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Anabela Mota Ribeiro

Gérard Castello Lopes

06.06.13

«Nasci Salieri. Eu não tenho dúvida nenhuma em ser Salieri. A admiração jubilatória que eu tenho pelos Mozarts que conheço...». Os Mozarts são Soudek, Lartigue, Eugene Smith, e, claro, Henri Cartier Bresson. Nasceu Salieri, então, em Vichy em 1925, o ano em que foi comercializada a Leica, o objecto fotográfico de culto que regista os seus instantes decisivos.

Gérard Castello Lopes tinha uma mãe francesa e um pai severo. Era um protegé que cirandava pelos melhores ambientes. Derramava charme, dinheiro e champanhe, que parece sempre uma boa combinação, até se dar conta da insipidez da combinação. A roçar os trinta, descobriu-se perdido, a explodir de raiva e desamor. Submergiu na água do mar com um prazer longínquo, amniótico, e foi para fixar esse universo aquoso que começou a fotografar.

Nos longínquos anos 50, retratou o país. Um Portugal entristecido, monocolor, castrado. As imagens mais conhecidas datam, justamente, desse período. Segue-se um longo, longo interregno, durante o qual fez as vezes de homem de negócios. Retomou a relação com a máquina quando um tal de Toé o convenceu a expor num país que parecia tê-lo proscrito. Pela primeira vez, tem um público. Inicia o seu segundo percurso fotográfico.

A exposição «Oui/Non», no Centro Cultural de Belém, mostra cerca de 150 fotografias, em grande parte inéditas. Gérard diz que o ponto de partida foi um arquivo de 32 mil provas de contacto que sintetizam meio século de actividade.

O nosso primeiro encontro aconteceu durante a montagem da exposição. A conversa que vão poder seguir aconteceu semanas mais tarde, num domingo com vista para o Guincho.  

 

 

Comecemos pelo pedregulho, parece-lhe bem?

Ó diabo!

 

Como é que lhe chama?

A pedra.

 

Numa entrevista dada há cerca de 10 anos dizia que se nada mais valesse a pena, aquela imagem já o justificaria. Como é que encontrou a pedra?

Há datas que se fixam: 28 de Agosto de 1987. Nesse dia a luz correspondia ao que mais gostava quando comecei o meu primeiro percurso fotográfico. Era clara, relativamente intensa, mas suficientemente difusa para que todos os detalhes fossem aparentes. Fomos todos em passeio em direcção à Praia do Abano, estávamos à borda de uma falésia e vi a pedra. A minha mulher [Danièle] não gosta nada que me chegue à beira das falésias, mas tive a noção de que estava ali uma fotografia como, suponho, nunca tirei.

 

Então anteviu?

Sim. Foquei a pedra e tirei uma fotografia. Uma fotografia. E soube, desde o princípio – coisa que acontece raramente –, que tinha feito uma fotografia importante. Mandei revelar o rolo e fazer uma ampliação em 10/15. Disse ao António Osório Sena da Silva, também conhecido por Toé: «Se isto não for uma boa fotografia, acho que vou desistir de fotografar». Ele olhou e disse: «Podes continuar». Depois cheguei a Paris e mostrei a fotografia à Danièle. Ela foi para a biblioteca e veio de lá com um livro do Magritte, onde me mostrou uma reprodução de uma pintura que parecia a minha pedra.

 

Já tinha feito a associação?

Não.

 

Conhecia o quadro do Magritte?

Essa pedra chama-se «Le Château des Pyrénées», é muito parecida com aquela que fotografei, mas não está na horizontal, está na vertical. E no topo da pedra estão uma espécie de edificações. O que é que acontece? Quando a Danièle me mostra o livro tive uma sensação muito agradável e uma sensação muito desagradável. A sensação muito desagradável foi: «Vão dizer que andei à procura de qualquer coisa e que isto é uma influência, quase um plágio».

 

Foi a sua insegurança a falar.

