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Anabela Mota Ribeiro

António Costa

28.01.22

Se um homem se medisse pelos bordões que usa, António Costa ficaria marcado pelo “em regra”. Ou por expressões como “felizmente” e “infelizmente”. (O trabalho de edição de uma entrevista é, também, o de limpar o texto de bengalas como estas. Mas é curioso perceber que bengalas são aquelas em que as pessoas se apoiam).

Felizmente e infelizmente?, como se fosse o acaso ou a sorte a fazer cair o pêndulo para um lado ou para outro… Costa diria que a sorte dá muito trabalho. E aquilo de que gosta é de ir lá, desencravar o mecanismo, fazê-lo passar do felizmente para o infelizmente, ou vice-versa.

“Em regra”? Porquê o “em regra”? Espírito de jurista? Talvez seja, simplesmente, “O Simples”, como lhe chamava um tio, a procurar a regra e o seu cumprimento. Saber com o que se conta é um conforto. Cumprir a regra dá conforto.

Subverter a regra, por vezes, também.

Fê-lo.

Mas olhando retrospectivamente, a sua vida não foge à regra, a uma certa previsibilidade. Filho de Maria Antónia Palla e Orlando Costa, nasceu de esquerda como se nasce católico. Seria improvável que fosse outra coisa que não aquilo que é. Seria provável que estudasse Direito e que seguisse uma carreira política.

O que é que isto tem de surpreendente? Em todos os cargos que desempenhou, nos lugares por onde passou, é forçoso constatar duas coisas: primeira, começou muito cedo, e segunda, um percurso destes não acontece por acaso. A ambição é inegável. Embora António Costa prefira olhar para tudo isto como uma decorrência natural dos acontecimentos.

Entrevista ao fim da tarde. Com uma inesperada pontualidade. Amabilidade no ponto certo. Discurso refreado pela timidez. Com o gravador desligado, falámos da importância na sua vida do padrasto, o coronel Pedroso Marques, e da relação com o meio-irmão, o jornalista Ricardo Costa. Tudo muito equilibrado. Tudo muito bem.

Durante anos foi o mais novo dos que estavam no poder. Agora, que ainda é muito novo, ele acha que já passou a sua hora de ser líder. Felizmente ou infelizmente?

 

 

(Vinha para cá a pensar que, como é político, dificilmente vai expor as suas fragilidades…

As pessoas, sendo políticos ou não, não gostam de mostrar as suas fragilidades. Com os políticos, a questão pode pôr-se mais porque estamos mais expostos. Mas ninguém consegue disfarçar 24 horas por dia, 365 dias por ano. É normal que as fragilidades possam surgir aqui e ali).

 

Estava a dizer-me que é um tímido que disfarça a sua timidez...

Garanto-lhe que é a ambição de qualquer tímido!

 

Disfarça bem. A sua postura é de uma enorme confiança. Onde é que radica a sua timidez?

No contacto com os outros. Na última campanha eleitoral fiz várias acções com o Raul Solnado; é um caso extraordinário: chega a um café, vai ter com as pessoas e mete conversa. A mim, [isso] horroriza-me! Entrar num café, incomodar quem está a comer um bolo, dar-lhe um papel para a mão quando as pessoas querem ter as mãos limpas para comer… Na rua, cumprimento sempre quem me cumprimenta, mas raras vezes tomo a iniciativa. Acho um pouco intrusivo meter-me na vida dos outros.

 

Todo o seu percurso, pelo contrário, é o de uma pessoa sociável.

Há uma diferença grande entre estar à vontade no espaço público, numa rádio, na televisão, e ter um contacto directo com pessoas. Quando uma pessoa fala em televisão abstrai-se de que está a entrar em milhares de casas; quando vai na rua e tem de se dirigir a uma pessoa, dizer-lhe…

 

“Vote em mim!”

