismo durante 15 ou 20 anos. Conhecemos a Europa e o norte de África, fomos até onde se podia ir. Cinco semanas, todos os Verões, visitando os estilos arquitectónicos das igrejas europeias, os museus. O meu pai apreciava silenciosamente. Era muito introvertido. A minha mãe completava-o e era a banda sonora do casal. Todos esses passeios eram feitos a ouvir música clássica, todos os grandes compositores.

Houve uma educação musical e artística que, sem ter sido sistemática, foi algo que identifico hoje na minha poesia. Foi fragmentada, funcionando por justaposição e por colagem.

 

Mais do que tudo incutiu-lhe uma sensibilidade no olhar?

João Luís – Educou-me o olhar. Tirei o curso nas Biomédicas e fiquei muito satisfeito ao ver a frase do professor Abel Salazar: “Um médico que só sabe de medicina nem de medicina sabe”. Cultivou [esta máxima] juntamente com outros vultos, como o Prof. Corino de Andrade, o Prof. Nuno Grande. Médicos que percebiam que a vida não se esgotava no tratamento dos doentes.

Gostamos do que fazemos, já operámos juntos; o Jorge fez um procedimento ginecológico e eu fiz um procedimento reconstrutivo, na mesma doente.

Jorge – O João Luís é um escultor de mamas. [riso]

 

Num dos poemas do último livro fala das mamas da dona Ana. “Maduras (qual par de mangas) de entre elas saíam/ coisas extraordinárias/ (notas de 5 para os netos/ lenços bordados no Minho) uma ou/ outra medalha do mau génio/ do marido”.    

João Luís – É um poema sobre a violência doméstica.

 

Diz que a dona Ana ficou livre de perigo...

João Luís – ... quando o marido se pôs a andar. (Estamos a saltar de assunto para assunto, mas...) Impressionam-me muito as doentes mutiladas. As amazonas, guerreiras, auto-mutilavam-se. Mutilavam o tórax para melhor poder segurar na arma com que atacavam. Estas são amazonas involuntárias. Nós, cirurgia oncológica, somos obrigados a mutilá-las, porque têm uma doença. Segue-se toda uma via crucis pela qual passam, e que muitas vezes passa por perderem o apoio do companheiro. Muitas vezes a doença surge também na outra mama, e surge muito rapidamente, devido à agressividade da patologia. “Num ano/levou-lhe a outra [mama] e outra [mulher] levou-lhe/ o marido (ainda há mulheres com sorte:) está/ enfim livre de perigo”.    

Não sei se isto acontece com as mulheres, quando os maridos têm doenças. Mas quando as mulheres têm doenças, muitos maridos não conseguem suportar a mutilação e acabam por, mais velada ou menos veladamente, abandoná-las.

 

Prossigamos com a medicina e com o modo como ela se intromete na vossa poesia. Ocorreu-me um poema do Jorge no qual fala da histerectomia (retirada do útero) da mãe.

João Luís – Estava a adivinhar que ia falar desse poema: “Vi passar a minha primeira casa”. O útero.

Jorge – A minha mãe tinha um prolapso uterino e precisou de resolver o assunto. Foi operada no serviço onde eu trabalhava. E acabei por ver passar o útero, num saco, num Tupperware.

João Luís – Cá está: o belo e o escatológico.

Jorge – Eu já tinha feito uma série de histerectomias e nunca me tinha feito impressão nenhum. Aquela [a vida uterina] é a fase misteriosa que define em grande parte o que vamos ser e da qual não temos memória.

 

Fale-me mais disso, de se sentir do lado de dentro da vida e não no lugar do espectador, do que está na mesa de café a escrever. A sua especialidade é ajudar mulheres que têm dificuldade em engravidar.

Jorge – E em seguir a gravidez [dessas]. Corro de um lado para o outro. A pôr os embriões dentro do útero, e a fazer o parto de outros. Tenho a sorte de trabalhar numa área que é extremamente poética.

João Luís – O Jorge seguiu a minha mulher. O que me fez escolher cirurgia plástica foi uma cirurgia em concreto: a de uma doente em quem foi utilizada a pele e a gordura abdominal para reconstruir uma mama. Como é que a doente tinha em si recursos suficientes para tirar de um lado onde estava em excesso e colocar noutro sítio onde estava em falta?  

