Álvaro Siza Vieira
Não a propósito da arquitectura, mas do desenho, tinha dito: “Há uma ligação entre mão e mente muito estreita”. Ao longo da entrevista, procurou-se essa ligação. Falou dele próprio e menos do génio mundialmente conhecido por Siza Vieira. Nasceu em 1933.
O dia da entrevista estava marcado com um mês e uma semana de antecedência. Pelo meio, fez incontáveis viagens, e recebeu o prestigiado RIBA das mãos da Rainha de Inglaterra. Uma canseira. Mas acaba por gostar.
Gosta da vida que tem. Não é o misantropo que dizem que é. Ri-se por isto e por aquilo. Dá gargalhadas, espessas, de quem tem a voz e as cordas vocais entupidas pelo tabaco. Fuma muito.
A entrevista foi uma viagem. Às Sete Casas onde passou a infância, em Matosinhos. A um tempo em que a Segunda Guerra era uma ameaça. Ao Marco, à sua única igreja construída. Mas, por acaso, fomos dar ao Marco por causa de uma irmã que é freira e da descrição de uma casa onde as mulheres eram de missa diária. Não fomos às piscinas de Leça da Palmeira, nem ao salão de chá da Boa Nova, obras de final dos anos 50, quando ele era um arquitecto recém-formado. Nem fomos à muito celebrada Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, obra maior dos últimos anos. Mas fomos ao Brasil que o pai lhe deu a conhecer, através de relatos dos 12 anos que aí viveu. Fomos a muito lado. Sem sair da sala onde trabalha.
Siza Vieira falou de quase tudo. Não tocou em assuntos que eu e toda a gente sabemos que são tabu. Assuntos íntimos. “Não vou fazer confissões nem revelar a intimidade, não é?”. É viúvo e tem dois filhos.
Perguntou-me qual é o tema da entrevista. Quando disse que o tema era o senhor e a sua obra, respondeu, muito pasmado: “Eu?”. Já chegámos à fase em que o ícone Siza ocupa de tal maneira o espaço que o homem Álvaro Siza não é um tema?
É que isso, [quem sou], é do domínio do privado. Não vou fazer confissões nem revelar a intimidade, não é? Quem sou é um tema em princípio pobre. Mas agora depende mais de si do que de mim.
Comecemos pelo princípio. Para estarmos sempre entre a obra e o homem, peço-lhe que descreva a casa da sua infância. Que é um modo de perguntar como começou a olhar o espaço.
Ainda era o tempo em que as famílias eram grandes. Havia tias, tios, avó – avô, não –, pais; irmãos, éramos cinco. Era uma casa cheia e com aquele staff importantíssimo: as tias solteiras, que garantiam o funcionamento da casa com enorme dedicação e competência. Tias paternas. Havia uma tia materna, mas essa vivia em Lisboa – o que me proporcionou algumas férias em Lisboa. A primeira vez foi em 1940; o fim era a Exposição do Mundo Português.
O espaço da casa, propriamente, era como?
Era uma série de casas, contínuas, construídas pelo chamado Brasileiro Torna Viagem, que ainda conheci. Na Rua Brito Capelo. Era a rua onde, mais à frente, estava a câmara, as lojas; mas esta zona era só residencial. O brasileiro construiu sete casas; aliás, são conhecidas pelas Sete Casas.
O senhor nasceu em casa?
Sim. Uma casa com uma ala contínua, cave e dois pisos. Não era uma cave: era um piso de pouca altura, onde estavam as lojas, os serviços, uma sala onde se brincava. E com jardim. Uma parte da minha infância tem lugar no jardim, no pátio, com relações muito fortes com a vizinhança. Tudo famílias grandes. Juntávamo-nos no quintal de uma das casas, conforme fosse, e brincávamos aí. Portanto, uma infância feliz.
Quando pensa nessa infância feliz, que episódios é que aparecem?
Ui, deixe ver se me lembro… Mudança marcante: os meus pais deixaram a casa; foi quando nasceu a minha irmã que é 15 anos mais nova do que eu. Já não havia condições para ficar ali, com conforto.
Quantos irmãos são? Como era a família?
O meu irmão mais velho morreu muito jovem. Morreu num acidente. Tinha acabado de se formar em medicina, brilhantemente. Era desportista, jogava basquete. Uma trave, um cesto que caiu, apanhou-o, estava sentado, de costas. Ele tinha 21 anos e eu 19. Era o mais velho; dois anos menos, eu. Depois um irmão que vive ainda em Matosinhos, engenheiro. Uma irmã que é freira, doroteia. E outra irmã que é a Teresa.
