Diana Krall
Quiet Nights é o disco novo de Diana Krall. Os músicos são os de sempre. A produção, assinada por Tommy LiPuma, é irrepreensível. Os arranjos são do mítico Claus Ogerman. Nós tínhamos meia hora para falar do disco, ou para, a partir dele, falar dela, num palácio de Lisboa convertido em hotel.
Tudo começou como estava combinado. E tudo mudou sem que o pudéssemos prever ou recusar. Começámos a falar de vestidos e de malas, dos saldos da Chloé e de o corpo não ser o mesmo depois da maternidade. Ela é mãe do Frank e do Dexter, de dois anos. É casada com o músico Elvis Costello.
Deu-me uma entrevista pouco convencional. Não só porque “sabotou” o seu próprio trabalho – que era falar do disco – como desatou a fazer-me perguntas sobre isto e aquilo – you know, as coisas de que as mulheres falam quando não têm de falar sobre um tema específico. O resultado é tão surpreendente que decidi transcrever a conversa como ela fluiu, com interrupções e partes desconexas. Deste modo, conhecemo-la de perto, mais do que conheceríamos se falasse exclusivamente da sua música e respondesse a perguntas retóricas.
Por momentos, ela foi a Diana, não foi a Diana Krall. Começou assim…
... Tive uma constipação terrível, a minha energia está mesmo em baixo. Por favor, não me interprete como sendo uma chata!, mas tenho estado tão doente…
Obrigada pela amabilidade. Então, o disco novo é uma carta de amor que quer sussurrar ao ouvido do seu marido e dos seus filhos...
Acho que significa apenas que estou feliz. O que a letra de [Quiet Nights] diz é: “Quero a vida sempre assim/Com você perto de mim/Até o apagar da velha chama”. Fala sobre encontrar a felicidade, estar satisfeito. Mas é um disco sensual também; tem várias leituras.
Posso perguntar-lhe sobre o momento em que encontrou a felicidade? Sobre essa mudança.
Sou o tipo de pessoa que está triste-feliz-triste-feliz... Porque tudo na vida me toca muito. Mas sinto-me feliz, como pessoa, como artista, como mãe. Este álbum revela a mudança que se deu em mim por ter sido mãe.
Pensei que a mudança tinha sido com The Girl In The Other Room, o primeiro álbum que gravou depois do casamento com Elvis Costello. No disco, é visível a influência do seu marido nas escolhas que faz; por exemplo, quando interpreta Joni Mitchell ou Mose Allison, que são músicos que ele admira.
Aconteceram várias coisas muito intensas nesse mesmo período. Perdi a minha mãe; uma perda tremenda. Depois, o casamento. Não foi um clique, foi uma coisa gradual – este sentimento de paz com quem sou e aquilo que faço.
Podemos perceber um cruzamento entre a sua vida pessoal e o seu trabalho. Estamos a falar daquilo que perdeu e daquilo que ganhou, e de como isso se reflecte no que faz.
Eu canto as canções, gravo, tal como imaginei; mas o resultado final só se entende quando se sai do estúdio, se entra na cabine e se escuta. É como se nos colocassem na frente um espelho, e então percebemos onde estamos. As pessoas perguntam-me se há [em relação a este disco] um sentimento romântico; mas não: é erótico, é escuro, num sentido sexual profundo. Tudo se conjuga agora na minha vida. E sinto-me mais velha, [risos] mas não muito. Não me sinto com 27 anos e à procura. Tudo veio tarde na minha vida.
Tarde? Eu pensava que tudo tinha começado cedo...
A minha carreira começou a ter sucesso quando eu tinha 37, com o The Look of Love. Antes, eu ainda tinha problemas em pagar a renda… Comecei a poder viver apenas da música. Casei-me com 39, tive filhos com 42, agora tenho 44.
Um dos seus discos preferidos de sempre é Amoroso, de 1977, de João Gilberto. Em Quiet Nights interpreta dois temas que João também cantou: Garota de Ipanema e Este seu olhar.
Vi João ao vivo este Verão! Este Seu Olhar é a minha música preferida. Ouvi-a vezes sem conta, e um dia pensei: “Tenho que aprendê-la!”.
No disco canta-a em português. Porquê?
É como se estas palavras escapassem à lógica…, não se podem dizer ou explicar em inglês. Aprendi-a ouvindo João Gilberto e com uma pessoa em São Paulo, que insistia para que eu dissesse gosta. Eu não queria dizê-lo com aquele sotaque, não estava a tentar cantar num português perfeito; estava simplesmente a tentar ser humana.
Logo, imperfeita. E com sotaque imperfeito.
