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Anabela Mota Ribeiro

Rui Rio

28.01.22

Ora bamos lá ber. Se isto pudesse ser escrito à Porto, seria assim. Para se oubir como a malta fala. O Porto é o maaaiooor. Antes: maiore. No Porto, tudo leva um “e” final.

Esse é o Porto de Rui Rio? Também. Rui Rio é o portuense que fala como os portuenses falam. Dizendo “vamos lá ver” e “portanto” a grande velocidade. E é o portuense atípico que estudou no Colégio Alemão para um dia se pirar para um país com futuro – ideia do pai.

Ficou. Não gosta muito de sair. Não gosta de conversa enfatuada. Nem de floreados. Nem de peneiras. A expressão pão-pão queijo-queijo vai bem com ele. O que ele vale, está na obra que deixa – esta é a sua cabeça. E toca a desligar o complicómetro.  

É um homem que ganhou a Câmara do Porto numa noite de desgraça eleitoral para o PS e que se candidata, agora, pela terceira vez ao mesmo cargo. Pelo meio, há a maioria absoluta do segundo mandato, as pegas com Pinto da Costa, Luís Filipe Menezes, Isabel Pires de Lima. E a expectativa de que, um dia, seja líder do PSD e Primeiro-Ministro. Projecto que recusa.

Entrevista num fim de tarde, dois dias antes da apresentação da candidatura. É um fazedor que gosta de se ouvir.

 

Como é que foi parar ao Colégio Alemão?

Entrei com quatro anos, por vontade do meu pai. Mais do meu pai do que da minha mãe, como era na altura. Considerava que, com o regime que tinha, Portugal não tinha futuro. A Alemanha do pós-guerra tinha mostrado uma vitalidade e uma capacidade de se regenerar apreciável. O meu pai achava que eu fazia o Colégio Alemão e depois ia para a Alemanha. Viver para um país que tinha futuro.

 

Que homem era o seu pai para pensar dessa maneira?

O meu pai está hoje com quase 82 anos, 81, 9. Está numa situação fraca em termos de saúde. Não tem já consciência. Era comerciante, e filho de um comerciante abastado. Viveu na Suíça francesa, depois de acabar o liceu. Ficou sempre com uma certa sedução pela Europa central. O meu pai era muito rigoroso, demasiado rigoroso. Daí talvez o seu encanto com os alemães. Quando eu tinha sete anos, quase a fazer oito, perdi um irmão.

 

Em que circunstâncias, se posso perguntar?

Com uma leucemia. Era mais novo do que eu dois anos. Detectámos a doença em Julho de 1964 e morreu em Junho de 1965. O meu pai passou a projectar tudo num só filho. O grau de exigência, que já era grande por força do seu perfil, aumentou. Isso marca muito a minha educação.

 

Como?

Podia marcar para bem, para mal ou para assim-assim. Para mal se, fruto de uma educação apertada e rigorosa, somada aos alemães, desse para, na zona dos 14/15 anos, explodir. E hoje andava aí a militar pelas extremas-esquerdas, contra tudo e contra todos. Podia dar também para seguir aquela linha completamente rigorosa.

 

Quando diz que era filho de um comerciante abastado…

Neto de um comerciante abastado, filho de um comerciante abastado menos um bocadinho.

 

“Pai ganhão, filho barão, neto ladrão”?

Não é o caso! O meu avô, pai do meu pai, tinha duas empresas na Rua do Almada. De ferro para a construção civil. Não era o volfrâmio, mas ainda assim ganharam muito dinheiro durante a Segunda Guerra Mundial. Tinha outra empresa, de representações; importava produtos basicamente da Suíça. O meu pai nasce num ambiente bastante favorável, mas o meu avô tinha um poder económico que o meu pai, depois, não tem na sua geração.

 

Já disse várias vezes que o seu pai era extraordinariamente rigoroso. O que exigia de si?

