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Anabela Mota Ribeiro

Pedro Mexia

16.06.24

Pedro Mexia já não é aquele que adopta o verso de Camões “Foi-me tão cedo a luz do dia escura” como primeira linha de um auto-retrato. O poema vai para 20 anos. Entretanto acabou o curso de Direito (alguém o imagina num escritório?), apresentou nos blogues o personagem Pedro Mexia (o público não compreende porque razão é auto-depreciativo), passou a escrever nos jornais crónicas e crítica literária. Às vezes, também confissões sobre o medo e a angústia. Edita em Menos por Menos cem poemas escolhidos dos seis livros de poesia que lançou até ao momento. O primeiro é de 1999, o último de 2007. Ele acha que ninguém os leu.

  

Quando é que começou a envelhecer?

Não me lembro de ser novo. Não tenho nenhuma memória de me sentir na força da vida, ou no vigor da idade, ou nos anos dourados. Mesmo quando era adolescente. Nesse sentido, sempre fui bastante velho. Já fui mais velho do que sou hoje. Sobretudo porque não tinha sentido de humor. Ou, pelo menos, hoje acho que não tinha sentido de humor. Isso ajudava a que fosse mais pesada a minha maneira de viver as coisas. Ter ganho uma maior ironia e humor atenuou isso.

 

E cria uma certa distância, uma membrana.

Sim. Isso não aconteceu por uma razão estritamente voluntária. Tem a ver com os autores que leio, os de língua inglesa, e os ingleses em particular, nos quais a auto-ironia – um elemento não-óbvio na cultura portuguesa – está muito presente. Senti isso como muito natural para mim, para o meu discurso. Coincide com o momento em que comecei a escrever crónicas e o blogue, 2002. Essa dimensão irónica é sucessivamente referida e colada a mim, e bem. Eu era seriíssimo no pior sentido da palavra quando tinha 20 anos.

 

Levava-se muito a sério?

Não era tanto levar-me muito a sério. Era levar as coisas muito a sério. Era tudo muito pesado.

 

Há em alguns poemas um fundo nostálgico. Em especial quando faz uma dissecação dos retratos de família, de memórias. Identifica-se e incorpora-se nesses retratos, como se fosse também aqueles que evoca. Existiu um tempo em que se sentiu o menino desta cadeia familiar?

Há um livro que acho importante no percurso desses seis livros; hesito em dizer se é o melhor ou não, nem me cabe a mim dizê-lo. Chama-se Em Memória (2000). Concentra os poemas sobre a família e sobre a memória, enquanto mecanismo, identidade. Foram escritos depois da morte da minha avó, em 1993. São, portanto, muito anteriores à publicação. Significou uma espécie de apocalipse familiar. Era na casa dos meus avós – o meu avô já tinha morrido – que a família se reunia no Natal, na Páscoa, essas coisas. A morte da minha avó acabou por desencadear uma reflexão sobre a família e o deslaçamento que poderia daí [resultar].

Eu estou sempre no retrato. Embora não tenha muitas memórias de infância, (aliás, tenho muito má memória), tive uma infância muito feliz e um começo de adolescência bastante feliz. Esses anos familiares, vejo-os com nostalgia. A perda iminente dessa correia, desse legado foi traumática. Alguns poemas são até violentos. Depois não aconteceu exactamente assim. As relações mudam de natureza, as pessoas encontram formas de relacionamento diferentes.

 

Esse tempo da infância e do começo da adolescência parece ser anterior à cicatriz. Nesse tempo era novo.

Era criança. Eu fui criança. Não tenho é noção de ter sido jovem. Saltei de criança para velho muito rapidamente. Não velho. Mas mais velho do que sou. Nesses anos, as minhas memórias são boas e não creio que sentisse um desfasamento [em relação à minha idade]. Continuo a ser uma pessoa introvertida, pouco social, et cetera. Já era na altura. Claro que não formulava as coisas nestes termos, mas apesar de tudo estava mais integrado.