 

É essencialmente isso que faz, a reconstrução mamária em mulheres que foram vítimas de doença cancerígena?

João Luís – Faço muitas outras coisas. Traumatizados, no serviço de urgência. Queimados. Alguma estética. Aumentos mamários. Já tenho seguido alguns casos clínicos na estação de serviço! [riso] Doentes que não aparecem na consulta e cujo resultado tenho a possibilidade de observar [nas revistas cor de rosa].

Estava a falar do estar dentro da vida... Fazendo novamente a ponte com a poesia: lemos praticamente tudo o que nos vem parar às mãos. Esta poesia, esta família que estamos a traçar, e outra, mais abstracta (o Pound dizia: go in fear of abstractions; fujam da abstracção – e eu acrescento: da generalização)... O Jorge escreve sobre as árvores dos jardins do Porto, sobre os semáforos...

 

“Ao menos os teus olhos/ permanecem verdes/ todo o ano” (do livro Plano para Salvar Veneza). A luz do semáforo muda, a dos olhos, não.

Jorge – Era o semáforo da Rua de Santa Catarina.

João Luís – Só concebo a poesia que está dentro da vida e que escreve de dentro da vida. Os poemas acabam por ter uma série de substantivos onde o leitor se pode ancorar. O poema está de facto a dizer qualquer coisa. Não é um chorrilho de palavras que se sequenciam umas às outras. Acho que o Jorge também não gosta nada desse tipo de poesia.

Jorge – Pois não.

João Luís – Da poesia que não comunica, que é feita de costas para o leitor. A minha família poética (independentemente do gosto que partilhamos pela poesia de Leste, polaca, húngara, russa, até escandinava) é mais anglo-saxónica. A do Jorge é mais francófona. Tem a ver com as gerações. O Jorge é o poeta que traduziu Apollinaire. Que gosta de André Breton. Que leu todo o René Char. Que adora Charles Baudelaire. Eu gosto do Philip Larkin, William Carlos Williams, Wallace Stevens, por aí fora. 

 

Num dos poemas de Você Está Aqui fala do “incêndio de estar vivo”. O que vos interessa, na poesia e não só, é esta deflagração íntima e permanente.

João Luís – E a sorte de estar vivo! E o privilégio de estar vivo, e de poder viver as coisas. Pensemos numa ejaculação. Pensemos no espermatozóide que vai à frente. Pensemos no Weissmuller que tem a possibilidade de chegar ao ovócito, deixando para trás..., quantos, Jorge?

Jorge – Muitos milhões. A reprodução humana é uma técnica de grande desperdício. [risos] Estarmos aqui é um projecto magnífico que correu bem.        

João Luís – Estarmos aqui é uma sorte inacreditável. Gosto pouco de lições de moral, mas no fundo é uma lição para cada um de nós, que nos preocupamos com coisas pequenas e reflectimos pouco sobre nós próprios, sobre a biologia, sobre a existência. O Bob Dylan dizia que a arte é uma forma de parar o tempo. Podemos usar a arte, aquela epifania, aquela descoberta para, tangencialmente, pensar nisso.

 

Foi o Jorge que disse que a poesia e a salvação do mundo são uma e a mesma coisa?

Jorge – Acaba por ser uma blague. A poesia não salva ninguém. A poesia não salva coisa nenhuma. E às afunda-nos, submerge-nos. Mas o que cria a identidade de um povo tem a poesia por trás. Os árabes têm um texto poético por excelência, o Corão. Igual para os judeus e para os católicos, com a Torá e a Bíblia.

 

São textos religiosos. Ou lidos eminentemente sob esse prisma.

Jorge – Sim. Mas se falar de Portugal, posso falar d’Os Lusíadas. Ou das Folhas de Erva do Walt Whitman em relação aos Estados Unidos.