Se me perguntar: “Qual foi a primeira coça que levaste?”, nada ou pouco levei. Nem era preciso bater. Mantinha uma certa distância, cortava-me os brinquedos, estudava nas férias. Está a ver o que é um miúdo de nove anos, 10 anos, 11 anos, 12 anos ter de estudar nas férias? Posso tentar recordar coisas desse género… Ganhei quatro campeonatos seguidos de slot-cars. Sabe o que são?

 

Não.

São aqueles carros de pista, eléctricos, com que se fazem corridas. Acho que foi a coisa para que tive mais jeito em toda a vida. Não treinava e ganhava tudo. Pequenito, ganhava mesmo aos mais velhos. Fui campeão quatro vezes seguidas. Mas, na melhor das hipóteses, fui receber uma das taças. Havia sempre qualquer coisa pela qual, três dias ou quatro dias antes, eu tinha de estar de castigo e não podia ir buscar a taça. Não inventava, havia mesmo qualquer coisita. Eu não ouso dar essa educação [à minha filha].

 

Dá-lhe uma educação muito diferente da que recebeu?

É uma educação vergonhosa, se comparar com a do meu pai [riso]. Devia ser mais apertada.

 

Quando é que foi criança? Ainda não falou nenhuma vez de ser mimado…

Pois... Essa parte, tenho-a com a minha mãe. Tinha na minha mãe e na mãe dela um refúgio, que, não sendo um refúgio contra o meu pai, dava esse complemento. Para a minha avó materna, o Ruizinho era tudo. E havia a minha tia-avó, que era solteira. Um triunvirato de mulheres.

 

Dê-me imediatamente uma recordação boa de um momento com o seu pai na infância.

Nessas corridas, durante o campeonato, que durava quase um ano, era o meu pai que me arranjava os carros, era o meu pai que me via os tempos, era o meu pai que sofria com a minha performance na corrida. Mais do que eu próprio.

 

Ainda se lembra do seu irmão?

Há muitas fotografias dele. Tenho recordações que interligam com essas fotografias. Tenho uma gravação da voz dele, que o meu tio fez. Ainda foi feito naqueles [gravadores] de bobines, largos. Quando ouvi a gravação, anos depois, a voz não me era familiar. A carga emocional sobre o período em que esteve doente, tenho-a bem presente. Ele, propriamente, está mais distante. Quando o meu irmão morreu, eu tinha a idade que a minha filha teve em Abril. Até fiz essas contas. Aliás, fiz duas contas.

Quando ela passou os cinco anos, qual era o mês que batia com a idade do meu irmão [quando morreu]. E quando passou os sete, qual era o mês que batia com a minha [quando o meu irmão morreu].

 

Isso é sintomático da força com que isso ainda existe na sua vida.

Fiz isso inconscientemente, mas acho que é. O que é que está lá?, o que me marcou? Não sei dizer. Admito que se vier um bom técnico em psicologia, que consiga fazer um doutoramento com isto, há-de explicar.

 

A sua imagem pública não coincide com isto que está a contar. Dizem que é autoritário, arrogante, corajoso. E frio.

Sim. É muito frequente que a imagem pública das pessoas não coincida com o que realmente são. Há uma componente que corresponde à verdade; é a que o povo melhor apreende e descodifica, o povo anónimo e humilde que se formou com a vida, e não com os livros.

 

Puxei conversa com dois taxistas a seu respeito. Disseram que é sério (não se lhe conhecem negociatas); que é corajoso (não é qualquer um que enfrenta o Pinto da Costa); e que é arrogante.

A imagem de arrogância não é forte, mas existe. Mas arrogante é o que não sou mesmo! Eu não era arrogante quando não tinha o cargo que tenho, depois passei a ser arrogante porque tomei decisões.

 

Acha que a sua determinação é confundida com arrogância?

Exactamente. No cabeleireiro, no barbeiro, no café, no autocarro, no metro, tudo bem, dizem-se as coisas da boca para fora e está a andar… Vamos parar para pensar: se entendo que as coisas devem ser feitas desta maneira, e insisto, e as pessoas escolhem-me sabendo que é assim, é [uma questão de] seriedade fazer assim. Quando aparece um que faz, ouvem-se vozes dizer que tem mau feitio.

