Artur Santos Silva
É um homem rico que fala pouco da sua riqueza. Teve uma educação esmerada, e, como ficará provado, esse é o seu tesouro mais valioso. Dito deste modo, parece um exercício retórico. Mas não é. Fala pouco da sua riqueza por modéstia, por elegância; mas, sobretudo, porque o império que construiu em 25 anos, e que contrariou o destino que tinha traçado para si, não lhe deixa um brilho tão intenso quanto aquele que o invade quando fala da sua família feliz. Do avô médico, que fora presidente da câmara, e que vê os pobres durante a tarde. O pai, um “herói fácil” por ser tão extraordinário, que participa em todos os grandes acontecimentos do seu tempo. E o irmão, outro “herói fácil”, que vive intensamente por saber que o seu sangue bom pode misturar-se com um sangue envenenado. Foi o fim de um tempo.
Fala da família com ardor e recupera a alegria do tempo em que todos almoçavam na casa da Rua do Bonfim, ou cruzavam a rua para irem ao jardim dos avós. Nesse tempo, a casa estava sempre cheia de amigos que vinham de fora e dos protagonistas da cidade. Do Porto, do seu Porto. Mais tarde, na sua teia de relações, convergem os protagonistas do seu tempo, (Francisco Sá Carneiro ou Agustina), e deste modo se mantém uma época que se exauria. Nesta entrevista faz-se o retrato de uma época. Recupera-se a chegada de Delgado ao Porto, da importância de encher o depósito do carro no dia 25 de Abril de 74, do momento em que Câmara Pestana se lembra que o Dr. Santos Silva tinha um filho em Coimbra, assistente, com boas notas, que talvez fosse bom para juntar às fileiras do Banco Português do Atlântico. E pronto, deste modo se desenhou em definitivo o seu caminho. Deixou de ser possível o modesto projecto inicial: que ia ter um escritório, como advogado, ao lado do pai.
Artur Santos Silva tem 65 anos. É banqueiro. Escreve sobre Eugénio de Andrade e cita o exemplo de coragem de Unamuno. É casado e tem quatro filhos. Fala do OPA sem querer falar, para dizer que depois do abalo dos primeiros dias, se sente revigorado pelo apoio dos que estão à volta. E está firmemente convicto de um desfecho que não eclipsa o projecto da sua vida. Deliberadamente misturo Unamuno e Eugénio com a OPA e BPI. Ele é um, e todos os assuntos desaguam no seu rio naturalmente. Ainda que o corpo, e sobretudo a cara, revelem as diferentes vibrações que cada uma deles lhe provoca.
A brasileira Clarice Lispector escreveu: “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre! Mas, mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim”. Começo por esta frase para falar consigo de vida e de morte.
Eu não olho muito para a morte. A vida tem passado, tive alguns desgostos importantes. Os três desgostos que mais me marcaram, em diferentes fases da minha vida, foram a morte do meu Avô paterno, a morte do meu Irmão e a morte do meu Pai. O meu Avô paterno era uma personalidade fantástica, de afectividade transbordante e grande alegria de viver, embora tivesse já enfrentado a perda de dois filhos.
É raro manter essa alegria transbordante depois de passar por provações tão grandes como a morte de dois filhos.
Sim, sim. Estava muito disponível para a família e os amigos. Com cerca de 70 anos, sendo médico, decidiu: “Deixo os meus doentes antes que os meus doentes me deixem a mim”. Passou a fazer medicina para meia dúzia de amigos e para os pobres. Um dia por semana via pobres em casa e tratava-os. E na quinta do Douro todas as tardes recebia as pessoas da aldeia, a quem não levava nada. E eu, antecipando, perguntava-me: “O que é que há-de ser um dia a minha vida sem o meu Avô?”.
Normalmente, na juventude, não se pensa na morte, porque se é ainda eterno.
Eu antecipava, em relação ao meu Avô, o que era natural: ele estava com perto de 80 anos. Depois, fui de novo confrontado: vivi com o risco da morte de meu Irmão que tinha uma cardiopatia congénita. Quando foi diagnosticada, tinha ele 14 anos, já era tarde para ser operado sem uma alta taxa de mortalidade, e ele nunca quis. O seu desaparecimento, tinha eu 25 anos, afectou-me profundamente, bem como o de meu Pai, que morreu com 70 anos. Morreu há 26 anos.
