Teresa Guilherme
“Sempre achei que era um cliché, mas a saúde é o mais importante. Nada tem graça quando a pessoa está adoentada. É uma coisa que vem com a idade: valorizar sentir-se bem. Tomo imenso cuidado com o meu corpo. Tenho um personal trainer com quem faço ginástica uma vez por semana, ou duas. E um massagista indiano, que é fantástico, equilibra as energias muito bem. E um quiropata, porque acho que a coluna tem que estar no seu sítio. Não fumo, nunca fumei”.
Quem assim fala é uma mulher de quase 50 anos. E neste pequeno pedaço, sem aparente importância, está imensa coisa dela: o cliché, a procura do prazer, o entusiasmo, a preocupação fanática com as energias e o equilíbrio.
Todos a conhecem. Conhecem? Há a mãe, o funeral do psiquiatra, o pai que trazia alegria à casa e desestabilizava quatro mulheres, há o não ser bonita mas ser muito vistosa, há o desejo de ser admirada pela mãe ídolo, de fazer tudo muito bem para merecer essa admiração, há aquela história de quem toda a gente se ri – de ter atropelado a avó quando levava o pai para uma casa de repouso –, há a fidelidade, há a desimportância do dinheiro, há o querer ser a melhor, há a presença dela na televisão, a falar muito depressa e a criar ansiedade no espectador – que era o que dizia o psiquiatra. E há a presença dela na televisão, a comunicar extraordinariamente bem, como previra o padrasto, Tony de Matos.
Teresa Guilherme é apresentadora e produtora de televisão. É a que tem por lema “posicionar-se muito mais na solução do que no problema”. A que resolve. A que toma conta. A que ama. A que espera por sinais, mas dá uma forcinha. A que vive.
Por último, uma confissão: esta conversa é uma reincidência. Uma vez, há muito tempo, aconteceu uma daquelas coisas que é a pior coisa que pode acontecer a um jornalista. Chegar ao fim e perceber que não estava nada gravado. Pois. Esta conversa apanha imensas pontas da primeira. E é uma conversa com uma mulher que parece mudada.
Guarda alguma coisa da nossa conversa de há dois, três anos?
Lembro-me da conversa, mas não me lembro de nada.
É a mesma mulher? Parece mudada. Terá sido o casamento? O amor pode transformar-nos, revelar-nos.
Não sei se foi o casamento que me mudou ou se já tinha mudado, e, por isso, casei. Temos que estar predispostos a assumir um compromisso. Encontrei a pessoa certa, é verdade. Já conhecia o Henrique há anos, a trabalhar, e nunca tinha reparado nele.
Na outra conversa, eu pedia-lhe para explicar uma coisa que tinha lido numa entrevista: dizia que a pessoa mais interessante que conhecia era a Teresa.
Não sei se continuo a dizer que a pessoa mais interessante que conheço sou eu... Essa busca, o interesse por essa pessoa que sou eu e pelos seus limites, continua. A prova mais clara foi esta ideia de fazer teatro, agora («A Partilha»). Correu muito bem, tive essa sorte. Como o nosso corpo tem uma enorme percentagem de água, a nossa vida também tem uma enorme percentagem de sorte. Sem isso nada funciona. Fazer teatro era uma coisa que trazia comigo desde os 18 anos.
Por causa da sua mãe?
Ela nunca fez teatro, cantava. Mas era o espectáculo, sim. Fiz aqueles cursos de teatro que se faziam na altura e cheguei à conclusão de que não tinha jeito nenhum! Era muito tímida, e aquilo era pavoroso para mim. Na verdade, acabo por me estrear em televisão aos 35 anos, muitíssimo depois dessa minha vontade. Mas sempre muito fascinada por teatro, por ver peças, ler peças.
Porquê?
É uma coisa que tem a ver com sentimentos, com pôr em palavras os sentimentos. Por outro lado, sempre fiquei fascinada com as pessoas que conseguiam transformar-se, que conseguiam ir buscar outras dentro delas. Adoro cinema! Sou completamente viciada em DVD’s, nas séries maravilhosas da HBO_ mando vir.
É fanática de “O Sexo e a Cidade”?
Fui. Aquilo foi uma ruptura com tudo. Todas as mulheres se identificam com aquelas mulheres, por mais longínquo que seja o universo de Nova Iorque. Os homens não acreditam que aquilo tem a ver connosco! Tem a ver connosco na essência. O tipo de conversas, o tipo de interesses, aquele desespero pela estabilidade, por ter filhos, o não conseguirem afastar-se umas das outras...