 

Como se olha a si mesmo? Se tivesse de fazer um auto-retrato, o que diria?

Não sou mais rigoroso para os outros do que sou para mim mesmo. Isto que acabei de lhe dizer é aquilo que me imponho. Não para transmitir aos outros, ou porque, em política, temos de ter o cuidado de não mentir. Estamos sempre a ser avaliados – e acho muito bem. Ponho as contas da Câmara em ordem e esforço-me por ter prazos de pagamento aos fornecedores (neste momento a 30/40 dias, o que é excepcional). Mas não faço isto para ter esta imagem, faço porque é correcto. Nunca devi nada a ninguém. Dizem-me: “Não é crime nenhum dever”. Mas não me sinto bem.

 

Como é que aprendeu a lidar com o dinheiro?

Embora tenha o curso de Economia, ninguém me ensinou nada. Posso contar uma coisa que é marcante. Numa fase da minha vida, na adolescência, não vivi com desafogo financeiro – antes pelo contrário. A seguir ao 25 de Abril, os meus pais separaram-se. Ao contrário da família do meu pai, a família da minha mãe tinha muitas dificuldades. Com 15, 16, 17 anos, eu ia ao café jogar bilhar.

 

Não consigo imagina-lo a jogar bilhar.

Não?! Bom, acontece que dos miúdos todos, era o que tinha menos dinheiro para jogar. A meio do mês já não tinha. Não jogar porque não tinha dinheiro, não podia ser. Então, pensei assim: durante um mês, não pego num taco. “Hoje não vou ao café e vou guardar o dinheiro. Só entro no mês seguinte e só jogo o dinheiro que tiver”. Portanto, não jogo porque não posso, não jogo porque não quero. “Eu tenho dinheiro, mas não quero.”

 

Duas maneiras de ver a situação. Não posso/não quero.

Habituei-me àquilo de poupar até ter uma maquia mais confortável. Numa caixa de latão das cigarrilhas do meu avô, tinha 50 escudos. Era a rainha Santa Isabel, a nota. Os 50 escudos depois foram 100 escudos. Era o Camilo Castelo Branco que estava nas notas. E assim foi. Ainda hoje, salvo situações extraordinárias, em nenhum mês da minha vida gasto o que ganho.

 

Não pedia dinheiro ao seu pai por uma questão de orgulho?

Pedia, mas o meu pai não era muito diferente de mim [riso]. A seguir ao 25 de Abril, a situação já não era [o que tinha sido] O meu avô morreu a queimar o 25 de Abril e o meu pai teve de refazer a vida. Entre 1974 e 77, não foi nada fácil.

 

Nunca desejou enriquecer?

Como?!

 

Nunca desejou ter o dinheiro que o seu avô tinha, por exemplo? Ter o desafogo de mandar os filhos para o estrangeiro. Foi talhado para isso. O seu pai escolheu o Colégio Alemão para isso.

Não fui para a Alemanha porque não quis. Sou mais rigoroso do que a maioria em Portugal, mas menos rigoroso do que os alemães. Não me sentia bem com aquela cultura, aqueles excessos. Foi também isso que me afastou. Isso e a minha ligação ao país, fundamentalmente ao Porto. Custa-me sempre muito sair. Mas enriquecer não me seduz. Quando começo a fazer o trajecto da minha vida, quando surgem as opções, nunca caio para essa.

 

No fundo, queria saber qual é o motor.

O motor é fazer o que gosto versus realização pessoal. Porque é que entrei para a política? Tenho aqui um impulso qualquer que tenho de analisar, porque não é um acto racional…

 

Desejo de poder, será isso?

Não, não. Por acaso é curioso, mas não é.

 

Porque é que é curioso?

Porque para quem está num cargo como o meu, em princípio, esse deveria ser um motivo.

 

Não vamos fazer a rábula do inocente que chega aqui sem ambição ou desejo de poder. Não estou a dizer que seja essa a única motivação, mas não se chega aqui por acaso.

