Alicia Gallotti
Do que se fala a seguir? De tudo o que sempre se quis saber sobre sexo e nunca se ousou perguntar. Da importância da penetração. Do orgasmo clitoriano. De relações sexuais imperfeitas e ainda assim satisfatórias, como os hambúrgueres. De repressão, vergonha, medo. Do sermos todos potencialmente bissexuais. Dos orgasmos impossíveis de Kim Bassinger no «Nove semanas e meia». Na confusão que frequentemente se faz entre sexo e sentimento. Do conservadorismo da nova geração. Do tamanho. Do encaixe perfeito dos animais. Da olhar para os outros e tirar-lhes o retrato sexual.
De isto se fala com Alicia Gallotti, autora de livros como «Kamasutra ilustrado» ou «Prazer sem limites» – só em Portugal, o conjunto dos seus livros foram comprados por centenas de milhar de pessoas. Nasceu na Argentina, vive em Barcelona. É jornalista, escreveu mais de dez anos para a Playboy, dedica-se, desde há sete, à edição de livros cujo assunto são as relações entre casal e as «melhores técnicas sexuais».
É uma mulher muito viva, que gosta de Edward Hopper e assume uma veia hedonista. Conversámos em sua casa, debaixo de uma ventoinha gigante, suspensa, no tecto.
O que é uma relação sexual óptima? O que é ser bom na cama?
Esse tipo de afirmação causa bastantes danos. Se uma pessoa procura ser a melhor amante, que cada vez seja a melhor..., é como se a relação sexual fosse um exame em que é preciso passar! É o problema que a maioria das pessoas tem com a sexualidade. Quando se pergunta, por exemplo, quantas vezes se deve ter relações sexuais por semana, em lado nenhum se diz que deve ser três vezes, duas vezes, ou nenhuma. O que é bom na sexualidade é não procurar pontuações.
As pessoas vivem muito obcecadas com o desempenho.
Sim. E nós, mulheres, também. Os homens porque têm que demonstrar que são fantásticos, que têm todas as dimensões...
Dimensão e potência, é isso?
Dimensão e potência, as duas coisas. Como se isso fosse importante... E nós consideramos que temos de ser as meninas bem, divinas, sem pneus, e, além disso, amantes de fogo para que ele diga “não tive outra igual”. É uma obsessão! As mulheres não costumam perguntar, mas os homens, é frequente que perguntem se foi a melhor relação sexual. Imagine se foi pobre, o que é que vai dizer? “Sim, maravilhoso”?!
Radica em que a obsessão em querer ser o melhor, o inultrapassável?
Suponho que remonta à necessidade de ser querido. Procura-se que o outro diga que lhe deixou uma memória indelével. E nesse momento pode ser maravilhoso. O sexo é uma coisa natural, como comer, como dormir, é uma necessidade fisiológica. Quando come uma comida refinada, recorda-a toda a vida; mas às vezes come hambúrguer e também é bom.
É uma analogia interessante!
Se somos demasiado livres a comer, o pior que pode acontecer é engordarmos. Se somos muito livres na vivência da sexualidade, seremos mais livre como indivíduos, mas não é politicamente correcto na sociedade em que vivemos. A sexualidade foi cada vez mais controlada para se poder controlar também o indivíduo, através da reprodução...
O núcleo da questão é a liberdade, quer num sentido mais estrito e sexual, quer num sentido mais abrangente, que diz respeito ao indivíduo e à vida que leva?
Socialmente, há uma valorização negativa. Em 2004, no século XXI, se uma mulher vê um homem que lhe agrada e vão para a cama, quer tenha 20 anos, quer tenha 60, não é de todo bem visto. Se uma mulher vai para cama só por amor, tem muito poucas relações sexuais na vida! Está socialmente embutido: na mulher misturam-se os sentimentos e a sexualidade. Ás vezes coincidem, mas nem sempre têm que coincidir. E reprime-se a sexualidade.
O amor e o sexo são coisas separadas, mas quase sempre confundidas. Nos seus livros ou nas revistas, há uma linguagem cada vez mais explícita e uma detalhação do que podem ser as relações sexuais. Mas depois, no dia a dia, as pessoas são bastante mais reprimidas.
