Sérgio Godinho
Sérgio Godinho, o experimentador. Poeta, além de escritor de canções, performer, realizador, desenhador, homem dos sete instrumentos. Interventor. Escreveu canções que todos sabemos de cor (Com um Brilhozinho nos Olhos, A Noite Passada, Liberdade, É Terça-Feira, Barnabé... Chega?). Em fins de Abril de 1971, gravou no Stawberry Studio de Paris o seu primeiro disco. "Que força é essa" abria as hostes e testemunhava um tempo, um sentir, um modo de comunicar.
Desse disco inaugural, Os Sobreviventes, ao disco que acabou de ser lançado, Mútuo Consentimento, vai a distância inevitável de quem percorre uma longa viagem e se descobre outro. Outros. Depois há os versos que nos permitem perceber que ele é também o mesmo. Quem escreveu "A paz, o pão, habitação, saúde, educação (...) só há liberdade a sério quando houver..." é o mesmo que escreveu no livro de poemas "Liberdade é uma palavra/ A ser usada extremamente/ Com devida parcimónia: Contrafacção da liberdade é ignomínia/ Eis tudo palavras ajustadas". Pode alguém ser quem não é?
Sérgio Godinho tem 66 anos, nasceu no Porto. Nesta entrevista, vai ao fundo do mundo, vai ao fundo de si. O mais tentador, quando se escreve sobre ele, é deslizar, adoptar, copiar as frases contundentes, exímias, lapidadas que já disseram o que queremos dizer. Ironia e subtileza incluídas. Uma questão de música. É esquivo a falar da vida privada. Tem três filhos e três netos. Tem dois irmãos que vivem fora. Desmanchou a casa que era dos pais não há muito tempo. Tem um fulgor criativo raro.
Comecemos por um verso do seu livro de poemas, O Sangue por um Fio. "Tragam as mãos por limpar, mas saibam-nas limpas". Foi um mote para a viagem que empreendeu quando saiu de Portugal?
Quando parti de Portugal, e já lá vamos às mãos, parti para estudar. É uma outra história. O que eu queria era sair de Portugal e ter outras vivências. E meter as mãos na matéria, noutras vidas. As mãos podem não estar sempre limpas, porque estiveram sempre a mexer na massa das canções. Les mains dans la farine. A mão na farinha, como numa canção do Nougaro. A levedura. O meu fito, muitas vezes não cumprido, é estar bem comigo mesmo. Nem sempre se consegue. Muitas vezes no voo se arrastaram algumas penas mais pesadas. Penas que nos arrastam para o chão. Todos passámos a linha divisória em relação aos nossos valores. A certa altura sentimos que já passámos, e o pior é não saber em que dia foi. ("Em que dia é que foi que viraste às avessas...") São movimentos subtis. Não são cataclismos. Há portanto auto-alertas que é preciso conservar.
Para que saiba as mãos limpas, é preciso que os seus valores não estejam manchados. Isso leva-nos à sua construção enquanto indivíduo. Na sua formação foram fundamentais a sua mãe e o seu pai, mas também os livros e os discos.
É isso, e nas artes não é só isso. Os meus pais foram dos primeiros sócios do Teatro Experimental do Porto, que o António Pedro formou, e onde me habituei, ainda adolescente, a ver teatro ousado, actual. Grandes peças. O João Guedes a interpretar o Ratos e Homens do Steinbeck, a Dalila Rocha. Tive a sorte de crescer numa família que me dava inúmeras referências. Em relação à minha mãe, há o lado humano, cúmplice, que sempre me fez continuar a ter uma relação muito próxima com mulheres. Sempre percebi o universo feminino. Não só através dela. Se calhar estou a dizer isto de uma maneira errada... O que a minha mãe me traz, de facto, é: alguém que me ouve, que sabe responder e que sabe interagir. O irmão dela, o meu tio Carlos, o meu querido tio Carlos, que foi um segundo pai para mim, tinha as mesmas características.
No disco novo há uma canção em que traça um pequeno mapa genealógico. Coisa rara em si, falar da família. Fala da sua avó, da sua mãe, da sua filha, da sua neta. Fala também do pai, dos irmãos, do filho, do neto (no tempo da canção ainda não tinha nascido um outro neto). Contudo, eles estão excluídos do título, que é Linhagem Feminina.
Aconteceu circunstancialmente. Quando a minha mãe morreu há cerca de dois anos, e morreu já para lá dos 90, comecei a árdua tarefa de desmanchar a casa. Aquilo a que se chama desmanchar a casa. Estava no meio de memórias. A minha avó, que, aliás, era madrasta da minha mãe, e que me fez ter um grande apreço pelo termo madrasta, ao contrário do que todos os personagens do imaginário infantil e do Walt Disney veicularam, era a avó de quem eu gostava.