Era a propósito do fascínio do teatro, que era antigo, embora não claramente identificado.
Quando falo com os meus amigos de sempre, dizem-me que toda a vida falei nisso, toda a vida dei isso como “um dia há-de ser”. Aliás, como o casamento: nunca ninguém acreditou e eu disse sempre que um dia havia de casar. Agora ando como uma fixação: sei com quem vou contracenar na minha próxima peça. Não sei qual é a peça, a pessoa ainda não sabe, mas eu sei qual é a pessoa.
À medida que fala, desenrola-se o pano da outra entrevista. Lembro-me de ter contado que estava no cabeleireiro a ler numa revista um comentário sobre o «Big Brother» e de ter dito ao Pedro Curto [produtor]: “Eu vou fazer isto”.
Pensei assim: “Era giro voltar a apresentar um programa que não fosse produzido por mim. Não sei se é este, se é outro qualquer, pode ser este.”
Mas estas coisas acontecem-lhe e acredita absolutamente nelas! É uma espécie de faro: confia cegamente na sua intuição. E na força do acaso.
Quando fiz o «Big Brother», já não apresentava programas há dois anos e meio. Tinha decidido que não ia apresentar mais.
«... não ia apresentar mais» quer dizer «para sempre»?
Agora também acho que quando acabar o «Um, Dois, Três» não apresento mais. Mas não quer dizer que não volte a apresentar. Quando estou a dizer, estou a dizer sinceramente; depois, renovo. Em televisão, e nas nossas vidas, o sempre e o nunca são três meses. Muda muito na nossa vida em três meses....
A relação com o tempo é muito elástica.
As pessoas não acreditam que me ofereci para apresentar um programa, polémico, sem nunca o ter visto. Acertei tudo com o Piet Hein [Endemol] e não sabia o que era o programa. Eu acreditei. Eu queria fazer um programa, e daí a dois dias apareceu-me uma proposta.
Com a peça foi um processo semelhante? Andava a falar nela e ela veio ter consigo?
Um dia, na piscina lá de casa, a ler, que é uma coisa que me deixa livre o subconsciente, pensei: “Agora é que era a altura de fazer uma peça”. Mandei uma mensagem escrita à Rita Salema, uma das amigas a quem falei disto, a dizer: “Hoje, a actriz que há em mim acordou”. Ela disse logo: “Tenho aqui uma peça fabulosa. Vou mandar-ta”. Era “A Partilha”. Li, gostei muito e pensei: “Isto é um campo mais complicado. Vamos esperar pelos sinais. Se houver sinais a favor, tudo bem”. No dia seguinte abro uma revista: [Miguel] Falabella vem a Portugal com a sua “Batalha de Arroz”.
Espera pelos sinais para avançar? Pode demorar um dia, pode demorar um mês?
Demora sempre um dia. É tudo muito rápido. Daí a 15 dias o homem veio. Nunca o tinha visto pessoalmente. Acabou a peça, fomos ao cocktail, o Manuel Luís [Goucha] apresentou-me. “Li a sua peça, ‘A Partilha’, e gostava de a levar à cena aqui. Mas também gostava de representar”, “Então, que personagem é que você quer ser?”, “Quero ser a Regina”, que é a esotérica. E ele disse: “Não, vai a ser a Selma”. Fiquei muito escandalizada, porque a Selma é a maldisposta do grupo, a rancorosa. Disse para a Rita: “Ele não deve ter percebido”. Depois apareceu o [Joaquim] Monchique, caído do céu: “Olha que ele é um bocado de achar que tudo são bons desafios e amanhã nem te vai telefonar”. Respondi: “Está na mão de Deus”. No dia seguinte ele telefonou e marcou o ensaio de leitura, no outro dia, em minha casa. Foi assim tudo em menos de um fósforo.
Confia no esoterismo, no acaso, mas dá uma forcinha...
Sim, fui à estreia. Comecei a apaixonar-me, comecei a viver o teatro, afastei-me até um bocado das minhas coisas da televisão. Por dentro. Por fora, tudo funcionou. Comecei a apaixonar-me porque é muito interessante descobrir coisas que eu não sabia dentro de mim.
Mas pensei que se conhecesse bem. Por causa dos anos de psicanálise.
Que foi mais do que preciosa para conseguir dissecar esta Selma. À medida que se vai andando com o texto, conhecem-se os bloqueios, as frases que não saem, as coisas que se compreendem bem de mais. Descobri que isso tinha a ver com emoções que me faltavam ou que não conseguia trazer à tona. Do que gostei mais foi da interiorização da personagem.