Exactamente. O lado agradável foi: «Les beaux esprits se rencontre!». Isto é, se ele andou atrás das pedras e eu andei atrás das pedras, houve pelo menos um cruzamento entre o meu caminho fotográfico e o caminho de pintor Magritte. Isso era uma coisa que me dava uma certa alegria. Não é impossível que eu tivesse visto «Le Château des Pyrénées». O que posso garantir é que em nenhum momento, quando fotografei a pedra, tive a mais pequena recordação do quadro do Magritte.

 

Porque é que disse: «Ó diabo!» quando sugeri que começássemos pela pedra?

É um bocado complicado explicar... Costumava dizer que, se depois do meu desaparecimento subsistisse qualquer coisa, seria provavelmente a pedra. E como sabe, tenho a ideia de que não fui eu que fotografei a pedra, a pedra é que se deixou fotografar. Para mim foi um verdadeiro milagre! As condições de luz eram perfeitas, as condições do mar eram perfeitas, tive a sorte de lá estar…

 

Acredita em Deus?

Não! Era o que faltava!

 

Interrompi-o porque, face à sua descrição, a expressão que me ocorreu foi «conjugação divina»...

Bom, o facto de não acreditar em Deus... Eu não posso acreditar em Deus. Fui educado catolicamente, deixei de acreditar aos 16 anos pelas más razões e aos 29, parece-me, pelas boas. Mas o facto de não acreditar em Deus não significa que não acredite que há qualquer coisa de transcendental no Homem. Para mim, todas as religiões – as politeístas e as monoteístas – são transferências de uma visão transcendental do próprio Homem sobre uma outra entidade, que é divina e omnisciente. Se tivesse que escolher uma forma de viver – que me é vedada pelo simples facto de ser ocidental – aquilo que mais me apeteceria ser era budista, que é uma religião sem Deus.

 

Como lhe disse no CCB, aquando da montagem da exposição, a pedra convoca em mim o mito de Sisífo. Apesar do esforço continuado, Sísifo não consegue colocar a pedra que carrega às costas no cimo do monte. Mas não desiste de fazer nova tentativa e reinicia sempre o processo. O mito traduz a noção de limitação do humano. Mas na sua fotografia, a pedra convoca também um estado de suspensão: sendo de uma enorme bruteza, tem, ao mesmo tempo, a leveza de uma nuvem.

Não é com certeza por acaso que numa pintura do Magritte – que se tornou, como não podia deixar de ser, num dos meus pintores favoritos – há uma taça de champanhe que está cheia de uma nuvem. Encher uma coisa material com uma coisa que é praticamente imaterial. E nisso havia uma inteligência diabólica do Magritte, quando ele procurava conceptualmente maneiras de redefinir a realidade, não como ela é vista, mas como é sonhada. Porque é que me admirei quando quis começar pela pedra? Bom, pode ser que a pedra, ou mais duas ou três ou quatro, ou, no máximo, uma dezena de fotografias me possam sobreviver. Mas até há relativamente pouco tempo, a pedra era o fim. Admirei-me porque quis começar pelo fim.

 

As suas imagens mais conhecidas são as do Portugal dos anos 50. Quando se pensa no Gérard fotógrafo pensa-se no cronista em imagens do Portugal lamuriento e salazarento. É curioso que escolha para si, como essência, uma imagem que não é dessa fase. E que representa, não o fim, mas um novo começo.

Exacto. Os meus dois percursos fotográficos são completamente distintos. São enformados por intenções quase opostas. Embora haja uma continuidade formal qualquer – às vezes a Danièle põe duas fotografias minhas, uma ao lado da outra, e percebe-se que há uns arquétipos que revelam a constância na forma como olho.