Sim, mas ter poder [não implica] ser presidente da Câmara do Porto, ou ministro, ou primeiro-ministro. Tenho convicções, sinto-me bem a lutar por elas. Para ser consequente a lutar por elas, tenho de ter poder. Quando diz que me deixo seduzir pelo poder, aceito até certo ponto. Mas dizer que luto especificamente por aquele cargo, não. O que é que fiz para ser secretário-geral do PSD? Nada. O que é que fiz para ser presidente da Câmara do Porto? Nada. O que é que fiz para ser vice-presidente do PSD, que já fui três vezes? Nada. Não fiz nada.

 

Outra coisa é dizer que caiu do céu. Que caiu na sua vida como podia ter caído na vida de outro qualquer.

Não cai do céu ganhar a Câmara do Porto. Também não cai do céu ser candidato. Tem a ver com o trajecto que fiz. Voltando à sua pergunta originária: eu era director financeiro das tintas CIN, uma excelente empresa, e equacionei ir para deputado. Tive mais duas propostas de emprego. Em todas elas ganhava mais do que sendo deputado. Optei por aquilo que aparentemente era pior.

 

Se analisar a esta distância, verdadeiramente por que é que foi essa a sua escolha?

Porque me sentia verdadeiramente entusiasmado pela causa pública e queria tentar pôr em prática algumas ideias, atitudes, formas de ver.

 

É também vaidade, a sua opção pela política?

Isso não é de certeza absoluta.

 

É a vaidade de saber que a sua voz é ouvida, que a sua opinião tem importância, que outros lhe dão espaço. Não?

Não. Claro que há alguma, senão estava aqui todo roto.

 

Não estou a falar da vaidade na forma como se apresenta.

Eu sei, mas também é. A minha vaidade, seja ao nível de cuidar de mim, seja ao nível da vaidade de aparecer na televisão, está abaixo da média. Não lhe vou revelar quem, mas uma figura pública, em conversa comigo, perguntava-me: “O que é que nos faz andar nisto?”.

 

Bela pergunta.

Ele dizia: “Acho que o principal motivo é a vaidade”. A pergunta fazia todo o sentido, porque o esforço que se faz, o trabalho e o sofrimento que se tem para se conseguir às vezes tão pouquinho, aparentemente não compensa. (“Vai lá embora, já viste que não deu, vem outro que ainda não viu, e faz o seu caminho”). Então, porque é que a gente se mantém? Só se for vaidade no sentido de não ir embora.

 

Uma forma de orgulho.

Orgulho, talvez. Não bater com a porta. (“Não estou para vos aturar! Se sou muito mau, que venha outro que faça melhor”). Aí é que deve haver orgulho. Vaidade não tenho, palavra de honra. A não ser a necessária para fazer isto funcionar.

 

“Porque é que andamos nisto?”  Há-de ter uma ideia da resposta. Esta é a sua vida. E não é de agora.

Há os obstáculos permanentes e há o incentivo. O que funciona como incentivo? Porem-me obstáculos pela frente com maldade. O Miguel Veiga, que foi meu mandatário por duas vezes e vai ser agora a terceira, diz: “Piquem-no! É quando está furioso que funciona melhor”. O Miguel tem razão. Quando a oposição ataca ou critica de forma maldosa e sem razão, dá-me força. Se vejo um jornal ostensivamente a fazer-me oposição, dá-me força. Se sou constituído arguido por isto ou por aquilo, dá-me força. Quando é “vamos lixa-lo”, dá-me força. Se calhar foi o que me fez entrar para a política em 1978, muito novo. Há coisas que estão muito mal e tenho de as combater. Funciona como incentivo o reconhecimento, o facto de as pessoas reconhecerem o meu trabalho.

 

A maioria absoluta, deixou-o muito contente.

Com certeza que é um resultado melhor do que o anterior, mas não foi isso que me deixou mais contente. A maioria das pessoas nem acredita no que vou dizer. Fiquei com quatro anos à frente em que posso trabalhar e não perder tempo com quem não quer que eu faça, para depois dizer que não fiz. Tinha coisas para fazer pela cidade, importantes. E a oposição, por natureza, boicota, boicota, boicota. Com maioria absoluta, façam o discurso e boicotem tudo, mas vai poder fazer-se.

