Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Coimbra de Matos

09.10.23

Oito e meia da noite. O cinzeiro está sobre a secretária. A janela, que rasga o compartimento para o saguão, desenha já a noite de Outono. Ao fundo, há um espelho, alinhado à altura de um adulto. E ao lado, numa sala relativamente grande, coberto por um tecido luminoso, o divã.

«Tenho um paciente marcado para as dez e um quarto; acha que dá?».

Seriam dez e 12, ou 13, ou 14 quando pela primeira vez olhou para o relógio. Quis o acaso que o paciente se atrasasse, a campainha se avariasse. Prosseguiu a conversa, mais distendida, para lá da meia-noite.

António Coimbra de Matos faz 72 anos no próximo Dezembro. Nasceu em Galafura, perdida nos vinhedos do Douro. É psiquiatra e psicanalista.

A depressão, que se arrasta insidiosamente entre a espuma dos dias, e se afirma com particular voracidade com as folhas do Outono, é o tema da sua vida. Em Portugal ninguém trabalhou o tema tão afincadamente.

Como se sabe, é um médico afamado. Uma autoridade.

Dobrando a rua, a rua larga, quase deserta, eu pensava na confissão de um amor perdido, por alturas de faculdade. Quis o enguiço que a fita, aqui chegando, se espatifasse. Como pontas cortadas pelo destino. A confissão, feita de olhos marejados, dizia respeito a uma rapariga que o não amou, que o não amou suficientemente. Eu pedira-lhe pistas para melhor chegar à sua essência; ele recuara 50 anos e falara do caso. O que queria isto dizer, perguntei eu. Queria dizer que as relações afectivas eram importantes, respondeu ele.

 

 

A dor define a nossa vida, no sentido de nos esculpir?

Não tenho essa opinião. O que nos define é o prazer, a alegria, a felicidade. A dor, quer física, quer mental, é inevitável, mas não quer dizer que seja necessária. É sinal de qualquer coisa que não está a correr bem.

 

Inevitável mas necessária?

Porque é um aviso, orienta o diagnóstico. Estamos muito influenciados pela cultura judaico-cristã, médicos, psicólogos e psicanalistas, no sentido da vida de sangue, suor e lágrimas. Não estou de acordo. Entre os analistas, é frequente dizer que durante o tratamento analítico é preciso que o doente se deprima. Eu costumo dizer: «É preciso que se deprima se tiver algum traço depressivo. É preciso que ela apareça, a depressão».

 

Há pacientes que não têm traços depressivos?

Há, embora seja raro. Bom, os meus amigos dizem que sou um optimista.

 

Como é que um optimista escolhe a depressão como tema central de investigação e trabalho?

Tem sido, de facto, o que me tem interessado mais. Comecei a verificar que era uma perturbação central. Praticamente aparece em toda a patologia mental, e mesmo na patologia psico-somática. Comecei por não ter grande sucesso terapêutico com os pacientes. Tinha dificuldade em tratar a depressão, e as teorias que existiam não me davam saída. De maneira que comecei a investigar por conta própria. Hoje, estou à vontade com as depressões.

 

Mesmo antes de saber do optimismo, pensei no seu interesse pelo tema. Em instância última, não somos todos potencialmente depressivos?

 A depressão acontece sempre quando estamos numa situação em que damos mais afecto do que recebemos. É aquilo a que chamo Economia Depressiva, causa última e primeira da depressão.

 

Importa-se de esmiuçar?

Se tiver um namorado e se, a alturas tantas, começa a perceber que lhe está a dar mais do que a receber, deprime. Depressão normal. Na depressão patológica, ultrapassa o comum da reacção, dura mais e é mais intenso; o indivíduo não se apercebe das causas, e não se revolta. A reacção normal face ao abandono é um sentimento depressivo mas também raivoso, «Que raio de brincadeira, porque é que me abandonas, etc, estupor!». A pessoa com personalidade depressiva tem tendência para se culpar a si própria, «Fui eu que fui mau, há pessoas mais interessantes». O paradigma da depressão é a ruptura amorosa.