Como uma miúda canadiana que adora esta forma de arte cantaria: com sotaque. Mas sinto-me confortável a cantar em português. Sinto o que estou a cantar. [No Rio], cantei em português e disse goshta de mim, e toda a gente se riu… Lixei tudo! Mas depois, estavam todos contentes, e nos jornais diziam: “Ela é carioca!” por causa do sotaque que apanhei do João Gilberto.
Se posso ser sincera, prefiro a sua versão, em português, de Este Seu Olhar à Garota de Ipanema, que canta em inglês. Porque consigo identificar a emoção, o quanto gosta da canção, e o prazer de cantá-la em português.
Sim. Mas canto-a melhor agora do que quando a gravei. A Garota de Ipanema tem que se entender como uma personagem: uma mulher da minha idade, a ver homens lindos na praia!
Claus Ogerman, que fez os arranjos do seu disco, fez, no passado, várias versões da Garota de Ipanema.
Fez cerca de trinta! E disse-me que neste disco queria reescrever tudo. Se ouvir o original que ele escreveu para Frank Sinatra e Jobim [1967], e ouvir agora Quiet Night, perceberá que fez uma versão mais negra, mais film noir. Mas o público não precisa saber isto: apenas precisa sentir o meu trabalho.
A sua relação com a música brasileira começa com a colecção de discos do seu pai?
Descobri sozinha a música brasileira. Com o Sérgio Mendes [& Brasil' 66]. Sempre gostei daquele Look Around, aquele te-te-te-re te-te-te... Para mim, a música é uma filosofia: não é só fazer e planear coisas. É como se vive, é a forma como nos exprimimos, sem palavras. A música, como o amor, realmente assume todas as formas. É um processo muito espiritual.
Como é que tudo se desenrola?
Sou uma pessoa intuitiva. Primeiro sinto, deixo que aconteça. Não falo muito com os músicos enquanto estamos a trabalhar, apenas vejo para onde se dirigem, o que vão introduzir, não peço que toquem desta ou daquela forma. Se há alterações a fazer, faço alterações subtis.
No início da sua carreira, queria ser apenas pianista, ou sempre quis ser cantora?
Nunca achei que fosse muito boa [cantora], é tudo. A minha família era muito musical. Fui criada por avós que gostam de jazz, e eu achava que toda a gente tinha isso; só mais tarde descobri que nem toda a gente tem. [Olha para o tecto trabalhado da sala onde estamos] Ohh, é lindo...
Todo o hotel é muito bonito.
Adoro estes cortinados. Sempre que venho aqui penso em comprar uns!
Pode roubá-los!
Roubar os cortinados, como a Scarlett O’hara, [de E Tudo o Vento Levou]! [risos]. Eu colecciono arte, e uma das minhas paixões é o design. Colecciono mobiliário modernista, do séc. XX, da década de 50. Vou a lojas de coisas em segunda mão, compro vestidos vintage, dos anos 40.
O seu vestido é lindo.
É um Gucci comprado nuns saldos.
Nos saldos? Porquê? Pode comprar sem ser em saldo.
Eu tenho dois filhos, entende? Era uma coisa da minha mãe: aproveitar os saldos. É confortável. Nunca uso padrões, normalmente visto-me de preto. [Pega no Blackberry] Deixe-me mostrar-lhe os miúdos: o pai mandou estas fotografias ontem, finalmente a dormirem! Este é o meu filho Frank e este é o Dexter, a aprender piano. E esta é a minha fotografia preferida de mim mesma, das mais recentes, na Disneyland. É como me vejo.
Com óculos. Parece uma miúda! Quando põe o cabelo de determinada maneira, a maquilhagem e os vestidos fazem-na parecer uma femme fatale.
Sim, mas se me visse por aí... [Mostrando novamente imagens no Blackberry] Este é o Dexter a aprender violino. Gosto de me arranjar, mas falta-me paciência para... Isto é onde eu faço ski, esta é a vista da montanha, e a cidade de Vancouver. [Retomando a conversa] Fui às compras em Paris com a minha manager, de calças de ganga, com óculos escuros, sem maquilhagem: entrava nas lojas e as pessoas reconheciam-me! Achei estranhíssimo!
Para o caso de não saber, é célebre no mundo inteiro. Vende milhões de discos.
Mas ninguém me reconhece no Canadá ou em Los Angeles. [risos] Como é que sabiam?! Fui ao ginásio aqui, esta manhã, e a senhora que me passava as toalhas perguntou se eu era a Diana Krall! Como é que ela sabe? Com aquele cabelo todo despenteado… Gosto quando me arranjo, mas quando estou no estúdio não uso maquilhagem nenhuma. As suas botas são bonitas.
Obrigada. São Dries van Noten. Adoro Dries van Noten! Na verdade, adoro moda.