E isso é o quê?
É ir à procura de sentimentos, nossos ou de outras pessoas, e perceber exactamente quem é aquela mulher que se está a representar, a fazer nascer. É um processo muito parecido com a análise. Há dias de chorar baba e ranho, mesmo estando a preparar-se uma comédia, e há dias de uma libertação mais levezinha. Nunca tinha dado conta de que tinha muita pena de não ter irmãs. Um dia aquilo foi uma coisa avassaladora!
Na primeira entrevista falou muito da relação com a sua mãe e com o seu padrasto, o Tony de Matos. Sentiu-se muito amada por eles?
Sim. Os filhos únicos são desamparados. Não acho proveitoso para ninguém ser filho único. As famílias muito numerosas faziam-me alguma confusão. Desde muito novinha, os meus amigos foram sempre filhos únicos.
Sonhava com um modelo de família convencional, marido e filhos? Esquecemos que viveu uma vida muito diferente antes dos anos da televisão. Contou-me da sua relação com o Raúl Durão, de fazer sandes para os miúdos e de ser uma espécie de mãe daquela gente toda...
Eu não tenho uma perspectiva maternal, sou muito mais um pai do que uma mãe. As mães são as que aceitam tudo, as que têm sempre um colo. E até são rigorosas. Mas o pai é o da autoridade, o braço, o apoio. Eu sou de tomar conta. Descobri com a análise que sou mais uma figura paternal do que maternal, e que as pessoas me encaravam assim.
Nunca fala da relação com o seu pai.
Não tive uma boa relação com o meu pai. O Tony veio colmatar essa situação. Admiro o meu pai enquanto indivíduo que soube viver a vida. Queimou a vela dos dois lados ao mesmo tempo. Morreu há muitos anos. Cantava muito bem, era muito admirado pelos colegas, muito bem disposto, muito comunicativo. Provavelmente terei muito a ver com ele.
Viveu com ele ainda alguns anos?
Vivi, mas o meu pai sempre foi uma pessoa de não ficar. Eu também sou uma pessoa de não ficar, mas não me vou embora, propriamente. Ele ia. Viveu no Brasil, depois foi para África, naquela época em que os cantores iam fazer digressões. Depois já nem sei... Viveu no Canadá, viveu em todo o lado. A presença dele em casa é uma presença de um estranho que chega de vez em quando. Divertido e simpático, mas que quebra a rotina de três mulheres organizadas. Quase que posso dizer de quatro: a minha mãe, a minha avó (mãe do meu pai), a Lurdes, que era a nossa empregada, e eu.
A Lurdes, que é uma figura mítica na sua vida, continua a ser a sua empregada.
Continua a tomar conta de mim, da casa, da comida. Continua a chamar-me Teresinha. Conheço-a desde os meus cinco anos, levava-me à escola. Este núcleo era quebrado por aquele homem que aparecia lá em casa, que cantava na casa-de-banho. A imagem que tenho do meu pai é um bocadinho folclórica, no sentido de trazer alegria à casa. Mas inconsequente. Apesar de os dois serem cantores, a imagem que tenho é da minha mãe no palco, e não do meu pai.
Qual é a imagem mais recôndita que tem dessa vida de artistas?
É estar nos bastidores ao colo do pai da Ana Paula Reis, que era produtor no Brasil, enquanto a minha mãe cantava. A primeira imagem que tenho de um espectáculo são as luzes, as pessoas a bater palmas e a minha de costas a cantar.
Isso não é uma coisa muito simpática... Para já, a mãe não lhe dá atenção, está com outros, e está a admirá-la, a desejar tê-la para si, a ser como ela...
Ser como ela era uma coisa boa. Quando as pessoas me dizem: “Não tem medo do público, não tem medo das estreias?” O público para mim são pessoas que vão ver o nosso trabalho, são pessoas amigas. Há uma relação muito afectuosa entre mim e o público, sempre houve. A estreia é a primeira vez em que os nossos “amiguinhos” nos vêem. Não estava mais nervosa do que nos outros dias. Continuo a tomar um calmante antes de entrar, como faço nos directos.
A sério?
A sério. Porque tenho a maior das concentrações, mas falo muito depressa e tenho a noção de a minha cabeça andar sempre à frente do que eu digo!
O seu psicanalista é que dizia, quando começou a fazer televisão no «Chá das Cinco», que falava muito depressa.