 

Não havia nem medo nem angústia, que são palavras recorrentes do seu discurso. E palavras essenciais numa das suas autoras de eleição, Agustina. Não por acaso organizou e prefaciou os ensaios de Contemplação Carinhosa da Angústia. Um dos aforismos mais famosos de Agustina: “Nasci adulta, morrerei criança”. Parece fazer o movimento contrário…

Que é o movimento natural da espécie. Não é um movimento unívoco. Em três ou quatro momento sinto que me tornei mais velho ou mais novo do que era antes. O livro não tem nenhum poema posterior a 2007. Há um hiato sobre o qual não escrevi. Isto não interessa nada ao leitor. Interessa-me a mim, enquanto organização, até mental, da minha vida através dos poemas. O livro acompanha este percurso. Não de uma forma cronológica. Progride por avanços e recuos.

 

No poema Avó Leonor, há versos sobre ela: “… sabendo tudo, sofrendo tudo, como se fosse um alimento. (…) … Essa mistura de uma aceitação cristã, de uma nobreza que não mostra o que vai na alma”. E isto: “um coração atento e em tumulto”. Podiam ser sobre si?

Não sei bem. Haverá similitudes. A minha avó é retratada com fidelidade como uma pessoa muito reservada, fechada. Eu sou muito reservado e fechado pessoalmente, mas no que escrevo sou muito confessional. 

 

Mas esse não é o personagem Pedro Mexia, que criou, e que lhe permite relacionar-se com muitos?

As regras que valem para as relações sociais não valem necessariamente para a escrita daquilo que presumo ser literatura. E assim como dificilmente teria conversas íntimas com alguém que não fosse do meu círculo de amigos mais próximo, na literatura, naquilo a que insisto em chamar literatura – boa ou má – é o contrário. Não escrever de forma intimista seria batota em relação ao que me interessa na escrita. Interessa-me falar do medo e da angústia. Não só, mas para pegar nessas duas palavras. O único cuidado que é preciso é eliminar tudo aquilo que possa ser informativo e que constitua bisbilhotice. Por respeito pelas pessoas sobre as quais se escreve. Mesmo as coisas obscenamente pessoais que escrevi, ninguém, ao ler aquilo, saberá sobre quem é. Não há nenhuma razão para que as regras [a observar na vida social e na escrita] sejam as mesmas. Daí tanta gente ficar surpreendida, perplexa, quando encontra um escritor que é muito diferente daquilo que ele escreveu. Isso é, para mim, uma ideia banal.

 

Mas há um personagem Pedro Mexia.

Se não criarmos algo que se pareça com um personagem quando somos figuras públicas, quando escrevemos no espaço público, somos devorados. Não podemos ser 100% nós mesmos. Há um fenómeno de distanciação. É verdade que nos emails que recebo, as pessoas (amigos e desconhecidos), sentem-se incomodadas com a possibilidade de aquilo poder não ser uma personagem. Por exemplo, incomoda muito que escreva recorrentemente sobre o tema do fracasso. Também para essas pessoas, é mais confortável dizer que é ficção, que é um boneco. Eu não me sinto obrigado a dizer o que é ficção e o que não é.

 

É uma das regras da literatura.

É. Outra coisa que incomodava muito as pessoas (agora nem tanto, mas quando escrevia crónicas mais pessoais) era o tom auto-depreciativo. É um género de que gosto muito.

 

Há imensas coisas que diz de si próprio no livro, ou que julgamos que são de si, que não são propriamente abonatórias. “Destroço”. Fala sobre o seu corpo num poema que tem por título Ferro-Velho. Num dos primeiros poemas fala de um tronco decepado; a seguir não sabemos se o tronco vai ser usado como jangada ou caixão. Nesta fase, há muitos poemas com referência a árvores.

Nos poemas familiares, as árvores representam o campo. Mesmo na experiência urbana, a mim, que não sou um amante da natureza, as árvores tendem a chamar a atenção. Tenho que ir ler o dicionário de símbolos quando chegar a casa. Nesse poema, não pensei nisso. O poema nasceu da experiência concreta de ver uma árvore a ser transplantada para o contexto urbano. Claro que pode ter todas as leituras alegóricas, mas não diria que se trata do corpo.

 

Do seu corpo. De um “imenso totem decepado”, como está em Sinal.

Admito a leitura, mas nunca pensei nisso dessa maneira. Como em todos os poemas: a distância entre a intenção que se teve ao escrevê-lo e a leitura possível é enorme.

 

Isto a propósito das coisas auto-depreciativas que diz de si nos poemas.

