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Anabela Mota Ribeiro

Isabel Silvestre

08.03.24

Isabel Silvestre é cantora, foi professora primária e presidente da junta. É a figura do grupo de cantares da sua terra e responsável por toda a sua dinâmica. Há alguns anos, nem ela sabe bem quantos, cantou com Rui Reininho uma canção que se transformaria num hino, se não de todo pelo menos de uma parte do país, a «Pronúncia do Norte». Tem quase sessenta anos e a pele maravilhosa que só podem ter as pessoas que se alimentam de bons ares e de bons sentimentos. Viveu em Manhouce toda a sua vida, excepto um punhado de anos em que estudou e leccionou fora. Viver fora da terra fê-la estreitar ainda mais os laços à aldeia e alimentou um processo de recolha de danças e cantares junto dos velhos da região. Tarefa nada complicada, explica, porque a memória desta gente está muito avivada. Seja como for, é nela, Isabel, que se pensa quando se pensa naquele torrão encaixado na serra e nos seus cânticos de trabalho, de religião, de festa.

Para chegar a Manhouce, depois da auto-estrada, avança-se pelo IP5. Pode-se sair em S.Pedro do Sul ou em Oliveira de Frades. Depois, não são mais que duas ou três dezenas de km de estrada incerta e curvas de vista apaixonante. A aldeia, propriamente, é pequena e composta de casas de pedra, quase todas antigas mas em bom estado.

Esta conversa decorreu numa dessas casas que Isabel Silvestre transformou em turismo de habitação há cerca de um ano. Antes de nos sentarmos mostrou sumariamente a aldeia e apresentou a casa onde nasceu, que é também aquele em que vive.

A sua vida e as suas convicções seriam suficientes para nos cativar do primeiro ao último minuto. Mas, generosamente, deixa-nos perceber com detalhe a vivência da terra e das raízes rurais de que tanto se orgulha. Ela, que se comove a cantar, terminou entoando a sua canção preferida e oferecendo pão com geleia. Pena que não a possam ouvir além de a ler. 

 

Como é que começou a cantar?

Esta mania das cantigas não sei de quando nem de onde vem. Está enraizada não só em mim como nas pessoas da terra. Sobretudo nas mulheres. Se calhar por terem mais tristeza, mais dor. Há saudades de quem parte, de quem emigra.

 

Eram só os homens que emigravam?

Sim. Hoje as mulheres já os acompanham. A emigração é para mais perto, França e Alemanha. Antigamente era para o Brasil. Havia a lonjura do mar e do barco, um mês para cá e outro para lá. O homem partia, a mulher ficava a tomar conta da casa, dos filhos e esperava até que ele ganhasse uns dinheiros. Ou esperava eternamente porque muitos iam e não voltavam. Era nas cantigas que as mulheres exteriorizavam a dor que sentiam. Nascia-se a cantar.

 

Nascia-se em casa?

Nascia-se. Há cantigas do berço à cova. Há um calendário de cantigas em Manhouce: cantigas religiosas, de trabalho, de romarias e as que são cantadas quando se está para morrer. O padre ia levar a extrema-unção, umas tantas pessoas acompanhavam-no e no trajecto cantavam o «Repenica o sino». Tocava o sino para que aqueles que não pudessem ir orassem pela saúde do que estava muito mal ou pela alma que estava a partir. «Repenica o sino, repenica-o bem, vai o Senhor fora a Jerusalém, vai o Senhor fora salvar uma alma que se vai embora, se se vai embora deixá-la ir, se ela for para o céu ela torna a vir». 

 

Em pequena cantava nos campos e na escola?

Havia as ladainhas de que gostava muito. Estava na escola e quando sentia passarem as ladainhas pedia à professora para vir cá fora e punha-me em cima do muro a vê-las passar. Também havia as promessas que o povo fazia. Por exemplo, para pedir sol porque não parava de chover. E, acredite, se era para vir sol vinha sol, se era para vir chuva vinha chuva. Muitas das vezes começava a chover ainda naquele dia.

 

É religiosa?

Sou crente, embora não seja beata. Tenho muito respeito.

 

Vai à missa?

Nesta vida das cantigas muitas vezes estamos fora, chegamos tarde e nem sempre vou.

 

Nas aldeias a igreja é ainda o espaço de reunião da comunidade?