Que falava tão depressa que criava ansiedade nas pessoas. Ele dizia que, apesar de o mar, (que são as emoções da minha vida), não ser um mar calmo, ser um mar agitado, que eu flutuava muito bem nesse mar.
Fez sempre psicanálise com ele?
Até ele morrer, sim. Ele morreu pouco depois de eu começar a fazer televisão, de um dia para o outro. Estive a chorar meses, como se fosse um pai que tivesse morrido. Depois andei anos para encontrar outro analista. Fui experimentando, uns por umas coisas, outros por outras... A gente tem que fazer um luto. Não adianta tentar substituir uma coisa por outra. Depois encontrei uma analista, com quem estou há muitos anos.
Como é que soube da morte dele?
Contou-me uma amiga minha, que é psicóloga. Fui jantar com ela e com o marido e a meio do jantar, com muita calma, explicou-me o que tinha acontecido. Foi arrasador. Fomos dali para a igreja. Estava lá um homem muito alto, que chorava muito, mais do que os outros, e quis saber quem era. Era aluno dele, professor na faculdade, e foi o meu psiquiatra seguinte.
É uma coisa extraordinária: escolher um psiquiatra porque é o homem que mais chora num funeral de outro psiquiatra.
Era o homem que estava a sentir mais aquela perda. Órfão como eu.
Não funcionou?
Fui à procura de um irmão... Para mim, era um irmão, porque ele era de alguma maneira o nosso pai.
As suas dores estão situadas onde, se se pode saber?
Nas frustrações, na relação ilusão/desilusão. Tenho uma relação um bocado infantil com a desilusão. Da mesma maneira que me entusiasmo com muita facilidade com tudo o que é novo, com tudo o que é começar. A ilusão também existe com força. As pessoas, à medida que vão crescendo, para não chamar envelhecendo, desiludem-se cada vez menos porque se iludem cada vez menos. Mas uma desilusão aos 20 anos e uma desilusão aos 50 não é bem a mesma coisa. É muito pior aos 50. Eu continuo a iludir-me, a ter os mesmos entusiasmos, a acreditar que as pessoas têm palavra. Há coisas que considero francamente imaturas, mas que vou manter no meu carácter. Porque perdê-las revela um conformismo com a vida.
A sua mãe era uma mulher muito bonita. Quando é que se libertou dessa coisa de ser a filha dela, de ter que corresponder àquilo que ela esperava de si, àquilo que os outros esperavam que fosse?
Acho que não me libertei nunca! Isto podia-me ter tornado amarga, frustada... Para uma miúda, é desagradável ouvir: “Ah, é sua filha?, veja bem...”. A minha própria mãe dizia uma coisa_ agora a gente já se ri disso –: “Oh, filha, deixa lá, não és bonita, mas és muito vistosa”. A tentar animar-me. Realmente a comparação era impossível. Saio ao meu pai.
Cresceu nisso.
Mas não é mau. O que é que acontece agora? Implorei à minha mãe para não ir à estreia. Claro que me disse que sim, que não ia, para eu estar tranquila, e depois foi na mesma, para um camarote, escondida. Podia ser uma entidade gigantesca, que nunca está satisfeita, mas não é. É uma pessoa estimulante.
Nunca viveram momentos tensos?
Tivemos aquela fase..., na adolescência. Mas nem era tanto ela, era mais a minha avó. A minha mãe sempre foi um ídolo. Elas davam-se bem porque se admiravam. A minha mãe fazia o papel da fraca, sendo uma mulher forte. Eram do mesmo signo, Virgem.
Ainda não tínhamos falado dos signos!
E a Lurdes também é Virgem. Portanto, estava rodeada de pessoas rigorosas, de pormenor... Eu sou Caranguejo_ o sentimento, a família...
Eu sou Balança. O que é que isso quer dizer?
A luta permanente pelo equilíbrio.
E é uma boa combinação, nós as duas?
O meu pai era Balança. Não tenho muitos amigos Balança. É muito difícil para um Balança compreender as pessoas que se entregam à emoção, demasiada emoção. Os Balanças são mais frios, o maior pânico que têm é desequilibrarem-se. Nestas coisas da astrologia há o ascendente. Eu não sou o caranguejo típico. O que é mais óbvio em mim é o ascendente, que é Leão, que é o quer brilhar, o querer mandar, o achar que não erra nunca. É aquele que empurra o Caranguejo. O Caranguejo é o signo do medo, da pessoa que tem a porta de casa fechada, que está com a família.
Estava bem com o seu pai quando ele morreu?