A morte pairou de modo insistente num determinado período da sua vida. Como é que deixou de a olhar, de a ter no seu horizonte?
Em relação a mim próprio, vejo isso com serenidade. A vida é uma grande aventura que tem de se viver intensamente.
Houve, sobretudo no seu irmão, uma sensação de urgência? Uma urgência em viver intensamente...
Quer ele, quer o meu Pai eram pessoas com uma enorme alegria de viver, um elevado sentido de humor, uma grande coragem física e moral. Eram naturalmente os nossos heróis, com todas essas qualidades. A minha Mãe era o grande estabilizador da casa, eles os dois grandes animadores, muito parecidos um com o outro.
A doença dele passou a ser uma espécie de centro da vida da família?
Não, não. Era um perigo sobre a nossa felicidade que funcionou pelo lado positivo: não devemos perder tempo porque isto pode acabar, enquanto está tudo bem, vamos aproveitar tudo de bom que a vida nos oferece. Esquecíamos que havia ali um problema. Mas se o telefone tocava na minha República, em Coimbra, às duas da manhã, só pensava: “Aconteceu qualquer coisa com ele”.
O seu irmão quis experimentar a vida até aos seus limites?
Sim. Adorava viver e fazia tudo o que gostava, mesmo coisas que eram contra-indicadas para a sua saúde.
Pergunto isso porque o senhor, ao contrário, é muito bem comportado...
Ele era um alter-ego do meu Pai. De facto, eram personalidades que se sentiam muito onde estavam. Partilhávamos o mesmo quarto e eu fui mais o repressor dele: “Vamos dormir, feche a luz, não faça isto, não faça aquilo”. O meu Pai foi sempre o grande amigo dos filhos. A minha Mãe também, mas exercia mais o poder numa relação pais-filhos. Evidentemente que a felicidade passou a ser uma coisa muito diferente quando o meu Irmão faltou. É o antes e o depois, quando temos uma coisa que verdadeiramente nos marca.
Tinha cinco anos quando nasceu o seu irmão. Tem falado de si enquanto sujeito familiar. Tem memórias de si do tempo em que era ainda sozinho?
Lembro-me vagamente. A escola é o momento em que começo a situar no tempo as coisas, o que é que aconteceu, o que é que fiz. Comecei numa escola oficial, onde fiz a primeira e a segunda classe. Vivi os meus primeiros 12 anos na rua do Bonfim, que é uma rua larga, na zona oriental da cidade, do Porto industrial. Os meus Avós viviam numa casa que tinha um grande jardim, nós vivíamos quase em frente e íamos muito para lá. Era uma zona com grande densidade populacional, onde também vivia média e alta burguesia. O meu Pai era um profissional liberal e na fase inicial da sua vida profissional vivia com algumas limitações, como toda a gente. Comprou o primeiro automóvel e tirou carta só aos 45 anos!
Imaginei que ganhasse muito dinheiro: era “o advogado” do Porto.
Era um advogado de sucesso, mas o princípio da vida foi difícil. Era o tempo do Estado Novo.
Ele era, justamente, olhado como um advogado da oposição, defensor dos socialistas.
E de todos os presos políticos. A sua vida profissional foi muito afectada por ter sido preso várias vezes. Não houve nenhum importante acontecimento político a que não tenha estado ligado. A vida profissional do meu Pai começa a afirmar-se plenamente a partir dos 40 anos. A primeira coisa que os meus Pais valorizaram foi ter uma segunda casa. Reconstruíram uma casa antiga numa quinta que a minha Mãe tinha entre Felgueiras e a Lixa, a 50 km do Porto. A primeira casa era alugada e continuou a ser. Depois mudámo-nos para uma zona entre o Marquês de Pombal e as Antas, para ficarmos mais perto dos colégios que frequentávamos. Para nós foi um constrangimento, porque o meu Pai não queria que frequentássemos a Mocidade Portuguesa e nos liceus isso era obrigatório.
Presumo que poupasse dinheiro onde fosse preciso para poder ter-vos no colégio...
Ai, sim. Nunca tive carências nenhumas. A minha Mãe era uma pessoa muito equilibrada, a quem o meu Pai entregava tudo o que ganhava. Ela era o ministro das finanças lá da casa.