Nos meus livros nunca falo de amor. Nem tão pouco faço juízos de valor. Passou-se uma coisa curiosa: sexta-feira estive num casamento de uma amiga e apresentaram-me uma rapariga que era mulher de um amigo, (que conheci num jantar em casa da noiva e que no dia seguinte comprou os meus livros e os deu à mulher). Ela olhou-me como se eu fosse uma santa! Era jovem, tinha 32 anos, e dizia: “Obrigada, obrigada!, tínhamos umas relações sexuais muito más, e lendo o teu livro, descobri uma sexualidade que reprimia. Tenho uma amiga que tinha o mesmo problema e emprestei-lhe o livro”. É forte, que uma mulher com nível cultural elevado, 32 anos, precise de um livro para deixar-se ir... Há não muito tempo, uma rapariga de 20 e poucos anos agradecia-me porque graças ao meu livro tinha-se atrevido a masturbar-se e descoberto que era muito agradável – antes nunca se havia permitido fazê-lo.
Como é que se faz cair a repressão? Os fantasmas, os medos, todo o que corta a liberdade do indivíduo, é também aquilo que inibe a libido?
O principal órgão sexual é a mente. Começa em casa, na escola, as crianças pequenas tocam-se nos genitais com frequência. Se é rapaz, os pais comentam ao jantar: “o menino passa todo o dia... , vai ser um macho”; se é uma menina dizem-lhe: “não te toques, não faças isso, é sujo”. Tudo isto vai marcando. Se procura o oposto, rebela-se tendo muitas relações sexuais, que nem sequer serão boas, porque o fará para rebelar-se. Se não, reprime-se, fechará as perninhas... Porque é que há tanto tabu com o sexo oral, sexo anal? Na realidade, o único que é permitido é o sexo reprodutivo, dá-se uns beijinhos, há penetração e adeus. De vez em quando admite-se o jogo sexual, um pouco, mas é sempre com o compromisso de chegar à penetração. Quando não é absolutamente necessário.
Não?
Às vezes sim, às vezes não, não há que chegar a nenhum lado. Isso é o que as pessoas têm mais dificuldade em aceitar.
Que não há que chegar a algum lado?
Se não tem um orgasmo, pode ser bom na mesma. Noutro dia, tê-lo-á. Se ele nesse dia não chega a ejacular ou a ser super-fantástico, não é grave, porque desfrutou das sensações e das carícias.
Mas nos seus livros fala-se da importância do orgasmo. Não é muito sobrevalorizada? Quando se fala no «prazer sem limites» ou quando se fala no «caminho até ao clímax», fala-se como se houvesse um objectivo firme, e se esse não for conquistado há um defraudamento, uma sensação de incapacidade.
Claro... “Tenho qualquer coisa de mal que me impediu de atingir um orgasmo”. A mim deixa-me muito furiosa, o orgasmo. Nos anos 70, era a história se era vaginal ou clitoriano. Nós, as mulheres, sentíamo-nos desesperadas!, porque... vaginal, não havia maneira de ter um orgasmo.
Há ou não um orgasmo vaginal?
Não. A origem do orgasmo é o clítoris. O clítoris é muito pequeno, mas por dentro tem até seis centímetros, e aí produzem-se sensações que contribuem para esse estado orgástico. A vagina recebe todas as sensações que são transmitidas do clítoris. Se o parceiro, aproveitando esse momento, a penetra quando está em plena orgasmo, a mulher mexe-se como se estivesse a ter um [outro] orgasmo. Mas o orgasmo é clitoriano.
Ou seja, o orgasmo que pode envolver toda a zona, é desencadeado pelo clítoris.
Além do mais, a vagina não tem assim tantas terminações nervosas. É sensível às sensações, nada mais.
Essa era a questão nos anos 70. Estamos em quê, agora?
No multi-orgasmo, no ponto G e na ejaculação feminina. Ejaculação feminina, não existe, mas aparece em todas as revistas que há mulheres que no momento do orgasmo têm mais secreções que outras. Então, claro está, se não tem uma ejaculação, estará mal!, se não tem 27 orgasmos continuados...