Tive sorte... É uma coisa estúpida de se dizer, mas o meu pai, uma das vezes em que estava em Portugal, tinha 50 anos e teve um AVC. Ficou em casa da minha avó, e houve uma aproximação. Não foi uma aproximação afectiva, mas aproximei-me dele um bocadinho. Depois ele voltou a ter um AVC e chegamos à conclusão de que a minha avó já não podia cuidar dele, e eu arranjei-lhe uma casa de repouso. O que é que acontece no dia em que ele vai para o lar? Eu é que o fui lá levar, a minha avó também quis ir, e atropelei a minha avó! Sei que dá vontade de rir, pode rir-se à vontade, toda a vida as pessoas se riram! Foi o pior dia da minha vida.
E há quantos anos foi isso?
Tinha 36 anos, estava no segundo ano do “Eterno Feminino”. Quem é que ficou responsável pelo meu pai no lar? Eu. Tinha que o ir visitar, mesmo não querendo....
Vai-se mesmo todos os dias, saber das roupas, das coisas, tomar conta de uma pessoa. Passado algum tempo, fui quatro dias para fora. Estava esgotada, ia começar uma nova série de programas. Quando cheguei ao aeroporto, estava o António [sócio] à minha espera... O meu pai tinha feito outro AVC e estava em coma, desde a véspera.
Como é que reage nesses momentos? Começa a chorar, fica muito nervosa?
Só choro nas coisas pequeninas. Sou uma pessoa que primeiro estanca o sangue, chama a ambulância, põe tudo em ordem. Só depois, quando toda a gente acha que já passou, é que choro.
Na tensão porta-se exemplarmente.
Não entro em pânico.
É por isso que é boa produtora?
Pois. E uma apresentadora também não deve entrar em pânico. O pânico não é uma coisa se treine, é a maneira de cada um reagir.
Nesses momentos tem que fazer qualquer coisa de que se possa orgulhar?
Não tem nada a ver: é só resolver a situação. Se for uma pessoa no meio da rua que caia, tenho a mesma atitude, e não quero saber da pessoa para nada. Mas chamo a ambulância. Se for preciso resolver, resolve-se. Deixe-me acabar a história do meu pai. No Hospital de S. José, tive a sorte de encontrar um médico que me disse: “Ele está em coma, não vai resistir. Neste estado, não ouve nada. Mas há pessoas que têm uma opinião diferente. Se quiser despedir-se, deixamo-la entrar”. E eu fui. Pus-lhe a mão no peito e falei um bocadinho com ele. Tive a nítida sensação de que falou comigo – transmissão de pensamento. Ficámos bem.
Teve a preocupação de lhe dizer coisas definitivas?
Sim. Que não tinha nenhuma relação pai-filha com ele, mas que achava piada ao percurso que tinha feito.
Era bom cantor?
Era excelente cantor.
Gostava mais de o ouvir a ele ou ao Tony? Essa questão punha-se-lhe?
Não. Eu adorava ouvir o Tony.
Sabe aquela coisa: qual deles escolho?
Escolho o Tony em tudo. Quando o Tony entra na vida da minha mãe, já eu era mais do que adulta, já não estava em casa.
Ah, achei que tinha sido um pai.
Mas foi, sem dúvida! Foi o único pai, na realidade. Mesmo aparecendo tão tarde. O Tony desmistificou uma série de coisas na minha vida: sobre mim, sobre o que era capaz de fazer. Ensinou-me imensas coisas sobre espectáculo. Ele ia cantar ao Coliseu e eu dizia-lhe: “O Tony não tem medo de estar aqui e saber que daqui a bocado vai estar a sala cheia?”; e ele disse: “Ó filha, o único medo que tenho é ter de cantar para uma sala vazia”. Cá me bateu, para não me esquecer. O único medo que se deve ter do público, que eu tenho do público, é que ele não esteja lá. O público tem de lá estar. Se faço um trabalho para dar, alguém tem que lá estar para receber. Foram um workshop, os dez anos com o Tony.
O Tony fê-la descobrir coisas sobre si. Quando é que percebeu que o seu talento era este?
Curiosamente, só comecei a apresentar programas no ano a seguir à morte do António. Tinha muito pena de ele não me ter visto. Ele sempre disse que eu tinha imenso jeito, que era óptima comunicadora, isto e aquilo, mas eu achava que eram elogios de carinho.
Era tímida antes de aparecer na televisão?
De não atender o telefone sequer! Mesmo muito tímida.