Nos poemas também? Mais nas crónicas e nos blogues. 

 

Nos poemas aparece uma auto-contemplação desesperançada, rasgada. Menos irónica e mais sofrida.

Sim. Por razões que não sei exactamente explicar, e que admito que tenha a ver com uma certa (a palavra é má…) sacralização da poesia, refreio-me mais no uso da ironia. Embora exista uma espécie de ironia, muito contida, nalguns poemas. Alguns poemas, pela situação que descrevem ou encenam, são mais densos, mais trágicos. No livro sobre Lisboa (Eliot e Outras Observações, 2003) há mais anotações irónicas sobre a cidade e os comportamentos.

 

Há dois poemas terríveis, sem sombra de ironia, no livro de 2007, Senhor Fantasma. O Auto-retrato com Versos de Camões e A Esperança entre as Urtigas. O título do segundo já diz quase tudo.

São poemas do começo dos anos 90, recuperados no livro de 2007. O excesso de pathos cria um efeito contrário ao que se pretende, poeticamente não é interessante. Mas nalguns momentos não há como fugir-lhe. Não há ironia nenhuma no livro Avalanche (2001), o dos poemas de amor. São poemas mais ou menos escritos em directo. Não tinham aquela coisa que o Wordsworth recomendava: as emoções recordadas na tranquilidade. Talvez seja a maneira ideal de escrever poesia. O investimento biográfico estraga os poemas. Tenho a noção de que há poemas que considero muito importantes mas que não são interessantes, em termos de objecto verbal. Quando se escreve sobre acontecimentos – o Drummond de Andrade recomendava que não se escrevesse sobre acontecimentos – a distância protege, do ponto de vista literário. Os poemas do Avalanche são o contrário do Em Memória. São escritos no momento.    

 

Ainda o incómodo que os leitores sentem quando faz comentários auto-depreciativos, ou escreve sobre o fracasso…

Mas esse incómodo é em relação à prosa. A poesia, ninguém leu.

 

A audiência do Pedro Mexia-cronista fica de fora da poesia?

Completamente. Não é por ser eu. Muito pouca gente lê poesia. Há muita gente que segue o que escrevo e que sabe vagamente que escrevo poesia. Esta selecção é publicada, em parte, porque dos seis livros que a compõem, quatro são praticamente impossíveis de encontrar. Mas tenho a noção que, de tudo o que fiz, é o mais obscuro.

 

Fala do “amor intransitivo e inconfessável”. Parece uma condição dos seus amores.

É uma expressão oxímora. Os poemas do Avalanche são bastante transitivos e confessáveis! [riso]

 

É um verso do poema Bad Songs.

É sobre as paixonetas do liceu, que não são nada, não têm sequer espessura. Puras fantasias. Intransitivos e inconfessáveis, sim. Ao contrário dos poemas da família, que incluem um grande elenco, e dos da cidade, que incluem desconhecidos, nos poemas do Avalanche só existem duas pessoas. Uma coisa reincidente, sempre que falo da temática amorosa, é que é uma temática totalmente não-social. Não existe o mundo. É bastante transitivo, mesmo que seja, como acontece na maioria desses casos, infeliz.

 

Existe uma relação. O que nem sempre acontece nos poemas de outros livros.

Nos poemas sobre Lisboa, é inquietante o facto de haver tão poucas relações. As pessoas relacionam-se por razões práticas, utilitárias. É uma visão da vida urbana desolada.

 

Nesses poemas, existe você, os intermináveis domingos à tarde e os terraços vazios.

Exactamente. No Avalanche uso o “tu”, o poema é dirigido a alguém. São os poemas mais relacionais numa poesia que não é muito relacional. 

 

Um par amoroso que convoca: Paolo e Francesca. Amantes adúlteros da Divina Comédia. Porquê este par?

Tem a ver com uma ideia de retribuição metafísica a que eles são sujeitos. Como têm um amor tempestuoso em vida, no outro mundo têm um castigo e uma recompensa misturados. Por um lado estão juntos, abraçados, mas no meio de um vórtice. Estão num permanente turbilhão. A ideia de que há um castigo e uma recompensa, juntos, no amor, interessou-me quando li a Divina Comédia.