Mas sabe que continua a haver pessoas que pensam que orgasmo múltiplo é um orgasmo que acontece, ao mesmo tempo, no clítoris, na vagina, no ânus...
E nas orelhas, não? O homem convence-se de que, se é bom, a mulher terá um orgasmo múltiplo. Tem então que trabalhar, como um operário na construção, e ela chega um momento em que se farta, acabará fingindo um orgasmo interminável, gritando como uma louca para que a história se acabe, ele não se frustre e ela não se sinta mal.
Há pessoas que não chegam a sentir nada, de tal modo inibidas. Ficam fixadas na ideia do desempenho e não chegam a relaxar, a desfrutar, a sentir.
Se se vai para a cama assim, completamente tensa, é certo que não poderá sentir nada. Entrevisto mulheres perguntando sobre fantasias sexuais e há um amplo sector que diz que nunca teve. Coisa completamente impossível: um sonho é uma fantasia sexual e tem que o ter, pelo menos um ou dois. A fantasia é mais desbocada e desmedida que a realidade. O atractivo das fantasias é esse: são ilimitadas, não chegam a nada nem a ninguém, pode-se fantasiar o que se quiser. Então, é tal o pânico, a repressão que negam.
Acha que têm vergonha em confessar?
Não é a mim que estão a enganar quando lhes pergunto. Creio que têm sonhos e fantasias, mas que o negam a tal ponto que não o recordam.
Li num dos seus livros que a fantasia mais comum entre as mulheres é fazer sexo com desconhecidos. Porquê? Porque os desconhecidos não conhecem a sua história anterior, não vão fazer juízos? Porque aí o afecto não entra e trata-se de sexo puro e duro?
Que é aquele sexo que a mulher tem tanta dificuldade em permitir-se.
Existe sexo puro e duro, na sua opinião?
Sim. Sexo, atracção física. Costumamos dizer: uma relação sexual com amor é muito melhor do que sem amor. Às vezes, o que é melhor, é justamente o amor e a vontade de demonstrar ao outro quanto o quer, quanto a atrai. Mas é também isso que faz que a relação sexual seja mais complicada do que com alguém a quem se diz: “aqui te agarro, aqui te mato”...
«Aqui que te agarro...»?
Aqui diz-se: “aqui te agarro, aqui te mato”. Quer dizer que é rápido. Na fantasia da relação com um desconhecido, ela deixa-se levar, ele deixa-se levar, desfrutam como loucos e adeus, cada um para seu lado e ninguém perguntará nem saberá nada. É o prazer proibido, também.
No cinema as poses são muito artísticas, as pessoas parecem ter um prazer intensíssimo; mas, olhando bem, são situações impossíveis. Anatomicamente, ninguém pode ter um prazer intensíssimo naquela posição...
Repito isto muitas vezes: parte da má educação sexual que temos, advém do cinema, tanto o comercial como o pornográfico. Kim Bassinger no “Nove Semanas e Meia”: não pode ter nenhum orgasmo. É tudo muito passional: ele agarra-a, empurra-a contra a parede, penetra-a... Bom, uma mulher que não tem lubrificação não pode ter um orgasmo. Nos filmes pornográficos, é o mesmo, os corpos e as posições parecem divinos, os pénis são descomunais, sempre rígidos... A senhora faz-lhe sexo oral e 12 segundos depois é penetrada? Não há orgasmo, nem por acaso! Passa-se o mesmo na publicidade, onde não há um bocadinho de gordura, celulite... Se esse é o corpo ideal, podemos suicidar-nos em massa.
O complexo de inferioridade por causa do tamanho do pénis pode comprovar-se, por exemplo, em muitos homens que quando vão a mictórios públicos, não fazem à frente de outros porque não ousam olhar para o lado e constatar que o outro é maior.
Seguramente.
Os homens são mais inseguros em relação à importância do tamanho que as mulheres? Elas valorizam menos a questão do tamanho?
Inseguríssimos! Mas como é que vão fazer? Se houver reencarnação, não quero vir a ser homem. Toda a responsabilidade que pesa sobre eles na sexualidade, é imensa.