 

Em 2001 ninguém estava à espera que ganhasse. Lembro-me da sua cara na noite eleitoral: era um misto de contentamento e de enorme surpresa. É normal que tenha ficado contentinho da vida. Partiu de uma situação de fragilidade e conseguiu dar a volta.

E um primeiro mandato polémico e difícil. As pessoas associam a maioria [absoluta] a ditadura, a autoritarismo. Nada disso. A maioria absoluta aumenta-nos a responsabilidade, mas dá uma rendibilidade enorme. Se não tivesse maioria andava a discutir tudo, semana sim, semana não.

 

No primeiro mandato, por causa da surpresa, e pela inexperiência, ainda não sabia se era capaz de conduzir a Câmara. Quando assume o cargo, tem dúvidas da sua capacidade?

Há coisas onde não tenho dúvidas e há coisas onde tenho dúvidas. Tive uma polémica com um dos jornais mais importantes. “Vocês estão enganados comigo”. Eu estava cá há poucos meses. “Pensam que vou fazer tudo para ganhar as próximas eleições e eu vou fazer tudo para as perder! Vou fazer todas as rupturas que têm de ser feitas, e seja o que Deus quiser. Não tenho a certeza de que vou ganhar.”

 

Já estava preparado para tudo, mesmo para perder?

De 2002 a 2005, claramente. Tinha divergências efectivas e estruturais com a governação do PS, seja com o Dr. Fernando Gomes, seja com o Eng. Nuno Cardoso. Tinha de fazer aquilo em que acredito. Senão não vinha aqui fazer nada. E depois, como é que eu convivia comigo mesmo? Passava de fronte do Shopping do Bom Sucesso, junto a minha casa, “Este mostrengo é uma porcaria”, e tinha mais quatro ou cinco mostrengos construídos no meu tempo. Como é que eu olhava para mim? Por isso é que dizia ao director do jornal: ”Vou fazer tudo para perder”. Estávamos a sair da lógica do Eng. António Guterres: dizer que sim a tudo, muito diálogo e não sei que mais. Eu estava com uma estratégia completamente diferente.

 

Não temeu parecer um bronco?

Ah! sim, claro. Ainda hoje é capaz de haver …

 

Um estilo parte a louça. Percebe?

Percebo!, então não percebo. Especialmente considerando os sectores que eu sabia que ia afrontar. (Como tinham demasiado poder, tinham uma componente de arrogância. Os políticos que andam ao colo da comunicação social são mais arrogantes do que os que não andam. Nunca pensou nisso? Fique com esta dica e vá analisando. Embora a comunicação social dê deles uma imagem afável – o contrário do que verdadeiramente são.) Eu sabia que quando estava no Parlamento, como um deputado demasiado intelectualizado e longe do povo, era essa a imagem que tinha. Chegando aqui e tomando essas directrizes, naturalmente que iam fazer leituras desse género.

 

Gostava de fazer como o Miguel Veiga diz: picá-lo. Isso não é muito diferente da forma como o seu pai o acicatou. Com um castigo severo, que induz em si o desejo de fazer melhor.

Admito que quando o meu pai me fazia alguma coisa que eu achava demasiado rigoroso e injusto, o incentivo era fazer um caminho de pedagogia contra aquilo. Pode ser que também esteja aí alguma razão para a minha intervenção pública. Ou seja, uma correcção de injustiças.

 

Havia o desejo de impressionar o seu pai e obter essa gratificação dele?

Não.

 

Parece que para o seu pai nunca era suficiente. O que pudesse fazer, nunca o esmagava.

Não sei… A partir dos meus 17 anos, e até aos 40 e tais, o meu pai estava ainda bem, e foi muito diferente.

 

Como era então a vossa relação?

Em bom rigor, nunca foi má. Foi razoavelmente positiva. Nos anos 60, um miúdo com 12, 13, 14 anos era muito subjugado aos poderes paternais. Mesmo os que não andavam no Colégio Alemão. Depois há uma idade em que se fica mais espigadote. Quando fui para a faculdade, o meu pai até manifestava algum orgulho.