 

Linda visão que tem do amor. (E isto é uma provocação…)

Já lá vou. Tendemos a arrumar muito bem o castigo e a recompensa. O amor, tenho mais dificuldade em arrumá-lo numa dessas categorias. A minha experiência do amor é a de que é castigo e recompensa ao mesmo tempo. A minha visão do amor é como a de quase tudo: por mais que conceptualizemos, nasce da nossa experiência. Aquele verso do Camões: “Segundo o amor tiverdes, tereis o entendimento dos meus versos”. Como nunca tive uma visão lúdica do amor – tenho uma visão, não necessariamente trágica, mas muito séria – não consigo encará-lo de um modo mais leve.

 

Agora parece Kierkegaard a falar de Regina Olsen.

Muito obrigado!, há muito tempo que não tinha um elogio desses. O Kierkegaard é um dos autores que mais leio, de que mais gosto. A maneira terrível como fala do amor… Uma categoria que escapa ao mundano, ao trivial – sempre me reconheci nisso. Não acho que seja um tema social. Por isso há uma distância muito grande entre todos os temas da vida em sociedade e o amor (que são duas pessoas abraçadas numa espiral, na eternidade).

 

É mesmo verdade que escreveu num blogue que uma mulher que gostasse de si não era digna de ser amada?

É possível, eu já escrevi coisas bastante palermas. Essa frase, que não sei a que contexto pertence, tem um carácter lúdico. Claramente não me estou a referir ao amor. Admito que apareça a tal ideia da personagem. Há muitas coisas que escrevo que são frases de efeito. Essa é uma frase para chamar a atenção. Não tem a ver com isto de que estamos a falar.

 

Outro par da Divina Comédia, Dante e Beatriz, inspira-o? 

Sim, mas não foi desses que falei. Sempre me pareceu um par amoroso, ainda que no contexto bíblico não seja um par amoroso, a mulher de Ló, que se transforma em sal, olhando para trás. É verdade que tendo a transformar todos os pares, homem e mulher, em pares amorosos.

 

Obsessão. É uma flor de obsessão, que era como Nelson Rodrigues se chamava.

Outra grande referência para mim. Com todas as distâncias tropicais. Há uma presença muito maior da sexualidade nas coisas que ele escreve. Eu quase só falo da sexualidade em registo irónico.

 

Usa num poema a expressão “foda kitsch”. Muito inesperada.

É verdade. Não é um dos meus temas, na poesia. Na prosa é, enquanto observador. É um tema divertido porque é o grande impulso por detrás daquilo que as pessoas fazem. Sou um freudiano de estrita observância.

 

Num dos poemas usa uma expressão de Dante citada por Baudelaire: vita nuova. Já antes, o nome de uma das suas crónicas remetia para o spleen de Baudelaire. Surpreende quando sabemos que é um autor de filiação anglo-saxónica.

O meu universo estilístico é muito anglo-saxónico. Mas o Baudelaire é uma óbvia referência para quem quer escrever sobre a colmeia da cidade e a vida contemporânea. Tem essa personagem do flâneur – a pessoa que passa e que é um observador. Mas o que escrevo, do ponto de vista formal, não tem nada a ver com a poesia do Baudelaire. 

 

Outro autor que aparece e que é um dos seus preferidos: Tchekov. Esse poema chama-se, com ironia, Futuro Radioso.

A imagem central da peça O Cerejal é a imagem final, do cerejal a ser abatido.

 

Outra árvore a ser cortada.

Sim. Na peça significa o fim de uma época, de uma certa ordem social. Nesse poema significa o fim de uma família. Cortar aquilo que lá esteve desde sempre. Num certo sentido, quase todos os poemas são sobre uma coisa que acabou. Há muito poucos poemas sobre coisas que estão a começar. Essencialmente o que faço são elegias. Nem todos os poemas são episódios auto-biográficos, embora seja todos biográficos. Como não tenho imaginação, é uma transposição de coisas que vi, ouvi, conheci. Tenho dificuldade em criar do nada. Por isso é que não escrevo ficção.

 

Como é que concilia essa desesperança, essa ausência de futuro radioso, com o seu catolicismo?