A avó Maroquinhas? É dessa que fala na canção.
A Maroquinhas. O gesto de guardar as caixas como repositório de segredos, ou de coisas com que se teve prazer, ou de cartas. Vestígios. O amor que a minha mãe tinha pelas flores – por isso o verso "guarda numa caixa uma flor que nunca murcha".
Verso comovente, de um grande amor.
É. Gostei de transmitir isso de uma forma quase lúdica, com uma rima propositadamente pobre, concretista, toda em inhas e inhos. É preciso também fazer estas coisas, com um lado meio gratuito.
Um lado de vida de todos os dias?
Sim, e de não termos de estar sempre a tentar fazer a grande obra. Mesmo que se torne rigorosa a feitura. Nessa canção refiro-me aos homens. "Homens com H. Todos RH meu." Continuando no capítulo da descendência: a minha avó paterna era uma pessoa estimulante intelectualmente. Alfarrabista. Tinha vindo do teatro, tinha um programa na Ideal Rádio do Porto.
Ideal Rádio?
A sigla era: Ideal Rádio, Rua Alferes Malheiro, 147. Perto da Batalha. Onde gravei o meu primeiro 78 rotações. A tocar piano, entre os dez e os doze anos. Estou a acotovelar a história. Essa avó: não gostava muito dela. Prepotente. Não comigo, mas eu testemunhava situações de conflito. Tinha atracção-repulsa por ela. Mas, uma vez por mês (comecei por estudar francês, antes de estudar inglês), ia à livraria Lello comigo e comprava-me um álbum do Tintim em francês. Curioso que percebesse que o Tintim era uma leitura atraente para mim. E é até hoje!
Era por ser uma personagem ambivalente e mais contrastada que o atraía?
Não. Tinha admiração intelectual por ela. Dizia coisas interessantes. Do programa de poesia que tinha na rádio – poesia dita –, ficou a transmissão oral da poesia. Uma oralidade da poesia que sempre prezei. Mas o carácter humano da minha outra avó, que era de ascendência brasileira, e que me trouxe algumas referências brasileiras, era algo com que me sentia muito mais confortável.
Que coisas lhe deu a ler a sua avó alfarrabista e que foram formativas?
Eu folheava muitas coisas. Muitos deles eram os mesmos livros que existiam na casa dos meus pais. Sempre passou por ali uma grande admiração pelo Eça. O meu pai lia-o com fervor, citava-o de cor. E outros da mesma altura, como o Ramalho Ortigão. Depois o José Rodrigues Migueis, o primeiro livro da Fernanda Botelho. A minha mãe era também uma ávida leitora; fez o curso superior de piano, fez a educação de uma menina bem comportada. A mim faltava-me no Eça uma certa transcendência. Sempre gostei de ler poesia ou coisas que me transportassem para outros mundos. Os livros de viagens ou aventuras, o Júlio Verne, davam-me também essa dimensão. Comecei a ler o Eça aos 13 anos com o Crime do Padre Amaro. Mergulhei logo no pecado, e desde aí não me tenho regenerado. [riso]
Já falamos do amor. A tarefa de desmanchar a casa é evidentemente muito dolorosa. Mas há ao mesmo tempo um reencontro com quem se foi, com aquilo que o formou. Alguns dos autores que apontou tratam de coisas que identificamos consigo. Como o desejo da viagem, uma procura, uma ligação íntima com a palavra.
Nunca deixei de olhar para as fotografias antigas, de encontrar papéis que tinham sido guardados. A minha mãe tinha um jeito diabólico para fazer versos. Versos alusivos, versos para amigos num jantar lá em casa. Uma agilidade surpreendente. E humor. Uma noção de musicalidade que me influenciou muito. Eu sempre falo de começar uma canção pela música; só depois a palavra ou o texto se vem grafar.
Quando se pensaria, olhando para a força das suas palavras, que o processo era inverso.
Descobri, na prática, que o Chico Buarque trabalha da mesma maneira. No Coincidências há letras minhas para músicas do Milton [Nascimento], do Ivan Lins; mas no caso do Chico quis que fosse ele a escrever uma letra. O Chico é um feitor de imaginários poéticos extraordinário. Um Tempo que Passou é o único tema do álbum em que a letra não é minha. O Chico: "Dá-me uma música e eu ponho uma letra sobre isso". É também assim que eu trabalho nas parcerias; acontece neste disco, com o Bernardo Sassetti [Em Dias Consecutivos], aconteceu com O Sopro do Coração [Clã]. Mesmo com o Tom Jobim ou o Edu Lobo, era assim que o Chico trabalhava.