João Luís – A poesia tem de fazer sozinha aquilo que outras artes fazem com outros recursos. O poema utiliza a palavra que tem a sua música. Por exemplo, a palavra “borboleta” parece que bate asas. A palavra “serpente” parece que serpenteia. A associação de duas palavras pode criar uma rima, uma aliteração. A forma como as palavras se sequenciam no verso tem um determinado passo, e a forma como se sequenciam numa estrofe tem uma determinada respiração. Nisto tudo já temos a música. Depois precisamos da imagem. Que surge através das metáforas, das figuras de estilo. Quando dizemos o verso de Manuel António Pina: “O braço que falta ao mendigo é o que o sustenta”, olhamos para o mendigo e vemos que lhe falta o braço. Temos o primeiro estrato do poema que nos é dado pelos sentidos. Neste caso, é a visão. O segundo estrato é dado pela linguagem – e é um paradoxo: o braço falta, mas sustenta. O terceiro estrato liga-nos à interpretação que cada um faz a partir do conhecimento, da ética, da noção de solidariedade.

Tudo isto é dado sem ninguém cantar o verso nem somar uma fotografia ao verso. A música e a imagem estão nas palavras. Por muito que goste da música e do cinema, a poesia é uma arte mais pura e difícil do que qualquer outra. Em última instância, tudo se decide na linguagem.

 

Génesis: “No princípio o universo era muito quente e denso muito denso e quente/ e começou a expandir-se e a arrefecer a arrefecer e a expandir-se...”. O poema termina com “este ramo de rosas”. No princípio era a linguagem?, o ramo de rosas? A história do Jorge com as flores parece que está no início do mundo.

Jorge – Quando tive a ideia de escrever o Novíssimo Testamento quis escrever vários livros. Ia começar pelo Génesis. Se procurar numa enciclopédia a teoria do big bang é quase, ipsis verbis, o que está no poema. A maneira de tentar que não fosse um texto científico foi a reviravolta final – o ramo de flores. Passo das galáxias e das nebulosas para um ramo de rosas.

 

Estou a perguntar porque é que as flores estão tantas vezes no coração do poema, do seu olhar sobre o mundo.

Jorge – Talvez porque estão muito presentes no dia a dia. Tenho sempre flores em casa. Deve haver outras razões mais obscuras... 

João Luís – O Jorge fez um livro sobre embriaguez a que chamou O Vinho e as Rosas. [antologia de 1995]

Jorge – Colecciono notícias de jornais sobre astronomia. Adoro que me falem de anãs vermelhas, estrelas que estão a chegar ao fim da vida.

João Luís – O Jorge tem um poema sobre o anel de Saturno.  [“Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno/ e quase ia morrendo com o receio de que não/ te coubesse no dedo”] É o lado cosmológico e ontológico da sua poesia.

 

Entre as flores, a mais constante é o girassol.

Jorge – Os girassóis têm que ver com paixão cega. Com adoração. Aquela imagem do girassol a seguir o sol... Isso perpassa muita literatura, está no Novalis. Gosto do girassol solitário. Os campos de girassóis não me seduzem tanto.

João Luís – As gaivotas também olham todas para o sol. Vêem-se gaivotas atropeladas no Porto. É incrível como uma gaivota pode ser atropelada. O mundo está todo ao contrário.

 

Isso lembra-me o poema do Jorge sobre o homem nu que ia ser preso por atentado ao pudor em Veneza, e que à última foi coberto por um bando de pombos.

João Luís – É irrelevante que sejam pombos ou pombas? [riso malandro, após o qual cora]

Jorge – Não sei distinguir. 

 

Voltemos à ideia de que a poesia não salva. A poesia nunca o salvou?

Jorge – Acho que não. A maioria das vezes, quando escrevo, ando meio deprimido. Tem a ver com os mistérios da composição. É uma espécie de pós-parto blues.

João Luís – A poesia não é a coisa mais importante da minha vida. A coisa mais importante da minha vida é a família.

 

Ou seja, os afectos, o amor.

João Luís – Em segundo lugar, os amigos. A família pode salvar-nos. A poesia, não sei. Eu preciso de ir à família e aos amigos para buscar assunto sobre que escrever. Escrevo de dentro da vida. Não escrevo contra a vida. Nem escrevo isolado da vida.

Jorge – A poesia é uma maneira de interagir com o mundo. De ler o mundo. De influenciar o mundo.Ela expande o universo, mais do que o confina.