“Vote em mim”! O Raul Solnado foi a primeira pessoa em anos que percebeu isto. Significa que é preciso um grande actor para descobrir um mau actor.

 

O seu pai era tímido? A sua mãe parece extrovertida.

A minha mãe é a extroversão em pessoa. O meu pai era reservado e afável. Era publicitário.

 

Era também escritor e poeta. Que relação tinha com o que ele escrevia?

O meu pai era reservadíssimo quanto à sua escrita. Enquanto escrevia ninguém lia coisa nenhuma. Nem falava do que estava a escrever ou do que ia escrever. A conversa sobre livros era só depois de os livros estarem publicados.

 

Ele perguntava-lhe o que é que tinha achado, se tinha lido?

Nunca. Eu dizia, mas ele nunca perguntava. Falávamos muito, designadamente sobre o último livro que escreveu, que foi pessimamente distribuído, “O último olhar de Manú Miranda”. Temos tentado uma nova edição desse livro. Espero que se faça porque esse livro é lindíssimo.

 

Gostava de o entender à luz dessa relação. Somos sempre marcados pelo pai e pela mãe que temos.

Tive uma sorte imensa no pai e na mãe que tive. Até admito ter tido a sorte de terem estado separados.

 

Como assim?

Deu-me a oportunidade de ter cada um deles em exclusivo. Eu tinha um ano e pouco quando se separaram. Marcaram-me na formação política, na forma de ver o mundo, na sensibilidade. Quando me perguntam porque é que sou de esquerda, costumo dizer que nasci de esquerda, como a generalidade das pessoas nascem católicas. Naquela família era uma questão que nem se punha, e também havia boas razões para o ser.

 

Estava igualmente com um e com outro? Não se usava a guarda conjunta.

Vivia com a minha mãe e ia a casa do meu pai ao fim-de-semana. As famílias foram ganhando poliformias, e acabámos por conviver todos numa família alargada. O último Natal em que o meu pai esteve vivo, teve a ceia com a mulher em casa da minha mãe.

 

Era um estigma ser filho de pais separados?

Quando andava no colégio, eu e outro colega éramos os únicos filhos de pais separados. Os meus filhos, na última escola em que estiveram, eram os únicos que não eram filhos de pais separados. Quando era miúdo, as madrastas eram a bruxa da Branca de Neve. Hoje, tudo é diferente.

 

Como é que foi a sua educação?

Dos três anos até ao final daquilo que se chamava a quarta classe, estive no Jardim Infantil Luso-Suíço. Detestei. Não gostava daquela disciplina. Tudo era antipático. Depois fui para uma escola adorável, que foi decisiva para a minha formação. Uma secção da [Escola] Francisco de Arruda abriu no Conservatório Nacional. Era uma experiência dirigida pela Isabel Laginhas, que é pintora. Acabou com o 25 de Abril, com a expulsão da escola do Conservatório Nacional e o saneamento da Isabel Laginhas.

 

Porque é que os seus pais, sendo de esquerda, o puseram no Colégio Luso-Suiço, e o mantiveram lá, não tendo gostado nada da experiência?

Eles acham que nunca lhes expliquei suficientemente bem que não gostava da escola. Mas eles é que quiseram [que ficasse lá], por uma ideia fracassada. O meu pai, tendo feito o vestibular em Bombaim, era fluente em inglês. A minha mãe tinha feito toda a escola francesa em Lisboa. Achavam que eu aprenderia, sabe-se lá como, o inglês e o francês com um e com outro, e podia ir para uma escola aprender o alemão. O resultado foi trágico: não aprendi nem o francês nem o inglês nem com um nem com outro, e o alemão ainda menos na escola!

 

O seu pai era goês. Essa origem e essa herança eram omnipresentes, ou ele vivia-as como uma experiência remota?

Nunca a trouxe muito [para a nossa vida]. Veio para cá aos 18 anos para estudar na universidade, e já só voltou à Índia depois do 25 de Abril. Tinha sobretudo uma certa saudade, que aliás lhe alimentou os romances que foi escrevendo.