É a pergunta que mais me fazem. São horizontes diferentes. Não sou niilista, não acho que a vida não tenha sentido, que tudo seja arbitrário. Acredito num sentido da existência que o cristianismo dá. Mas o horizonte do cristianismo ultrapassa o limite da nossa existência física, tal como a conhecemos. Projecta-nos para uma realidade sobre a qual não temos meio de falar. Mesmo quem acredita na eternidade, ninguém sabe o que é isso. Escapa à capacidade de verbalizar. O catolicismo existe nos poemas como educação, como visão do mundo. Têm a ver com o para cá da morte, e não com o para lá da morte. Não que a metafísica não me interesse, mas não saberia escrever sobre isso. É intransitivo e inconfessável. Não é incompatível porque a minha desesperança tem a ver com o horizonte da nossa vida.  

 

Um poema tem por título Vencido do Catolicismo. Mas o mais forte vem a seguir: “sem plural”. É um modo de falar da sua solidão? E contraria outra das premissas do catolicismo: o de ser em rebanho.

É verdade. Mas tem um contexto específico, um poema do Ruy Belo que fala da desilusão de uma geração em relação ao catolicismo. Quis falar de uma relação meramente individual com o catolicismo. Não poderia usar esse plural que o Ruy Belo usa. Pertenço a uma geração para quem o catolicismo é um traço arcaico. Em tudo, e também na religião, as coisas fragmentaram-se. Além do mais, sou um individualista.

 

É um solitário, além de individualista.

Não sei se é a palavra. Voltemos ao Kierkegaard: a religião é uma experiência totalmente subjectiva. Envolve uma relação directa entre o sujeito e aquilo em que ele acredita. Valorizo a relação directa, a vida em comunidade vem mais tarde.

 

Nos poemas, no que escreve, os seus pais, que são pessoas centrais na sua vida, quase não aparecem. Alguma coisa do que vem dizendo nesta entrevista será uma surpresa para eles?

Não creio. O meu universo está muito circunscrito. Os temas que vêm à baila são os mesmos, há muito tempo. A não ser que houvesse uma inflexão grande do que digo ou do que me interessa… Controlo bastante aquilo que digo. Não dou entrevistas sem trazer o superego. Mesmo sem superego, um conservador não tem coisas bombásticas desde a última vez. [riso]

 

Faz um Auto-retrato com Versos de Camões. Muito escuro, desesperançado.

São quatro versos de Camões, de poemas diferentes. É um retrato fiel ao momento em que foi tirado (início dos anos 90). Estou muito mais bem disposto! A partir do momento em que está escrito, deixa de estar sujeito à nossa confirmação a cada momento. Todos nós já escrevemos coisas que não subscrevemos. Se escreveria este poema hoje? Não. Mas gosto muito do poema. É o poema de que gosto mais – nenhum dos versos é meu.

 

Está a fazer género.

Não, é literal.  

 

Tem uma escrita ecléctica. Tanto escreve sobre o Morrissey como sobre o George W. Bush.

Nos poemas o universo é muito mais delimitado. Se pensar nas coisas que são fundamentais para mim, estão todas neste livro.

 

Pelo facto de ser crítico é mais difícil editar poesia?

Estou demasiado perto daquilo que escrevo para ter a distância que é necessária para a crítica. Um crítico escreve sobre um texto e não sobre um autor – o autor nunca percebe isto. Exercer a faculdade crítica em causa própria é impossível. Daí também haver tantos poemas maus. Espero que não nestes cem escolhidos. Faz diferença quando, ao fim de muitos anos a ler e a escrever sobre poesia, tenho uma maior percepção do que é um mau poema. Ter um discurso crítico incorporado ajuda. “Estas duas imagens não funcionam”. “Estas palavras são de diferentes áreas vocabulares”. Coisas que vêm com a prática.

Uma das frases que mais gostei que me tivessem dito, numa sessão literária: “Gosto muito do que você escreve, mas não me interessa nada a sua vida”. A minha esperança é que isso seja o sentimento da maior parte das pessoas. A minha vida interessa-me muito a mim. Percebo que, por um lado voyeurista, interessa um bocadinho a algumas pessoas. Se for como eu gostava que fosse a literatura, a vida que está por detrás não é radicalmente diferente das outras. Toda a gente tem família, toda a gente se apaixonou, toda a gente tem um percurso. 

 

 

Publicado originalmente no Público em Abril de 2011