É verdade que os homens que têm um sexo muito grande são amantes menos dedicados? Porque não têm, ao contrário dos menos abonados, que se empenhar tanto nos jogos preliminares?
Eu acho que ter um pénis muito grande é um problema. É como ter um pé demasiado grande: se não houver um sapato grande, não entra, não é?
Mas a vagina não é suficientemente elástica para acolher qualquer tipo de pénis?
Sim, mas se há tamanhos de pénis, também há tamanhos de vaginas. É verdade que são elásticas, mas há vaginas que são mais curtas, ou um pouco inclinadas e o pénis ao entrar provoca uma dor imensa e não há prazer. A vagina é elástica a ponto de deixar passar uma cabeça de bebé, mas quanto tempo está uma mulher a dilatar até que passe uma cabeça de bebé? Outra coisa que parece importante em relação aos pénis grandes: até que ponto nós, as mulheres, somos cúmplices dessa sexualidade que não nos convém. “Estive com um fulano que tem um pénis...”, como se fosse fantástico. Esta mulher está a mentir, como os homens que contam aos outros que deram sete numa noite.
Então, anatomicamente, o que é que conveniente?
Importa ter uma boa boca ou uma boa posição. A posição sexual mais utilizada no mundo inteiro é a do missionário: um em baixo, outro em cima, de modo a que haja uma impossibilidade humana de a mulher se mexer durante a penetração! O melhor é uma posição sexual que permite que a púbis ou o pénis do homem rocem o clítoris da mulher. Senão, há as mãozinhas de ambos para ajudar, ou a boca, ou outra parte do corpo.
Assim sendo, qual é a importância da penetração?
Cultural. Além de dar prazer, não lhe tiro o valor no prazer. A importância, creio, nasce da procriação. O comer, respirar, dormir, caminhar, não têm que ver com a reprodução; a sexualidade, sim. Actualmente há as inseminações artificiais, mas até aqui a procriação dava-se com a penetração. Portanto, havia que fomentá-la, torná-la importante.
Há quem pense que as lésbicas recorrem sempre a vibradores e a outro tipo de objectos de penetração, e que encontram nisso uma maneira de substituir a presença masculina.
Evidentemente que em termos de constituição estamos feitos para combinar: um tem uma coisa que sai e outro tem algo em que se pode entrar. Mas acho que não é uma questão constitutiva, mas uma questão de procurar prazer. Uma mulher heterossexual também usa vibradores e não necessariamente vaginalmente. É uma visão muito heterossexual imaginar que é substitutivo. Em geral, os homens lidam muito mal ou com muita atracção o lesbianismo.
Escreveu que é a fantasia mais recorrente dos homens é ver duas mulheres a fazer amor.
Consideram sempre que uma mulher é lésbica porque não encontrou um macho que a satisfaça ou porque teve uma má experiência. O problema é atribuir sempre valorações. Na realidade devíamos viver como os animais. Se vir a sexualidade, por exemplo, de um cão e de uma cadela, fica fascinada. Fazem-no muito bem, e ninguém lhes disse que o sexo é sujo ou que têm de gostar um do outro. Há todo um jogo de sedução muito atractivo: ele aproxima-se da vulva dela e quando parece que a vai penetrar, afasta-se. É como um baile de prazer, pode demorar todo o dia. Como a sexualidade tântrica, voltam ao jogo erótico, voltam, voltam, até que num momento há penetração.
O jogo sexual trata da relação de poder entre duas pessoas?
Na sociedade competitiva em que vivemos, em que tudo é para ganhar, então sim, é ver quem pode mais, quem é mais passional. Senão, o jogo sexual é o jogo em si mesmo, é a busca do prazer pelo prazer. E que termina como termina.
Quando as pessoas vão para os bares numa atitude de caça, o que procuram é esse prazer sexual que tem que ver apenas com o corpo ou procuram sentir-se poderosas, conquistadoras? Como se fosse tão estimulante o processo que conduz à conquista, como depois, mais especificamente, o prazer sexual que têm.