Por causa do percurso político do seu pai não há dinheiro a rodos... Porém, há uma coisa mais importante que o dinheiro que fica dessa altura: o sentimento de honra, de dever cívico e a participação política, que acompanham a sua vida. Como se fosse um desejo de perpetuar essa tradição familiar.
Nesse aspecto, foi isso. A seguir à guerra, toda a gente vivia austeramente, mesmo as pessoas que tinham dinheiro. Nunca tive problemas de ter mais ou ter menos, porque isso não estava nos nossos parâmetros de educação e de vida.
Estou a lembrar-me de uma história divertida que me contou há uns anos o Miguel Veiga, a propósito de não ter um carácter exibicionista e de não ostentar o dinheiro que tem: ia na estrada e um polícia mandou-o parar; pediu-lhe os documentos e perguntou-lhe o que é que fazia. O senhor terá respondido que trabalhava num banco e o polícia achou que era caixa, que era bancário. Teve algum acanhamento em dizer que era banqueiro, que era o dono do Banco.
Não sou dono do Banco.
Mas é assim que, de um modo simplista, se lê.
Nunca fui educado, nem procurei educar, nem procurei viver exibindo o dinheiro, usando o dinheiro. Nunca me faltou nada, tive tudo o quis e que era importante. Naquele tempo, a grande despesa era o cinema. Um grande amigo do meu pai era correspondente no Porto d“A República” e tinha bilhetes para o cinema; sempre que eu queria ir, aquilo ficava por um escudo – o custo do selo – quando o preço de um bilhete era de cerca de dez escudos. Fui imenso ao cinema. Frequentava também o CineClube do Porto, que tinha um óptimo programa aos domingos de manhã. A minha Irmã mais velha e eu íamos muito com o meu Pai, apanhámos aquela fase do neo-realismo [italiano].
Ainda agora estávamos a falar da Anna Magnani, evocada no novo filme de Pedro Almodovar. Viu em ecrã, cedo, todos os filmes do Visconti ou do Rossellini.
“Roma, Cidade Aberta” é dos filmes mais fantásticos que vi.
É um filme muito político, percebo que o tenha impressionado especialmente.
Não fui educado num clima em que o dinheiro fosse importante. O que nos dava uma grande alegria e felicidade era a afectividade, era poder participar em tudo o que a vida da família e dos amigos nos proporcionava. Quer o meu Avó, quer o meu Pai, nunca iam com amigos de fora do Porto almoçar ou jantar a restaurantes, traziam-nos sempre para casa.
A casa é que era o espaço.
Era. Conheci, quer em casa do meu Avô, no Porto e no Douro, quer na casa dos meus Pais, no Porto ou na quinta, personalidades extraordinárias como Manuel Mendes, Miguel Torga, José Régio, Lopes Graça, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro ...
Foi aí que se habitou a conhecer as grandes figuras, e a tê-las em casa. Li no texto que escreveu aquando da morte do Eugénio de Andrade que o conheceu na casa da Agustina e do Alberto Luís, muitos anos antes.
Mas isso já foi a minha vida e as minhas relações próprias.
Mas o hábito das tertúlias vem de trás, não corta a linha.
Claro. Outro casal que conheci bem, a Sophia e o marido, Francisco Sousa Tavares, que era um homem de uma grande coragem e tinha um talento extraordinário a analisar o mundo à nossa volta.
Já falou duas vezes de coragem, referindo-se ao seu pai e ao seu irmão, e agora ao Francisco Sousa Tavares. Como é que define a coragem, em que momentos é que ela se revela?
A coragem é sermos iguais a nós próprios em quaisquer circunstâncias e estarmos dispostos a sofrer sérias consequências por manifestarmos o que somos. Revela-se pela maneira como as pessoas afirmam as suas convicções, em circunstâncias adversas, em que tudo está contra elas. Em regra, a coragem física está ligada à coragem moral. O acto que conheço de maior coragem, e que é moral, sofrendo eventualmente consequências físicas, é o de Unamuno, em Salamanca, pouco antes de morrer... Não sei se conhece?
Não. Conte.