Aprendeu essa modalidade com o Chico? De escrever uma letra sobre uma música já feita.
Não. Mas quando comecei a compor canções mais consistentemente, pelos 18 anos, já o Chico tinha feito coisas que me abriam a boca de espanto. Como o Caetano. São um bocadinho anteriores a mim. Ia dizer que são mais velhos. Quando se tem 60 e tantos anos, dois ou três anos não têm importância. O que tem importância é já não ter os 20.
Aprendeu antes, em casa, com a sua mãe, da importância da musicalidade? Mesmo o modo como se trabalham as palavras: como se fossem música.
De certeza. Com a minha mãe e o meu pai, que era melómano e ecléctico. Ouvia-se lá em casa muita música brasileira, mesmo pré-bossa nova. Ary Barroso, Dorival Caymmi, até Noel Rosa.
Uma das 40 canções, as suas 40 canções, sobre que escreveu na coluna no Expresso, foi Conversa de Botequim, de Noel Rosa. "Seu garçon fava o favor de me trazer depressa (...) Telefone ao menos uma vez para 344333".
O Chico diz na Rita: "... e um bom disco de Noel" e muita gente pensa que é um disco de Natal. Não. É Noel Rosa. Que é, de facto, um antecessor do Chico em termos estilísticos.
E seu. Ouviu-o muito, formou-o muito.
Havia em Noel uma crónica do quotidiano, um retrato de personagens, tantas vezes a resvalar para a comicidade, como no Gago Apaixonado. E no meu caso, até há um Fado Gago! Foi acontecendo. Em casa havia também muita música francesa. Ouvi Le déserteur, que é do Boris Vian, pela primeira vez, pelo Mouloudji, num disco que o meu pai tinha trazido de França. Ouviam-se os standards americanos. E música clássica, tocada pela minha mãe e tocada em discos. Música popular que eu ouvia no Minho. Referências tão múltiplas. Bem. Fui educado neste gosto. Outras coisas vieram por mim. João Gilberto. Na prosa, Cardoso Pires. Na poesia, Alexandre O'Neill. O O'Neill foi extremamente estimulante na minha escrita, porque me permitiu perceber que era possível ser profundo e lúdico ao mesmo tempo, e que as referências não têm de ser evidentes, e que não temos de esparramar sabedoria e erudição por todo o lado. Elas estão no subtexto.
Essa subtileza está em muitos dos poemas que compõe. Engraçado ter dito poemas que compõe... Queria dizer poemas que escreve. Mas o lapso revela até mais fielmente o que queria dizer: que a poesia e a música aparecem em si umbilicalmente ligados.
Quando inventei o epíteto escritor de canções, quis que parecesse estranha a tradução do termo songwriter. Nós consideramos um escritor aquele que escreve ficção (senão, diz-se um poeta). Um escritor de canções parecia, no limite, pretensioso. Mas tinha o lado do artesão, da canção como artefacto, e, como se diz em inglês, brings it down to reality. Torna-a mais concreta.
O que está contido na expressão escritor de canções é uma pulsão narrativa. Que é uma das fundamentais do seu processo criativo. Nas suas canções há a descrição de personagens; neste disco fala de uma mulher famosa. Noutro disco, de um velho samurai. Muito lá atrás, a Etelvina.
É um pôr em situação. É um determinado momento da vida de uma pessoa. A Etelvina é isso: os comportamentos na rua daquela rapariga. É mais comportamental do que análise psicológica. Era um conflito do cinema dos anos 60: o que define melhor uma personagem?, o seu comportamento ou a análise psicológica?
O cinema interessou-lhe de tal maneira que realizou alguns filmes, e foi actor noutros.
A psicologia do personagem aparece nos comportamentos. Neste disco há personagens que nem sequer têm nome, mas continuam a ter uma personalidade vincada. Naquela canção, que muitas vezes foi paradigmática para uma certa geração, que pessoas ouviram quando tinham 20 anos, 2º Andar Direito, "ele 20 anos, ela 18, há cinco dias sem trocarem palavra", é só um ele e um ela; e no entanto existem.
Neste disco há uma outra canção, de sonoridade citadina, e com uma forte pulsão narrativa, Eu vou a jogo. Essa tem ido a sua atitude. Se voltarmos a pensar na metáfora da viagem, o que acontece é que não se furta ao risco de quem está no jogo.