Sim, há quem diga «Quando não vou à missa já não é domingo». O povo para ir à missa prepara-se: veste a roupa nova, conversa com os amigos.

 

Porque é que a sua vida teve uma rota diferente e a fez sair desse grupo anónimo?

Acontecem coisas na vida que a gente não espera. Além das ladainhas havia as ceifas e as malhas. Muitas vezes marcavam-nas para o fim-de-semana para eu estar presente. Andava no meio das ceifeiras já a botar por riba! Em Manhouce canta-se o baixo, o raso, o riba. O riba era a voz mais alta. Para as romarias, a mesma coisa. No meu tempo estudou muita gente e a maior parte conseguiu formar-se.

 

Não é surpreendente, no interior de um país iletrado?

É. Na família havia um tio-avô padre e os meus irmãos também se formaram. Fiz aqui a primária e a admissão ao liceu. Fiz o quinto ano em S. Pedro do Sul num colégio dirigido pelo meu irmão.

 

Ia e vinha todos os dias?

Tínhamos casa em S. Pedro. Ter saído daqui, ter estudado e tirado um curso, não quebrou a ligação à terra, antes pelo contrário. Só sabemos dar valor ao que temos quando o temos longe. Estive dois anos no concelho de S. Pedro, cinco em Resende, efectivei-me aqui e começou a guerra do Grupo de Cantares, de Danças. Começaram as guerras ligadas à terra e à música.

 

De que teve mais saudades nesses anos de ausência?

Da família. Era uma casa de muita gente: três tias solteiras, o pai e a mãe e os cinco irmãos.

 

Era a menina da família?

Era a mais nova, era filha de todos. O meu irmão mais velho era meu padrinho.

 

Com que se entretinham as pessoas?

Agora há a história das novelas que prende muito. Dantes havia as desfolhadas e os trabalhos agrícolas. As desfolhadas, que era um trabalho que se fazia à noite, eram a reunião da aldeia, dos amigos e da terra. Sou do tempo em que havia três desfolhadas, com três grupos a cantarem alternadamente em diferentes pontos da aldeia.

 

As pessoas exprimiam-se, basicamente, através das canções?

Mandavam recados, metiam-se uns com os outros! Sobretudo os namorados mandavam recados através do que cantavam.

 

Teve declarações de amor cantadas?

Não muito. As mais velhas topavam tudo: «Olha que aquele já deu três abraços àquela!» Já traziam os milhos-rei no bolso, levavam-nos de casa para dar o abraço à rapariga. Eram momentos de convívio muito agradáveis. Ninguém se deitava enquanto houvesse milho para desfolhar. No fim havia o baile com as concertinas e as violas. Neste momento, as desfolhadas são feitas à tarde porque à noite vêm os estupores das novelas.

 

Nas aldeias toda a gente sabe a vida de toda a gente?

Não há nada que não se saiba. «Ó meu amor fala baixo que as paredes têm ouvidos, os segredos encobertos são sempre os mais sabidos».

 

Depois de ter passado por uma vida menos vigiada voltou a um sítio onde toda a gente conhecia os seus passos. Não a incomodou?

Era muito complicado. O namorar, no meu tempo nunca vi gente a namorar. Um rapaz e uma rapariga a conversarem um com o outro era quase proibitivo. Parecia mal.

 

A imagem do namoro de aldeia é a da rapariga sentada no muro a falar com o rapaz que está ao lado de perna alçada. Por isso se diz «Falas para aquela moça?» e não «Namoras com aquela moça?»

«Ele fala para aquela», é assim que se diz. Eu, como toda a gente, tinha um namorado e achava que se devia falar no fim da missa. Uma das velhotas veio ter com a minha mãe e aconselhou-a: «Vê se dizes à tua cachopa que ela pode namorar, mas assim à escâncara não. Olha que é uma escândola». À escâncara queria dizer na frente de toda a gente.

 

Tinha, por isso, guerras familiares ou acatava muito respeitosamente as indicações dos seus pais?

Ai sim, tínhamos muito respeitinho pelo pai e pela mãe. Umas vezes com pena e outras até com raiva. Afinal nós é que sabíamos do que gostávamos, não é? Mas lei é lei. Ainda hoje, a maior parte dos casamentos da aldeia são tratados. «Ela até é rica, o pai tem umas notas e vamos fazer um casamento».

 

No limiar do século XXI ainda é assim?

