Maria de Lourdes Pintasilgo
Uma morte inesperada representa o interromper de um curso. Uma página de livro meia lida, uma frase por concluir, um pensamento incompleto. Nada disto tem que ver com a suspensão, com o carácter inacabado que Maria de Lourdes Pintasilgo tanto estimava e perseguia. Porque este implicava um esforço continuado, um empenhamento sem tréguas, uma viagem que tem em si mesma o sentido, o móbil.
Quando soube da sua morte, estava numa carruagem de comboio em direcção ao Porto, onde nos conhecemos há cerca de meio ano. Assaltou-me a impressão de as coisas terem mudado subitamente.
Recuperei a nossa conversa de há pouco mais de uma semana, em que lhe pedia para falar de um livro de contos de Clarice Lispector para o «Magazine» da RTP2. Recuperei o nosso encontro de há poucos meses, num colóquio que celebrava os direitos das mulheres e que começou de modo inusitado: perguntei-lhe se podia saber o que trazia na sua mala de senhora, e ela depositou os objectos um a um sobre a secretária – a écharpe porque mais logo faria frio, a caneta com que escreve há quinze anos, o pó de arroz da Chanel...
Recuperei o fascínio pela figura de Lou Andreas Salomé («Li biografias que justificam o feitiço que suscitava nos homens pela recusa em fazer sexo...», dizia eu; e Maria de Lourdes a responder que nem pensar, que as cartas que trocou com Rilke são bem reveladoras de uma intimidade desse tipo...).
Recuperei o seu sorriso quando lhe disse que ela correspondia a uma memória da minha infância, quando a vi na televisão rodeada de fotógrafos, a dizer que não respondia a mais perguntas porque tinha de ir para casa fazer o jantar; e de eu ser muito menina e de o meu pai me ter explicado que aquela senhora era a primeira-ministra de Portugal.
Recuperei a nossa última conversa na qual lhe sugeria adaptar para as páginas do DNa a conferência de Serralves, sobre «Cultura e Fé», em Dezembro do ano passado, e de complementá-la, se houvesse necessidade, com conversas presenciais. Gostou da ideia. Comentou que raras vezes tinha registos destes encontros e que lhe dava um trabalhão prepará-los!
Eis-me, então, a ficar-me pelo primeiro encontro – de uma beleza e profundidade que poderão atestar nas próximas páginas. Agradeço à Fundação de Serralves o apoio e celeridade na cedência da gravação dessa conversa. Agradeço a Maria de Lourdes Pintasilgo ter sido uma presença tão inspiradora.
Quando foi convidada de Inês de Medeiros no programa «O filme da minha vida» escolheu «Persona», de Ingmar Bergman. Porque é que esse filme a impressiona tanto?
O «Persona» tem em si esta grande interrogação, a um tempo cultural e de fé, que é saber quem sou eu, quem é o outro. Todo o filme, que considero um dos melhores de Bergman, mostra isso, a ponto de, no final, não sabermos exactamente quem é quem.
Há aquele plano fabuloso em que as caras das personagens femininas se fundem e ficamos sem perceber qual delas é a paciente e qual delas é a enfermeira...
E ao mesmo tempo, há [no filme] alguma coisa sobre a palavra como acto fundador. É interessantíssimo ver como é que a enfermeira vai ocupar-se da doente, uma doente do foro psicológico.
A quem tinha faltado a palavra, justamente. Talvez possa introduzir sumariamente o filme da seguinte maneira: uma actriz é acometida de uma síncope enquanto representa uma tragédia grega; bloqueada, cai num mutismo absoluto; uma jovem enfermeira encarrega-se de a acompanhar. O filme narra a relação entre ambas. É simbólico que aquilo que lhe falta seja a palavra.
O que é interessante é esse mutismo. A certa altura temos a percepção de que vai romper-se, e vai romper-se qualquer coisa para além da palavra, gestos tanto de ternura como de agressão; e é a outra mulher [enfermeira], que é suposto ser muito saudável, (ela própria diz que tem uma vida muito calma, que está noiva, que gosta do trabalho), que, à medida que vai falando, desdobra a sua vida e nos deixa perceber que temos diante de nós outra doente do foro psíquico.