 

A cultura goesa era-lhe familiar?

Não. A primeira vez que fui à Índia tinha 17 anos. Goa é deslumbrante. Era muito estranho estar na outra ponta do mundo com tabuletas escritas em português, com pessoas que falam português, com um jornal que é publicado em português.

 

Não fala de emoções. Não diz: “Emocionei-me vendo a terra onde o meu pai nasceu”.

Eu disse-lhe que era tímido.

 

Menino, tinha um interlocutor para falar dos seus sentimentos?

A minha mãe conta sempre coisas. Que eu chorava, que eu isto, que eu aquilo, que me queixava. Conta a história de um primeiro drama amoroso, que foi um choro trágico lá em casa. Com certeza que falava do que sentia. Depois, com a idade, devo ter ido fechando, reservando os sentimentos.

 

Como é que passa de um a outro? Como é que a política aparece na sua vida? Como é que passa do privado para o público?

Quer o meu pai, quer a minha mãe tiveram sempre um envolvimento político antes do 25 de Abril. Sabia que o meu pai tinha estado preso. Lembro-me de me ter emocionado muito da primeira vez que o Manuel Serra saiu da prisão; foi jantar a casa da minha mãe e tinha marcas visíveis da prisão. Lembro-me de a minha mãe me ter levado, em miúdo, a visitar um inglês que tinha acabado de sair da prisão – aliás, foi a primeira pessoa que vi com um colar ortopédico no pescoço; aquilo fazia-me impressão.

 

Quando é que começa, propriamente, o seu envolvimento político?

O 25 de Abril foi traumático na vida da escola. Tínhamos 12, 13 anos. Constituímos uma associação, ocupámos o Conservatório; chamaram o COPCON, andaram a correr atrás de nós para nos expulsar. (Quando eu era Ministro da Justiça, recebi o então presidente da CIVITAS, o Vítor Alves, que me começou a tratar por Sr. Ministro. Aquilo fez-me uma grande impressão. Ele não se lembrava, mas eu lembrava-me: o Vítor Alves era ministro e tinha-me recebido tinha eu 13 anos – tínhamos feito uma manifestação à porta do ministério a exigir instalações para a escola. E estávamos ali, não sei quantos anos passados, numa inversão de papéis, que para mim era estranha.)

 

A situação na escola era uma revolução paralela. Para si e para os seus colegas.

Convocou-nos para a acção política. Uma das decisões que tomámos colectivamente, e que cumpri, foi a de que chumbaríamos nesse ano! As aulas começaram em Fevereiro; recusávamos a ideia de que nos leccionassem em quatro meses aquilo que devia ser leccionado em nove. Para além de nos recusarmos a ter aulas com aqueles professores que tinham saneado a directora. Foi um ano de imensa liberdade, e era um ano em que tudo acontecia na rua.

 

Passou-o na rua.

Não houve manifestação a que não fosse. E a partir do caso “República”, não saía mesmo da rua e das manifestações do PS. Até hoje.

 

Conte-me como viveu o caso “República”.

A minha mãe era jornalista do “Século Ilustrado” e tinha entrado para o “República” na véspera do fim do jornal. Até aí, para mim, havia dois mundos: os bons, que tinham lutado contra o fascismo, e os fascistas. De repente, tudo se tornava mais complexo. Porque entre os bons, havia aqueles que tinham a liberdade e aqueles que ameaçavam a liberdade dos outros. Foi um choque. Sobretudo tendo em conta que o meu pai era, e foi até ao fim da vida, militante do PC e os amigos dele eram grandemente do PC. Essa ruptura que aconteceu na esquerda portuguesa entrou com muita força na minha vida.

 

Foi uma dupla ruptura. Era familiar. Entre os mundos do seu pai e da sua mãe.

Sim. Foi ao mesmo tempo muito bom, permitiu-me claramente escolher o campo. E escolhi.