Havia alguma coisa em si de que gostasse na adolescência? O cabelo, por exemplo. Sempre a vi com um cabelo muito bem tratado. Parece ter uma especial vaidade no cabelo...
Se calhar, é a única coisa que tenho melhor do que a minha mãe. O cabelo da minha mãe é péssimo. A minha avó adorava o meu cabelo e a minha mãe nunca quis que o meu cabelo crescesse. Dava mais trabalho e não era muito saudável para as crianças. Quando eu tinha oito anos, a minha mãe foi cantar não sei para onde, ficou um ano fora, e a minha avó deixou-me crescer o cabelo.
Gosta de ir ao cabeleireiro?
Tenho ideias boas no cabeleireiro. Não gosto que me mexam na cabeça, tem que ser uma pessoa com uma energia compatível com a minha. E normalmente dizem-me coisas importantes. Ou é porque estou descontraída, vou conversando e sou eu que digo coisas importantes, não sei. Mas tenho uma relação de afectividade com os cabeleireiros.
Por que é que se fechava tanto na adolescência?
Deve ter sido uma luta feroz... Medir-me com a mãe exemplar, ter a noção de que não podia fazer nada para chegar lá, e transformar isso numa coisa positiva: se não se consegue ser igual àquela mulher, como é que se consegue que aquela mulher nos admire? Eu era uma super aluna, de vintes na pauta, podia ter 17 e achava que era maravilhoso, mas se alguém tivesse 18, ia mortificada para casa. Eu tinha que ser a melhor em tudo. Tenho uma enorme necessidade de me esforçar.
E rapazes? Não lhes ligou até muito tarde.
Comecei a namorar tardíssimo. Aos 17,com o Raúl. O Rául era amigo da minha mãe. O Raúl chamava Lili à minha mãe, adorava-a e achava a minha mãe uma mulher ideal.
Não tinha ciúmes?
Com a minha mãe nunca tive essa situação. Achava que ela tinha pouco jeito para escolher homens, até chegar ao Tony. A minha mãe é de outra época. Cantava fado, como toda a gente sabe, mas não ia depois para as farras. Acabava a sua horinha de cantar e ia para casa, como se trabalhasse num escritório. Era uma senhora. E era rigorosíssima. Eu, como mulher, sempre fui mais azougada que a minha mãe, não tem comparação.
O ciúme é um sentimento estruturante, como toda a gente sabe, e em especial os que fazem análise. A competição é natural. Tem estas mulheres todas em casa e não fala de ciúme...
Não é um sentimento presente nas minhas relações. Nem de amizade, nem afectivas. Não sou ciumenta em nada. As pessoas pensam o pior, controlam os namorados, maridos, eu não se explicar...
Também se diz que as pessoas ciumentas são inseguras. Isso quer dizer o quê? Que é segura?
Há dois tipos de pessoas: aquelas que se focalizam na dor e vivem a dor, e aquelas que, mesmo quando estão na dor, já estão a tentar viver na alegria. Apesar de ser uma pessoa preocupada, e às vezes pré-ocupada, trabalho a minha segurança, não trabalho a minha insegurança. Sou pré-ocupada, imagino que pode acontecer o pior, ando à frente dos problemas e não atrás deles; mas para encontrar a solução. Tenho pautado a minha vida muito por isso.
O que é que faz?
Trabalho mais! Trabalho tanto, provavelmente, para combater a minha insegurança. O Monchique dizia que eu era uma coisa infernal. Sei o meu papel, o papel das outras, desde o primeiro dia! Ainda hoje, em palco, estou sempre a tomar conta de tudo.
Nunca teve vontade de ter filhos, a Teresa que toma conta de tudo?
Mesmo nunca. Talvez ainda venha a ter. Estou sempre à espera de um dia amanhecer com uma ideia nova. Pode ser que seja uma coisa que esteja adormecida, recalcada em mim. A partir de uma certa idade não se pode ter... Nesta altura, ainda posso.
Na nossa primeira conversa, confessou-me que de vez em quando lhe ocorria “E se não tiver filhos?”...
Acho que as pessoas querem ter os filhos para passarem pela maternidade, pelos bebés. Isso a mim não me fascina. Tenho pena de não ter passado por essa experiência, mas só por não ter passado pela experiência. As pessoas dizem tão bem que só pode ser uma coisa maravilhosa. E não a tive – é só por isso.
Então, foi uma opção.
Foi uma clara opção. Num período considerável da minha vida, o meu trabalho era a coisa mais interessante que tinha.