A cidade já está ocupada pelas tropas franquistas. Unamuno, de quem se dizia mais perto da falange, no princípio, acabou do outro lado, como a seguir se pode ver. No final dos discursos do dia da abertura da Universidade, Milan Astray, um general mutilado na guerra de Marrocos, lança o grito dos franquistas: “Abaixo a inteligência, viva a morte”. Unamuno levanta-se e diz: “Lá que um mutilado, um revoltado com tudo o que é belo na vida, diga: ‘Viva a morte’, eu percebo. Agora que todos vós acompanhem esse berro e gritem em uníssono, não posso consentir. Vocês vão ganhar a guerra, mas não vão vencer. Para vencer é preciso persuadir, e para persuadir é preciso ter razão.” Ele tinha então perto de 80 anos e morreu semanas depois, preso na própria casa.
Em Portugal, conhecemos alguns casos de grande coragem física no período de resistência à ditadura. Há algum que o impressione especialmente?
Lembro-me, depois do 25 de Abril, a coragem que teve o Salgado Zenha ao combater frontalmente a unicidade sindical. E logo a seguir ao 11 de Março, Sophia de Mello Breyner, quando se começou a falar de pena de morte, fez uma intervenção num comício no Porto que nunca mais esqueço. A coragem é das qualidades que mais admiro nas pessoas sem esquecer a lealdade, a sinceridade e a transparência.
Apoiou o Zenha nas presidenciais?
Não. Apoiei Mário Soares. Porque a sua proposta vestia mais naquilo em que eu acreditava. Embora tivesse uma grande admiração pelo Dr. Zenha. Era um homem de grande carácter, íntegro, muito inteligente, um visionário.
Porque é que nunca foi político?
Eu fui. Interessei-me sempre pela política. Estive com umas dezenas de pessoas na Acção Socialista, no final dos anos 60, embrião do Partido Socialista; foi a minha primeira participação numa organização com objectivos estritamente políticos. Depois estive ligado à SEDES, cujo denominador era a construção de uma sociedade democrática e moderna, contribuindo para que Portugal se transformasse numa sociedade aberta.
Nunca foi um político profissional, nunca fez disso o centro da sua vida.
Fui dos primeiros do PPD... Tive até a sorte de passar o dia D, 25 de Abril, das 3 da tarde às duas da manhã, com o Francisco Sá-Carneiro, que vivia a 300 metros de minha casa. O carro dele, um Renault 16 igual ao meu, estava à porta, e eu fui meter gasolina em frente a casa. Ficámos ali, todo o dia.
Como é que seguiram o desenrolar dos acontecimentos?
A conversar e em contactos com Lisboa, sobretudo com o Expresso. O Francisco Balsemão e o Marcelo Rebelo de Sousa estavam em Lisboa, e o Francisco Sá-Carneiro também colaborava no Expresso. Sintonizámos rádio, televisão, tudo o que dava notícias. Depois, fui jantar a casa e acompanhou-me a minha Mulher. Ainda assistimos às declarações do Professor Antunes Varela, em Londres, dizendo à BBC que o Marcelo Caetano ia resolver aquilo rapidamente.
Acreditou que aquele golpe militar seria bem-sucedido?
Quando vi no fim da manhã o que estava a passar-se, [percebi] que o regime tinha acabado. O golpe tinha funcionado surpreendentemente sem resistência. E no Porto foi o General Carlos Azeredo que comandou as operações e tudo ficou arrumado rapidamente. O que não percebíamos era onde estava o poder, quem é que estava por trás disto. Estive ligado ao nascimento do PPD e ajudei a mobilizar muitas pessoas, nomeadamente, no Porto, Miguel Veiga e Vasco Graça Moura, bem como o grupo da Faculdade de Direito de Coimbra (Mota Pinto, Barbosa de Melo, Figueiredo Dias). Eu tinha sido assistente da faculdade, conhecia-os bem e achava que estariam em zonas ideológicas próximas. Fiz muitas sessões de esclarecimento nessa fase. Mas recusei logo fazer parte da comissão política nacional, que foi escolhida pelo Francisco Sá-Carneiro, e recusei também fazer parte da eleita no congresso.
Porquê?
Não me via numa máquina de um partido. A participação política realizava-me, mas não a participação numa máquina partidária. Eu gostava de trabalhar, tinha a actividade profissional que muito me absorvia e era isso que queria continuar a fazer.
O que é que o incomodava, propriamente, na máquina política?
Não tinha perfil para um certo tipo de coisas que estar numa máquina política supõe. Quem está numa máquina de uma direcção partidária tem de estar disponível para muitas coisas, não só para aquelas que são mais gratificantes intelectualmente.
Como é que faz o salto do socialismo para a social-democracia?