Ainda há muito disto na aldeia. Arranjos.

 

Porque é que os jovens se submetem?

Há uma série de interesses. Também há o contrário: «Gosto daquela, quero aquela e caso com aquela». Mas muitas histórias são feitas através do vil metal.

 

Qual é o benefício imediato do dinheiro numa aldeia? O bem estar material na cidade é associado a uma casa muito confortável, a viagens, a roupas caras.

Na aldeia as pessoas já querem ter conforto, as suas casas e as suas coisas. Há aí gente com aquecimento central, uma coisa impensável há uns anos. Inclusivamente, lareiras numa sala? Havia a lareira da cozinha e chegava. Agora, a maior parte das casas tem lareiras e já estão a pensar no aquecimento central. Todos têm a sua televisão, a arca frigorífica, a máquina de lavar, os bens essenciais.

 

A noção de conforto está ligada à casa?

Sim. Os emigrantes e as lições que trazem influenciam muito o meio. Casos em que o marido está fora, vem e compra essas coisas à mulher; os de cá e as mulheres de cá acham que também têm direito. E uns «Porque sou capaz» e outros «Porque também tenho» acabam por fazer com que todos tenham esses bens que ajudam na lida doméstica. Já há muitas mulheres que trabalham fora daqui, nas fábricas, saem de manhã e vêm à noite.

 

Vão de autocarro ou de carro?

Normalmente vão de carro umas com as outras.

 

Porque é que não casou?

Oh, é uma história muito complicada e muito grande. Houve alguém de quem gostei, em miúda, e a família não gostava. Depois apareceu mais alguém, a família gostava e eu não gostei. Liguei-me à família e à casa. As tias eram todas solteiras e só à mais nova não chamávamos mãe. Foram pessoas que se doaram completamente aos sobrinhos. Achei que tinha também obrigação de fazer algo por elas.

 

É de uma extraordinária abnegação. Não imaginou que chegaria à idade delas igualmente sozinha?

Já cheguei a essa conclusão. Faleceram os pais e as tias. Vieram os sobrinhos.

 

Quem era a sua figura tutelar, o pai ou a mãe?

As três tias, o pai e a mãe. Era difícil, no meio de todos, dizer quem é que mandava. Mas o pai era o pai. 

 

Sentia temor pela figura do pai? Antigamente era normal as filhas não terem coragem de lhe falar ou olhá-lo de frente.

Tinha uma convivência muito fácil, o ambiente foi sempre muito aberto. O meu irmão dizia que a nossa cozinha era o sítio dos julgamentos; um defendia, outro atacava, acabado aquilo estava tudo bem.

 

Decidiam sobre a vida de todos?

Sim. Penso que em família as coisas têm de ser geridas assim.

 

As pessoas sentiam-se coagidas pelo julgamento colectivo? No caso do seu primeiro amor, não teve força anímica para os contrariar?

Também. Mas depois, estas coisas são mesmo assim, cada um vai para seu lado.

 

Quando se efectivou aqui andava pelos trinta anos. Para uma moça da aldeia já há muito devia estar casada e com filhos.

Fui estudar tarde, teria uns catorze anos. Depois da quarta classe houve um compasso de espera. Punha-se a dúvida, «Vai estudar ou não?» Das três raparigas, fui a única. Naquele tempo, «As raparigas não precisam de estudar. Porque aprendem a ler para escrever cartas aos namorados». Só na minha geração começaram a estudar.

 

O que está subjacente a tudo isso? O mito da virgindade e o perigo da procriação?

Exactamente.

 

Acha que a virgindade é sinónimo de honradez?

Penso que não. Quando as coisas acontecem, se há uma ligação profunda e um entendimento perfeito, não tem nada de negativo.

 

Num nicho fortemente ligado à Igreja é uma posição bastante avançada.

A minha maneira de ver foi sempre assim, desde miúda.

 

Como é que olha para o desbragamento sexual e amoroso a que se assiste, mormente nas cidades?

Faz-me impressão. Independentemente do lugar onde se esteja, tem que se ter dignidade e amor-próprio.

 

Que idade tinha quando foi pela primeira vez a uma grande cidade?

Já devia ter vinte anos.

 

E o mar?

Não foi muito tarde. Fazíamos uns passeios no colégio, os professores sentiam que era oportuno pegar nos alunos da serra e pô-los a percorrer a beira-mar. Vi o comboio a primeira vez quando fiz o exame da quarta classe, aos dez anos. Foi uma coisa espantosa! Andei de avião numa ida ao Brasil com o grupo.