Houve uma altura em que se dizia que queria absolutamente ser a melhor produtora em Portugal, que queria ganhar muito dinheiro. Mas, mais do que a questão do dinheiro, queria ser a melhor.
Mas é o que quero em tudo. Não tenho a menor dúvida de que sou a melhor. Este momento que se vive em televisão é complicadíssimo. Há imensa falta de dinheiro, a concorrência é completamente desleal – uma empresa fundamentalmente portuguesa luta com empresas ditas portuguesas, mas que são multinacionais. Como a Endemol. Têm orçamentos muito mais caros, recebem muito mais dinheiro pelos programas que fazem, e têm óptimas condições. Nós, para conseguirmos fazer programas bons, para termos o mesmo nível, temos que ter uma margem de lucro muito mais pequena e trabalhar muitíssimo mais.
Controla tudo? Da a luz à realização.
Eu e a minha equipa. A minha preocupação continua a ser com o pormenor. Sabe aquela coisa de ir à casa-de-banho, ser o último, e não ir buscar o rolo de papel higiénico? Neste escritório é impossível, porque vou ver quem é que teve essa falta de respeito pelos outros! No teatro, antes de entrar, vejo se as minhas coisas estão todas dentro da mala, tomo conta do meu personagem e do personagem das outras, vejo se têm água, se as braguilhas estão apertadas, se estão vestidas, se o chapéu...
Também disse, na outra conversa, que é capaz de berrar com as pessoas que trabalham consigo, descompô-las de cima a baixo, ter um ataque de nervos, dizer tudo, tudo, tudo, e que depois passa.
Já disse, já passou. Agora poupo-me mais um bocado e é mais fácil trabalhar comigo. Tenho uma história engraçada: uma vez fiz um jantar em minha casa com uma quantidade de gente que trabalhava comigo há imenso tempo. Começámos a conversar e alguém disse: “Aquele dia em que me despediste...”. Chegámos à conclusão de que, as pessoas que estavam lá em casa, já as tinha despedido a todas!
E readmite no dia seguinte? Como é que faz?
Não, no dia seguinte não. No programa seguinte, outra coisa qualquer. Digo que a televisão não é a Santa Casa da Misericórdia. Mas isso não quer dizer que as pessoas não tenham uma reabilitação e não voltem, e eu nem sequer me lembro. Tanto que aquelas pessoas todas, elas próprias, não se lembravam!
O que é que não perdoa?
Não perdoo a traição e não perdoo o roubo.
Dinheiro?
Sim. Da coisa mais pequenina às pessoas que roubam anos, e trabalham connosco – já me aconteceu. Isso é impossível perdoar. E não perdoo os abandonos de projectos quando as coisas não estão a correr bem. A pessoa trabalha numa empresa, ou tem um amigo, na altura em que é mais precisa, não está lá: é imperdoável. Os amigos, então, nunca mais voltam.
Adere às coisas com enorme intensidade. É voraz: como se tivesse um prato de comida, que é, naquele momento, o maior pitéu, e tem que o comer todo.
O único. Mas depois a satisfação não é grande. Como não fico parada no desgosto, também não fico parada na satisfação. Acho, até, que é uma incapacidade minha gozar mais as palmas, as coisas boas.
O dinheiro. Tinha uma recordação mítica de umas férias passadas no Brasil, com amigos, quando ainda eram todos “pobrezinhos”... Relativiza a importância do dinheiro.
O dinheiro serve para comprar coisas que nos fazem falta, para dar alguma tranquilidade, para dizer que não a coisas que não se quer fazer. Não sou nada consumista. Já passei por várias fases: a dos sapatos, da roupa, das jóias. Agora estou numa fase de coisa nenhuma. Continuo a adorar viajar, mas prefiro estar no teatro que estar a viajar. O dinheiro é para comprar as coisas necessárias. Não é para ter um carro fantástico... Por acaso, agora tenho um excelente carro, porque o Henrique achava que, com o que trabalho, com o que me esforço, devia ter um carro que fosse um sonho.
Autorizou-a a gastar o seu dinheiro!
Não! Obrigou-me, que é uma coisa mais extraordinária.
Autorizou sem culpa, era o que eu queria dizer.
Ele “obrigou-me” a comprar o carro que ele acha mais seguro. Vou ter com ele, está a chover muito, e ele está em casa satisfeito a pensar: “Ela vem naquele carro, seguríssimo, está muito melhor”. É como se ele me comprasse uma protecção.
Ele protege-a muito?
É extremamente protector. E ressente-se de eu dizer que não preciso de protecção nenhuma.
Não precisa mesmo?
Preciso.