Na Acção Socialista as principais referências eram as sociais-democracias europeias. E quando foi o Partido Socialista não entrei porque o programa estava completamente fora daquilo em que acreditava. O meu Pai, que esteve na Acção Socialista e no Partido Socialista, saiu no fim de Abril de 1974: “Ou vocês mudam o programa ou eu mudo de partido”. O programa falava de mergulhar as suas raízes nos aspectos mais positivos da experiência chinesa, da terceira via que era o socialismo jugoslavo... O meu Pai sai nessa altura e entra para o PPD em Junho.
Levado por si?
O Francisco Sá-Carneiro também o estimava muito. Estimulei-o, e a outros amigos da geração dele, a irem para o partido. Um dos quais tinha sido secretário-geral da campanha de Humberto Delgado, o arquitecto Artur Andrade.
Assistiu à chegada de Humberto Delgado ao Porto?
Assisti. Quem o recebeu foi o meu Avô, na Praça Carlos Alberto. Quando o comboio chega, com uma hora de atraso, às sete e meia, está a cidade inteira na rua. O comércio tinha fechado às sete e estava tudo à espera dele. E isso é impressionante. Eu tinha de fazer o sétimo ano daí a um mês, fui para lá às seis e mesmo a essa hora já não consegui subir os Clérigos. Mas pegando atrás na sua questão: eu não me via a ocupar muito tempo com os jogos que antecipava como normais numa máquina partidária. Mas fui aos dois primeiros Congressos e no VI Governo Provisório participei como Secretário de Estado do Tesouro, a convite do Dr. Salgado Zenha [Ministro das Finanças].
Gostou da experiência?
Foi muito valorizante e muito gratificante. Mais tarde, fui algumas vezes convidado para funções ministeriais e nunca aceitei. O meu perfil e a maneira de encarar as coisas não é muito compatível com este tipo de trabalho. A idade era a mais indicada: é importante ter ainda um misto de sonho e de ambição e vontade de fazer, que com mais idade se tem menos. O exercício de funções governamentais, na altura sem maiorias absolutas, obrigava a concessões muitas vezes contrárias àquilo em que acreditávamos. Isso nunca me interessou. Fui convidado para ser candidato a deputado em 69 e não aceitei; não me via a mobilizar as multidões nos comícios.
Tem medo de ir a votos?
Ir a votos não supõe qualquer risco pessoal. Vai-se a votos em Portugal pela máquina partidária. Eu não me via era na representação e na encenação que a política supunha.
Este podia ser um bom momento na sua vida para assumir um cargo político, como o de Presidente da Câmara do Porto. É uma coisa de que se fala de quando em vez, sobretudo desde o seu afastamento progressivo do banco. É um cenário que contempla ou é completamente descabido?
Já me perguntaram isso. E já disse que o estado de espírito é o mesmo. Estive durante uns meses à frente de um projecto que achei que poderia ter mudado o Porto, o Porto 2001. Um projecto para uns 6 a 8 anos, como inicialmente defendi.
Era mais do que um mandato de uma câmara.
Era um projecto para ajudar a requalificar e a valorizar a cidade. Como adoro o Porto, disse: “Disponho-me a avançar, a aceitar, coordenando uma equipa que assuma este projecto. Um par inter pares, mas como primeiro responsável”. E nessa experiência, que para mim durou cerca de dez meses, percebi claramente o que eram as fidelidades, as lealdades, o apoio efectivo que podemos ter quando não estamos ligados a uma máquina partidária. Não vou falar mais disso, que bem conhece. Chegou para perceber que nunca mais aceitaria fazer nada que tivesse que ver com dependência do poder político.
Diz isso com uma determinação... Definitiva e férrea. Não há nada que o pudesse tentar?
Em relação à Câmara, era das coisas que mais me teria agradado fazer noutra idade. Mas só se tivesse sido apoiado pelas grandes forças partidárias, o que é naif: ou se vai com uns ou se vai com outros. O meu Avô foi presidente da câmara, quase cinco anos, com menos de 40 anos de idade.
Mais atrás: quando vai estudar Direito, o seu projecto de vida passava pela política? Pelo Direito propriamente dito? Porque a tradição familiar vai neste sentido.
Vamos lá a ver. Nunca me passou pela cabeça estar ligado a um banco, quando entrei em Direito. Fui fazer o curso de Direito e pensava vir a trabalhar com o meu pai.