Tinha de partilhar o quarto? E como era o quarto?
Na casa da minha avó havia um quarto no piso de cima, onde estávamos eu e o meu irmão mais velho. A minha irmã tinha outro quarto, e quando nasceu a Teresa fomos logo para outra casa. Perto. As refeições eram com 12, 14 pessoas à mesa. O centro da casa era a sala de jantar, que era também sala de estar. Levantava-se a mesa, as pessoas ficavam ali à volta. A tricotar (a minha mãe e as minhas tias). O meu pai, habitualmente, a estudar, a trabalhar. Tinha uma vida muito ocupada. Como tinha de ser para manter a família. Era engenheiro na refinaria de Matosinhos. Mas à noite dava aulas na escola Infante Dom Henrique – desenho de máquinas. E nós, brincávamos.
Brincava a quê?
Eu, desde muito cedo, fazia desenhos ao colo de um tio. Que embora fosse uma negação para o desenho, me instruía e animava essa vontade. Suponho mesmo que criou essa vontade – coisa estranha. A minha mãe era outra negação para o desenho. Quer eu quer o meu irmão mais velho, a [escola] primária, estudámos em casa.
Tinham uma preceptora?
Era uma prima da minha mãe que era professora e que mais tarde foi nossa explicadora de inglês. Morava em frente. Está a ver, era tudo muito relacionado… Atravessa a rua de manhã e dava-nos aulas.
Porque é que os seus pais optaram por não os mandar à escola?
Possivelmente por quererem ter os filhos por perto. Isso colocou-me alguns problemas. Quando fiz o exame da terceira classe, não tinha a mínima noção do que era uma turma, e mesmo do comportamento [que se devia ter. Em casa] chegava a minha professora, beijinho, sentar – sempre na sala de jantar –, o ditado, a cópia, essas coisas. No exame, os meninos levantaram-se todos, eu não. Estranhei, levantaram-se, que é isto? Na quarta classe também aconteceu uma coisa importante: o professor faz-me uma pergunta, um problema de matemática; olhei e muito calmamente disse: “Não se pode fazer”. Na assistência, estavam a minha mãe e a minha professora. Geladas. De súbito, o professor começou a corar. Realmente, o problema era mal dado… Eu não tinha medo nenhum. Depois, estudei no Colégio Brotero, e lá fui ganhando medo e o nervoso. Como me competia!
O tempo começou a contar de maneira diferente a partir do momento em que ganhou medo e nervoso. A infância passou a ser outra.
O tempo que está para trás, como correu bem…
É sem sombra, sem mancha.
Sim, sim.
Até aos oito, nove anos, não sentiu medo? Das coisas em geral, e não apenas das aulas e do professor.
É possível que alguma vez me tenha pegado com vizinhos, mas não me lembro. As crianças eram muito protegidas, a vida era num círculo restrito. A ida para o colégio não foi fácil. Eu não estava habituado ao convívio com pessoas que não eram da relação da minha família. Depois adaptei-me – incluindo o medo.
A mesa de jantar onde tudo se passava era parecida com esta onde estamos, e que é onde trabalha?
Era mais larga, menos comprida.
É fácil imaginar que se reproduzia ali a imagem da Última Ceia. Todos à mesa. A partilhar.
Mas era, era mesmo! Ao lado, havia um quartinho onde estava um divã, uma escrivaninha e, coisa importante, o rádio. O meu pai era um apaixonado pela ópera e transmitiu-me esse gosto. O rádio, ouvia-se muito mal, muitos ruídos e tal, mas ouvíamos. Ouvíamos o Fernando Pessa na BBC. Seguíamos com muito interesse e receio a guerra. Havia exercícios que fazíamos: um que divertiu muito os meninos, que não estavam conscientes dos perigos, foi colar fitas nos vidros e janelas.
Porquê?
Para resistirem, se houvesse bombardeamentos. Fazia-se uma quadrícula com fitas adesivas, que foram distribuídas. Havia exercícios de simulação de um ataque; aviões, navios e submarinos andavam ali muito perto. Foram distribuídas lanternas aos homens que tinham idade de fazer guerra. Uma lanterna que tinha um foco vermelho, um foco verde e um foco branco.
Tem uma memória muito vívida disso.