João Luís – Há qualquer coisa no mundo à nossa frente que é inefável. Mas que está lá. E que precisa de ser desvendado. Andamos com a linguagem atrás desse indizível tentando dizê-lo. Muitas vezes frustramo-nos porque ficamos aquém. Outras vezes temos um vislumbre de que conseguimos dizê-lo. E dizemo-lo quanto mais qualidades tiver a nossa poesia. Escrever poesia é perseguir uma realidade, é uma procura. Vamos tentar continuar a dizer as flores, os semáforos, as cidades, as pessoas, o mundo. Com a consciência de que por vezes amarrotamos o papel e deitamo-lo fora. Outras vezes temos de pedalar mais (como escrevo no poema Bicicleta para o Infinito). Tentar, rasurar, re-parar (que é repetir a paragem). Parar outra vez, parar perante as coisas, limpar o embaciado dos olhos e ver para além do que os nossos sentidos dizem.

 

O amor, estando presente na vossa poesia, não está sob a forma de amor romântico. Não é esse o vosso tom, mesmo quando os poemas são amorosos.

João Luís – A arma mais bonita é a ironia. É dizer do avesso. Isso tem às vezes um poder mais forte do que dizer pelo lado do real. O Egito Gonçalves dizia que a felicidade não tem história. Mas, na realidade, a felicidade pode ter história. Por exemplo, quando o Jorge escreve uma carta de amor ao Eugénio de Andrade e diz que o vai matar (um acto agressivo), mas com uma bala de pólen, está a dizê-lo de uma forma poderosa. Matar com uma bala de pólen é um acto de amor.

Jorge – O Eugénio dizia que a maior parte da poesia é poesia de amor. Há uns tempos fiz uma antologia de poemas de amor em outras línguas.

 

Qual é a Minha ou a Tua Língua?, de 2003.

Jorge – Poemas de sedução, do êxtase e da dor de corno. A poesia da sedução é frequente. A do êxtase, do conseguimento, é a que tem menos expressão. Mas gosto dela particularmente e está muito na poesia mística. (Quando fiz as versões dos poemas da Mirabai mandei-as ao Tolentino e ele respondeu-me: “Há este choro de séculos”. Um choro, no sentido de adoração, que vem do princípio dos tempos. Fazia a Mirabai, o Kabir, o São João da Cruz, a Santa Teresa D’Ávila, faziam os poetas místicos árabes.) Sobre a perda amorosa, há livros e livros e livros.

O João Luís consegue fazer muito bem essa poesia da felicidade.

 

Mas sempre com um veio de melancolia... “Ferida” é uma palavra recorrente.

João Luís – Sim, há sempre um puxador da porta da cozinha que está estragado [primeiro verso de um poema]. Interessa-me o lado imperfeito das coisas. A constatação da falha, do acidente, do defeito. A constatação do nosso lado frágil, humano, mortal. A derrota perante a natureza humana. O Manoel de Oliveira, do alto dos seus 104 anos, disse ao Pedro Mexia numa entrevista que “a vida é uma derrota”. É assumir que esse indizível não tem nada a ver com a perfeição e a harmonia e com o que é tangível. Tem a ver com um lamento, uma angústia, a mágoa. No auto-retrato que escrevi aos 45 chamo-me um “céptico inconformado”.

 

Nesse poema começa por falar do Outono. “Chegaste depressa ao Outono...). Já se sente no Outono, deveras?

João Luís – Sinto-me desde muito cedo no Outono. Acho que saltei a Primavera e o Verão.

 

O que é que o fez saltar?

João Luís – Ah... Não sei. Será que já nasci no Outono? Astrologicamente falando nasci no Verão.

Jorge – Contrariamente ao João Luís, sinto-me na Primavera. Primavera-Verão.

João Luís – Se calhar já deste a volta! [gargalhada] Oxalá eu chegue lá.

Jorge – Ou tento animicamente estar na Primavera ou no Verão.  

João Luís – Daí as flores, os girassóis, as rosas.

 

Parece ser, lendo os poemas, cada vez mais celebratório da vida.

Jorge – Sim, sim. Acho que começamos a morrer quando nos morrem os nossos pais. Embora neste livro tenha uma série de poemas sobre a morte, não é uma coisa em que pense muito. Nem penso em reforma. Talvez porque tenha a sensação – ou o objectivo – de manter um pensamento jovial.

 

Em relação aos livros e à carreia (má palavra para poetas) têm atitudes diferentes. O Jorge é mais bicho do buraco, sai de casa e do Porto com dificuldade. O João Luís é mais gregário e faz uma maior divulgação dos seus livros.