 

A etiologia da depressão é sobretudo amorosa?

Neste conceito de não receber resposta afectiva: ser amado, ser desejado, ser respeitado, ser admirado.

 

É inevitável haver, em todas as relações que estabelecemos, um desequilíbrio: numas damos mais, noutras recebemos mais?

Depende da importância da relação. 

 

Santo Agostinho escreve nas «Confissões»: «Eu ficara a ser para mim mesmo um lugar infeliz, onde não podia estar nem de onde me podia ir embora. Para onde fugiria de si mesmo o meu coração, para onde fugiria eu de mim mesmo?».

Descreve bem a depressão. O indivíduo sente que não está bem, mas pensa que é uma coisa com ele. Isto organiza-se normalmente na infância, depois é repetido, reactivado. Quando a infância se passa bem, o indivíduo normalmente não faz depressões patológicas. Aos mais pequenos sinais de que não está a receber afecto, negoceia a situação de uma forma mais cómoda. A criança, se a mãe não lhe dá muita atenção, imagina que é ele que não se comporta bem, que é ele que não gosta suficientemente do pai ou da mãe ou dos irmãos; fecha-se numa redoma de culpabilidade e inferiorização.

 

A infância é absolutamente matricial na vida da pessoa?

Matricial na organização de traços e atitudes mentais básicas. Depois há outras coisas, claro. Eu sou psicanalista, e os psicanalistas passam por uma análise pessoal. Quando fiz a minha análise, o meu analista interpretou isto de uma forma errada; vim depois, justamente através dos meus estudos sobre depressão, a perceber a situação. Quando tinha seis para sete anos, faleceu um irmão meu com dois anos de idade. Sou de uma aldeia do Douro. O meu pai, que era produtor de vinhos, foi ao Porto e trouxe-me um automóvel de pedais, uma oferta grandiosa demais para o habitual na família. Lembro-me de andar tempos e tempos no quintal de casa, às voltas. Como é que interpretei isto? O meu irmão faleceu, a minha mãe deprimiu, e seguramente deu-me menos atenção. As voltas e voltas no carro, não traduziam propriamente entusiasmo pelo carro: estava deprimido.

 

Mas parecia entusiasmado com o seu brinquedo.

Essa foi a interpretação do meu psicanalista. Penso que não era a correcta. Eu entusiasmava-me mais a andar na rua com os outros meninos, à procura de ninhos, a subir aos pinheiros, a entrar nos poços.

 

Quando é que formulou que queria ser psiquiatra, e depois psicanalista?

Foram vários os factores. Terá tido alguma influência que na minha família tenha havido sempre muitos médicos. Fiz a instrução primária na aldeia, fui para o Porto aos 10 anos onde fiz o liceu, a faculdade, a especialidade de Psiquiatria. Vim para Lisboa em 1960, instalei-me, e a psiquiatria começou a desiludir-me bastante.

 

Porquê?

Não me satisfazia o que se fazia com os pacientes, que não melhoravam, e os métodos não eram suficientes. De modo que me virei para duas áreas ao mesmo tempo: a neurologia e a psicanálise. Fiz neurologia quase até ao fim. Mas sempre me interessei muito pelas coisas da literatura, pela poesia, pela filosofia.

 

Há toda uma errância.

Alguma. Comecei a escrever um romance na terceira classe. Ficou pelos dois primeiros capítulos.

 

Era sobre quê?

É engraçado como às vezes a memória nos engana. Estava convencido de que era uma história de amor. Porque havia uma rapariga, Mariazinha, amiga da minha irmã, por quem tinha uma paixoneta. Mas a minha mãe guardou os papéis, e era fundamentalmente uma coisa mais de ordem organizativa e social. Inventava um conselho de aldeia, um parlamento.

 

É curioso que a memória o tenha recortado como uma história de amor. 

É. No liceu, andei no Colégio João de Deus, e no quarto ano escrevi o discurso de homenagem ao padre mais velho. Foi um sucesso, o padre chorou... Ainda me comovo... A seguir, comecei a ser convidado a escrever na revista literária do colégio.