Aquilo era motivo de divertimento, se o pai emprestava a lanterna. Também me lembro do dia da vitória, em que muita gente foi para a rua, celebrar o fim da guerra! Mas houve pessoas que se zangaram, discussões acaloradas; e gente que estava convencida de que a Alemanha ia ganhar a guerra e que isso seria óptimo. Aquilo dividia-se mais ou menos assim: 50% anglófilos e 50% germanófilos.
As imagens das câmaras de gás, dos seis milhões de judeus e dos 20 milhões de russos não apareceram logo…
Não se sabia. Recebíamos uma revista inglesa que era mandada pela propaganda inglesa, que documentava com fotografias as frentes de combate. Já mais tarde, havia distribuição de intensa propaganda americana. Mandavam chocolates e brinquedos. Outra coisa forte, em relação à família, foi a presença do Brasil.
O seu pai falava muito do Brasil, onde viveu até aos 12 anos?
Falava bastante. Contava-nos histórias do Belém do Pará.
Eram histórias de aventura, de liberdade, de exotismo?
Histórias que davam o ambiente. Falava com muita paixão do Brasil. Falava, por exemplo, dos pássaros pretos – não me lembro de como se chamam – que faziam a limpeza de Belém do Pará.
Urubus?
Sim! Uns pássaros feios. Falava do teatro de ópera, em Manaus. A vida cultural era riquíssima. Contaram-me na Colômbia, (nas duas vezes que fui lá, para seminários na Escola de Arquitectura de Bogotá), que se fazia a viagem a partir de Bogotá, que é a 4000 metros [de altitude], para chegar a uma cidadezinha junto a um rio, afluente do Amazonas. À medida que se vai descendo, é impressionante o aumento de dimensão das folhas das árvores; são enormes quando se chega à cidade. Contaram-me que o Caruso ia de barco até essa cidade e depois ia até Bogotá de burro! Imagine que super-homens eram estes! E chegavam lá e cantavam!
As coisas que o seu pai contava pareciam-se com essas? E alguma vez fez essa viagem?
Fiz, de carro. O meu bisavô, que era fotógrafo profissional, tinha um estúdio em Belém e na Goiânia, onde tinha um sócio inglês. Estive lá há pouco tempo. O estúdio, a casa propriamente, já não existe. Ele deslocava-se entre o Pará e a Goiânia e esteve na Exposição de Chicago [1893]. Descobriu-se a existência de um álbum da cidade com fotografias do meu bisavô. Reeditaram-no há uns anos. Organizaram uma exposição com as fotografias do bisavô e a mim pediram-me para fazer desenhos dos mesmos sítios, hoje.
Foi emocionante fazer isso, indo ao encontro do seu passado, da sua genealogia?
Não fiquei em estado de comoção convulsiva, mas sim, foi emocionante.
Esse encontro com o passado, procura-o? Mesmo em relação ao Caruso: se faz uma viagem dessas, pensa que está a refazer a viagem de alguém que admira?
Bem gostava, mas não tenho nem tempo nem energia para ir de burro do [clima] tropical até à montanha! [risos]
Herdou do seu pai o gosto pela ópera. A última vez que Caruso se apresentou em público foi em Sorrento, no jardim do Hotel Excelsior.
Não sabia. Já fiquei várias nesse hotel, em frente ao mar, com o Vesúvio por perto. Uma maravilha. Estou a fazer um trabalho em Nápoles, juntamente com o Souto Moura. Vou lá para semana. E vou cantar! [risos] Nesse hotel, passou tudo: o Humphrey Bogart, reis…
E o Siza.
[gargalhada]. Não me parece que o carisma seja o mesmo. O Humphrey Bogart, fumando sempre. Recentemente vi num hotel em Londres o Breakfast at Tiffany’s; no filme, todos fumavam, e no hotel era proibido! Uma nuvem de fumo que quase invadia o espaço, mas que ficava no ecrã. Tornou-se um filme sádico, para um fumador.
Porque é que fuma tanto?
Comecei a fumar bastante tarde. Aos 20 anos ou coisa assim. Ninguém falava dos malefícios do tabaco. Era natural o menino, quando começava a crescer, a ganhar buço, fumar. Às escondidas dos pais. As mulheres não fumavam. Nos anos 40 começaram a vir os refugiados da guerra. Alguns ficaram cá, a maioria seguiu para os Estados Unidos. Ficou cá, por exemplo, a Ilse Losa. A Ilse Losa ia ao café: aquilo era um escândalo! Criaram-se modas; começaram a usar-se calças (o que era inadmissível), e o chamado cabelo à refugiada (cortado curto).