Por que é que casou?
Porque gostava muito dele, achei que ele era muito interessante, não havia mais nenhum igual a ele e queria casar com ele. Foi uma coisa muito clara: no momento em que começámos a achar graça um ao outro, em que começámos a trabalhar directamente, quando assumimos que havia ali uma relação afectiva, achámos logo que íamos casar. Achámos que era uma coisa de família. Um dia perguntei à minha mãe: “Achas o Henrique parecido com o pai?”. E a minha mãe, que é muito cautelosa, disse-me: “Não te quis dizer nada, mas olha que o Henrique não é nada parecido com o teu pai do ponto de vista da personalidade, mas fisicamente é parecidíssimo”. Acho extraordinário!
Quando percebeu essa semelhança?
Não descobri logo. Estava casada há imenso tempo, estávamos os três a almoçar e houve ali uma visão: era o meu pai e a minha mãe. Não sei se é uma figura paternal, não estamos há tempo suficiente na vida um do outro para saber quem é que é quem.
São casados há quanto tempo?
Ano e meio. O primeiro ano é caótico em termos de sentimentos. Tem que se perceber o que é realmente importante para o outro. Nunca somos muito verdadeiros, damos uma imagem ideal de nós. Depois temos que nos agarrar aos pontos em comum e perceber o que é essencial. O Henrique, no princípio, achava que proteger era saber as coisas que me aconteciam no dia-a-dia. Mas preocupa-se imenso com outras coisas: se ponho protector solar, se dormi bem.
Cuida de si assim.
Descobriu várias falhas. Acha que exagero, que estico demais, que me ponho demasiado à prova. Há alturas que ele acha que tenho mesmo que descansar, ir de férias, essas coisas. Arranjou ali uns espaços de protecção.
Há quanto tempo é que não vivia com uma pessoa?
Há imenso tempo, já não sei.
Era preciso reaprender...
Mas não é a mesma coisa. Viver junto e ser casado não é a mesma coisa. Coisa que eu achava que era. Um marido é família. Uma pessoa com que se vive, não é.
Sente que forma uma família com ele?
Sinto. Sinto que somos da mesma família, e não que formo uma família com ele. Não sei explicar a diferença.
Tenho uma pergunta delicada para lhe fazer. As mulheres que são muito bonitas, ou populares, ou poderosas questionam a razão pela qual os outros estão por perto. Interesse ou amor? Pensa nisso?
Tenho um longo treino. A interrogar. A não deixar que as pessoas se aproximassem. Acontece essencialmente quando uma pessoa se torna conhecida. Ser conhecida é um poder transitório, ter sucesso é um poder transitório – se é que há algum poder que não seja transitório. As pessoas aproximam-se por causa disso. Às vezes não se aproximam de nós, mas do nosso sucesso. Às vezes até por deslumbramento, não é para retirar benefício para si. Cria-se ali uma falsa relação, porque admiram uma parte de nós, e não a nossa globalidade. Nós também somos aquela parte, mas não somos só aquela parte.
Como é que se defendeu disso?
O que fiz foi estreitar as minhas relações ao máximo. Eu tenho amigos para as ocasiões difíceis. Nenhum dos meus amigos está na minha vida por interesse. Alguns ainda são do tempo em que íamos para casa de não sei quem para conseguirmos passar férias fora. Agora tenho os amigos do Henrique, que entraram na minha vida através dele. No caso do Henrique, que é uma pergunta normal, porque é muito mais novo do que eu e trabalhamos no mesmo meio, ele apaixonou-se por mim e não pela figura pública. Há até uma certa rejeição. E foi isso que vi nele
Então, tem uma vida boa?
Tenho, sou feliz.
É?
Sou, mas já sou feliz há muito tempo.
Volto ao princípio: desde que casou tem um ar mais feliz.
Mas não dou por isso, sabe... A perspectiva de ter uma pessoa – não é estar, é ter uma pessoa connosco – é boa. Acaba por ser um desafio, porque as relações, para serem duradouras, têm que ser trabalhadas todos os dias. É ele que é a casa. E depois, eu quero ser uma casa para ele, no sentido de pertencermos um ao outro. Será essa serenidade que as pessoas vêm. A inquietação profissional é a mesma. Estou a viver um momento em que sou feliz profissionalmente e afectivamente, e que nunca tive. Mas não sentia falta, não tinha essa consciência. É como lhe digo: posiciono-me muito mais na solução do que no problema. É o meu lema.
Publicado originalmente no Diário de Notícias em Julho de 2005