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Anabela Mota Ribeiro

Lee Miller

02.11.24

Um puzzle de peças irregulares, que não encaixam umas nas outras. Nem na forma, nem no desenho. Era o que Lee Miller era. Era, pelo menos, assim que se definia. As peças: a modelo de vestido drapeado, que encarna a sofisticação das personagens de Fitzgerald. Antes disso, a adolescente que posa para a câmara do pai, nua, como uma escultura romana. A musa do movimento Surrealista de Paris. Amante e pupila de Man Ray. A americana que casa com um egípcio de boas famílias e regista o deserto numa roleiflex. A fotógrafa incansável da Vogue inglesa. A amiga de Picasso, e Éluard, e tudo o que é gente. A retratista de Marlene Dietricht, Fred Astaire, e tudo o que é gente. A correspondente de guerra que acompanha o Blitz, noite após noite, e que segue para a Normandia de uniforme americano. A provocadora que se faz fotografar na banheira de Hitler, no fim da guerra. A mulher alcoólica, a mãe disruptiva. A sobrevivente. A independente. Criação genial de si própria. Bela como uma estátua de Canova. Andrógina, quando ainda não se usava a palavra. Lee Miller foi um ser livre. Nasceu há cem anos, morreu há 30.

Quando, por fim, ela começou a escrever o seu tom era este: “E amaldiçoei os alemães pela sórdida e horrível destruição que fizeram nesta cidade, em tempos bela. Pergunto-me onde estão os meus amigos, quantos foram forçados à deslealdade, à degradação. Quantos foram fuzilados, morreram esfomeados, ou assim”. Ou assim. O mal, o horror, o que não tem nome. Coisas assim que acontecem em período de guerra. Coisas que ela via enquanto avançava por entre um mundo em decomposição. Cadáveres. Escombros. Prédios esventrados. Há uma fotografia que ilustra essa desolação: uma máquina de escrever esmagada – uma Remington “silenciada”. Expressão de um mundo onde não cabem as palavras, ou onde elas deixaram de fazer sentido. Neste caso, as palavras e as imagens são peças do mesmo puzzle. São exactas, sóbrias, cruas. Isentas de sentimentalismo. Como aquela outra, da filha do burgomestre de Leipzig, que se suicidou sobre o sofá de couro. Um couro bom. Um anjo, de cara branca e cabelo louro; e uma braçadeira nazi na manga do casaco. Um anjo que preferiu a morte no momento da derrota.

Lee Miller também fotografou as carcaças de judeus famintos, os destroços dos campos de Buchenwald e Dachau. Mas nenhuma fotografia ficou tão famosa quanto aquela que foi tirada no apartamento de Hitler. O autor é David Scherman, que acompanhava Lee. O cenário é o da “banalidade do Mal”, para usar a expressão da filósofa Hanna Arendt, citada no catálogo da exposição que o Victoria and Albert Museum lhe dedicou recentemente. António Barreto tem um print dessa imagem.   

“A compra da fotografia dela na banheira foi um “golpe de sorte”. Sou associado da “Photographers’ Gallery”, em Londres. Numa das muitas correspondências que mandam, vinha anunciada uma venda de meia dúzia de impressões dessa fotografia, feitas de propósito pelo filho (Antony Penrose), proprietário do seu “estate”. Não era muito cara. Mas é uma fotografia “maluca”, como a própria Lee. Já a tinha visto nos livros sobre ela.

O tema é muito estranho! Trazer a sua beleza e o banho para os aposentos privados do Hitler, nos momentos finais da guerra, só podia lembrar a um espírito livre, inconformista e iconoclasta. A fotografia do “monstro”, colocada à beira da banheira, está ali para “fazer prova” e acrescenta uma nota insólita e inesperada a esta cena aparentemente banal. A imagem não é, estética ou tecnicamente, nada de especial. Mas a rotina de um banho, a beleza da Lee e a sua nudez presumida combinam paradoxalmente com as botas e o uniforme do exército, assim como com a fotografia do “diabo”.

Dias antes de esta fotografia ter sido feita, Lee e Dave tinham visitado Dachau, fotografado e descoberto as valas comuns e os prisioneiros moribundos. Este banho tem qualquer coisa de purificador, mesmo se tomado na banheira do “bárbaro”.

Esta casa de banho não é a do “bunker” de Berlim, como tantas vezes se diz. É da casa “oficial” de Hitler em Munique”.