Começou a fumar com quem?
Todas as pessoas das minhas relações fumavam, e eu também comecei, Maria vai com as outras.
O cigarro, nos momentos em que está com outros e não pode desenhar, é uma muleta e uma barreira?
Há um problema do uso das mãos ligado a isto. Uma pessoa habitua-se a ter as mãos ocupadas, a empunhar o cigarro. Mas o mais importante é que [fumar] é bom!
Fecha as pálpebras muitas vezes. Li que o António Damásio lhe disse que esse tique deriva da consumo do tabaco.
O Damásio nem hesitou: “Isso é da nicotina”! Mas eu tenho ideia que não é… O meu filho assistiu a um programa na televisão sobre isto. Nos Estados Unidos, um grupo consistente de médicos estudava o fenómeno há anos e não tinha chegado a conclusão nenhuma. Aparentemente é um nervo, louco, que, quando lhe apetece, dá ordem à pálpebra para apertar. Não é a pálpebra que cai, é um espasmo. Às vezes pode durar meia hora, e é fatigante.
Alguma vez teve medo de cegar?
Não. Não. Desde miúdo que sou míope. A descoberta da miopia é outro episódio que não me esquece. Tínhamos uma relação grande com o cinema porque a minha bisavó era proprietária de uma casa onde havia um cinema. A família tinha direito a uma fila, e íamos muitas vezes. (“Os Tambores de Fu Manchu” foi um dos filmes da minha infância). Um dia, esse meu tio apercebeu-se de que eu não estava a entender o filme; talvez por não me rir em determinadas cenas. “Então, não leste as legendas?”. “Não, a esta distância já não se lê”. Chegou a casa e disse ao meu pai: “O miúdo tem problemas de visão”. Tinha oito anos ou coisa assim. Passei a usar óculos.
[Levanta-se e vai à outra sala buscar água; quando vê a fotógrafa à espera, diz-lhe: “Ui, isto ainda vai na infância…”]
“Ui” usa-se muito no Porto… Estávamos na descoberta da sua miopia.
A única coisa que me incomodou é que eu gostava muito de hóquei em patins – isto aos 16 anos. Formámos o Hóquei Clube de Matosinhos. Houve um jogo no Infante Sagres, e, grande emoção, sou convidado para jogar! Juniores. Fiz quatro ou cinco jogos com grande sucesso. Metia golos e tudo. O médico que me acompanhava, sabendo que eu jogava, disse ao meu pai que era perigosíssimo. Proibiu-me de jogar. No domingo seguinte, contrariando as ordens, lá fui. Apareceu a equipa, fulano de tal, fulano de tal, e NN! O meu pai, que desconfiava, chamou-me: “Com que então NN? Livra-te de tornares a fazer isto”.
Quem é que era a figura mais solar e inspiradora na sua vida? O seu pai, o seu irmão, o seu tio?
Todos me marcaram, mas era o meu pai. Era uma pessoa encantadora, tolerante. A vida familiar era muito boa. Durante uns quatro anos, fizemos férias em Espanha. O meu pai nunca teve a carta. Alugava um carro grande, e lá ia a família toda. O meu pai, a minha mãe, e nós; em geral, ia também o tio, esse tio. Andaluzia, Galiza, Costa Brava. Uma das razões [por que íamos] era porque as férias em Espanha eram baratíssimas. Uma peseta valia 50 centavos. Fazíamos férias óptimas, em hotéis bons.
Alugavam um carro com motorista, ficavam em hotéis bons, mas na vida de todos os dias, eram poupados. Ainda não percebi bem o estatuto financeiro da família.
O dinheiro era contado! Mesmo nas férias.
Nesses anos, viu pintura nos grandes museus. O que é que o impressionou?
Vi sobretudo, e muito cedo, museus em Espanha. O Prado em Madrid, o Museu de Arte Antiga em Barcelona. O que me impressionou mais foi Greco e Ticiano. Era mais difícil ver um Picasso ou um Matisse. Não me lembro de ver Picasso num museu espanhol. Eu ia mergulhando mais e mais no desenho. Os presentes: para mim, era sempre um livrinho da colecção Le Maître, com todos os pintores; no Natal era um, nos anos outro. Ainda tenho esses livros. Reproduções péssimas, a preto e branco.
Olhando para o seu percurso e para a tendência para o desenho, seria fácil pensar em si como um pintor.