 

Teve a felicidade de conciliar a sofisticação da vida citadina mantendo as tradições fortemente rurais. Mas a maior parte das pessoas, se não tiverem um grupo que as leve ao Brasil ou uma professora dinâmica que as leve a ver o mar, nunca chegam a sair daqui.

Não tenha dúvida nenhuma. Quando era professora todos os anos organizava passeios para eles verem fábricas de vidros, de sumos, de automóveis, de sapatos. Uma vez fizemos uma excursão em que os miúdos fizeram uma viagem de comboio e foi o fim do mundo.

 

Quando é que decidiu ser professora?

Desde sempre, porque gosto muito de crianças. Voltava a escolher ser professora primária. As crianças fizeram-me muito falta neste tempo em que estive ligada ao ensino mas sem tempo para estar com elas. Havia as cantigas. E quando se está na escola é a tempo inteiro. Tive de optar.

 

Gostando tanto de crianças, não teve pena de não ter tido filhos?

Não, tenho sobrinhos. Não é a mesma coisa, mas, para mim, a diferença não é grande. 

 

Nem sentiu uma necessidade física de ser mãe?

Não. E hoje é tão difícil pegar num miúdo, educá-lo e sensibilizá-lo para os melhores caminhos. Eles fazem aqui o segundo ano via tele-escola. Vão para S. Pedro do Sul e já é complicado. Saem dali e vão para Coimbra. Ficamos atadinhos de pés e mãos. Mandamo-los para o mundo que é tão mau neste momento.

 

Tem uma visão assim tão negativa?

Ai tenho, negativa, negativa. As escolas foram programadas para 500 e têm 1500 alunos. Os nossos saem às sete da manhã e chegam às sete da noite. O ensino é mau. É muita gente e os professores não têm tempo para se dedicar aos miúdos como deve ser. Por outro lado, há quem esteja na matemática e não tenha nada a ver com a matemática. Não sei se estou a ser dos tempos velhos, mas penso que a preocupação com o aluno, para que ande, estude, saiba e se prepare, ainda é no ensino primário. Nas escolas grandes perdem-se.

 

Seria bom que o mundo cristalizasse na infância, nesse tempo em que na sala de aula todos se conhecem pelo nome?

Sem dúvida. Penso na juventude de hoje e fico triste e apreensiva ao mesmo tempo. Têm de ser excepcionalmente bons para ter um caminho um bocadinho mais aberto. Mas não têm condições para serem bons.

 

Quantos alunos tem esta escola?

A primária deve ter, ao todo, uns vinte.

 

Os seus alunos achavam graça quando a viam na televisão?

Não só os alunos. «Eu vi a senhora professora ontem na televisão!». E apareciam com uns ramitos escondidos atrás das costas, alguns apanhados no caminho, outros trazidos do jardim.

 

Na televisão sentia que estava a representar a região e a gente?

Sim, mas não me preocupava em demasia. Havia uma mensagem que tinha obrigação e gosto em transmitir. Gostava muito das cantigas e pensava «Será que o grupo passa? Será que não gravamos um disco para que fique um documento para as gerações futuras?» Falava nisso e as pessoas diziam que estava doida, gravar um disco há vinte ou trinta anos! E logo folclore!

 

O folclore e essa alegria de viver, sem ser nos seus aspectos políticos, não lhe parece que estavam muito conotados com o Estado Novo e o Deus, Pátria, Família?

Se calhar.

 

Como chegou a si a notícia do 25 de Abril?

Estava no último dia de um curso de bibliotecária nos fundos do Hotel Vouga em S. Pedro do Sul. «Não há telefones, assaltaram a rádio, as estradas não sei o quê». Foi neste ambiente que surgiu o 25 de Abril. Já não houve fim, debandou tudo, um para cada lado, nem sei se houve entrega de diplomas ou se os diplomas vieram ter connosco. E havia aquela música que me marcou muito, Venha, não sei quê, quem vier por bem! Era do Zeca Afonso. «Traz um amigo também».

 

Viveu a revolução com optimismo?

Toda a gente sonhou com o 25 de Abril, achou que foi uma maravilha e que já devia ter chegado há mais tempo. Fomos todos sonhadores.