 

As nuvens reflectidas nos charcos, por exemplo…

É um dos arquétipos. Não gosto de dizer isto, mas, para falar depressa e barato, o meu primeiro percurso foi da ordem da denúncia de uma injustiça profunda dentro da qual vivemos: essa opressão, esse silêncio, essa clandestinidade, essa miséria, essa censura. Do teatro, da poesia, da música, dos romances, do cinema, da fotografia, de tudo. Era de tal maneira insuportável para quem, como eu, foi educado dentro de um critério de liberdade_ até porque a minha mãe era francesa... Portanto, esse percurso foi animado por uma ideia moral, denunciadora de qualquer coisa que era invivível. Mas durante esse percurso apercebi-me variadíssimas vezes que, por muito boas que sejam as nossas intenções, há pessoas que não gostam de ser fotografadas.

 

Essa questão transformou-se no problema central do primeiro percurso.

Nunca consegui resolver cabalmente esse problema. Nunca. Há maneiras de o fazer que não sou capaz de utilizar e entre essas maneiras há umas pessoas que vão pelas ruas saltitando, olhando para cima, olhando para o lado, andando para trás, andando para a frente, como se fossem um pouco tontinhas. Não vou dizer nomes, claro. Depois, na altura em que comecei a fotografar, tinha 1,90m. É muito difícil passar despercebido quando se tem 1,90m. Fui muitas vezes agredido e insultado e vilipendiado, preso até. Isto transformou-se numa espécie de obsessão que nunca fui capaz de resolver.

 

Esses pruridos não decorriam, também, da sua infindável culpa? Culpa de ser bem nascido, rico, e de devassar com a sua presença fotográfica e com o seu 1,90m a vida terrível daqueles desprotegidos.

Sim, senhora! Acho que tem visos de razão no que está a dizer. Lembro-me de uma homenagem que se fez na Provence ao meu grande amigo António Tabucchi em que as coisas começaram a embrenhar-se umas nas outras e às tantas o António levantou as mãos e disse: «Eu sinto-me culpado de existir». Fiquei desfeito. Fui ter com ele, abracei-o, estava à beira de chorar. Ele definiu aquilo que, dentro de uma coisa chamada Cristianismo, é o Pecado Original. O simples facto de existir e de não existir como um asceta, um eremita, de aproveitar de uma maneira mais ou menos legítima dos bens, das posses, das riquezas, da cultura, do saber ler, do saber escrever, de poder criar seja o que for, é já o fundamento de uma culpa qualquer.

 

Aos 29 anos escreveu numa biografia sumária que tinha um curso em Economia, lido 2 ou 3 mil livros, viajado pelo mundo inteiro, talentos vários. E que tudo isso não servia para nada. Não conseguia potenciar o que lhe fora oferecido de mão beijada. Claro que ter tido uma educação esmerada não anulou o facto de se sentir indesejado e desamado... Ou seja, aos 29 anos estava completamente deprimido.

Completamente perdido. O texto chama-se «A ponte do entusiasmo». Era por oposição a um verso do Mário de Sá-Carneiro que dizia: «Eu não sou eu nem sou o outro/ Sou qualquer coisa de intermédio/ Pilar da ponte do tédio/ que vai de mim para o outro». Eu não podia perceber que alguém fosse pilar da ponte do tédio porque aquilo que me tinha animado toda a vida tinha sido o entusiasmo.

 

Mas tinha sentido entusiasmo até aí?

Tinha! Sempre!

 

O que é que fez esse cair em si?

Esse cair em mim começou muito, muito, muito antes, na minha infância, que não foi uma infância feliz. Nunca me senti amado, nunca me senti protegido. Tornei-me rapidamente uma criança problema. E a melhor maneira que os meus pais encontraram foi meter-me num internato. Hesitaram muito entre uma escola jesuíta ou o Colégio Militar. Escolheram o Colégio Militar, não sei porquê.

 

Foi o seu pai que escolheu o Colégio Militar? O seu pai era severo, não era?