 

Porque é que o seu campo não foi o dos comunistas?

Por um lado havia aqueles que tinham lutado pela liberdade e que queriam a liberdade. E por outro, aqueles que se dispunham a sacrificar a liberdade. Tivemos a felicidade de poder ver, em poucos meses, o que era uma visão totalitária da esquerda.

 

Deixaram-no decidir que chumbava?, ninguém lhe pediu contas?

Foi muito curioso. Os meus pais começaram por achar que não era a sério. Depois, acharam que mesmo estando no meio de uma revolução, havia algumas regras que era preciso manter – designadamente que os meninos estudam, vão à escola e passam de ano. Quando perceberam a minha persistência na ideia, conversaram comigo. Foi das primeiras conversas que tiveram comigo como se fosse adulto.

 

Tinha 13 anos.

O meu pai convidou-me para almoçar num restaurante e explicou-me que eu não tinha noção do que era perder um ano, mas que no futuro ia arrepender-me. Devo dizer que ainda bem que persisti na minha ideia, porque aquele ano não me fez falta nenhuma. E aprendi muito mais fora da escola, andando na rua, a ver as manifestações, ouvindo as pessoas.

 

Também fica lá a marca de não se ter submetido ao que era a regra.

Sim.

 

O que é que mais aprendeu? Como é que as pessoas ficam quando têm poder, como é que ficam em situações limite, se têm coragem, se não têm? Foram ensinamentos deste tipo?

Foram. O primeiro foi poder viver a vida das ruas em 75. Tenho dificuldade em descrever o que era… Era um espaço de permanente acontecimento. Ou porque havia uma manifestação, ou porque havia pancada, ou porque havia movimentações militares. Havia sempre história e as pessoas sentiam que isso estava a acontecer ali, no dia-a-dia. Íamos ao PS e o PS dizia: “Agora vamos todos manifestar-nos”, e lá ia tudo.

 

Foi uma experiência muito grupal.

Tudo era colectivo. Os meus amigos eram os colegas da escola. Desse período, a pessoa que acabou por ter maior visibilidade é hoje conhecido como Pedro Proença – na altura, o Peter. Fui aluno de um homem que é um grande poeta, o João Miguel Fernandes Jorge. É daqueles com quem me incompatibilizei pelas posições que tomou nesse processo conturbado.

 

Era um miúdo, e não tinha medo de afrontar ninguém – é o que o episódio revela.

Pois. Mas as circunstâncias também nos conduziram a isso.

 

Ou seja, não era um especial heroísmo.

Não fui só eu, fomos muitos, os que fizeram isso. Adorávamos a escola e mobilizámo-nos colectivamente. Houve cenas patéticas com alunos do Conservatório, matulões, a correrem atrás de nós para nos expulsarem. O salão nobre do Conservatório estava apinhado, os directores-gerais do ensino básico e do ensino superior anunciaram a nossa expulsão. Foi dos momentos mais infelizes da minha vida.

 

Nessa altura, ainda era miúdo de chorar? Chorou?

Não, não chorei. Ocupámos o pavilhão de dança do Conservatório, metemo-nos no telhado, com pedras, e estivemos lá a manhã inteira! [risos] A reacção não foi de chorar.

 

Formulou, para si, pelo menos, que podia ser político? Que aquela era uma via?

Queria ser advogado. Ser político era um estado de cidadania, não era uma função que se exercesse.

 

Olhava para o Mário Soares, advogado, e não pensava que podia, como ele, ser político?

O Mário Soares era uma coisa distante. Para mim, a política era o meu pai, era a minha mãe. [Aprendi com eles que] fazer política é ter um empenhamento cívico.

 

Foi à manifestação do 1º de Maio, na Alameda?

Fui, com a minha mãe.