Se tenho uma cobardia ou outra, ultrapasso-a na prática. Todos recuamos numa determinada altura. N'O baú de Sigmund Freud, canto: "O cobarde é uma pessoa que foge para trás, o herói é uma pessoa que foge para a frente". Temos muitas vezes que parar para pensar, isso pode ser visto como uma forma de cobardia, ou não. Na construção do Eu vou a jogo há duas personagens. Encontram-se numa avenida, há uma conversa que supõe vidas passadas. Todas as frases dizem qualquer coisa sobre a vida deles sem dizerem tudo. Ela andou um bocado depressiva, mas provavelmente foi mais longe: "Gosto sempre de correr perigos quando o tempo vai mudar." A vida regenera-a. "Está-me a saber p'la vida encontrar vida em redor".
Ousar e ímpeto são palavras fundamentais no ir a jogo. Na sua biografia musical, Retrovisor, confessa: "Tornou-se claro que o meu caminho teria de ser pelas artes, e a curto prazo precisava de experimentar alguma forma de vagabundagem". Porque é que para se encontrar, e para fazer isto que queria fazer, tinha que passar pela vagabundagem?
Porque sempre senti que não se consegue criar sem ter tido alguma vida. O livro que me fez sair de Portugal foi o On the Road, do Jack Kerouac. Foi o Manuel António Pina que mo mostrou. Fomos colegas de liceu. Também me mostrou outras coisas, Neruda. Ele era um grande leitor. Curioso, porque as nossas estruturas mentais são extremamente diferentes. Eu tinha que partir e o Pina é daqueles que ficam. Tem na mesma o universo, lá dentro, das viagens. Sou geneticamente um experimentador. Tinha que experimentar sair, viver sozinho. Quando fui estudar Psicologia, talvez tenha sido falta de ousadia. Já sabia que era pelas artes. Mas não foi tempo perdido.
Foi aluno do Piaget, deve ter aprendido alguma coisa.
Sim, mas o ângulo de estudo era demasiado centrado no seu trabalho. Foi sobretudo um tempo de transição. Até que entrei em crise. Percebi que o que queria era ser um criador e um performer. E junto bem as duas coisas, são as duas coisas que pratico. No teatro, sim. No cinema (cheguei a pensar cursar cinema). E na música (já a tocar viola, a andar de viola às costas). Era a pré-história das Pré-histórias.
Nome do segundo álbum, de 1972.
Sabia que ao mesmo tempo me apetecia fazer outras coisas. Andar à boleia pela Europa. Trabalhar num barco, atravessar o oceano. Fiz isso tudo. Apetecia-me vagabundear e absorver as pequenas experiências que ia adquirindo. Mesmo quando fui para Paris estava completamente precário. Não tinha cheta nenhuma. Ia tendo trabalhos de sobrevivência. Trabalhei como recepcionista (era o veilleur de nuit) em hotéis de prostituição.
Numa zona de desconforto. Procurava isso ou ia dar a isso?
Ia dar a isso. Não era procurar no sentido de mergulhar no vício. Aliás, não mergulhava no vício, mergulhava na virtude. O vício era para os outros [riso]. No caso, a virtude era que tinha uns dinheiros extra, porque elas eram muito simpáticas e pediam aos senhores para me darem umas gorjetas.
Queria estar nessas franjas, no bas fond.
Não procurava, mas havia uma atracção. Assim como experimentar várias drogas. Bebedeiras, já tinha apanhado no Porto. Nem é o marginal duro. É estar e não estar, é estar em trânsito. O ambiente dos bares dos portos. O ambiente transitório de quem vem e de quem vai partir. As gares de comboios. Os quartos de hotel, uma espécie de lugar neutro.
Nesses anos de vagabundagem e procura, o que é que o fazia sentir em casa? Ou, pelo contrário, o que não queria era sentir qualquer amarra com casa?
Transitava, não tinha casa. Também não foram tantos anos como isso. Dois anos. Quando veio o Maio de 68 estava em Paris. Não tinha amarras nenhumas. Podia ir para o meu quarto, um chambre de bonne, num 7º andar sem elevador, às tantas da manhã, com os olhos cheios de gás lacrimogéneo, ou podia ficar a dormir na Sorbonne.
O que é que o fazia sentir bem? Por mais compulsivo que fosse o movimento da procura, e o desejo de continuar a viagem, havia, emocionalmente, um reduto final, seguro?