 

O seu pai ainda estava bem quando ganhou a Câmara?

Sim. Em 2001 esteve na sede até tarde e sentiu uma grande alegria. Em 2005 já estava débil. O que ele fez, na minha infância, foi com boa intenção. Era para eu ser alguém.

 

Ganhar a Câmara, ser alguém na vida.

Não é preciso ganhar a Câmara para ser alguém na vida. Pode ganhar uma Junta de Freguesia e ser alguém. [gargalhada]

 

Já agora, ganhou a Câmara, e não a Junta de Freguesia. Era uma maneira de lhe dizer: “Contas acertadas. Investiu em mim, sou alguém”.

Sim. Ele tinha esse orgulho. Tinha. Sim, sim, claramente.

 

Consta que tem um caderno para o deve e o haver

Não. Tenho. É parte verdade. Não tenho tempo para tratar disso como devia ser, mas ainda tenho. No meu dia-a-dia não tenho o deve e o haver. O dinheiro que poupo, tiro da conta do dia-a-dia e ponho na outra. E nessa tenho aplicações, que dão juros ou dão prejuízos. Não sei de cor, mas tenho lá isso escrito o que recebi em juros de títulos há dois anos ou três anos.

 

Tem desde quando? Que é também uma maneira de perguntar há quanto tempo investe no seu futuro.

Desde os anos 80. Desde que saí da faculdade e comecei a trabalhar. Agora está tudo muito simplificado, os registos estão em axel. Antigamente era à mão. Tenho um colega de curso que faz isso. Toma um café e faz um lançamento, e à noite faz a contabilidade. Não é isso que eu faço, calma aí! Não sei como é que ele contabiliza um café, se é em fornecimentos ou serviços externos.

 

Se comprar um fato Armani ou se for de férias, lança isso?

Não. Imagine: ganho 100, gasto 70, ponho os 30 para o lado. É só desse que faço a gestão. No dia-a-dia tenho algum cuidado com os gastos. Antes de ir trabalhar, era muito rigoroso. Não partia dos 100 escudos, mas não era muito mais alto.

 

Tinha medo da pobreza? Foi isso que o fez ser tão poupado?

Não faço a mínima ideia. Dito assim, talvez não. Já lá vão muitos anos e tenho outra segurança, mas não consigo gastar tudo o que tenho. E se falha alguma coisa, no espaço de 15 dias, não tenho como subsistir! Todos os meses, tirando situações excepcionais, tenho de ganhar mais do que aquilo que gasto. O meu património não está mal gerido, mas podia estar melhor. Já esteve melhor. Não se esqueça que fui profissional do mercado de capitais, trabalhei na banca. Fazia os estudos das empresas para depois as cotar na Bolsa. E sabia daquilo. Mal fora se depois não sabia gerir as minhas coisas.

 

Uma parte disso é marca do Colégio Alemão? Ou é a marca da precariedade em que a família ficou depois da separação e do 25 de Abril?

Também pode ser, também pode ser. Devia ter dentro de mim essa intuição. A educação que recebi aperfeiçoou-a. Tenho uma dificuldade extrema em entender o endividamento.

 

A sua casa está paga ou paga-a todos os meses ao banco?

A minha casa é alugada. A do Porto. Tenho um pequeno apartamento na margem sul do rio Lima, para férias e fins-de-semana, e essa é minha. Há casos em que a pessoa tem de se endividar para a vida andar para a frente – que é o que eu faço na Câmara. Não compreendo o endividamento para melhorar a minha qualidade de vida. Se quero melhorar a minha qualidade de vida, tenho mais é de poupar.

 

Há bocado disse que lhe custava sair.

Sempre custou, desde pequeno. Há pessoas da minha idade que viajaram muito mais do que eu.

 

Com que periodicidade é que sai de Portugal?

Não saio muito. Tenho aqui tanto que fazer que raramente aceito os convites que me fazem. Acabo por sair duas ou três vezes por ano.