 

Na aldeia não se faziam sentir os terrores da censura ou da Pide, pois não?

Não. As pessoas aqui não tinham muita necessidade do exterior, bastavam-se a si próprias e, quando se falava de uma vida melhor, sim senhor, mas sempre desconfiadas.

 

O esquema de vida continuou a ser o mesmo?

Mesmo hoje, as alterações são poucas. Há algo que têm de comprar fora, mas bastam-se a si próprias. Têm as galinhas e os ovos e as vitelas e as ovelhas.

 

Continuam a vestir-se com os linhos e as lãs?

Já não semeiam o linho porque dá muito trabalho. As lãs ainda; não fazem tecidos para se vestirem mas roupas para a casa. Mantas, por exemplo. Foi uma das coisas que fiz quando estive em presidente da junta, um curso de tecelagem. As raparigas estão a fazer coisas muito engraçadas com lã de ovelha, quer cobertores quer tecidos. No curso não só aprenderam a tecer como a tingir com tintas naturais. Domingo vai começar um de bordados à mão, ainda fui eu que empurrei isso.

 

Como é que se meteu na política?

Achei que tinha possibilidades de fazer algo pela minha terra e mandei-me para a frente. A política é muito complicada; a gente puxa para a frente e três puxam para trás.

 

Saiu desgostosa? Tinha a ilusão de fazer coisas?

Tinha a possibilidade de fazer coisas, e fiz. Mas podia ter feito muito mais. Eu não tenho política nenhuma. Não sou do PSD, nem do PS, nem do CDS, nem do PC. A minha política é a minha terra.

 

Apareceu pelo PSD.

Foi o primeiro que veio ter comigo. Fizeram-me uma proposta, pensei no assunto e fui. Boicotaram-me tudo. O que fiz bem me saiu do corpo.

 

Porque é que acha que a boicotaram?

Primeiro, mulher; segundo, entrei pelo PSD e a câmara era PS. Mesmo na aldeia, no dia das eleições tive de me pôr ali pespegada. Não foi bem de pau na mão como a padeira de Aljubarrota mas quase. Queriam passar-me o conto logo ali.

 

Queriam contar mal os votos?

Se pudessem, também. Há o transporte das pessoas para as eleições. Quando dei conta, a carrinha da câmara que passa os miúdos transportava pessoas com um indivíduo do  PS. Disse que não havia problema desde que fosse alguém do PSD. Pus-me a andar de um lado para o outro porque, à medida que as pessoas vinham, «Olhe que você vote no da roda ou na mão ou vote noutro sítio».

 

As pessoas são assim tão influenciáveis?

São. Há mensagens que são passadas pelos políticos de porta a porta. As pessoas que não sabem ler dizem «Vá lá e vote no da mão ou do punho».

 

Ainda há muita gente que não sabe ler?

Bastante entre os mais velhos, sobretudo mulheres.

 

Acha que também a boicotaram por ser a figura de Manhouce? A sua notoriedade suscita muitas invejas?

Um pouco. A gente nem pode levar a mal. É humano, «Tu tens, eu também quero», ou «Se tu és capaz eu também sou, tens a mania...»

 

Acusam-na de ser vaidosa?

O que tenho gosto em fazer tenho feito. É positivo porque a dificuldade aguça o engenho. Depois que estive na política fiquei um bocado manhosa.

 

Nesses quatro anos, o que fez de que se orgulhe particularmente?

Dei a uma série de mulheres a possibilidade de modificarem um pouco a sua vida. Neste curso de tecelagem, dez ou doze mulheres ficaram com o seu emprego. Algumas trabalham nisto diariamente, têm um posto de venda.

 

E há procura?

Mandam para S. Pedro e no Verão as pessoas que estão nas Termas passam todas por aqui. Houve um curso de culinária que teve muitíssima gente. Aprenderam a sair da cozinha tradicional. Foi uma bola de neve, comecei com as mulheres e elas agora estão sempre a puxar por mim, «Então professora, como é?» E eu já não estou na junta.

 

Chamam-lhe professora?

É.

 

É interessante que este esforço pelas mulheres venha de si que não teve de provar a independência financeira em relação ao marido ou família.