Era mais o sentir que estava a cumprir o que queria fazer. Nessa viagem de barco, fui até à Jamaica, Trinidad. Trabalhava na cozinha de um barco holandês. Primeiro trabalhei como estivador no porto de Amesterdão. Fiz anos no meio do Oceano Atlântico. Estava uma lua magnífica, e senti-me bem comigo mesmo. Não disse a ninguém que fazia anos. A única coisa que fiz foi mandar um telegrama aos meus pais a dizer: "Parabéns a nós todos". Qualquer coisa assim. Aquele aniversário em solidão absoluta [constitui] uma belíssima recordação. Sentia que as coisas estavam certas naquele momento. Há uma cena num filme do Woody Allen, o Stardust Memories (um filme injustamente ignorado), em que a Charlotte Rampling está de barriga para baixo, no chão, a ler. Ele, naquele momento, sente que está tudo certo. E então ela levanta os olhos e faz-lhe um pequeno sorriso.
O telegrama foi o sorriso? O sorriso que mandou aos seus pais.
Exactamente. Esse sorriso foi uma coisa suplementar. Achei que eles deviam saber que estava bem.
Como se fazia a comunicação nesses anos em que esteve fora? Foram nove anos sem poder vir a Portugal?
Para ser exacto, foram sete. A comunicação não era frequente. Houve uma altura em que o meu pai viajava e passou por Genève e por Paris. Quando eu estava a estudar em Genève ainda pude vir cá. Mas nessa altura não havia tanto a obsessão da comunicação.
Escrevia cartas? (Uma canção, de muito mais tarde: "Manda-me uma carta em correio azul para afastar essas cinco nuvens negras..."). As canções eram uma forma de registar a descoberta e o processo que estava a viver?
Escrevia cartas, claro. E recebia. As canções, no que toca à língua portuguesa, foram também uma maneira de me continuar a ligar a Portugal.
Começou a compor em francês.
Não conseguia encontrar uma voz própria. Soava-me tudo a José Afonso. Até que se tornou luminosa a evidência de o português ser a minha língua de expressão. Mas há quatro canções d' Os Sobreviventes que tiveram primeiro letra em francês. A Linda Joana, que não era ainda a minha filha [Jwana], começou por ter um tema diferente – Les tendres jardiniers, os ternos jardineiros. Os conteúdos musicais e verbais, muitas vezes, podem ser independentes. Já fiz essa experiência. Tive um espectáculo chamado Troca por Troca, em que acoplava a letra do Desafinado com a música da Garota de Ipanema. Foi um jogo técnico, um gozo.
Parêntesis para dizer que as inversões são constantes naquilo que faz. Seja nos jogos de palavras, seja na maneira como olha para as situações. A imagem dos espelhos e do reflexo também é recorrente.
A imagem do espelho é importante, para lá dos clichés do narcisismo. Há três canções neste disco em que falo de espelhos. No Intermitentemente: 'Todo o passado em dois espelhos que de mágoas são omissos'; como se a força de um amor presente apagasse as dores do passado... Mesmo na Vida Sobresselente, a mulher famosa já não sabe qual é a imagem de si mesma; quando vê nos vidros duplos da janela, é um reflexo dela e dos temores dela.
Fala de uma "vida sobresselente nas imediações da vida verdadeira". Está sempre à procura de uma imersão na vida verdadeira?
Acho que sim. Seja lá o que for a verdade. (Parece aquela frase do Príncipe Charles quando casou com a Princesa Diana. Perguntam-lhe: "Are you in love with Diana?". E ele responde: "Sim, seja lá o que o amor significa" [riso]. Seja lá o que a vida verdadeira for. O que é que pode ser? É sempre uma procura. São encontros em que nos encontramos com lados de nós mesmos. Tenho muitas vezes uma espécie de dissociação do eu em relação a mim mesmo. Sinto muitas vezes que estou a co-existir com outras pessoas que estão ao meu lado a pensar uma coisa ligeiramente diferente, mas que também sou eu. Um está a interrogar o outro, está a pô-lo em confronto. Às vezes é um cansaço, estou sempre em auto-questionamento. Mas não é ter dúvidas que me impede de ir a jogo.
Estávamos a falar da importância da língua portuguesa quando começou a compor, quando se libertou do francês e encontrou a sua voz.
Estando longe, fi-lo como um exercício consciente, para não perder a ligação com Portugal. A língua podia ser um veículo para manter essa ligação activa. Queria falar de mim, do meu país, do país em que tinha crescido, do momento social, político, da guerra. Falei disso de várias maneiras. O Charlatão refere isso, muitas canções referem isso. No Pré-Histórias está expresso em mais do que uma canção. Quando falo da mulher que está na praia, em frente ao paredão, imaginei-a em Leça [da Palmeira].
E não na Foz, que é mais o seu sítio, onde viveu com os seus pais.