Era de uma severidade muito grande. Eu não gosto muito de falar nisto… Não sou contra a instrução militar. Sou contra a introdução dessa disciplina militar como uma segunda natureza. A gente fica completamente tocada, apodrecida. Tudo o que há de criador, tudo o que há de sensível fica completamente esboroado, desaparece pela boçalidade, de cuja única saída, em tempo de guerra, é uma forma particular de heroísmo. E depois, a minha mãe dizia-me que «une belle mort peut justifier tout une vie»! Levei anos a acreditar nisto romanticamente. E é completamente falso. É completamente falso! O homem que em Cuba foi fuzilado, com uma coragem indómita, que comandou o seu próprio pelotão de execução e que passou a vida a castrar jovens estudantes universitários; como é possível que esta bela morte justifique os horrores que praticou durante a sua vida?!

 

Só a vida justifica a vida?

Só a vida justifica a vida! Ponto final. Dentro deste regime Salazareno (como lhe chamo), uma sobrecarga de disciplina militar em que nem sequer se pode gerir o próprio tempo, se se tem frio não se pode pôr capotes… Essa disciplina institucional, a todos os níveis…

 

Impõe uma formatação.

É uma formatação do Ser. Sempre vivi dentro desse quadro num estado de revolta constante. Tenho muitas coisas para dizer que até hoje foram caladas sobre a minha passagem pelo Colégio Militar. Talvez um dia me decida a escrevê-las para serem lidas depois de eu desaparecer. Mas sou obrigado também a dizer que em 1992, quando o meu curso fez 50 anos e se reuniu, fomos recebidos na biblioteca – coisa que era completamente proibida quando eu era aluno no Colégio Militar.

 

Como se não fossem dignos?

Exactamente. A biblioteca era reservada aos oficiais. Era o seu salão. E fui acolhido por um brigadeiro, que era uma pessoa extraordinariamente bem-educada, culta, e senti-me na obrigação de lhe dizer que tinha passado os piores anos da minha vida naquela casa. Ele olhou para mim e disse: «Eu sei muito bem a que é que se está a referir. Mas, repare, estão aqui os directores todos do Colégio Militar e, infelizmente, durante os anos em que o senhor cá esteve, não está a imagem de nenhum. Foram todos directores interinos». Entrei no Colégio Militar em 1936, saí no dia 4 de Julho em 42. Possuído de uma revolta contra tudo e contra todos – isto é importante que diga, porque essa revolta levou-me a muitas coisas. Levou-me a uma necessidade de amor e de protecção.

 

E aí entram «as gajas» e o desbaratino no tempo de faculdade.

Pois. E entra o meu primeiro casamento.

 

Que idade tinha?

Casei-me com 23 anos. E a minha pobre mulher, primeira mulher, foi vítima dessa revolta e imperiosa necessidade de ser amado. À medida que os anos iam correndo, que as crianças iam crescendo, um dia, em 1955, tinha eu 29 anos, apercebi-me que a minha vida não tinha sentido nenhum.

 

Nem pelas crianças?

Nada. As crianças eram acidentes. O meu casamento era um acidente. A minha revolta era uma coisa constante. Eu achava que tinha sempre razão. Sentia uma perseguição que me acometia sempre. Não conseguia gerir o meu tempo. Levantava-me a desoras, a minha vida não tinha qualquer sentido. Isto passou-se estava eu sozinho em Paris e, num acto… A minha ideia era mesmo suprimir-me.

 

Um eufemismo...

E num determinado instante, agarrei numa revista e li um artigo sobre o budismo. A minha vida levou outro rumo. Percebi as razões profundas da minha revolta. A partir daí a minha tendência foi deixar de ter razão, dar razão ao outro. Quando estava no metro ou na rua olhar para as pessoas nos olhos. O que, às vezes, conforme o sexo das pessoas, deu circunstâncias curiosas.

 

Não ter medo de olhar os outros.

E assim foi. Comecei a sentir que era uma chave virgem e que cada intentação que fazia era um processo. Para que essa chave, um dia, me pudesse abrir a porta da felicidade. Apercebi-me, mais tarde, que essa chave não tem fim, e que a felicidade é o itinerário que se percorre até lá chegar.