Sim, pomos na sexualidade todas as nossas afirmações como indivíduos. Alguém que se sinta afirmado como caçador põe muito mais empenho em caçar que na relação sexual. No dia daquele casamento, saiu-se para uma rua cheia de prostitutas de alto nível. Havia uma nua, com um corpo espectacular, sapatos de salto alto e uma bolsinha. Um amigo dizia que não entendia a prostituição porque o que lhe dava mais prazer, em qualquer relação sexual, era a conquista; se pagasse, a sedução seria falsa.
A prostituição pode ser lida como uma luta e afirmação de poder? Há um que compra outro, que tem posse dele, que pode fazer dele o que quiser.
Isso é o reflexo da sociedade. Que cada vez haja mais prostituição, é a necessidade do “eu quero, eu pago e tu fazes o que eu quero”, coisa que, evidentemente, agrada a mais pessoas do que as que o admitem. Porque economicamente move uma quantidade de dinheiro brutal. Essa é outra coisa, pergunta a qualquer mulher ou homem se pagam por uma relação sexual...
E todos dizem que não...
Em troca, pense nos cifrões, na quantidade de dinheiro que se movimenta na prostituição.
Sobretudo a prostituição, mas também o uso da pornografia não são coisas assumidas. São consumidas de modo vicioso, com uma aura de proibição, de pecado – que é uma palavra de que ainda não falámos. A matriz religiosa condiciona muito o nosso comportamento sexual?
Claro.
Porque é que as pessoas não dizem “eu consumo pornografia”, “eu consumo prostitutas”? Porque é um atestado de menoridade, de inferioridade? Significa que não se conseguiu conquistar uma pessoa, que foi preciso pagar para a ter?
É isso. Aqui está muito em moda, nos reality shows, a prostituta. A menina modelo que na realidade é prostituta de luxo. Então explicam técnicas: como vão a uma discoteca ou jantar, como olham para um carro...
E para eles, qual é o ganho?
O valor para o grande empresário ou político é que são modelos, actrizes de segunda, tem um pouco de nome. É uma prostituta um pouco mais adornada, é uma cortesã. A prostituta fina sai nas revistas do coração, é um valor acrescentado ao seu poder. E isso mostra aos outros homens que querem deitar-se com ela: «quem paga sou eu, e tenho-a».
Fala disto quase com repugnância...
Não por uma questão moral. Que cada um siga a sua vida como quer e escolha a profissão que lhe dê na gana. O que é tremendo é que se continue a utilizar o sexo para segurar paredes que se estão a derrubar na vida de cada um.
Como é que será essa relação sexual? Será um assunto coital?
Se ela descobrir que quanto mais grita, mais dinheiro ele lhe dá, pois gritará como uma louca. Enquanto isso estará a pensar: “amanhã, com o que ele me pagar, compro uns sapatos ou uma mala”. Ele pensará que a faz chegar ao céu e, ao chegar a sua casa, recebê-lo-á a mulher... Sigo todos os documentários e entrevistas sobre sexo e até hoje as prostitutas continuam a dizer que o que lhes pedem é o que não podem ter ou não têm com as suas mulheres: sexo oral, sexo anal, aquela fantasia em que ela se disfarça de anjo ou de médica e o revista. Tudo o que é mais lúdico é o que vão pedir à prostituta. Gente jovem, não só gerações de 60, 70 anos. Conheço um rapaz de 40 anos, solteiro, de uma classe económica alta, vai à missa ao domingo; às quintas-feiras sai com os amigos, em grupos de quatro ou cinco; jantam e depois, um pouco tocados, vão a bares que em cima têm quartos. Por fim, voltam a casa, “olá querida”... A história repete-se, continua tudo igual. A única coisa que mudou é que agora se verbaliza mais e há uma aparência de liberdade.
O que é que mudou com o aparecimento da sida? Continuamos a ouvir prostitutas dizer que muitos clientes se recusam a usar preservativo. É claro que depois vão para casa infectar as mulheres.
O preservativo é também uma questão geracional. Trabalho bastante com um rapaz amigo que tem 38 anos e falamos sobretudo sobre os gays; pergunto-lhe: “então uma relação sexual com ou sem preservativo...?”, “não tenho ideia como é sem, a minha geração não concebe ter uma relação sexual, homossexual ou não, sem preservativo”. Outro dos problemas é que o heterossexual acredita que é o rei do mundo, tanto o homem como a mulher, que todos os males e todos os horrores são para os homossexuais e bissexuais.