Sim, mas ia muito a Leça. (Lembro-me de nadar no porto de Leixões. E não é para rimar com cagalhões, mas de vez em quando cruzava-me com alguns. Acho muito bem que as praias sejam limpas, mas a gente sobrevive a tudo.) Sobretudo na canção Porto, Porto, que depois retomo no Porto aqui tão perto, há um relato da maneira de estar do cidadão do Porto, daquele povo profundo, das piadas, tolas ou não, que são um bocado a essência do povo do Porto. Quando digo: "Vindo desde Vigo ao Porto, sem mala nem passaporte, o comboio era tão velho que o fumo cheirava a morte", entro em todo o imaginário da minha infância, do Porto. Foi uma coisa para não me esquecer, e para reflectir numa canção mais ou menos existencial, jocosa, o advento de um novo momento: a liberdade.
Já disse que os títulos Os Sobreviventes e Pré-Histórias reflectem dois momentos da vida de Portugal.
Os Sobreviventes refere-se àquele peso que está para trás. O Pré-Histórias, àquilo que se anuncia. À Queima Roupa, o terceiro disco, é em pleno PREC, e também o reflecte.
Ainda não falámos do seu lado político, que durante anos lhe colou o rótulo de cantor de intervenção. As canções dos primeiros discos são marcadamente políticas?
Talvez metade, não sei. Do segundo disco, Pode alguém Ser Quem Não É não é abertamente política. E A Noite Passada, que é a canção paradigmática, também não é. A política entra naturalmente no meu universo, que é mais vasto. É uma questão estafada. Nas entrevistas do projecto Três Cantos, com o Zé Mário e o Fausto, enterrámos esse epíteto redutor do cantor de intervenção. Intervenção é tudo. Regressamos a casa, novamente, para falar da consciência política? Foi muito natural, porque cresci nesse forno. Na família havia pessoas que tinham estado presas, comunistas. Antes disso havia uma longa tradição republicana e maçónica. O meu bisavô, o Actor Verdial, foi quem leu a proclamação do 31 de Janeiro, o primeiro golpe republicano falhado. Era o Miguel Verdial. A minha avó participou em comícios e discursou em jantares republicanos, o que não era comum para uma mulher. O meu pai não podia com Salazar. Considerava-o o grande responsável do atraso português. Em relação às colónias, achava que se lhes devia dar a independência, à maneira do que aconteceu com a Gra-Bretanha. Era muito anglófilo.
Quer dizer que não lhe cobram quando, primeiro, quer rasgar a sua própria vida, nem, depois, quando se torna refractário?
De maneira nenhuma. Acharam natural. O meu pai e a minha mãe eram contra essa guerra. Quando parti sabia que nunca iria à guerra. Se fosse apanhado teria arranjado maneira de fugir. Fui-me embora antes que fosse tempo de me chamarem. Tinha muitos relatos de pessoas que tinham ido. A certa altura havia uma directiva do Partido Comunista a dizer para não se desertar, para participar a fim de fazer o trabalho de sapa dentro da própria guerra.
Proselitismo à comunista.
Talvez. Mas conheci muita gente que fez um trabalho notável a esse nível.
Fez trabalho em Paris, nas fábricas, por exemplo?
Isso aconteceu em pleno Maio de 68, não foi uma coisa constante. Eu, o Zé Mário [Branco], uma cantora francesa chamada Colette Magny, e outros, construímos um grupo informal que ia cantar nas fábricas ocupadas. Eu cantava ainda em francês. Fiz uma canção a quente, coisa que não faço geralmente, sobre o Maio de 68, que se chamava Les Milles et Une Nuits. O Zé Mário lembrava-se de parte dessa canção (isto está documentado no making of dos Três Cantos). Compus muitas canções que se perderam. Sinto que muitas boas ideias que tenho se perdem. Ou porque adormeci, ou porque estava num sítio onde não as podia anotar. Mas é preciso perder para guardar outras coisas. É preciso ter tempo para ver uma coisa inútil. Traz-nos sedimentos para aquilo que fazemos. Às vezes exagero nesse aspecto; tenho intenção de trabalhar numa coisa e depois disperso-me.
Sente a dispersão ou o caos em que muitas vezes está como uma ameaça?
Já é uma forma de vida. Mas devia ser mais produtivo. Quando me perguntam, em relação ao Mútuo Consentimento, porque é que se passaram cinco anos desde o Ligação Directa, posso dizer que não foi silêncio; às vezes foi um bocado de barulho. Os Três Cantos, que levou muito tempo a ser arquitectado. O Sangue por um Fio, que me tomou um tempo criativo maior do que pensava. A volta ao teatro, como actor, com o Jorge Silva Melo e os Artistas Unidos (quando abri os olhos já tinha dito que sim). A banda sonora do Equador. Outras coisas. Sempre gostei de estar nesse tempo pretensamente parado. Mas também tenho inquietudes criativas. Uma preocupação que se mantém: quando é que estou a imitar-me a mim próprio?