Quis ser escultor. Muito cedo fiz coisas em barro. Mas o meu pai achava que ir para escultura seria uma desgraça. Ligava-se ainda a vida do escultor à boémia, à miséria. Persuadiu-me a não ir. O meu pai não era pessoa com quem apetecesse alguém zangar-se. De maneira que o meu plano foi ir para as Belas Artes, onde havia o curso de arquitectura. (Já era um curso mais ou menos aceite). E depois, sub-repticiamente, sem conflito, mudar.
Mas não mudou. O que é que o fez ficar?
Apanhei um período da Escola de Belas Artes interessantíssimo. Tinha que ver com uma relativa abertura a que Portugal foi obrigado. Já não havia Hitler nem Mussolini… Sobretudo, entrou como professor e depois como director o Mestre Carlos Ramos. Criou uma equipa de gente muito nova, de grande qualidade e com um interesse grande pela modernidade. Era também professor um dos membros portugueses do CIAM [Congresso Internacional de Arquitectura Moderna], o Fernando Távora. Ia às reuniões do CIAM e trazia informação à “família”. Trouxe a contemporaneidade. Começaram a aparecer revistas do Japão, de Inglaterra.
As suas notas biográficas falam de um primeiro interesse pela arquitectura: quando viu Gaudì.
Numa dessas viagens [com o meu pai] vi as obras do Gaudì. Mas o meu desinteresse era tão grande que a primeira crítica que me fez o Mestre Carlos Ramos, que andava pelos estiradores a ver o trabalho, foi: “Você, vê-se que não tem nenhuma informação sobre arquitectura. Tem que comprar umas revistas e adquirir informação”. E, de facto, fui, sempre com o meu pai, comprar quatro “Architecture Aujourd’hui”, que era a única revista que chegava. Apanhei por sorte dois números monográficos. Um sobre o Gropius, director da Bauhaus, que conhecia porque o Carlos Ramos era bauhausiano). Mas o outro não: era o Alvar Aalto. Entusiasmou-me muitíssimo. Era uma coisa fresca, nova em relação aos modelos anteriores, óptimos também, cuja figura dominante era o Corbusier.
Insisto na pergunta: por que é que não quis ser pintor se desenhar lhe era tão essencial? E porque é que acha que foi mais tocado por ter visto uma obra do Gaudì do que um quadro do El Greco?
O meu pai preparava as viagens, arranjava uns livros. “Vamos ver isto e isto”. E quando vi imagens do Gaudì, alto: “Isto interessa-me. Parece escultura”. Visitei quase todas as obras em Barcelona e apercebi-me que aquilo que para mim era escultura era feito com portas, punhos de porta, rodapés… Aquilo tinha tudo o que tinha a minha casa. Simplesmente era a cantar. Tudo relacionado. Tive um baque pela arquitectura. Mas passou. Passou porque estava interessado na escultura e na pintura.
Confrontou-se com aquilo para que tinha talento? Com as suas limitações?
Não me punha o problema de ter talento ou não. Gostava de – era tudo. Em arquitectura era um aluno fraquinho. Julgo que isso se devia à carência de informação. E, no fundo, no fundo, à contrariedade por não ter seguido para a escultura e ter ficado na arquitectura. Eu tinha notas muito fraquinhas e achava que era muito fraquinho.
Como é que se inverteu isso?
Já no quarto ano, o Fernando Távora foi meu professor. Foi ele que me reconheceu qualidades. E demorava-se na crítica. Mais tarde convidou-me para trabalhar com ele. O ego subiu um bocado, porque pelo Fernando Távora havia uma admiração enorme! Que diabo, se ele me chama…
Em casa, e de si para si, havia a pressão da excelência? De ter de ter medalhas. De ser extraordinário.
Não nesse sentido. Mas havia uma exigência. Era uma questão de educação. O meu irmão mais velho foi um aluno brilhante, o mais novo (o engenheiro) foi óptimo, eu próprio, no liceu, fui muito bom, a minha irmã também; a outra irmã era boa aluna, mas sentiu aquela vocação… Foi um grande drama na família.
Que relação tinham em casa com a religião?
A minha mãe e as minhas tias eram quase de missa diária. E no entanto, quando a minha irmã decidiu isso e o anunciou à família, caiu Tróia! Falaram-me para a convencer a não ir para freira!
Tinha ascendente sobre ela?