 

Não teve pudor em comover-se, agora?

Não. Não. Os afectos são para se viverem. Portanto, a cirurgia pareceu-me demasiado mecânica, e as minhas entroncações intelectuais levaram-me para a psiquiatria. Era o pensamento, e o que fazia mover as pessoas.

 

Em todo o percurso errático, que tipo de criança ou jovem era? Reflexivo?

Não. Era extrovertido, gostava de festas, mas também me isolava, lia bastante. 

 

O que constitui uma originalidade. O interior era muito marcado pela iliteracia.

Nisso teve influência a minha mãe, que gostava de nos ler contos e poesia, ao serão. O meu pai andava mais entretido nos negócios, era um homem mais pragmático. A minha mãe era mais ligada aos afectos. Lia Júlio Dinis. O Eça não, porque era muito católica. Já o li aos 13, 14 por minha conta e risco.

 

Desenraízou-se da sua família quando foi estudar para o Porto. Era normal um rapaz fazer-se à vida e ficar entregue a si aos 14 anos?

Não era assim tão raro. As pessoas da aldeia iam para longe, trabalhar. Aquilo, à minha mãe, assustava muito; mas o meu pai tinha ficado orfão aos 12 anos, sozinho, com a mãe, uma pessoa deprimida, e uma irmã mais nova. Deixava-me ir sozinho. Uma história da minha vida, nesse primeiro ano no Porto. O meu pai ia negociar vinhos ao Porto, e hospedava-se no Hotel Peninsular. Por altura do Natal adoeceu com gota, chamou-me ao hotel e disse-me «Tens de ir receber à Casa do Douro, levas a pasta, falas com não sei quem, e depois entregas o dinheiro à mãe». Eram 40 contos, a venda de todo aquele ano de vinho. Eu tinha 10 anos. Fui do Porto à Régua, almocei, tratei do que tinha a tratar, e fui para a camionete, que me deixava a quatro km da minha terra. Não sei como arranjei, perdi a camionete. Tive de esperar pela das oito da noite, que não levava ninguém de Galafura, assustadíssimo, a pensar «Alguém me viu meter estas notas na pasta?».

 

Histórias como essa são essenciais para perceber o mapa identitário do indivíduo?

Uns forjam a sua identidade de uma maneira, outros de outra, conforme as experiências que tiveram. Penso que forjei a minha identidade com a minha família, os meus pais, e com a aldeia. Uma vida dura, mas também uma vida comunitária, com traços muito fortes.Tive sempre primos mais velhos com quem me dava, e tinha os meus amigos da minha idade. Isso também me puxou, ajudou a crescer

 

Se tivesse de eleger uma pessoa fundamental no seu processo de identificação, conseguiria?

Seguramente o meu pai. Era um homem pragmático, mais que eu até, trabalhador, rigoroso, destemido, empreendedor. A minha mãe era mais sonhadora, passava muito tempo em casa; deu-me outras coisas.

 

O seu interesse, dizia-o há pouco, é pelas letras, pela filosofia.

Mas também pelas coisas práticas. Quando me desencantei com a psiquiatria, fiz as duas coisas durante algum tempo: a psicanálise e a neurologia.

 

Ganhou a psicanálise.

Ganhou.

 

Conectaria a neurologia a um lado mais pragmático e a psicanálise a um lado mais especulativo?

Provavelmente. O meu pai também gostava de conversar, e conviver, e a investigação científica é mais isolada. Gosto da psicanálise mas faço outras coisas.

 

O quê?

Durante muito tempo trabalhei como psiquiatra dos hospitais – nos últimos anos dirigi um serviço de psiquiatria –, e gosto também de dar aulas.

 

Jubilou-se o ano passado.

Estou agora com o consultório e continuo como professor no ISPA e na faculdade com os mestrados.

 

Porque é que trabalha tanto?