Pensa que somos todos potencialmente bissexuais?
Sim.
Mas até que idade somos potencialmente bissexuais e quando é que escolhemos um caminho? Como é que se faz essa definição da orientação sexual?
Nisso estou de acordo com o que diz [o relatório] Kensey: que a sexualidade é um vasto leque que vai da heterossexualidade à homossexualidade e que uma percentagem muito reduzida fica num ou noutro extremo – se não houver pressão cultural. Por outro lado, a maior percentagem oscila entre a homossexualidade e heterossexualidade. Desde muito pequenos, recebemos uma educação tão marcada pela necessidade de definição que custa muito ser livre. Os bissexuais, agora está um pouco melhor, mas foram excluídos por ambos os grupos. Desgraçadamente, parece que esta sociedade necessita de delimitar. Tudo o que não se pode delimitar cria conflito, porque dá medo. Isto passa-se com tudo.
Numa cidade como Lisboa é cada vez mais evidente a assunção da homossexualidade, sobretudo masculina. Como vivi numa cidade mais fechada e provinciana do norte, o Porto, esta diferença foi para mim flagrante quando me mudei. Era visível nos supermercados, nas ruas, nos restaurantes.
É certo que a homossexualidade é mais aceite do que há trinta anos. Também é certo que é aceite uma homossexualidade estereotipada, estigmatizada, o gay que usa plumas. Mas o gay que tem um look como os outros, que fala como os outros e que não pode ser isolado, esse não está integrado. Da mesma maneira que a lésbica mais aceite é a camionista. Se há miúdas que não têm nenhum traço masculino, super-arranjadas, essas causam muito mais conflito.
O que é tão ameaçador que faz que sejam olhados com desdém ou indiferença?
O que provoca medo é o contágio, no fundo.
Que o outro nos faça ser como ele é?
Sim. Qual é o grande terror dos heterossexuais homens ou mulheres? O que é que acontece se tiver uma relação com outra mulher e gostar? Muda a minha vida ou não? Imagine que se trata de uma senhora que tem uma relação sexual má com o parceiro, mas que gosta muito dele, e um dia surge uma oportunidade... Porque é que muitas vezes não se deixam levar nessa relação? A sexualidade é de tal modo que se se liberta, abrem-se comportas brutais que obrigam a reorganizar a vida. Creio que esta é a sensação que as pessoas têm. Por isso se reprimem, por isso há tanto medo do contágio do bissexual, do homossexual ou da pessoa muito liberal.
Ou seja: reconheço-me nestas características, isto é o que eu sou. E se agora descubro que sou outra coisa, o que fazer com isso?
Acho que é isso. Mas acho também que se vivêssemos numa sociedade mais aberta, não teria que ser assim. Em países onde a Igreja não tem o peso que tem em Espanha ou Portugal, as pessoas vivem a sexualidade com uma naturalidade e uma liberdade que é francamente ideal.
Mas podem os que têm herança católica prescindir do prazer do pecado?
Estamos estão educados nisto que, claro, temos que ir por aí. Mas não faz sentido para quem não foi educado assim.
Ouvimos histórias de pessoas que têm uma vida familiar organizada, heterossexual, e que depois têm relações homossexuais, com prostitutos ou não. Isto é o quê? Bissexualidade? São homossexuais que nunca chegaram a viver plenamente a sua orientação e se organizaram na heterossexualidade?
Creio, pelo que conheço, que são mais, muitos mais, estes últimos – homossexuais que para serem admitidos pela sociedade têm uma vida dupla – do que bissexuais.
Há fórmulas para bom sexo?
Não há fórmulas. Isso é que é tremendo e maravilhoso no ser humano, ainda que se procurem continuamente fórmulas. O ideal não existe, mas buscamos uma relação com uma pessoa com quem nos entendamos, nos sintamos bem e, além disso, com quem comuniquemos bem, tanto verbal, como sexualmente.
Fala muito do «cume do prazer»? Que definição é que tem para isso?