Tínhamos uma relação muito boa. “Mas como é que vou fazer uma coisa dessas? Isso é um problema dela, se quer ir – e quer”. Cá por dentro pensava: “Como é que estas pessoas tão religiosas não aceitam que ela vá?”. Alguém que ia para freira era como uma pessoa que ia para longe, que ia desaparecer.
Na sua arquitectura podemos encontrar sinais de espiritualidade e mesmo religiosidade? Há uma relação entre isso e essa casa onde as mulheres eram praticamente de missa diária?
Quando fiz a igreja no Marco de Canavezes, foi muito difícil ser-me entregue esse trabalho. A hierarquia dizia que eu era ateu e que não podia fazer uma igreja. Fez-se porque o padre Nuno Higino se empenhou nisso a fundo. Julgo que ter-se sabido, a dada altura, que tenho uma irmã freira deve ter ajudado…
Não importava nada a sua consagração internacional. Importou a circunstância de ter uma irmã freira…
[gargalhada] Quando foi a inauguração, lembro-me de jornalistas me perguntarem: “Você é um homem ateu e faz uma igreja?”. “Mas quem lhe disse que sou ateu? Nunca disse a ninguém se sou se não sou. Nem digo!” E agora digo-lhe o mesmo a si! Bom, há qualquer coisa que se pode chamar de religiosidade em toda a arquitectura. Religiosidade no sentido de atmosfera, conforto, ligação com tudo. A arquitectura tem isso, independentemente se ser uma igreja. Não esquecer que uma casa é um abrigo, um lugar de intimidade e recolhimento. A uma igreja chama-se a casa de deus. É inerente à arquitectura essa componente de silêncio, de protecção, de comunidade.
Comunidade numa igreja ou numa casa.
Sim. A família é uma comunidade que se vai reduzindo cada vez mais. Já há muita gente a viver sozinha. Eu, por exemplo. Para mim, projectar uma igreja não foi diferente de projectar uma casa. Tem as suas exigências próprias e a sua atmosfera.
Subjacente à minha perguntava estava o seguinte: como é que a sua personalidade e vivências aparecem naquilo que projecta?
Seguramente que aparece, quer um seja arquitecto ou médico. Mas não é um consciente fio condutor. É qualquer coisa que se projecta de nós, mas não é um propósito.
Vamos a um exemplo: este facto marcante na sua vida, de a sala de jantar coincidir com a sala de estar e esse ser o espaço onde tudo acontecia; se olhar para a sua obra, consegue perceber um traço disto, uma projecção disto?
Não, não consigo. Mas admito que exista. Se vivi isso, muita coisa ficou e aparece sem que eu tenha consciência. No exercício da arquitectura há muita coisa que vem do subconsciente. Coisas que fazem parte de nós e que conduzem uma pesquisa em determinado sentido. A nossa mente é um armazém de tanto mais capacidade quanto mais for usado. No caso de um arquitecto, a formação baseia-se no aumento da informação, no aumento do que se vê, se estuda.
E o que se vê são cidades, filmes, quadros, pessoas…
Literatura, música, tudo! A literatura está tão ligada à música, à escultura e à pintura, ao ballet… No meu tempo, começava-se pela fixação numa pessoa e numa obra. Depois começa-se a conhecer mais isto e mais aquilo, a alargar. A certa altura já não estamos a copiar isto ou aquilo; temos tanta informação que ela já faz parte de nós. Vem quando é preciso. Vem porque faz parte.
Se fala de inconsciente, pergunto-lhe pelos seus sonhos. É capaz de desenhar sonhos?
Acontece-me sonhar com o problema em que estou embrenhado e com a solução; a maior parte das vezes são disparates, mas às vezes trazem uma ponta de solução. Lembro-me de um sonho em technicolor fantástico. Tem que ver com essa… como se chama a água do mar que invade a terra?, esse desastre tremendo?
Tsunami.
Exactamente. Eu estava em Vila do Conde, na rua à saída da ponte antiga. Olho para trás e não era o rio que estava lá, era o mar. O mar ergueu-se, e começou toda a gente a correr, amigos e amigas a subir a rampa. De repente apareceu um autocarro amarelo, que se atravessa na rua. E fica-se ali empancado, em terror.
Estava completamente encalacrado: entre a onda do mar e o autocarro amarelo.
Pode ter que ver com um espectáculo a que antes tinha assistido: um navio que encalhou no Castelo do Queijo e que se incendiou. Eu ia a passar de carro na avenida da Boavista e vi as chamas. Foi angustiante. Nessa altura somos auxiliados: acordamos. Julgo que me impressionou o sonho, formalmente, pela cor.