 

Lembrei-me novamente da sua pedra. Então, tinha um peso incomportável. Todo o percurso foi feito no sentido de encontrar a leveza. Mas, para isso, é preciso ter um fito.

Óbvio. Compreendo perfeitamente o mito de Sisífo e é muito possível que a pedra seja um dos símbolos dessa incapacidade de levar a rocha até ao cume da montanha.

 

Tinha pensado já no mito de Sisífo a propósito da sua pedra?

Da pedra nunca. Acho que escrevi uma frase: a parecença é como o mito de Sisífo, é a rocha que não se consegue levar; e, às vezes, é a glória do fotógrafo. As boas fotografias, pelo menos no meu caso, são raras.

 

O que é uma boa fotografia? Como é que determina isso?

Uma boa fotografia é a que desencadeia em mim, para além da correcção geométrico-formal da composição, uma emoção qualquer.

 

Porque é que são tão raras? Não parece ser eminentemente um racionalista, parece ser permeável à comoção.

Eu sou um racionalista. Não posso ser outra coisa! Que a mais importante das civilizações europeias tenha morto 6 milhões de Judeus, 1 milhão e meio de comunistas e acho que 500 mil homossexuais… Um país que produziu um homem como Beethoven, ou Hegel, ou Karl Marx perpetrou os assassinatos maciços. Se pode haver um humanismo neste mundo, ele tem que ser necessária e constantemente posto em dúvida. O essencial de uma visão humanista não é dizer que somos todos iguais. É, para começar, dizer que somos todos diferentes. E não transformar essa diferença numa forma qualquer de superioridade, que pode levar a uma guerra, a uma matança, a um assassinato. Se há um autor para quem isto é completamente verdade, sempre, é António Tabucchi. Se o Carlos Afonso Dias me ensinou, quando eu tinha 30 anos, a dúvida no campo científico, o António Tabucchi ensinou-me a dúvida no dia-a-dia. Mas essa dúvida também não pode empanar excessivamente o entusiasmo e a curiosidade.

 

O Gérard e o Tabucchi eram amigos próximos do Alexandre O’Neil e não se davam especialmente. Competiam pela amizade do Alexandre?

Acho que sim. O Alexandre sempre foi um homem declaradamente de esquerda e o Tabucchi também. Ele hoje considera-se anarquista. Eu também acho que sou um anarquista moderado. Um anarquista porque toda a autoridade, todo o poder que se queira exercer sobre mim desencadeia logo uma desconfiança fundamental. E sou moderado porque não os mato, não ponho bombas. Mas enfim. Toda a literatura do Tabucchi, que comecei a ler muito tardiamente – há para aí uma vintena de anos –, ensinou-me isto que lhe estou a dizer: não pode haver humanismo no pleno sentido da palavra se não pusermos constantemente em dúvida as nossas convicções. Razão tinha o Descartes e razão não tem o Damásio.

 

E a emoção? Parece que vai fugindo dela. Sempre.

Não.

 

Ao mesmo tempo que alimenta o desejo de ser amado, encontra conforto no racionalismo que lhe foi inculcado. Imagino que reserve para o Colégio Militar uma raiva suplementar porque, apesar de toda a recusa, inculcaram-lhe valores aos quais não consegue fugir...

É verdade. Durante muitos anos, quando mandava fazer fatos no alfaiate, queria que fossem encostados ao corpo. Ainda hoje, se ponho roupa que me fica um pouco grande, sinto-me mal. Há outra coisa que devo ao Colégio Militar, que é o desporto que lá fiz.

 

Nunca lhe chamaram Gerardo?

Foi sempre Gérard. Normalmente as pessoas chamam-me Gérard (sem acento no «erre»). Não tenho nada contra isso. Lamento que me tenham dado esse nome.

 

Pensei que no Colégio Militar, entre rapazes, pudessem chamar-lhe Gerardo, à portuguesa, ou mesmo Castello-Lopes – é uma coisa muito masculina chamar pelo apelido.