Eu também. Fui aos saldos em Paris, na Chloé, tinham coisas lindas. Gostava das coisas desenhadas pela Phoebe Philo. Guardei esses vestidos todos, e os do Tom Ford para a Gucci, os casacos YSL de veludo preto...
Nada melhor do que conversa de miúdas!
Pare de falar da porcaria do disco! [risos]
Era suposto falarmos do disco, dos arranjos do Claus Ogerman...
Eu sei. Estou aqui todo o dia e só me perguntam se quero um Porto ou ir passear. Eu quero é ir às compras! Mas como tive dois bebés, o meu corpo mudou. É uma trabalheira. Passo fome para tentar voltar [ao que era dantes]. Às vezes não aguento. “Mais um copo de vinho?” Ohh, sim! Eu não estou na televisão, não sou esse tipo de pessoa, de Hollywood, não tenho de sacrificar a minha felicidade [para ter uma imagem perfeita]. Mesmo assim, quero caber naquelas roupas!
[Uma pessoa da editora espreita pela porta para dizer que temos mais dois minutos dos 30 inicialmente estabelecidos]
Não se preocupe, é um alívio e uma bênção finalmente poder conversar com outra mulher sobre o Claus Ogerman e sobre moda. Porque é importante entender uma coisa e outra. Esta é a minha Balenciaga. De senhorinha! É a minha mala preferida, velhinha, velhinha, velhinha! A minha assistente, que é argentina, usa imenso DKNY, e cai sempre bem...
Na capa do seu disco When I look in your eyes usa uma saia azul DKNY deslumbrante.
Sou eu que decido tudo nas minhas capas. Sou muito exigente com aquilo com que apareço vestido. Neste disco novo é tudo Oscar de La Renta.
Onde tem a sua roupa? Onde é que se sente em casa?
Casa é Vancouver. Digo-lhe uma coisa importante sobre o álbum e as letras de Quiet Nights: “E eu que era triste, descrente nesse mundo/ ao encontrar você eu percebi/ o que é felicidade, meu amor”. Isto é real: sobre Vancouver e a minha família, as montanhas, os passeios que damos. É isso que está aqui: um sentimento de satisfação com aquilo que tenho, sem pensar constantemente em ir para Nove Iorque ou Los Angeles, ou equacionar viver em Paris uns tempos.
Viaja muito, e o seu marido tem também uma carreira exigente. Imagino que agora seja mais difícil, por causa das crianças.
Os meus filhos também viajam – sou aberta nesse sentido. Mas é bom sentir que pertencemos a um sítio, podendo esse sítio ser aquele de onde partimos. Não me vejo a criar os meus filhos em Nova Iorque; agora não, talvez mais tarde. Por enquanto, mantenho as minhas raízes na Colômbia Britânica. Está cá dentro, não consigo evitar.
Quando não está em tournée, a viajar à volta do mundo, como é o seu quotidiano?
Vou ao parque, vou à mercearia, convido amigos para jantar, bebemos bom vinho, cozinhamos, sentamo-nos a conversar, rimos.
Uma vida normal.
Não é bem normal. Não sei se quero ser normal! Não entrei para os grupos de mamãs, que têm que fazer isto ou aquilo... Não sou isso, nem os meus filhos são assim. Não me quero adaptar a nada. Gosto de uma vida com movimento, com liberdade para viajar, e apesar de dar em doida com tantas viagens, gosto da vida que tenho.
A sua expressão mudou. Quando estava a preparar a entrevista, vi coisas antigas, no Youtube, e é incrível como a sua cara mudou. Era mais tensa.
Mas sabe porquê? Porque perdi a minha mãe, e isso destruiu-me completamente. Depois o meu pai adoeceu, e eu tinha que trabalhar e processar tudo isso perante o público, e não conseguia... Foi muito duro. Toda a gente me diz que pareço outra pessoa. Olha-se para trás e tenta-se perceber quem fomos, e agora somos outros. Acho que tem a ver com essa dor que me acompanhou tanto tempo. [comove-se] Sinto-me muito grata por mo dizer. Estou vulnerável por estar doente e porque fico nervosa quando há muita cobertura de imprensa; sinto-me sempre encostada à parede, com os fotógrafos, tudo isso...
Parece mais leve, feliz e descontraída – foi isso que mudou na sua cara.
É por ter estes dois miúdos! Isto afectou o meu casamento. Eles não deviam dormir na nossa cama, mas nós queremo-los ali. Penso em pais que deixam os filhos chorar, que dizem que não faz mal deixá-los chorar vinte minutos porque depois readormecem... Mas houve uma coisa dentro de mim, quando peguei no meu filho que chorava, estive com ele no colo vinte minutos, e depois pu-lo na cama... Você tem filhos?
[prossegue a conversa pessoal…]
Publicado originalmente na Revista Máxima em Fevereiro de 2009