Sou solicitado. E tenho a impressão de que gosto, gosto do que faço. Não há dia que não escreva qualquer coisa sobre uma sessão com um paciente, sobre o que isso me fez pensar. Escrevo muito. Tenho cerca de 400 e tal trabalhos que estão a ser publicados em colectânea, e agora por assuntos. E vou a imensos congressos, faço imensas conferências.

 

Aos 72 anos goza de uma reputação, entre pares e pacientes, e,  imagino, não sofre de uma necessidade financeira premente. A despeito disso, continua a trabalhar das oito da manhã às nove da noite. Insisto, porquê?

Não sei. Há coisas que gostaria de fazer: provavelmente escrever, provavelmente pintar – só pintei um quadro.

 

É o quê, se consegue reconstituí-lo?

O quadro começou por ser uma cena campestre. Há uma floresta, depois um rio, depois uma tempestade, depois um barco, depois uma mulher nua no barco. Chamo a isto sonho e pesadelo. Mas estava a dizer-lhe que gosto da terra. Fazer o vinho, provar os lotes, é uma coisa que aprecio. E motiva-me muito actualmente transmitir a minha experiência, escrever coisas.

 

Há um carácter quase testamentário nisso?

Mais organizar aquilo que tenho escrito, compilar, fazer arranjos. Os meus alunos solicitavam-me «Estas coisas em livros, davam-nos muito jeito».

 

Começou por falar do desencanto e insucesso profissional e agora fala do reconhecimento e solicitação.

Diria que o reconhecimento é importante, para toda a gente. Mas também, resultado das minhas investigações clínicas, as coisas começarem a fazer-me sentido, e isso deu-me um outro interesse pelo que faço.

 

Sim, mas há quem queira ser o melhor.

Não digo que não. Mas não me preocupei demasiadamente. Foi sempre cultivado à partida, fui sempre bom aluno. Eu mesmo tinha expectativas.

 

Quando acabou o curso, com 20 e poucos anos, o que queria da vida?

Ah, tenho bem claro. Fui fazer o serviço militar e, passados esses anos, quis emigrar – cheguei a ter contrato com um hospital próximo de Nova Iorque. Simplesmente, o meu pai faleceu, subitamente, embora não fosse novo. Quando nasci ele tinha 50 anos e a minha mãe 30. Senti-me com uma responsabilidade muito grande: a minha mãe era um bocado dependente, os meus irmãos muito mais novos. Lisboa exercia uma grande atracção sobre mim, mas mudei o disco, fui para o Porto. Também nessa altura, namorei e casei com a Teresa, que é médica. Depois as coisas estabilizaram nas nossas propriedades. Houve uma vaga no hospital Júlio de Matos, e vim cá concorrer.

 

Porque é que Lisboa era atraente?

Gostava muito de Lisboa. Tinha outras possibilidades de desenvolver a profissão. Vim pela primeira vez aos 17 anos, fiquei encantado com a cidade. Uma grandiosidade que o Porto não tinha. Mais luz.

 

Disse luxo?

Luz. Lisboa é uma cidade luminosa. Luxo, no sentido de sofisticação e cosmopolitismo, também. Espaço, grandes edifícios, grandes possibilidades culturais.

 

Tudo isso contrasta com a pequena aldeia do Douro.

Ainda hoje, com a minha idade, é um bocado ridículo até, mas se vou a um congresso, normalmente para fazer uma conferência – para ouvir já quase não vou – , se for uma grande sala, um congresso internacional, com muita gente, sinto-me muito melhor e gosto muito mais.

 

É vaidoso?

Talvez.

 

Quem é que gostaria que estivesse nessas plateias grandiosas?

Provavelmente alguma mulher de que gostasse. Às vezes acontece. Há oito anos no Porto, num congresso da nossa sociedade de psicanálise, cujo título era «A Sexualidade», acabei a conferência e uma senhora, com bom aspecto, com certa idade, vem ter comigo, trata-me por tu, dá-me dois beijos, «Vim aqui para estar contigo»! Era a Guidinha, colega de liceu da minha irmã, que tinha ido para freira!

 

A sexualidade é um tema assim tão apetecível?