 

Viu ao longe Cunhal e Soares e não pensou, não sonhou que um dia…

Estar ali? Nunca me ocorreu isso! A militância partidária foi uma decorrência desse envolvimento, e muito do caso “República”. Inscrevi-me na JS na sequência disso. Tive muitos anos de militância partidária sem qualquer cargo político.

 

Mas a partir dos anos 90, tem um percurso imparável. Em 91 começa como deputado, Secretário de Estado em 95-97, Ministro dos Assuntos Parlamentares, da Justiça, presidente do grupo parlamentar, deputado do Parlamento Europeu, Ministro da Administração Interna, presidente da Câmara de Lisboa. Não me diga que isto aconteceu por acaso.

A generalidade dos dirigentes políticos do PS foram deputados muito antes de mim. Estive de 76 a 91 sem nenhum cargo político nacional. Estive onze anos na assembleia municipal de Lisboa. Fiz um curso, exerci a minha profissão, só suspendi a actividade profissional em 95, quando fui para o Governo. Isso foi uma decorrência do resto da actividade. Quando deixar de exercer um cargo político, não deixarei de ser civicamente interveniente.

 

Já voltamos à política. Porque é que queria ser advogado?

Tinha uma visão romântica, muito alimentada pelo Perry Mason. Há uma figura muito importante na minha formação, o meu tio materno, que é advogado. Passei a fase do bombeiro e do jornalista para a advocacia, e estabilizei.

 

Quis ser jornalista?

Nunca imaginei que o jornalismo viesse a ser aquilo que é hoje, mas quis.

 

E depois, decidiu que a sua vida ia ser a advocacia?

A advocacia. E há-de ser, e tem sido.

 

Acha verdadeiramente possível que se acabe a experiência política e que volte a ser advogado? Já está há quase 20 anos na política.

Nesses três anos em que estivemos na oposição…

 

É a primeira vez que usa o “nós” para designar a família PS. Revela um sentimento de pertença.

Sim, talvez. Nesses três anos, inscrevi-me na Ordem e reassumi um antigo cliente. Estava a liderar o grupo parlamentar, não tinha disponibilidade para uma actividade profissional intensa. Mas quis reassumir a cédula, fiz julgamento, fiz recursos, contestações, petições iniciais, essas coisas que é necessário as pessoas testarem se ainda sabem fazer.

 

O desafio era esse? Deixa ver se ainda sou capaz?

Sempre achei importante, para estar na vida política, ter uma profissão alternativa. Para que me possam mandar embora, ou para poder ir embora. É uma condição fundamental de liberdade, saber que se amanhã perder as eleições, tenho uma profissão para exercer.

 

Não me ocorreria que, se a sua experiência política acabasse, voltaria para um escritório de advogados. É mais fácil imaginá-lo na administração de uma empresa qualquer.

A experiência numa empresa também pode ser interessante, não digo que não. Mas a advocacia é a profissão que escolhi, que gostei de exercer, de que às vezes tenho saudades. Para já, e para ser sincero, o que estou a pensar é manter-me neste lugar [risos] durante os próximos anos. Não me ocorreu pensar em alternativas. Mas se tiver de ser, assim será.

 

Foi muito bom aluno?

Não fui muito bom aluno, fui bom aluno. Terminei com média de 15. Gostei de estudar, embora nunca tenha sido só aluno. Estive sempre envolvido nas associações, nas assembleias de estudantes, na actividade académica. E fui monitor vários anos na faculdade.

 

Porque é que não foi um académico? Chegou a ser uma possibilidade, ou já estava demasiado imerso na política?

Na altura em que tinha de optar se seguia a carreira académica ou não, acabaram os adiamentos para a tropa. Interrompi o mestrado, e fez-se. Fui para a tropa casado, com 27 anos, estive ano e meio. Fiz a recruta em Tavira, a especializada em Sacavém; como fiquei bem classificado, fui colocado na secção de justiça do quartel-general da região militar de Lisboa. Tinha a vantagem de ser mesmo em frente ao escritório. Tinha três full-time jobs: estava na tropa, estava no escritório e ainda dava aulas à noite na faculdade.