 

Só?!

Sim. Onde é que eu fui como presidente da Câmara? A Espanha, muitas vezes, mas não conta. A França, algumas vezes. Fui à Alemanha, por causa do oceanário. Dinamarca. A Cabo-Verde, duas vezes. À Escócia. Aos Estados Unidos, mas não foi como presidente da Câmara. Eu pertenci à União Inter-parlamentar durante quatro anos, e saí diversas vezes. Nem me lembro da última vez que saí…

 

Isso não alarga o seu mundo. Essa é uma das acusações que lhe fazem: que a sua visão da cidade é paroquial, que não é uma pessoa cosmopolita.

Quem diz isso não tem noção do que é gerir a Câmara Municipal do Porto. Gerir a sério. É mais agradável fazer umas viagens, mandar umas bocas, dar uns subsídios. Uma Câmara como a do Porto, com a escala que tem, tem determinadas atribuições; se não as cumprir, ninguém o faz. Ponto dois: dizer que o Porto vai liderar o Noroeste Peninsular e o Arco Atlântico e metade do mundo, é conversa fiada. Um discurso que aparece muito burilado e bonito, sem adesão à realidade, é intelectualmente menor. Um discurso intelectualmente superior é eu ter uma realidade, saber ler essa realidade e saber transformar essa realidade naquilo que me compete e com os instrumentos que tenho.

 

Disse burilar. É uma palavra que normalmente não se usa…

Não se usa em Lisboa?

 

É menos uma palavra do discurso oral e mais uma palavra dos livros. O que é que lê?

Romances, não leio. Não me atrai. Leio menos do que gostava. O período da minha vida em que li mais foi quando fui deputado. Leio livros técnicos na área da Economia. De história. Estou a ler a vida de D. Pedro IV. Qual é que eu li antes? Qual é que eu li antes…

 

Autores alemães: tinha uma relação particular com algum deles?

Agora não, mas na altura líamos muito o Goethe e o Schiller. Tocavam-me alguns poemas. Schiller encantava-me mais.

 

De que é que falavam esses poemas? Porque é que o encantavam?

Era fundamentalmente o jogo das palavras e a forma. As palavras falavam mais do que normalmente falam. Naturalmente, fui obrigado a ler “Os Maias”. Depois, de moto próprio, li outras obras do Eça. Leio sobre comunicação social. “A Teoria da Comunicação”, de Inácio Ramonett, foi um livro que me marcou bastante e das prendas que mais hei-de ter oferecido. “Lê lá, para ver como funciona”.

 

O primeiro cartaz da sua campanha diz que está com os dois pés no Porto. Vai dizer-me que não esta à espera da sua hora para ser líder do PSD, deixar a Câmara do Porto e ser Primeiro-Ministro?

Não, não.

 

Isso é um compromisso? Consigo, com os seus eleitores. Imaginemos que num cenário pós-eleitoral substitui Manuela Ferreira Leite…

Num cenário pós-eleitoral. Em Novembro. Em Outubro fui eleito presidente da Câmara do Porto. Tenho de cumprir.

 

Se tivesse a possibilidade de ser Primeiro-Ministro, não poderia rever a sua posição? É fácil pensar que está à espera da sua hora, que tem condições para ser líder do PSD. Há demasiados anos que está na cúpula.

Há bocado disse, e é rigorosamente verdade: nunca fiz nada para chegar a um determinado cargo. Uma vez que ganhei, iniciei uma tarefa e é para a concluir. A seguir, o que é que vem? Não faço a mínima ideia. Ainda lhe poderia dizer: “Tenho um lugar de assessor principal na direcção não sei de quê”. Mas não tenho nada.

 

Durante a campanha de 2001 teve a sua primeira filha. Colocou a ecografia da sua filha no site da campanha.

E tive críticas. Mas achei aquilo engraçado. “Está aqui, o que existe é isto”. Tinha três meses. Que não é nada, é uma mancha escura, mas já pertence à minha família. De uma forma simbólica, [estava ali].

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em Junho de 2009