Não. Desculpe. Desculpe. No Colégio Militar a gente não tinha nome. Tinha número. Só se era conhecido pelo número, como os prisioneiros.

 

Quando se dirigia a um colega seu de 12 anos chamava-lhe como?

Ó 24! Não havia personalidade. Ó 303! Ó 1-4-8! Depende. Havia uma melodia na forma de pronunciar os números.

 

O seu pai chamava-lhe Gérard à portuguesa ou à francesa?

À portuguesa, sempre.

 

Mas a sua mãe à francesa, naturalmente.

Mas a minha mãe abandonou-me quando eu tinha 5 anos. Divorciou-se do meu pai quando eu tinha 5 anos. Depois o meu pai casou-se uma outra vez com uma senhora húngara, que é mãe do meu irmão. Quer ele, quer eu, tivemos infâncias dolorosas, e isso desencadeou entre nós uma cumplicidade…

 

Até aos seis anos falava um português com sotaque francês, não era?

É verdade.

 

E é verdade que o perdeu instantaneamente depois de os seus pais se separarem?

Não. Os meus pais já estavam separados, creio que o meu pai já estava casado outra vez, e lembro-me perfeitamente do sítio em Caxias em que pela primeira vez fui capaz de rolar um «erre». Até esse momento só era capaz de pronunciar o «erre» à francesa. Foi uma grande vitória.

 

Não sei bem porquê, lembrei-me agora das suas imagens subaquáticas, que são muitos belas. Foi assim que a fotografia surgiu na sua vida: para fixar os momentos de pesca submarina

Sim. Sempre tive uma enorme atracção pelo mar. Lembro-me do primeiro dia em que consegui nadar. Tinha 7 anos e estava com o meu pai em Santo Amaro de Oeiras. Donde é que me vem todo este amor pelo mar? A primeira ideia vem da caça submarina, que foi uma coisa que fiz e de que tenho vergonha. Andar a matar peixes é bastante desagradável. Mas, numa determinada altura, fui a Cannes tirar um curso de escafandria autónoma. Quando se entra no mar e se mergulha com as barbatanas, é deslumbrante. Tenho a sensação de que a água do mar é aquilo que mais se assemelha ao líquido amniótico.

 

É uma espécie de reconhecimento inconsciente?

È. Por outro lado, o facto de respirar dentro de água, coisa que não acontece quando se está no ventre da mãe, torna-se ameaçador. O que é que estou aqui a fazer? Como é que posso respirar dentro de água? Uma altura, ainda mergulhava sem fato, lembro-me de estar a 10 ou 12 metros e de ver um terreno rochoso e uma falésia que ia até 20 ou 30 de profundidade. Aconteceu-me uma coisa inefável: esvaziei os pulmões e caí para o fundo. Não sei porquê. Ficou-me isto quase como um ícone da alegria que se pode ter debaixo de água.

 

A alegria na queda.

Agora, o que é que se passa debaixo de água? Dentro de água, quando se está convenientemente lastrado, não há gravidade: não se tem peso. Há qualquer coisa de completamente surrealista no mergulho em escafandro. Sou só eu, e eu sou responsável por mim. Embora uma das regras fundamentais do mergulho, sobretudo do contemporâneo, seja não mergulhar sozinho.

 

Ensinou os seus filhos a nadar? Ou a ver, ou a fotografar, ou a amar, ou a viver?

É um bocadinho complicado. Durante o crescimento da nossa filha, que tem 32 anos, estava bastante afastado da fotografia; só fazia fotos das férias, dos aniversários… O nosso filho, que tem 22, nasce na altura em que recomeço a fotografar. E qual não é o meu espanto – e o da Danièle – quando o nosso filho se revela um fotógrafo muito competente! Se eu fosse capaz de fotografar, com a idade dele, aquilo que ele é capaz de fotografar, eu era de certeza o maior fotógrafo do mundo!