 

Foi um ano em que tudo estava ainda em aberto? Que relação tinha com a política?

Foi nesse ano que entrei para o Secretariado do PS. Foi o Vítor Constâncio que me convidou.

 

Olhou sempre para o PS como uma segunda família?

É um espaço onde se estabelecem relações de amizade, fraternidade, camaradagem. Ao fim destes anos todos é quase uma segunda família, sim.

 

E como em todas as famílias, há traições, conspirações, diferentes facções, rivalidades.

Há. Mas o PS aprendeu a ter uma relação relativamente saudável nas suas divergências internas. Toda a geração pós-Mário Soares viveu a conflituosidade interna de forma dolorosa. Tivemos a sorte de ter figuras extraordinárias como Jaime Gama, Constâncio, Guterres, Jorge Sampaio. Tudo acabou em bem, mas levou anos a que tudo encaixasse.

 

Como viveu essa conflitualidade? É mais novo do que todos esses.

Mal, mal. Tinha apoiado o chamado ex-Secretariado, nos anos 80, quando em 86 o Vítor Constâncio chega à liderança do PS. Essa conflitualidade que depois se estabeleceu, e sobretudo a ruptura do Jorge Sampaio e do António Guterres, foi para mim muito difícil. Conhecia o Jorge Sampaio desde miúdo (ele era amigo desse meu tio); fiz o estagiário de advocacia com o Jorge Sampaio. Mas o Guterres era uma figura de referência, de primeira água, de quem era muito amigo. Tratávamo-nos por “tu”, ao contrário do Jorge Sampaio.

 

Há uma diferença geracional, para começar.

Com o Guterres também há, [embora] agora [se note] menos. A pessoa com quem tinha maiores relações afectivas no PS era o Alberto Arons [de Carvalho]. Apoiámo-nos muito. Felizmente tudo se recompôs a partir de 94. Foi uma grande aprendizagem para a minha geração. Temos sabido gerir a vida interna do PS, as diferenças que temos entre nós, as ambições que cada um tem, de uma forma inteligente. Temos tido anos sem esse drama da traição. Disse-me mais o quê?

 

Conspiração e competição.

Felizmente temos vivido sem isso. No PS, [essa] é uma das grandes diferenças relativamente ao PSD. Tivemos divergências profundíssimas. A disputa entre o Manuel Alegre e o Sócrates para Secretário-geral…

 

E a disputa surda entre si e o Sócrates.

Nunca tivemos. Temos uma relação de amizade que tem superado as divergências. Temos sabido dialogar. Foi sempre clara a relação que devia haver entre os dois. Não há guerra nenhuma.

 

Não é guerra, é uma disputa surda pelo poder. São da mesma geração, estiveram no mesmo ponto de partida, houve uma altura em que tinha mais poder do que Sócrates. Seria legítimo pensar: “Porque é que não hei-de ser eu o líder?”.

Foi para mim muito evidente, quando as questões se colocaram, que ele estava em melhores condições de exercer [o poder]. A experiência revelou que isto era verdade. É uma coisa completamente pacífica entre nós.

 

Sente que o seu momento vai chegar? O seu momento de ser o líder.

Já respondi a essa pergunta milhentas vezes: não acho que isso venha a acontecer.

 

Não tem essa ambição?

Não tenho essa ambição. Já me aconteceram várias coisas que não esperava que acontecessem, mas não vejo que isso venha a acontecer-me. E tenho dúvidas de que fosse uma boa solução, em geral e em particular.

 

Porquê?

Há muito tempo que acho que isso não é uma questão que se coloque. Para já estou felicíssimo com o que estou a fazer e a ambição que tenho é concretizar o projecto em que estou envolvido, aqui em Lisboa.