O perigo é fazer Sérgios Godinhos?
Tem que se ter cuidado para não estar só a preencher as expectativas dos outros. Isso reflecte-se na criação.
Parece muito confiante.
Sou confiante. A confiança existe porque já dei provas a mim mesmo de que sou capaz. Essa confiança vem da prática mas não exclui as dúvidas, e o sentir que às vezes não estou bem lá.
Canta no Mútuo Consentimento: "Duvidar é ter certezas".
Falo muito de dúvidas e certezas. Tenho uma canção chamada As certezas do meu mais brilhante amor, e até aí falo dessas dúvidas.
Essa canção, que genericamente se intitula Coisas do amor, forma um díptico com Não vás contar que mudei a fechadura.
Que acaba com uma certeza. "Não vás dizer que o amor é relativo, se o relativo fosse coisa que se visse não era amor o porque morro e o porque vivo". Acaba com a noção de absoluto. As interrogações que há nas minhas canções são dúvidas. Dúvidas para serem respondidas pelos outros. São interpelações.
Uma interrogação/interpelação numa das suas canções mais famosas, Pode alguém ser quem não é.Quando deixamos de ser aqueles que julgávamos que éramos, e vamos sendo coisas diferentes dessa que éramos, nessa viagem, com tantas deambulações, o que é que se mantém?
Há um olhar sobre os outros que sempre me interessou. Uma certa visão humanista. O reflectir sobre os outros, o tentar compreender os outros. As pessoas interessam-me para lá da condição social. Valem por si. E estão ali para se cumprir naturalmente a si mesmas. Essa ponte com os outros tem sido uma das coisas mais enriquecedoras. É também um desencadeador da criação, e das ficções.
Porque é que as canções, mais do que tudo, são a forma de comunicar as suas ficções? Porquê esta fórmula?
Representava papéis quando era pequenino, sozinho. Dizia o Cântico Negro porque ouvia o Villaret na televisão ("Não sei para onde vou, sei que não vou por aí"). Tinha uma memória completamente adesiva. Ainda tenho um bocadinho, mas já são muitos charros depois. Escrevia uma espécie de conto e não acabava, cansava-me. Sou de fogo curto na criação. O meu pai censurava-me por isso. Dizia: "Aquilo que se começa é preciso acabar". E tinha razão. Se calhar foi a razão de fazer canções. Uma canção, conseguia acabá-la. Embora trabalhando muito nela, consigo encerrar o assunto. Um romance, não. Encerrar o assunto é muito importante. "Mudemos de assunto, sim?"
Na vida também é assim? Quando olha para o que estava no barco, a caminho da Jamaica, quando olha para o que estudava na Suíça.
Está cumprido, está cumprido. Porque é que não voltei para o Porto? Vim para Lisboa para gravar um disco, e vim fazer uma peça de teatro, Liberdade, Liberdade. Mas o Porto estava cumprido. Adoro voltar ao Porto, mas estava cumprido. Não gosto muito de voltar, recomeçar histórias.
Há palavras e conceitos que reaparecem muito. Tréguas, batalhas, uma coisa belicista. O que surpreende.
Uso muito uma linguagem, sem dar por ela, catastrófica. Tempestade. No Espalhem a Notícia: "A terra tremeu ontem, não mais do que anteontem". "
E o sol, como é costume, foi um augúrio de bonança"... Nessa canção fala do nascer de uma criança, e fá-lo muito próximo da Natureza.
São as metáforas que valem para tudo. A canção Bomba Relógio é uma metáfora para o coração, ou para os impulsos. "O teu amor quando palpita, verdade seja dita, põe rastilho no meu peito, trinta batidas num só beijo sem defeito". Uso muito essas palavras porque são mesmo essenciais. As palavras batalha ou trégua não se referem só a uma guerra, referem-se às relações pessoais e mesmo amorosas – outra coisa constante no meu discurso. Há várias canções sobre o fim dos amores. No Emboscadas, que o Camané cantou no último disco, diz-se: "E esta dor em que me vejo de nos ver quase no fim".
Nunca quer falar disso, mas percebe-se, nem que seja pelas canções, que a dimensão amorosa é essencial na sua vida. É como se ficássemos sempre com um retrato amputado, por não ser possível olhar para esse lado.