É um tema importante. É, enfim, o tema do amor. Nos anos 70 escandalizei as pessoas quando disse numa conferência: «Sexo sem amor é um bocado insípido, amor sem sexo é bom para os impotentes». Continuo a achar que é assim.

 

O Woody Allen tem um filme, «Another Woman», no qual uma mulher de 50 anos tem como vizinho do andar de baixo um psicanalista. A primeira conversa que ouve é a de um paciente gay que fala do seu impulso homossexual. Como o tema a desinteressa, encosta almofadões ao radiador. Quando se deslocam acidentalmente, ouve uma mulher com uma voz de uma pungente tristeza. Vicia-se na paciente, no seu sofrimento, e passa a ouvi-la todos os dias. Penso que a sexualidade e o sofrimento serão dois dos temas mais constantes que as pessoas lhe trazem. É assim? O sexo, tão exacerbado socialmente, não será uma forma de contrariar a tristeza?

A sexualidade, quando está muito desligada do afecto, na maior parte das vezes é uma forma de compensação. Um indivíduo que não consegue ter uma relação afectiva suficiente, arranja uma vicariância. Criei esse conceito, que vem da medicina: se cortar um vaso importante, começam-se a desenvolver os vasos que estão ao lado. É um reforço da parte sexual para tentar compensar a insuficiência afectiva. 

 

O analista, supostamente, está isento de desejo, de memória, de pressupostos morais. É uma entidade asséptica. O que transpira de si na relação com os seus doentes?

É a teoria clássica, não é a minha. Tenho artigos sobre isso. A doença mental resulta de relações perturbadas que o indíviduo teve e que na análise vão ser trabalhadas, no sentido de serem dissolvidas; depois, é construída uma relação diferente, mais saudável, com o próprio analista, que vai crescendo e sendo transferida para o exterior. Há uma certa remodelação da personalidade. E isso só se passa quando há uma relação afectiva forte.

 

Analista-analisado?

Mútua. Numa conferência internacional sobre depressão terminava assim a minha intervenção: «Eu só trato as pessoas de quem gosto e nas quais aposto». Pessoas que me dizem alguma coisa, porque têm qualquer particularidade que acho interessante. O doutor Mário Casimiro, psicanalista também, dizia com muita precisão: «A psicanálise é muito complicada para o paciente quanto se despe intimamente e julga que estamos vestidos. Mas quando repara que também estamos nus, a coisa começa a correr melhor».

 

Na especificidade do que são as relações, qual é a parte de si, homem, que transita para o espaço da análise?

Grande parte das relações são relações de identidade ou de não-identidade. Ligamo-nos mais a uma pessoa quando há traços comuns – o mesmo na relação com amigos ou objectos amorosos. O homem faz-se homem no convívio com os outros homens, na identificação com os seus pares. (A minha última aula na faculdade foi sobre isto). Numa identificação por similaridade com um homem. Numa identificação por complementaridade com uma mulher. É como um parafuso e uma porca.

 

Isso que diz tem que ver com a orientação sexual?

Com a identidade sexual. Mas há pouco falou no filme do Woody Allen. Tive um analisado, eventualmente o mais difícil, pelo menos o que fez uma análise mais longa – 14 anos, a quatro, cinco sessões por semana –, que tinha um problema homossexual. A alturas tantas apaixonou-se por uma mulher – actualmente é casado e tem dois filhos. Tive dificuldade em acompanhá-lo; percebia-o intelectualmente, emocionalmente, mas achava que estava doido! Já era um analista feito, ainda pensei em pedir supervisão, mas depois achei que os meus colegas não sabiam mais do que eu. Cheguei a pensar ir a Paris ou Madrid onde conhecia psicanalistas que admirava e que me poderiam ajudar. Só comecei a percebê-lo quando me lembrei de uma coisa passada pelos meus 16 anos, com uma rapariga... Andei transtornado, a ponto de apanhar um tiro numa perna!

 

Um tiro numa perna?

Um chumbo, lá numa aldeia próxima, de um rival. Foi numas férias de Natal, numa noite em que não estava bom da pinha.