Sentia na carne a dificuldade que elas tinham. A mulher de Manhouce, apesar de enfiada no cimo da serra, gosta de ter o seu enxoval bonito com rendas, bordados, colchas. Têm gala nas mantas, «Aquela rapariga tem uma caixa de mantas». As mantas e colchas são tecidas no tear. No meio disto tudo, são as raízes tradicionais que continuam. A tecelagem era uma coisa que estava a acabar. Os teares estavam no meio dos palheiros, uma peça aqui outra acolá, e reconstituíram-se.

 

Um capitalista pensaria como retirar o máximo de dinheiro de toda esta situação. Pela forma como fala, o dinheiro não é a principal motivação, nem sua nem destas pessoas.

É aprender, ficar com a escola. A minha preocupação foi o dinheiro e o emprego e, além do mais, a escola e o saber da tradição.

 

As moças estão mais interessadas em aprender a tecer ou estudar em S. Pedro?

Continua a divisão, há as que estudam e as que ficam. As que vão tiram cursos, ganham dinheiro, compram às outras. Há uma troca de saberes e valores.

 

Que atributos deveria ter uma menina prendada do seu tempo?

Aliado ao dote (o ouro), os dotes naturais tinham ainda mais valor. Uma rapariga dotada tinha que ser: boa rapariga (bons sentimentos), bem avoairada (simpática e gostar de estar com as pessoas), de boa gente (boa família), ter uma rica fala (saber cantar), ter um chapéu d’oiro (a parte de dentro do chapéu que usamos devia estar cheia).

 

Fazia gala do seu oiro?

Era um oirinho bonito, como as mulheres costumam dizer. «Um cordão quem quer tem; um oirinho bonito é quando é diversificado: são as contas, as cruzes, o coração, o trancelim».

 

O oiro vinha de família?

Vinha, era uma passagem de ternuras e afectos. O melhor vai para a filha mais velha. Ainda havia a história do primogénito ou primogénita.

 

Sendo a filha mais nova, como chegou tanto oiro até si?

Havia três tias. Nas saídas, ia o meu, o da mãe, o da irmã. E fui comprando algum.

 

As peças eram compradas na aldeia a almocreves ou nas idas ao exterior?

Era mais aos almocreves, aos ourives do Porto ou de Viana que vinham de porta em porta.

 

É às sobrinhas que vai passar o seu oiro?

Ainda não pensei nisso.

 

Sentiu que se interessavam por si por ser um bom partido?

Se calhar era um bom partido, a nossa casa era a melhor da freguesia. A casa, as terras. Mesmo sendo bom partido, fiquei sem partido nenhum. Já viu como as coisas são? [riso]

 

Quando é que desistiu de casar?

As coisas foram andando. Mesmo hoje, não é o amor dos vinte anos, mas não quer dizer que não haja possibilidades de arranjar uma companhia. Podemos enquadrar o casamento dentro de vários parâmetros: o de amor, o de companhia. Há tanta gente de 90 anos que ainda faz isso.

 

Não queria envelhecer sozinha, é isso?

Os pais e as tias já foram, os sobrinhos estão praticamente criados. Qualquer dia vou estar sozinha a aquecer os pés ao lume. Arranja-se uma criada, quanto mais não seja para nos fazer companhia.

 

Continua a ser costume na burguesia rural?

Há quem nos acompanhe porque há necessidade.

 

Neste ano, desde que se reformou, tem tido uma vida diferente?

A mesma coisa. Tenho estado mais parada desde o Natal por causa da constipação e do frio. As pessoas são mais rijas, em contacto de manhã à noite coma natureza. Abre-se a janela, vai-se para o campo, sobem-se escadas, fala-se com o vizinho, mais tempo na rua que em casa. «Coitada, aquela está muito amarelinha. Passa o tempo em casa». Quando se tem a pele tostada do sol, do vento e do ar da geada, como diz a cantiga da pastorinha, sim senhora.

 

Sabe fazer o trabalho da terra?

Não, por tristeza minha. Nem cavar batatas, nem pôr as cebolas e os alhos. Se fosse preciso, tinha que aprender e se não nascessem no primeiro ano nasciam no segundo. Gosto muito de jardinar e de mexer na terra. Num dia podei o meu jardim todo.

 

Como surgiu a aventura com os GNR?