Vi desenhos seus. Em dois deles, auto-retratos, estava a cavalo e parecia o Dom Quixote. Num estava com uma espécie de punhal, no outro a mão fingia que segurava uma arma que não existia. Num deles o corpo estava nu, e havia nele uma certa sensualidade e impetuosidade.
Lembro-me desse desenho. É que tenho um amigo que anda muito bem a cavalo, e eu sou uma desgraça. Às vezes recebo piadas… Uma das reacções a essas piadas foi o desenho, eu e o cavalo, em glória!
O desenho como sublimação? Gostava de ter uma maior destreza física? Olhando para si, para a sua figura, não é uma criatura eminentemente física.
Não sou. Ainda joguei durante um tempo ténis (não havia perigo). Fiz ginástica. Depois parei com tudo. A prática do arquitecto não é muito saudável. Passamos uma parte da vida debruçados num desenho.
Noutro desenho aparece implicado no que se vê. Vê-se a cena que desenha e a sua mão a desenhar aquela cena.
Uma vez o arquitecto Távora falou-me de um desenho do paladium em que aparece a mão. “Você copiou isto?”. “Não, nem conhecia o desenho”. Mas se calhar vi-o. O desenhar, para um amador como eu, descontrai. Descontrai do trabalho do arquitecto, que é de grande concentração e exigência. O Alvar Aalto, que pintava, dizia que no desenvolvimento de um projecto, às vezes, havia um bloqueio; estava encravado. Deixava tudo e ia para casa pintar ou desenhar, sem pensar naquele problema. Às vezes, no que estava a fazer, vinha a ponta da meada da solução. Portanto, há uma conquista de espontaneidade e intuição que complementa o trabalho racional.
É uma pessoa intuitiva?
Inventiva, de certeza que não. No meu trabalho conta pouco a preocupação de inventar qualquer coisa nova. Está mais ligado à história das coisas. Por exemplo, se desenho uma cadeira gosto que uma cadeira pareça uma cadeira.
Gosta da familiaridade das formas, é isso?
Se desenho uma retrete, gosto que pareça uma retrete. Há retretes quadradas, cúbicas; acho que não é natural, não é a forma do corpo.
Porque é que sendo tão sensível ao que é familiar é tão desligado da casa onde vive? Não viveu nunca casa projectada por si.
Devo ser um péssimo cliente!
Viveu a vida quase toda num apartamento da Rua da Alegria, que era a casa onde viveu com a sua mulher e os seus filhos.
Vivi lá para aí 40 anos. Só recentemente mudei. Porque mudei o escritório para aqui, onde estou com vários amigos. Achei que tinha de arranjar uma casa perto. Surgiu esta possibilidade, uma casa feita pelo Souto Moura, e comprei-a.
Souto Moura, de quem é amigo íntimo, vive no mesmo prédio. Como na sua infância, os próximos vivem todos perto uns dos outros.
Não é bem a mesma coisa. Às vezes passa uma semana que não o vejo!
Atendendo à sua vida pensei que ia dizer que se passava um mês sem o ver.
Não, isso não.
O que é que sentiu quando saiu da casa da Rua da Alegria?
Um enorme incómodo. Mudar de casa é uma das coisas terríficas da existência. Vamos acumulando coisas, a maior parte das quais não serve para nada. É muito difícil na hora de mudar, que é a oportunidade de dispensar todas as coisas inúteis, a gente desprender-se. Há coisas que tenho no armazém [do escritório], que não me interessa nada ter. Mas não consigo dar ou deitar fora. Há um agarramento grande. Há uma longa história que é difícil abandonar. É muito doloroso. Talvez por isso nunca fiz uma casa para mim. E também por dificuldades económicas. Até aos anos 80, a vida era difícil, era controladíssima.
Está a dizer que também fez as contas que se faziam na casa dos seus pais?
Ah, claro. Depois comecei a ter mais trabalho, e trabalho fora, e agora não me posso queixar de ter dificuldades económicas. Vivo confortavelmente.
A sua vida parece uma fuga para a frente. Por causa da velocidade a que vive, viaja, projecta, faz conferências, visita obras, recebe prémios. O que é que o faz correr? E porque é que está sempre a correr?
É difícil escapar a tantas solicitações. Tento limitar o mais possível workshops, conferências. Mas há muitos casos em que não é possível dizer não. Mas toda essa actividade: acabo por gostar!