Mas pode-se olhar para esse lado, eu posso é não desvendar certas coisas.
No Mútuo Consentimento canta: "Assim como se anda a monte quando o amor se procura". Quando andou a monte, nesses anos de aventura, era o amor que procurava?
Não, eram as vivências em geral. No primeiro disco, Os Sobreviventes, a canção Romance de Um Dia na Estrada tem um verso que é a chave disso. Ela, que é mais velha, diz: "Tu que me falas de estradas, e eu só conheço um carreiro". E ele, que é um rapaz de viola ao ombro, diz: "Eu que falava de estradas, e só conhecia atalhos, e ela a mostrar-me caminhos, entre chaminés e orvalhos". Muitas vezes pensamos que estamos a ensinar os outros, e estamos a aprender com os outros. É nesse processo transformador de nós mesmos que crescemos.
Porque é que se lembrou dessa frase, dessa canção?
Quando somos confrontados com experiências difíceis (das vezes em que fui preso, em que tive experiências limite), há um processo intuitivo de convocar as forças, de sentir que tem de se tirar alguma coisa de bom disso, que tem que se aprender com isso.
O que é que aprendeu nas experiências da prisão?
Por um lado, é o sentir que se está a viver mais uma experiência. Por outro, há um sentido romanesco que permite sair de nós mesmos e ganhar forças nisso. Apanhei choques eléctricos na cabeça, com capuz e tudo. Por nada. Porque queriam saber. Porque é ritual. Fazem a toda a gente. Há uma estranha força que aparece, um "sei mais da vida do que esta pessoa". E nesse momento sai-se de nós e entra-se numa coisa maior. Sente-se que se está a fazer parte de uma história comum qualquer. Sou irmão dessas pessoas. É evidente que não sei o que acontece a quem é torturado durante semanas. Não foi o meu caso. A capacidade de resistência é outra coisa. Respeito profundamente isso, porque andei por essas zonas episodicamente.
Na primeira situação, esteve preso em plena ditadura militar, com os Living Theatre, acusados de subversão e posse de maconha. Psicotrópicos, como eles diziam.
Foi um pretexto óbvio para nos silenciar. Era o primeiro dia de um festival de artes de Ouro Preto que iria reunir muita da inteligentsia brasileira. Tinha havido já uma campanha feroz de uma organização de extrema-direita contra a nossa presença, com panfletos distribuídos à porta das igrejas. Fomos expulsos dois meses mais tarde, e depois absolvidos.
Na segunda, no começo dos anos 80, foi igualmente acusado de posse de maconha.
É uma longa história – tipo "quem tramou Sérgio Godinho?" – e foi consequência da primeira acusação. O processo de expulsão nunca tinha sido revisto, apesar das minhas idas frequentes ao Brasil. Houve um movimento de solidariedade em Portugal e no Brasil, que me fez amar para sempre essas pessoas. A maneira como falavam e se interessavam pelo caso, a maneira como me falavam na rua, ainda sob liberdade condicional... Pediam-me desculpa, em nome do Brasil. Sentiam-se responsáveis por uma coisa que me tinha feito mal, a mim. Eles como comunidade colectiva, Brasil.
A canção com Chico Buarque vem no seguimento dessa segunda prisão.
Vem. Eu estava no Brasil para preparar o Coincidências, que seria quase todo feito com parcerias com brasileiros. Acabou por ser só metade. Quando estava para voltar a Portugal – fui expulso como maneira de sair, mesmo sem interromper o julgamento – disse: "Tenho que recuperar o tempo que passou, este hiato, tenho que avançar criativamente". E o Chico disse: "Já encontrei o caminho da canção".
Por isso a canção chama-se Um Tempo que Passou.
"Vou uma vez mais correr atrás de todo o meu tempo perdido, quem sabe, está guardado num relógio escondido, por quem nem avalia o tempo que tem". Houve muita coisa que me magoou mas tenho capacidade de resiliência. Tenho um lado muito positivo. Mesmo em cenários muito sombrios, reajo.
A música salvou-o?
Não, não salvou porque nunca estive perdido. Contextualizou uma procura, isso é verdade.
O homem que não procura a salvação, podia ser um título para si?
Mas também não sou eu que vou salvar os outros. A minha mãe dizia que lhe fazia bem ouvir Bach porque lhe organizava a cabeça. Penso que compor me organiza a cabeça. Não só a nível formal. Uma dinâmica musical é difícil de explicar, só ouvindo. E o acto da criação é essencial porque me ajuda a pensar.
Publicada originalmente na Revista Pública, em Setembro de 2011