 

Ela gostava mais de quem?

Suponho que era de mim, mas a gente supõe sempre isso.

 

Queria era dar uma prova de amor à rapariga!

Pois! Bom, mas foi nessa altura que me senti próximo dele, «Afinal, também tive um período em que andei maluco». Sentir e ser capaz de me colocar na situação do outro – vulgarmente chama-se empatia. Quando estou a tratar um depressivo; já tenho passado por momentos mais ou menos depressivos... Posso imaginar o que pensei e senti naquela situação. 

 

Quando recebe pessoas três, quatro vezes por semana, tem com elas uma relação quase conjugal.

É uma relação muito íntima, mas psicológica.

 

Faz tanta diferença que não haja uma intimidade física?

Na minha opinião, que não é a da maior parte dos autores, a coisa clássica da mulher que se apaixona pelo analista, ou do homem que se apaixona pela analista, ou mesmo parceiros do mesmo sexo, é um erro de técnica.

 

O que quer dizer com isso?

Se o analista conduzir bem a análise, na maior parte das vezes não acontece. É preciso algumas condições. A primeira é ser analisado e continuar em auto-análise. Depois, estar satisfeito amorosamente. Se estiver em frustração amorosa é mais fácil apaixonar-se. Lembro-me de um outro caso, de uma mulher, que começou a acusar-me de lhe suspender muitas sessões. Não estava nada consciente disso. Face à insistência dela, fiz uma estatística e, de facto, faltava muito mais do que faltava às outras pessoas. Aquilo trouxe-me embrulhado durante algum tempo. Depois percebi. Sabe como?

 

Diga.

Tive um sonho erótico com ela. Percebi que havia algo de sexual de mim para ela e que me estava a defender. A defender do avanço que aquilo podia ter dentro de mim.

 

Alguma vez se apaixonou, ou coisa parecida, por uma paciente?

Não. Pode acontecer. Mas não é conveniente. Há cerca de dez anos recusei acompanhar uma mulher porque, depois das duas primeiras sessões exploratórias, percebi que me atraía sexualmente. Estas coisas têm de ser vistas logo no princípio. Mas, em última análise, se há uma paixão, é melhor mandar para outra pessoa: «Passa-se isto, que vai estragar a relação terapêutica, e das duas uma: ou acabamos a análise e passamos a ser namorados...».

 

É possível?

É.

 

Dito assim, parece uma caricatura de um filme do Woody Allen.

Não me parece ser boa solução. Mas há casos conhecidos. Um grande analista suiço, que conheci, tinha cinco analisadas com quem foi para a cama, e depois viveu, e depois abandonou; com a última casou.

 

Teve casos de desamor pelo paciente?

Há um outro caso, um professor universitário, que tinha uma neurose obsessiva. Só me falava da importância dele, muito narcísico, eu, eu, eu, «Fui o melhor aluno, o melhor professor, tenho a mulher mais bonita, os melhores carros». Um exibicionismo que me começou a irritar. Comecei a reagir por sono, uma vontade de dormir que era uma coisa tremenda!, antes da sessão ia sempre tomar café.

 

Porque é que o irritou o narcisismo do paciente?

Chocava com a minha auto-estima, tinha ali um tipo a competir comigo. E pensei, «Isto está parado, isto não corre! Ouço-lhe as façanhas e penso que é um pobre coitado». Tinha casado virgem aos 36 anos, durante a adolescência discutia filosofia. Depois percebi-o melhor. Consegui que me fosse suportável; comecei a achar-lhe piada, à sua lógica de raciocínio. Outro aspecto foi dar-lhe a volta: mostrando-lhe que tinha aquelas coisas todas, mas que nunca tinha experimentado a vida. Mudou, mesmo na forma de vestir; andava de gravata e guarda-chuva enrolado e passou a andar em mangas de camisa. E começou a fazer coisas... Aos 50 anos, o tipo que tinha casado virgem, meteu-se com as alunas, com as mulheres dos colegas, roubou um automóvel! Comecei a assustar-me, «Isto ainda dá sarilho, para ele e mesmo para mim».