 

Ensinou-o a olhar?

A olhar não se ensina. Ensinam-se as fases técnicas. O que é uma objectiva, qual é a distância focal de uma objectiva…

 

Mas isso pode aprender-se nos livros. O Gérard foi um autodidacta. Tinha umas noções que aprendeu sozinho, tinha o seu mestre Cartier-Bresson e tinha aquilo que queria fotografar. O que distingue um fotógrafo de outro é o seu universo, é aquilo que é para si quadrável. E o que é quadrável tem que ver forçosamente com o modo de ser. Educar um filho deixa implícita uma marca.

A olhar? Insisto pesadamente. Pode-se ensinar tudo o que é da ordem do técnico. Não se pode ensinar a olhar. E qualquer tentativa no sentido de ensinar a olhar é do foro ditatorial. O que não quer dizer que se não seja influenciado pelo olhar de outrem. Como eu fui influenciado por algumas regras fundamentais do Henri Cartier-Bresson _ tentei fazer fotografias um pouco à la manière de Cartier-Bresson. O olhar é qualquer coisa de muito misterioso.

 

Depois de um longo interregno, recomeça a fotografar em 82. Foi determinante o seu encontro com o Toé, que tem idade para ser seu filho, mas que o fez confiar em si mesmo.

Sempre levou duas horas! E como já disse, resisti, resisti, resisti e acabei por ceder. Primeiro para o calar, porque já não o podia ouvir, e em segundo lugar por aquilo que me restava de uma certa vaidade. Como é que hei-de dizer? A gente tira fotografias para as mostrar. A verdade é esta. Há qualquer coisa de pretensioso em imaginar que aquilo que registamos possa interessar outra pessoa. O risco essencial do fotógrafo, do escritor, do poeta, do músico, do dramaturgo, do romancista é: faz uma coisa, deita-a cá para fora e arrisca-se a levar uma reguada nos dedos.

 

Era sobretudo por medo que não havia mostrado antes?

Não. Era porque ninguém me tinha convidado para mostrar fosse o que fosse.

 

A sensação de ser expatriado, de não lhe darem atenção, de não estarem interessados em si, magoou-o muito.

Magoou. E quando o Toé vai a minha casa a Paris e me propõe fazer uma exposição, acabo por aceitar sem ter bem, bem consciência do que poderiam ser as consequências dessa anuência. Bom, a primeira coisa que sou obrigado a dizer é que se hoje sou um fotógrafo público devo-o ao Toé. Foi ele que pela primeira vez me pôs na posição de ter fotografias minhas a serem vistas por pessoas que não conhecia. Ou seja, um público. Isto desencadeia uma diferença categorial muito importante.

 

Até então, a sua actividade profissional era outra: geria o negócio da família. Pensava em si como um homem de negócios? Não pensava nunca em si como um fotógrafo?

Não, ao princípio não.

 

E agora?

Quando me perguntam qual é a minha profissão, digo: «Fotógrafo».

 

Sente um enorme prazer em poder dizer isso?

Ah, sim. Mesmo não me achando um grande fotógrafo – porque não me acho um grande fotógrafo –, é um grande prazer.

 

Isso não é por imodéstia. É mesmo o que considera.

É. Um dia o Fernando Lopes apresentou-me ao senhor Guterrez, com quem almoçava no Gambrinus: «Está aqui o meu amigo Gérard Castello-Lopes! Fotógrafo!». Foi um baile! Já havia pessoas que olhavam para mim não como homem do cinema mas como fotógrafo! Isso foi uma bênção, foi um linimento cá para dentro!

 

Na adolescência, entre outras coisas, quis ser realizador de cinema.