 

Falemos de poder, simplesmente. Quando era Ministro da Administração Interna tinha incomparavelmente mais poder do que tem agora. A volúpia do poder, tem-na desde sempre.

Volúpia, não. Gelados, chocolates, isso são coisas de volúpia. Gosto de comer.

 

Apetece-lhe o poder.

Não. O poder é interessante se for um instrumento útil. Houve coisas em que tive poder e de que não gostei. Detestei ser líder parlamentar. As pessoas ficam surpreendidas, porque acham que tenho jeito. Gostei da experiência, aliás muito curta, como deputado europeu. Também não gostei de ser Ministro dos Assuntos Parlamentares, salvo no período em que acumulei com as funções [de tutela] da Expo; e dessas, gostei muito. O que me distinguiu de outras pessoas que exerceram funções como Ministro da Justiça ou da Administração Interna é ter feito coisas que as pessoas que exerceram essas funções, em regra, se interessaram pouco por fazer; e ter feito pouco as coisas que, em regra, interessavam imenso a essas pessoas.

 

Por exemplo.

A mim deu-me muitíssimo mais gozo lançar a informatização dos tribunais, pôr a vídeo-conferência nos tribunais, do que fazer novos códigos. Deu-me muitíssimo mais gozo procurar resolver no terreno o problema dos fogos florestais do que o discurso e a teorização sobre a segurança.

 

É um homem de acção.

O Action Man [risos]. Quando era miúdo, o meu tio chamava-me “O Simples”. Tive sempre aversão, ou menos gosto, pela conceptualização. Tive sempre o maior prazer em resolver problemas. Acho que tenho jeito e alguma imaginação para o fazer. Ser Ministro ou ser Presidente da Câmara, a oportunidade que me dá, é a de resolver problemas.

 

A sua atitude perante um problema é sempre a de ele é resolúvel?

Deve haver problemas impossíveis. Tenho tido a sorte de nunca ter encontrado nenhum. Na Administração Interna, todas as segundas-feiras fazia reuniões com os meus Secretários de Estado e com a Maria Manuela Leitão Marques, (que, não sendo minha Secretária de Estado, era como se fosse). Tínhamos vários impossíveis para resolver, desde a empresa na hora ao cartão do cidadão, ao lançamento de todo o projecto Simplex. Um deles dava sempre, como exemplo de coisas impossíveis, vacas com asas. Um belo dia, no aeroporto de Londres, encontrei uma vaca com asas. Pendurada no tecto, voava e tudo. Permitiu-me demonstrar-lhes como até as vacas podem voar!, e não só nos discos dos Pink Floyd.

 

Conheço essa vaca. É um brinquedo da loja Hamleys.

Essa vaca voadora tem sido uma fonte de inspiração. Aqui na Câmara, muitas vezes me tenho lembrado da vaca voadora.

 

Nunca lhe apetece desistir de nada?

Tenho muita dificuldade em desistir. Mesmo da advocacia, acho que não desisti. Sou muito teimoso e persistente. Há muitas coisas que não consegui resolver, que não consegui fazer. Mas é porque são difíceis, posso ainda não ter tido tempo, posso ainda não ter conseguido. Mas não acho que seja impossível fazê-las. Não desisto com facilidade. Esta persistência, tenho visto na vida que é compensadora.

 

Tudo isto aconteceu-lhe muito cedo. Tem o quê?, 50 anos?

Não! Vou fazer 48. Para já só tenho 47, para os 48 ainda faltam três meses.

 

Lida assim mal com a idade?

Às tantas é melhor ir começando a lidar mal com idade.

 

Tem muito mais cabelos brancos do que há dois anos. É das preocupações?

No outro dia vi uma fotografia, tirada no primeiro sábado da Expo, em que estou com a minha filha e a minha mulher; tinha estado quase três dias sem os ver, e finalmente não havia nada; estávamos sentados na relva. No início da Expo eu tinha um cabelo branco, que aliás era de estimação. No final da Expo já tinha bastantes cabelos brancos. De facto, os últimos anos têm produzido muitos cabelos brancos. Lembro-me de as pessoas acharem que o meu pai, de cabelos brancos tinha imenso charme!, [riso] espero que me aconteça o mesmo. Mas não vou fazer 50 anos, ainda tenho 47.