Quando regressou a Inglaterra, depois da Guerra, Lee vinha exaurida. A cara sulcada, o corpo fatigado. Engravidou no ano seguinte, perto dos 40 anos. Retirou-se para o country side, viveu numa quinta onde se esmerou na culinária e recebeu amigos – deste período, destacam-se duas imagens: uma do pintor surrealista Max Ernst a remexer na terra e outra de Picasso com o pequeno Penrose no colo.

Não era a mesma. E se é verdade que todos mudaram nesses anos lancinantes da Segunda Guerra, no caso de Lee Miller a diferença é abissal. Seria a mesma, a do auto-retrato para a Vogue americana, aveludado e sedutor, e a que fotografa St. Malo? Seria a mesma aquela que descobre o efeito “solarized picture”, com Man Ray, e aquela que enquadra a sombra opressiva da pirâmide do Egipto? Lee Miller viveu uma vida que hoje não seria possível. Viveu, na verdade, várias vidas. E como ela diz, as peças do puzzle nem sempre encaixam. Não?

Vamos ao essencial da história: Lee nasceu numa pequena cidade do estado de Nova Iorque em 1907. Tinha dois irmãos com os quais brincou aos rapazes. A sua androginia talvez radique aí. Ou mesmo o nome. Elizabeth começou por ser Li-Li, e só depois adoptou o Lee. Uma história marcou-lhe a infância e, pela sua força, toda a vida: um abuso sexual por alguém próximo da família. Era uma criança como as outras, aquela que aparece na fotografia dos sete anos. E contudo, já calava um acontecimento brutal. A cicatriz acompanhou-a sempre. Primeiro, sob a forma de gonorreia. Depois, no modo como lidou com o masculino/feminino e como viveu o amor e o sexo – coisas separadas, peças soltas.

Familiarizou-se com a fotografia em casa – o pai era um amateur apaixonado. Impudicamente posou para ele, nua, semi nua, bela. Aprendeu a revelar e a manipular as imagens no quarto escuro. Tinha um interesse inesperado pela mecânica das coisas. Como um engenheiro que se interessa pelo funcionamento de um carro. Ao mesmo tempo, moldou-se no cinema e no teatro, instalou-se em Nova Iorque, foi literalmente apanhada na rua por Condé Nast com quem esbarrou num cruzamento e que reconheceu nela “o look do momento”.

Começou por ser modelo, mudou-se para Paris. Apresentou-se a Man Ray dizendo que era “a sua nova assistente”. Foi. Foram amantes. Houve entre os dois aquilo a que se chama uma colaboração profícua. Ela descobriu acidentalmente o efeito da solarização das imagens, ele investiu nesse artifício e legou algumas das fotografias mais marcantes da história do século XX. O perfil de Lee, com esse efeito “saturado”, próprio das solarized pictures, é um dos exemplos. 

Nesses anos de Paris, deu-se com os Surrealistas, foi uma igual. Fotografou. Também fotografou para revistas de moda. Vestidos e chapéus. Chaplin sem bigode. Criou imagens que inspiraram Dali, Buñuel ou Magritte. Fotografou as costas de uma mulher como se fossem um falo. Fotografou uma cena macabra: um seio mastectomizado num prato, pronto a comer. Quando regressou a Nova Iorque, findo o romance com Man Ray, levou consigo uma escola, um pedaço da Europa, um mundo novo.

Abriu um atelier com o irmão, fotografou frascos de perfume à la surrealista. Casou com um egípcio e foi viver com ele para o Cairo. Viajou. Sentiu claustrofobia. Voltou à Europa por uma temporada, apaixonou-se pelo pintor e galerista Roland Penrose. Viveu com ele até ao fim dos seus dias. Pelo meio, Scherman, que a fotografou na banheira de Hitler, viveu com o casal, num saudável ménage à trois.  

Conquistou um lugar na Vogue impondo a sua presença. Ou seja, plantou-se na revista para fazer o que fosse preciso. Até que perceberam que não podiam viver sem ela. Transformou-se na mais empenhada colaboradora da edição inglesa. Quando outros (como Cecil Beaton, seu rival…) publicavam quatro imagens por número, ela publicava 14! Lembrou-se de que era cidadã americana e que podia seguir com “as suas tropas” para a França ocupada. Fez relatos únicos do que lá viu. Fotográficos, e depois também escritos. Regressou a casa. Morreu em Sussex em 1977. Viveu intensamente cada uma das suas vidas.

As peças do puzzle: na forma e no desenho não encaixam umas nas outras. Mas são feitas da mesma matéria: talento, força, beleza, crueza. E liberdade.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2007