Estava em Lisboa com o Mário Martins (era o produtor dos discos), o telefone tocou e era o Reininho. Falei com ele e combinámos uma ida ao Porto. Não era um grupo para que olhasse muito. Todo o género de música tem a sua beleza. Há aquela que somos capazes de sentir com mais facilidade e outra que é preciso sentar para ouvir e entender. É como na música clássica. Quando era mais miúda, o meu irmão punha-a a tocar muito alto e incomodava-me. Era muito barulho, havia os bombos e os violinos e nos primeiros tempos não era capaz de ligar uma coisa à outra. À força de ouvir, acho-a fabulosa e consigo até ver nela toda a natureza: o ar, o vento, a água.

 

Havia alguma canção deles de que gostasse? As «Dunas», por exemplo, não é barulhenta.

A gente não pode chamar música rock às «Dunas», pode? Pode-se chamar rock à «Pronúncia do norte»? Tem a parte das baterias e aquele barulho todo mas o fio condutor é muito melodioso.

 

Foi fácil convencê-la?

Foi. Fui ao Porto, trouxe a cassete e a letra. Ouvi uma ou duas vezes e pensei «Não faço nada sozinha, temos que estar todos». Assim foi. Ensaiámos e disse ao Rui que vinha duas, três, quatro, as vezes que fossem necessárias. Era uma coisa diferente e queria que ficasse bem. Passados uns dias telefonou-me a Lála da Valentim de Carvalho e disse: «Já está gravado, está uma maravilha e o Rui já está na Índia, casou-se!».

 

Foi a primeira vez que cantou com um grupo que não o seu?

Tinha cantado com o Rão Kyao. Fizemos uma digressão pela Alemanha, Nova Iorque, Canadá. À Alemanha fomos cinco vezes!

 

Que impressão teve dos rapazes GNR?

Entendemo-nos bem, ainda agora no Portugal Fashion foi uma festa. São muito educados. Quando vemos esta malta, os rockeiros, com aqueles cabelos e aquelas coisas, não são bem deste mundo. O Rui é uma maravilha. Como é que se chama o da bateria?

 

Toli [César Machado].

O Toli é fora de série. E o pequenito, aos pulos, «Olhe que já tenho uma série de filhos», e eu «O quê?».

 

Fala sempre como se fosse uma mãe, destes rapazes, dos seus alunos, dos seus sobrinhos. A abnegação é a sua maior virtude?

Nunca pensei nas minhas virtudes. Nos meus defeitos penso. O meu maior defeito é querer fazer as coisas sem defeito. Procuro fazer sempre o melhor que posso mas acho que nunca faço tão bem quanto queria.

 

Quais são os seus pecados?

Penso que não tenho pecados. A nível familiar tenho feito por todos o máximo que tenho podido. Terei alguns pecados em relação a coisas que devia ter feito por mim e me esqueci. Será isso pecado? Se calhar, também não é. Tive gosto em fazê-lo.

 

Se não estivesse a conversar comigo o que estava a fazer?

A ler, a fazer renda, a aturar uma sobrinha que tem cinco anitos.

 

Ensina-a a cantar?

Ela tem um ouvido danado! Anda sempre atrás de mim, «Canta, canta». Para mim cantar é uma coisa tão séria que tenho que ter ambiente e estar predisposta. Custa-me muito quando vamos actuar e as pessoas não nos estão a ouvir. É como quem me mata ir cantar aos jantares. As pessoas vão ali para comer. Mas há situações em que a gente não é capaz de dizer que não.

 

Fazem os espectáculos pelo dinheiro?

Também. Um grupo com vinte e tal anos não pode ter só o aliciante da música. O pouco que se ganha tem de ser distribuído senão as pessoas começam a desmotivar. A maior parte já casou, têm filhos, quando saem têm de fazer sacrifícios. Mesmo que sejam dez contos para cada um, chegam ao fim e já têm vinte contos num fim-de-semana. Há alturas em que são muitos fins-de-semana seguidos.

 

Tem uma música preferida?

Gosto de vários temas de música religiosa. «O embalo», «O menino de Jesus». Talvez goste mais do «Muito lindo é o céu».

 

Como é a letra?

Tenho de cantar a cantiga, senão não me lembro. «Muito lindo é o céu, todo cheio de alegria. Lá não há noite nem sombra, tudo é claro dia. Quem quiser ir para o céu não diga que não tem tempo, pode andar no seu trabalho com Jesus no pensamento. Quem quiser ir para o céu venha comigo que eu vou, muito gostava de ter uma mãe que me criou». 

 

 

Publicada originalmente no DNa, do Diário de Notícias