É parecido com a morte. Há um filme chamado “Matador” que tem uma mistura contínua de morte e sexo. Acho que quando a pessoa se deixa levar de verdade, são uns segundos em que está como se não estivesse, não sabe onde está, perde a noção do espaço, do lugar do seu corpo, de tudo. É morte, inconsciência, êxtase. No fundo, na religião cristã foram os primeiros a descobrir o prazer, com os êxtases que tinham os santos do passado.
No «Guia dos Adolescentes» faz uma divisão por fases. Apesar dessa gradação, a aprendizagem e a vivência da sexualidade obedecem a um padrão constante? Uns serão sempre mais desajeitados que outros? Uns terão sempre mais vocação e apetência que outros?
Se vive num lugar onde as pessoas se tocam, a mãe faz mimos, o teu pai tem uma relação fluída com o afecto, se quando a apanham a masturbar na casa de banho não lhe chamam suja, seguramente terá muitos pontos ganhos na aprendizagem da sexualidade. Se, por outro lado, o ambiente é mais repressor e subtil, terá que fazer um trabalho pessoal mais forte. Mas eu acredito que as pessoas podem introduzir mudanças na sua vida sempre. Basta que o desejem realmente. Por exemplo, falo muito no «Guia dos Adolescentes» sobre a primeira vez; toda a gente conta que foi maravilhoso, como a lua-de-mel que foi maravilhosa, e são coisas horríveis! O que digo é que o mais provável é ser horrível, mas que não se preocupem, que depois vai melhorar à medida que se vai tomando atenção ao que acontece.
Lançou recentemente em Espanha um guia para os gays e para lésbicas. Como é que constrói estes livros? Que tipo de pesquisa faz?
Tenho uma mentalidade muito jornalística, (fui jornalista até 99), trabalho sempre com investigação, entrevisto grupos de pessoas, faço entrevistas individuais, entro em fóruns O que funciona melhor são os mails. Envio e-mails, tenho uma agenda grande e peço que o reenviem, aquelas pessoas que não conheço são as que me contactam com o que realmente interessa.
O que é interessante é que as respostas mais verdadeiras vêm de pessoas que estão completamente livres para responder. São mais verdadeiras porque as pessoas se libertam de todos os arquétipos sociais.
Não há empecilhos. Antes de começar a fazer estes livros, há sete anos, mais ou menos, fiz uma investigação sobre as relações sexuais em Espanha. Estive três meses a investigar e entrevistar. E aí, com os meus amigos – só consigo fazer estas coisas com o apoio dos meus amigos –, descobri que o que me respondiam não tinha nada a ver com a realidade daquelas pessoas. Fulano que tinha muitos problemas com a sua mulher, que nunca tinha relações sexuais, a mim tinha-me dito que tinha uma vida sexual fantástica, três ou quatro vezes por semana! Percebe-se.
Quando olha para as pessoas, tira-lhes o retrato sexual? Pensa: esta talvez seja homossexual, mas ainda não sabe; esta de certeza que gosta de relações de dominação...
Fiz isso a vida toda. Não sei quando comecei, mas já na adolescência, quando conhecia alguém, pensava que atitude teriam nas relações sexuais. Depois de terminar o secundário, sentia coisas e quando perguntava às minhas amigas se sentiam o mesmo, elas diziam sempre que não. Eu pensava: “sou uma coisa raríssima, sou do pior, vou para o Purgatório”. Depois, quando as minhas amigas se casaram, falámos disso: “quando me perguntaste se já tinha começado jogos sexuais, já me estava a meter na cama!”. Penso sempre, sempre quando vejo uma imagem, como é essa imagem quando se despe. Não posso falar com alguém sem pensar como será a sua vida sexual.
Está corada! Acha que a pessoa revela mais intimamente a sua essência na relação sexual?
As que sentem, sim. Os que são reprimidos, também. Acho que é um dos momentos em que sai mais autenticamente como cada um é. Às vezes saem coisas que não controla ou que antes não conhecia ou não sabia. Isso provoca muito medo. Então é mais fácil ir pelo que dita a sociedade do que deixar-se levar.
Como é que isto se transformou no centro da sua vida? Como é que aprendeu tanto sobre o sexo?