 

Envelhecer custa assim tanto?

Quando o meu pai morreu, há quatro anos, percebi que as gerações acabam mesmo. Tinha acabado a geração dos meus avós, começava a acabar a geração dos meus pais. E desaparecendo a geração dos pais, bom, depois somos nós. Para além da perda dele próprio, tive esta consciência pela primeira vez: quando morrem os pais, ficámos na primeira linha.

 

Isso abriu caminho a angústias existenciais? “O que é que estou aqui a fazer?”

Não. Estava em plena guerra contra os fogos, era evidente qual era a minha prioridade e o que tinha a fazer. Essa angústia existencial, não tenho tido.

 

É, como dizia o seu tio, “O Simples”.

O meu tio tinha razão, e essa dúvida existencial nunca me ocorreu.

 

O começo desta conversa era tudo isto lhe ter acontecido tão cedo. Porque é que foi assim?

Olhe, porque foi assim! O 25 de Abril aconteceu tinha eu 12 anos. Só hoje é que começa a ser comum ter políticos europeus no Governo na casa dos 30 ou 40 anos. O António Guterres teve esse mérito: apostar na promoção de uma geração mais nova. Entrámos em 95 para o Governo, como Secretários de Estado, e muito miúdos; grande parte de nós saiu do Governo, em 2001, já com funções ministeriais, algumas delas pesadas.

 

Durante anos foi o elemento mais novo do Governo. Provavelmente não teria passado a Ministro tão cedo, se o António Vitorino não tivesse saído do Governo de uma forma tão surpreendente. Eu era Secretário de Estado e não queria ficar nos Assuntos Parlamentares; por isso não queria ser ministro. O António Guterres queria obrigar-me a ser Ministro, porque tinha funções de coordenação interna e ministerial com a tutela da Expo. Apercebi-me logo de que era terrível, porque me obrigaria a ficar prisioneiro dos Assuntos Parlamentares, como fiquei, até ao fim da legislatura. É um sítio onde é difícil ter problemas para resolver! [risos], pelo menos do ponto de vista prático. Claro que aprendi muito do ponto de vista da negociação política.

 

Bastidores.

Foi uma experiência enorme, que me ajudou muito.

 

Quando perguntei porque é que acha que isto lhe aconteceu tão cedo estava a perguntar também pelas competências que os outros lhe reconheciam, pela expectativa que tinham em si, para tão cedo o porem em lugares de tanto protagonismo.

Deviam ter boa, senão não o tinham feito. Mas ninguém é bom juiz em causa própria. Houve convites que me fizeram que recusei; não é muito delicado dizer quais, mas um é público e passaram anos suficientes para o poder referir. Convidaram-me para Ministro da Defesa. Recusei, achava que não tinha capacidade, saber, experiência, maturidade, para poder exercer essas funções. Aceitei coisas que achava que tinha capacidade para exercer. Nalguns casos, com algum atrevimento.

 

Não o prendo mais porque sei que vai ter um jantar com o seu filho. Do que é que falam pai e filho ao jantar? Imagino que não falem da Câmara ou de assuntos políticos.

Muitas vezes falamos. Ele interessa-se. Inscreveu-se na JS, por iniciativa própria. Não foi por minha influência directa, presumo que tenha tido alguma influência pelo exemplo. Tem tido uma militância intermitente. Vai ser um jantar em casa dos avós.

 

Mas pai e filho falam sobre quê? As notas, o dia, as namoradas.

As notas, o dia. Ele é muito reservado. E acho que aprendi com o meu pai a ter algum pudor nas perguntas que se fazem...

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Outubro de 2009