 

Para si?

Sentia que era um insucesso da minha parte. E o desprestígio, «Então este homem trata-se com o Coimbra de Matos e dá este escândalo...». E não seria o bom para ele, meter-se em sarilhos.

 

Qualquer relação, analítica incluída, está sujeita à erosão. Há flutuações, como nos casamentos? Nos casamentos, mesmo quando há um bom relacionamento, nem sempre é fácil as pessoas sobreviverem ao quotidiano.

Pois. Na relação analítica também acontece entrarmos num impasse, «O paciente não melhora, eu não o ajudo a melhorar». Para lhe dar um exemplo. Apareceu-me uma paciente, com uma depressão funda, que tinha um comportamento sexual promíscuo. Aquilo começa a rodar, e acontecem duas coisas importantes. Começa a ter uma relação comigo mais sólida e a abandonar o seu comportamento (houve uma altura em que praticamente só convivia comigo). Outro aspecto, não tinha orgasmo; era uma coisa que a afligia, que era muito falada. Fui percebendo lentamente, que tinha uma grande dificuldade numa relação mais íntima.

 

Mesmo consigo?

Sim. Houve uma altura em que senti aquilo a diluir-se. Estava mais distendida, totalmente à vontade: posso dizer tudo, pensar tudo, fantasiar tudo. Há um dia em que chega à sessão e está para aí um quarto de hora em silêncio. (Tenho um artigo só sobre o silêncio). Esta paciente, «Tive o meu primeiro orgasmo». E eu, «O primeiro não, o primeiro foi comigo, já há mais de um mês». Dá um salto no divã!... «Já há mais de um mês que sinto que está solta». Simbolicamente tinha tido um orgasmo comigo.

 

Como é assiste a este desfilar de emoções, as mais descontroladas, as insanas?

Procurando compreender. O princípio fundamental é esse. «O que quer isto dizer?» – a posição científica. 

 

Não é preciso um misto de impudicícia e coragem, para enfrentar a verdade?

É importante.

 

Ao longo desta conversa tenho pensado que o problema da confrontação pública com aquilo que é mais íntimo e verdadeiro, ou que possa parecer incorrecto socialmente, não é uma questão.

É corrente, nos analistas. Há alguns mais reservados, mas.

 

Em todo o caso não é comum, não ter medo da face da verdade.

É uma condição essencial, a da verdade. Outra é a da paciência; para esperar que as coisas se arrastem, que às vezes não corram bem. Outra qualidade importante que ensino aos jovens analistas é a impavidez: não ter medo. Se o doente se quer matar, ou matar alguém, «Qual é o problema?, não podemos resolver a situação. A sociedade tem soluções: se se matar vai para o cemitério, se matar alguém vai para a cadeia».

 

Vê isso assim? Intimamente não se preocupa?

Com certeza. Mas, sabe, é preciso encarar o problema de frente.

 

No começo da vida profissional, o quadro teórico que o analista usa para ler os pacientes é razoavelmente rígido. Numa outra fase, de vida e de carreira, funciona sobretudo a relação empática que se estabelece?

Sim. E há o plano da investigação. Se não estivermos numa posição de investigação, de procurar descobrir coisas novas e de ter uma outra compreensão das coisas, todas as profissões são más. Cito muitas vezes o senhor Arsénio, carpinteiro da minha terra, da idade da minha mãe, que nunca fazia um telhado da mesma maneira. Inventava, fazia à maneira dele. Era um verdadeiro investigador, e tinha a quarta classe.

 

Posso confessar-lhe uma coisa?

Diga.

 

Percebo que não me queira dizer. Mas não acredito que trabalhe tanto apenas pelo interesse na investigação. É quase uma insaciedade: conhecer mais esta pessoa, testar mais uma vez o sucesso. O grosso do seu dia, o grosso da sua vida, é isto.