Antes de tudo, quis ser actor. O cinema era uma música para os olhos. Tinha a ver com o rito do fogo. Nunca lhe aconteceu olhar para o fogo durante muito tempo? O meu sogro dizia que aquilo que o salvou a ele e à mulher durante a guerra foi a possibilidade de olhar para o fogo. Há uma liberdade no fogo que é muito reconfortante. Entre o fogo e o cinema, não sei bem o que prefiro. Sei que preferi o cinema durante os anos da minha cinefilia e preferi filmes que foram de uma grande, grande importância.

 

Quais?

Se só pudesse ver um, parece-me que seria «La Règle du Jeu», do Renoir. Mas outros filmes houve que me tocaram de uma maneira muito, muito profunda. Um Hitchcock a preto-e-branco que se chama «Strangers on the Train». «Os Contos da Lua Vaga» de Kenji Mizoguchi, «Viagem a Itália» de Rossellini, «Persona», de Bergman.

 

Esses filmes de Renoir, Rossellini e Bergman tratam, essencialmente, do encontro e desencontro. Da procura de canais de comunicação com o outro.

Exacto. E, às vezes, da impossibilidade do encontro.

 

Que são os seus temas.

Não sei. O Vasco Graça Moura foi ver a exposição ontem e dizia que a coisa mais importante que fotografo são os espaços. O que me interessa é restituir através de uma imagem aquilo que é um espaço. O meu primeiro percurso foi um percurso denunciador. O segundo é mais complexo, mais difícil. Eu nunca sei o que vou fotografar. Quando saio para a rua, de repente tenho a ideia de que podia fotografar aquilo, que devia fotografar aquilo. Se tenho máquina fotografo, se não tenho, não fotografo. Mas a ideia é sempre qualquer coisa de misterioso, e, às vezes, de contraditório. Todas as grandes fotografias têm de mostrar uma forma qualquer de conflito.

 

De tensão?

Exactamente. Esse conflito pode-se exprimir de muitas maneiras: com as sombras e com os claros, com determinadas atitudes, com as pedras e com as rochas. Tem que haver um conflito, senão a imagem transforma-se numa afirmação pobre.

 

Estava a perguntar-me se será feliz.

Sou. Eu sou um homem feliz. Levei muitos anos a dar conta disso e sou um homem feliz. Porque vivo no amor. No amor que tenho pela minha mulher, no amor que tenho pelos meus filhos. A melhor maneira de percorrer o caminho é com o amor, com a ternura, com a capacidade de se estar em paz. E, se possível, ter algum carinho por nós próprios.

 

E agora tem, finalmente?

Isso é o mais difícil. Fui muito magoado na minha infância e na minha adolescência para achar que…

 

A reparação nunca será completa?

Nunca, nunca. Sabe, tive uma primeira namorada – para aí com 17 anos – e namorei essa menina durante 4 anos. Durante 4 anos ela disse-me que eu era particularmente hediondo.

 

Hediondo?

Feio, horrível. Isso marcou-me indelevelmente. A ideia que tenho é que sou um estupor.

 

Fisicamente?

Sempre achei. Nunca tive conforto com o meu corpo. Nunca.

 

Na exposição há duas fotografias belíssimas da sua mulher encaixada em árvores desmesuradas. Se pudesse fazer uma fotografia da Danièle, para ser a face do amor e da salvação, como é que a imagina?

Eu tirei muitas fotografias à Danièle. Muitas! De uma maneira geral, ela não gosta das fotografias que lhe faço.

 

Porquê? Não se reconhece?

Ou não se reconhece ou não quer saber da forma como olho para ela. O olhar de uma mulher sobre si própria, particularmente quando chega a uma certa idade, é descoroçoante. E por mais que diga que a acho bonita, que não posso viver sem ela, as coisas que se dizem… não acredita. A mais interessante fotografia que tirei dela é aquela em que está em cima da árvore. A justaposição do corpo dela e da árvore…

 

É uma árvore desmesurada.

É uma árvore desmesurada como desmesurado era aquilo que eu sentia por ela nessa altura.

 

 

Publicado originalmente no Diário de Notícias em Abril de 2004

Gérard Castello Lopes morreu em 2011