Tive uma educação invulgar. Somos três irmãs, sou a mais velha. A minha mãe casou-se muito jovem e teve-me de seguida. Como vinha de uma família de muita repressão, eu fui educada como se educa agora as crianças, não como se educava há 55 anos. Não dormia a sesta, não tinha horas para tomar banho... Em minha casa, não sei porque estranho motivo, sempre se falou muito de sexo, com muita naturalidade. Além do mais sempre tive uma sexualidade muito activa, evidentemente,
Posso perguntar que idade tinha quando iniciou a sua vida sexual?
Sozinha ou acompanhada?
Das duas maneiras.
O meu descobrimento da sexualidade aconteceu pelos cinco anos e meio, seis. Recordo a minha descoberta das sensações, porque foi quando nasceu a minha irmã. Mudámos de casa e lembro-me de jogos eróticos com os irmãos das minhas amigas, com as minhas amigas. Quando tinha 17 anos a minha mãe separou-se do meu pai e voltou a casar-se com um médico. A este médico interessava muito o tema da sexualidade. Sentava-me no meio da sala, como um guru, e as minhas amigas à volta perguntavam: “a mulher frígida, é o quê?”, e eu explicava-lhes casos. Já havia perguntado ao meu padrasto, uma vez que ele percebia do assunto, e deixavam-me ler todos os livros da biblioteca.
Era estigmatizada?
Era e horrorizou-me muito. Hoje não sou, trato de me proteger. O que mais impressiona quando olho ao redor é que há miúdas, de 16, 18 anos, filhas de pais muito liberais, que dizem prontamente: “fulanita é uma puta, mete-se na cama com um qualquer...”. Como podem ser pessoas abertas se continuam a utilizar este rótulo? E são jovens, muito jovens.
Os rapazes olhavam para si como uma rapariga fácil?
Creio que sim, creio que sim. O que me horroriza. Horroriza-me que no século XXI se pense assim. Há dois anos, 90% dos jovens responderam num inquérito que preferiam que a sua noiva fosse virgem! O mito da virgindade está muito valorizado e não há nada que pareça fazê-lo mudar. Nos anos 60, imaginava uma mudança muito profunda, agora penso que morro antes que haja uma mudança realmente profunda.
Começou a dar aulas às suas amigas explicando o que é a frigidez, e depois? Como é que a sua vida profissional se focou no sexo?
Nunca quis ser sexóloga. Podia ter estudado psicologia porque, isso sim, interessava-me. Comecei a fazer jornalismo, a escrever numa revista com algum destaque na Argentina. Falava disto de que estamos a falar agora, do comportamento de conquista, da importância da intimidade, das relações entre homens e mulheres, e tive muito êxito Quando vim para cá, fui à Playboy; o director editorial era argentino, “Alicia Gallotti, eu lia-a na Argentina”.
Como é que veio para Barcelona?
Com a ditadura militar. A revista fechou e passou a sair com outro nome. Eu escrevia sobre a relação entre casais mas também sobre política, era um pot-pourri de temas, nada convencional. Sequestraram o director, o irmão do meu parceiro da altura tinha desaparecido, comecei a ser proibida na televisão estatal e na rádio estatal. Era um momento político muito complicado...
A sua mãe, o seu pai, o seu padrasto sentiam embaraço junto de outras famílias porque escrevia sobre sexo?
O meu pai era um homem moralista, rígido, de direita. Quando me tornei conhecida, um dia disse-me: “porque é que não sujas o apelido do teu marido em vez do meu?”. Já não me dava bem com ele, era mais um elemento... Passados uns meses, dei ao meu pai um cheque assinado por mim, tinha-me emprestado dinheiro e devolvi-lho. Ele foi à drogaria da esquina, pagou com o cheque e o senhor disse: “Alicia Gallotti? É a sua filha?”, e o meu pai disse: “Sim!”. A partir daí ficou encantado!, todo o bairro dizia: “ah, é o pai de Alicia Gallotti”.
Gosta muito de sexo?
Sim. Gosto muito dos prazeres da vida: gosto muito de comer bem, gosto muito de dormir bem e gosto muito de ter relações sexuais. Sou muito hedonista.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004