Isso é tão portuense! A placa na janela com o nome do pai e do filho... Os médicos e os advogados fazem-no ainda hoje.
Muitas vezes acontece. O meu pai era o meu herói. Primeiro, pensei que podia ser médico.
Como o avô. Estava ali entre o avô e o pai.
Exactamente. Depois, quando o Norton fez 80 anos, ia com o meu Avô, vi um desastre e percebi que aquilo me perturbou muito. Hesitei entre a matemática e a engenharia química, mas a projecção da vida do meu outro herói levou-me a optar por Direito. À medida que o curso foi avançando, tive muito boas notas, e depois uma pessoa também estuda por amor-próprio.
Brio.
Queremos convencer-nos de que podemos fazer mais, podemos fazer melhor. No dia em que me formei, sou desafiado para ser assistente, na Faculdade de Direito, em finanças públicas e economia política. Depois vou fazer o serviço militar na Marinha.
O que é que rompe com esse quadro e o faz iniciar uma nova vida?
O que rompe é quinze dias ou três semanas antes de acabar o serviço militar, quando pensava voltar para Coimbra, surge-me um convite para ir para um cargo directivo no Banco Português do Atlântico. Havia dois directores gerais: em Lisboa, Vasco Vieira de Almeida, e no Porto, Carlos Câmara Pestana. E esse, que apreciava muito o meu Pai, quando houve uma vaga na direcção lembrou-se que o Dr. Santos Silva tinha um filho assistente em Coimbra que tinha feito um curso com boas notas e que talvez encaixasse bem nessas funções.
E assim se traça um destino.
O que é que pesou muito em mim, nessa altura? Achei que era um desafio diferente e admitia que tinha condições para o assumir, embora não conhecesse o terreno concreto. Em segundo lugar, era voltar ao Porto, onde tinha todas as minhas raízes afectivas.
No meio deste percurso, quando é que constituiu a sua família? Ou seja, quando é que casou e começou a ter filhos?
Casei um ano depois de estar a trabalhar no Porto, quando tinha condições para casar. Tinha 27 anos. Tive namoro com a minha Mulher cinco anos.
Está a falar-me, desde o princípio, da relação profunda que tem com o Porto. A sua vida teria sido outra se se tivesse mudado para Lisboa?
Acho que não. No princípio, o desafio que tive foi ficar a trabalhar no Porto, no Banco Português do Atlântico. Depois, fui convidado para administrador _ o que a nacionalização não permitiu concretizar. A seguir, estive em Lisboa, entre o VI Governo e Vice-governador do Banco de Portugal, perto de três anos. Podia ter ficado aqui, mas gostava mais do ambiente do Porto, do tipo de vida que fazia, mais dependente de mim do que da envolvente. Houve outras razões específicas: uma crise de saúde do meu Pai, a fase terminal da vida do meu Pai. Quando tive que desenhar este projecto...
Avancemos então para o projecto da sua vida. Pensou o BPI de raiz há 27 anos. O banco comemora em Outubro 25 anos.
Tive a ideia, construí o projecto, atraí accionistas portugueses, entidades internacionais financeiras, e para isso tive de dar muito a cara e comprometer-me neste desafio. E isto foi um sonho que passou a projecto e a instituição estritamente a partir de mim. Não fui convidado por ninguém. Fui eu que tive a ideia e mobilizei investidores. Os accionistas com mais peso eram empresas do Norte. A componente mais dinâmica do nosso País estava no Norte. A sede natural do banco era o Porto.
Foi fundamental ter passado lá por fora, por Stanford, para ousar desenhar um banco, para saber erguer o edifício?
Foi a minha convicção segura de que era impossível o país continuar a ter todo o sector financeiro nas mãos do Estado. Tinha assistido a uma degradação brutal do sector bancário desde que passou para as mãos do Estado. Eu estava numa grande escola, o Banco Português do Atlântico, tinha estruturas de topo totalmente profissionais. As pessoas, não era por serem da família dos donos que estavam à frente do banco: estavam se tinham mérito. Vi como é que se geria uma instituição de acordo com o dever ser e com o respeito por uma série de princípios. O meu “benchmarking” pessoal era o BPA. Quando vi o estado a que se tinha chegado, disse: “Isto vai ter de mudar. Qual é a primeira janela? É a das sociedades de investimento. O resto será uma questão de tempo”. Foi a certeza, a convicção profunda de que havia uma grande oportunidade que era preciso aproveitar. Quanto mais tarde arrancássemos, mais tarde contribuiríamos para ser um agente de mudança.