Há lendas a seu respeito: como a de ser um misantropo. Que vive a trabalhar e para trabalhar. Como se só existisse a sua obra.
Aqui, salvo as saídas, convivo todos os dias com 26 pessoas. Se fosse misantropo ser-me-ia insuportável a vida que levo. E tenho amigos, família. À noite fico em casa; televisão, copo de uísque. Outras vezes, estou com amigos.
Também dizem que é triste.
Muito riso pouco siso! [risos]
E dizem que o ícone consumiu a sua vida particular. Que já só é o grande arquitecto Siza.
Ou o horrível arquitecto Siza! – há quem diga.
Isso incomoda-o?
Não me incomoda profundamente, mas incomoda-me que essas lendas criem dificuldades. Como que deito árvores abaixo, que faço tudo branco, ou cinzento. Pode haver projectos que não se desenvolvem porque há campanhas contra. Juízos de valor: nem me incomoda nem deixa de incomodar.
Em algum momento foi inseguro?
Sou muitas vezes inseguro. Ainda sou. O arranque de um trabalho…, há sempre uma componente de medo.
Que medo? Medo que não seja uma coisa extraordinária?
Não. Medo de não fazer aquilo para que sou chamado – que é fazer bem. A insegurança é em grande medida o motor do pensamento, da pesquisa. Não encaro a insegurança como uma fraqueza, mas com um sentido de responsabilidade. Estar completamente seguro? Só quem estiver na ilusão e inconsciência.
Contaram-me que um dia, visitando uma obra, começou a matutar e disse: “Isto não está bem”. O seu interlocutor ficou atrapalhado e pegou nos papéis para saber se tinham executado mal. Mas concluiu que o que estava a dizer era que tinha pensado mal, antevisto mal. Ora, isto surpreende porque olhando para as suas obras, parece que já nascem perfeitas, acabadas. Gostava de saber como lida com o seu erro.
Procurando corrigi-lo – o que nem sempre é possível. O desenvolvimento seja do que for passa pela detecção de erros. O que leva ao aperfeiçoamento.
Olhamos para o seu currículo e é uma sucessão assombrosa de prémios e obras. A sua cronologia pessoal é engolida por isso. Que cicatriz é que acha que deixa? Quando falarem no Siza Vieira daqui a 50 anos, que é que pensa que dirão?
Se calhar já nem se fala de Siza Vieira. Não nos podemos preocupar com isso. Para mim o que conta na obra de um arquitecto é a arquitectura que faz. Os prémios são muito agradáveis se vêm; mas são circunstâncias. O prémio depende de um júri, que pode ser maioritariamente de certa tendência ou de outra. Enche a pessoa de satisfação, orgulho e tal, mas não é um facto extraordinário.
Acha que pode não ficar na história da arquitectura?
A história da arquitectura não depende dos prémios. Pode haver transformação de conceitos que tornam irrelevantes esses prémios.
Mas passados 50 anos, continua a falar do Gropius e do Alvar Aalto. Não acha provável que daqui a 50 anos as pessoas vão ao Marco ver a sua igreja como se vai a Viena ver as obras do Otto Wagner?
Uma das questões que se levanta é: como estará a igreja do Marco daqui a 50 anos? Toda a obra do Alvar Aalvo está, na Finlândia, impecável. Eu tenho obras que estão irreconhecíveis. Depende do meio em que viveu e como evoluiu. Há obras enormes que desapareceram. Uma obra celebrada, como era o hotel no Japão do Frank Lloyd Wright, foi demolido!
Estou também a perguntar como lida com a ideia da morte, com o que fica de si depois dela.
O grande poeta Gomes Ferreira: perguntaram-lhe sobre a relação com a morte. “Não me importo nada. Mas na horinha vai ser uma grande vergonha.” O que está implícito é que na horinha vai ter medo… O que me incomoda é a ideia de ficar imobilizado, de ser uma carga para alguém, num estado lamentável. Agora há esse debate sobre a eutanásia: eu preferiria, se estivesse numa vida vegetal, que não fossem utilizados meios para prolongar uma situação que, já não é de agonia: é de inconsciência.
A questão é: o que é para si existir?
É existir em consciência. Senão, não é. Agora morrer?, morremos todos. Você está aí, fresca, no máximo da forma, mas também vai morrer… É desagradável, mas não há outra possibilidade. Não há outro futuro.
Publicada originalmente na Revista Pública, em Abril de 2009