É possível que haja outros aspectos, que eu próprio não saiba ver. Ver mais pessoas, não, mas compreender melhor os problemas, sim. A maior parte do meu trabalho são supervisões de análise e análises didácticas _ análises de pessoas que querem ser analistas. Como sabe, sou dos analistas mais conhecidos em Lisboa e há muitos psicólogos, médicos que me procuram.

 

Como lida com a circunstância de ser «O» Coimbra de Matos?

Com uma certa satisfação. Por outro lado sobrecarrega-me, (nem sempre sei dizer que não).

 

Mas tem quase 72 anos.

A minha mãe morreu com 101, o ano passado, e boa, de cabeça e do resto; tinha uma artrose no joelho, mas ainda subia as escadas lá da casa para ver as flores e as galinhas

 

Quer dizer que não se sente velho?

Não. Embora tenha feito duas coisas graves: tirei um rim há três anos (tinha um cancro), e fiz um enfarte.

 

Não tem medo de morrer?

Não penso muito nisso. Quando foi do rim, assustei-me um bocado. Deprimi. Antes de ser operado, chegou a passar-me, «E se me atirasse deste andar abaixo?» - moro no oitavo. Também tenho as minhas camoecas.

 

Que aparecem em situações limite como essa.

 

Sim, mas quando fui mobilizado para a guerra colonial... Tinha 40 anos, fui para Moçambique. Estava no apogeu da minha clínica, era conhecido, e aquilo foi uma bordoada grande. Ainda pensei fugir, mas depois tinha três filhos, uma complicação; de maneira que aceitei.

 

Seria uma ignomínia?

Não sou patriota... Fomos todos, eu, mulher, filhos. Passado um mês estava deprimido. Já tinha articulado que, numa depressão normal, o indivíduo revolta-se. Foi o que me aconteceu. Tinha dois inimigos: os militares e os colonos que não gramava; só gramava os pretos. Fiz uma luta e passou-me a depressão. 

 

Falámos de medo e de coragem. Perder o medo significa crescer. O senhor, como homem, quando é que deixou de ter medo?

Continuo a ter medo. Medo da morte, por exemplo – tenho uma teoria sobre isso. Medo. No outro dia apanhei um murro quando fui buscar o meu carro; ia a meter a chave, com a pasta na mão, e há um tipo que me dá um esticão. Acabou por fugir; deve ter percebido que não estava muito disposto a deixar-me roubar. Mas tive medo. Penso que também aí é importante a experiência infantil. A minha aldeia era muito agressiva; numa terra de 600 habitantes, havia um, dois assassinatos por ano. 

 

E medo de não ser amado, pelos pacientes, pelos pais, pela mulher, pelos amigos? As pessoas têm sobretudo medo disso. 

Com certeza que tenho. Embora não tenha assim muitas razões de queixa.

 

O que é que o afecta, verdadeiramente? Apesar do carácter lúdico da relação com a vida, parece haver uma imunidade em relação ao sofrimento.

Sou um bocado sensível aos conflitos de autoridade. Tenho ocupado cargos de chefia e as pessoas acusavam-me de ser intolerante. Uma colega minha chegou a chamar-me autoritário. E não cedia facilmente.

 

Tenho a impressão, depois destas horas de conversa, de não ter apreendido a essência de si. Resguarda-se.

É natural. Que coisas posso dizer para me mostrar? A minha mãe dizia, a minha mulher também, alguns dos meus amigos também: sou ciumento. Mais com mulheres. Provavelmente alguma insegurança. Profissionalmente creio que nunca senti. Como fui bom aluno, como fui considerado entre os colegas... 

 

Esse paciente, que aos 50 anos deu uma volta à vida; não tem por vezes o impulso de, ao invés de viver outras vidas na relação com os seus pacientes, transportar efectivamente para a sua vida uma outra vida?

Algumas coisas, gostaria de ter feito e não fiz. Pensei ir para os Estados Unidos... 

 

Porque, ouvindo-o, tenho a noção de, as histórias que conta e os seus pacientes, serem personagens do seu romance.

Claro! Costumo dizer que uma das dimensões da saúde mental é a capacidade lúdica. O brincar não é só da infância.    

 

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias em  2001