Jorge – Eu sou mais tímido. Ele não é tanto. Tem a ver com isso. Também é verdade que fiz determinadas coisas em determinados momentos para tornar a minha poesia conhecida. Não sei se funcionou.

 

O que é que fez que já não faz?

Jorge – Leituras de poemas. Lançamentos de livros. Tenho tentado que as coisas encontrem o seu caminho. Não me sinto muito confortável. Gostava de ter o à vontade do João Luís. 

João Luís – Uso a internet, o blogue [Poesia Ilimitada], o Facebook para dar a conhecer as coisas que vou editando e as apresentações que vou fazendo.

Em Setembro de 2011 estava em Nova Iorque a fazer um estágio de cirurgia reconstrutiva e fui jantar com o [ilustrador] Jorge Colombo (a um restaurante chinês que o Allen Ginsberg costumava frequentar). Lamentei-me do facto de os autores portugueses serem pouco conhecidos no estrangeiro. Tenho noção que a poesia portuguesa não fica atrás de outras poéticas, americanas e europeias. Ele perguntou-me, muito simplesmente: “E tu já fizeste alguma coisa por isso?”

 

Um comentário tipicamente americano. Em Portugal a atitude mais comum é a do lamento.

João Luís – Quando se confia e se gosta daquilo que se faz (e cada um destes livros passa por um longuíssimo processo de revisão, maturação, dois, três, quatro, anos)... Estes poemas foram escritos, revistos, seleccionados...

Jorge – Sofridos.

João Luís – Quando se passa por este processo e se acredita num livro que se fez, e uma editora gasta dinheiro a publicá-lo, faz mil exemplares ou 1500, o mínimo que um autor pode fazer é colaborar na divulgação.

 

Recentemente a sua Poesia Reunida (2011) foi objecto de uma recensão no Times Literary Supplement (TLS). Foi a primeira vez que foi publicada uma crítica de um livro editado em português. As outras críticas a obras de autores portugueses foram às edições traduzidas (para inglês, nomeadamente) desses livros.

Jorge – Foi uma lança em África. Quando ele me disse que tinha mandado um livro para o TLS...

João Luís – Inspirado por essa frase do Jorge Colombo. Às vezes as coisas são tão simples quanto isto.

Jorge – Nunca me passou pela cabeça que fossem pegar no livro e lê-lo. Isto mostra que é possível chegar ao outro lado. É preciso é dar corda aos sapatos.

João Luís – Partiu de uma provocação certíssima. Eu estava parado em Leça da Palmeira à espera que as coisas viessem ter comigo.

Jorge – O que é facto é que todos – todos! – os poetas gostam de ser lidos.

João Luís – Pelo menos os que publicam e tiram da gaveta.

 

O João Luís disse numa entrevista que é um poeta que opera.

Jorge – Eu também sou um poeta que opera. A cirurgia não tem na minha profissão um peso tão grande quanto tem na do João Luís, mas, mesmo assim, é significativo.

João Luís – A minha atitude é... como é que disseste há bocado? Um destino. Vivo poeticamente. Na minha relação com os outros, com as coisas, com a profissão. A profissão é mais uma coisa da minha vida. Gosto muito do que estou a fazer. E quando estou a exercer normalmente estou tão concentrado que quase, só, penso naquilo. Mas é quase só.

Jorge – A poesia, para nós, acaba por ser uma arte de viver.

 

Continuam a escrever em cafés?

Jorge – Tenho escrito pouco. Ainda não arranjei, perto desta casa onde vivo, um café onde me apeteça escrever.

João Luís – O George Steiner diz que cinco coisas caracterizam a ideia de Europa. Cafés. Nomes das ruas (de historiadores, filósofos, políticos, heróis). Deambular (distâncias curtas). Tradição judaico-cristã e tradição grega. Escatologia da Europa (guerras mundiais e dos Balcãs). Nesse texto fala do café de Fernando Pessoa. Tenho o livro Lugares Comuns (2000) que é todo passado à mesa do café. O café é uma metáfora do mundo, é uma segunda casa.

Jorge – Os cafés: quanto mais rascas, melhor. Quanto mais barulho, melhor. O café onde se ouve falar a dona Ricardina, não funciona.

 

Querem dizer mais alguma coisa?

João Luís – Muito obrigado.

Jorge – Igualmente.

 

 

 

Publicado originalmente no Público em 2013

 

 

 

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