Tenho uma pergunta sentimental a fazer-lhe. Sei que este não é o espaço para falar da OPA - são outras as características desta entrevista -, mas ela pode representar a asfixia do sonho de uma vida, do projecto da sua vida. A pergunta é se isto, emocionalmente, lhe custa imenso.
Pelo contrário. Ver como reagiram os colaboradores, os clientes e os accionistas - sobretudo os accionistas de referência, que conheciam melhor o que estávamos fazendo, o que queríamos fazer, e que foram de uma identificação total com a manutenção de um projecto independente – foi fantástico. Tirando os primeiros momentos, que foram, naturalmente, um abalo. “Está lançada uma OPA sobre o BPI”...
Como é que soube da notícia?
Soube quando a operação estava lançada. O meu colega Fernando Ulrich foi avisado pelo Dr. Paulo Teixeira Pinto uns momentos antes de ser público, mas já a cotação das acções estava suspensa. E informou-me imediatamente. Logo a seguir veio o comunicado. Esses dois, três, primeiros dias foram naturalmente complicados, mas depois foi para mim uma grande alegria ver como todos reagiram. E estou muito tranquilo quanto ao futuro. Mesmo na opinião pública há um reconhecimento da importância do papel do banco e da conveniência para o mercado de se manter um banco como o nosso, independente.
Está expectante em relação ao desfecho deste caso?
Eu estou fortemente convencido de que não vai haver nenhuma alteração, mas sobre isso não quero, agora, falar.
Começámos por falar de morte. O que é que por fim fica quando um homem fica a sós consigo e com a sua vida?
Acho que é o momento de reflectirmos sobre o que fizemos. Se pensámos só em nós, se pensámos nos outros, se quisemos perceber de onde vínhamos e para onde vai a Humanidade. É pelo que tivermos feito aos outros que temos de nos distinguir na nossa passagem pela vida. A família, os amigos, a sociedade em geral. E de uma maneira mais ou menos sensível, é o que devemos fazer todos os dias.
Imagino que deixe aos seus netos um património materialmente muito mais valioso do que aquele que herdou do seu pai ou do seu avô. E estes deixaram-lhe um património emocional incrível, que é evidente no brilho que tem quando fala deles. Do que é que se orgulha mais de deixar aos seus netos, este património material ou a memória que eles possam ter de si?
Quanto ao património material não pense que é nada que vá alterar radicalmente a sua vida, porque eu sou um profissional. A minha vida e o meu percurso foi, essencialmente, aqui no BPI. Não é isso que os vai marcar. Tenho quatro filhos: um está na Costa Esmeralda, no México, tem um projecto de ecoturismo. É formado em Direito, mas também se enganou na porta. O outro, que se formou em Gestão, está em S. Paulo. Os dois mais velhos estão cá. A minha filha trabalha num banco de crédito ao consumo, que hoje é do Crédit Agricole, e o meu filho mais velho trabalha numa empresa de grande distribuição, o Pingo Doce (do grupo Jerónimo Martins). Ele é formado em Marketing, ela em Relações Públicas. Eu acho que há uma relação muito boa deles connosco e deles entre si. A minha Mulher é educadora infantil e tem uma grande vocação e interesse de ajudar na educação dos netos, tal como se dedicou totalmente aos filhos. Quero é que eles tenham a melhor educação possível, e que eu, de alguma maneira faça até em relação aos meus netos o que muitas vezes consegui menos do que deveria em relação aos meus filhos, porque estava muito absorvido profissionalmente.
Uma boa educação...
É a porta principal para a felicidade.
O senhor é especialmente bem educado.
É muito bom termos beneficiado de um ambiente de grande felicidade à nossa volta e termos pessoas que nos transmitem valores, princípios e afectos: é isso que mais nos vai ajudar pela vida fora.
Como escreve a Clarice Lispector, “É tempo de morangos”. Que eu traduzo por: é tempo de viver.
Agora, com as estufas, temos morangos todos os dias! Mas, a minha fruta preferida é a tangerina. O Eugénio de Andrade tem um poema muito bonito sobre a tangerina.
E como é que diz o poema?
… deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007