É o desdobramento o mais estimulante, para si?
Essa passagem de um ao outro, para mim, é vital. E é vital no plano da cultura, se o mutismo quer dizer: “Eu não quero reconhecer o outro, não quero que o outro exista”. E se não quero que o outro exista, a melhor coisa que tenho a fazer é calar-me. Posso calar-me em relação às palavras, posso calar-me em relação à fisionomia, (pessoas que encontramos em colóquios, em seminários, que estão ali precisando do que costumo chamar de “uma ginástica facial” – o que se compreende no contexto português: o medo das críticas, a dificuldade de afirmação...) Mas neste filme, a presença da outra pessoa é tão problemática... E é interessantíssimo que, no momento em que a mulher que está doente começa a olhar a outra como outra, haja uma cena ou duas de uma certa violência física. O mutismo é qualquer coisa que tem contido em si uma violência.
Ignorar o outro contém violência.
Isso põe para mim dois problemas, ou um problema em dois registos diferentes, que é o da alteridade. E aí gostava muito de chamar a capítulo [Jacques] Derrida e [Emmanuel] Lévinas, que, na linha de Martin Bubber e outros, dizem claramente: “Onde o Eu não se diz, não há um Nós”. É essa capacidade de dizer Eu que torna o Nós possível.
Mas para chegar ao Nós levanta-se a questão da comunicação, e dos canais dessa comunicação...
Absolutamente. E essa afirmação do Eu, que pode ser conflituosa em determinado momento, é muito mais saudável. O que me parece importante nesses autores e na filosofia contemporânea é a questão da alteridade. Fazemo-nos na medida em que dialogamos com outros e podemos discutir com outros. E nisso, se têm tido a paciência de ler o que escrevo na Visão, sabem que sou ferozmente contra o consenso, na medida em que o consenso nivela e não permite sequer que as pessoas emitam outras opiniões e outras vozes. Vejo muito mais a relação pela palavra como conflitual. O gosto que dá pensar em conjunto com alguém que diz o contrário do que a gente está a dizer...
A discussão é muito instigante.
A discussão das ideias parece-me ser o fundamento da cultura. E ligava com a questão da fé, com a consciência ao nível da fé de que é preciso passar por qualquer coisa que divide. Há uma imagem muito interessante, e que tem sido estudada sobretudo por uma psicanalista francesa, sobre o sacrifício proibido que diz o seguinte: qual é o significado de Abraão levar o filho para ser imolado? Ela percorre a Bíblia toda e descobre esta frase que Jesus diz mais tarde: “Não vim trazer a paz, vim trazer a guerra. Onde eu estiver, levanta-se um contra o outro, a nora contra a sogra, a mãe contra o filho, como se uma espada os separasse”.
E o sacrifício?
O sacrifício que Abraão se dispõe a fazer é indispensável na vida humana. Isto é, dois que eram um só. O pai tinha naquele filho a sua alegria, o seu orgulho; vai cortar essa realidade. Ela diz, e eu concordo imenso, que é a grande noção do que é a maternidade e a paternidade. Para fazermos o nosso caminho temos que ter, a certa altura, uma espada que nos separe. É assim que ficam dois. Quando, muitas vezes, o que a pessoa quer é permanecer no aconchego do útero materno... Se não é o útero materno, vai ser uma relação em que não tem autonomia.
Centremo-nos novamente na força da palavra a partir da Torre de Babel. O problema da Torre de Babel é o da profusão de línguas e o da incapacidade dessas línguas serem vertidas para outras línguas, ou seja, de poder haver comunicação apesar da diferença. É muito curioso notar que, ao responsável pela construção da Torre de Babel, o gigante Nemrod, Dante reserva um dos círculos mais terríveis do Inferno; o castigo que lhe é aplicado é, quanto a mim, o mais terrível: é condenado a falar para todo o sempre uma língua ininteligível. O que isto quer dizer é o isolamento absoluto, a opacidade absoluta.
A Torre de Babel tem uma interpretação que antes de ser religiosa é filosófica. Apresenta o fundamento da diversidade. Sem a diversidade de dizer “Eu, Tu”, não é possível a existência humana. Babel leva ao extremo a afirmação: “É indispensável que haja essa relação constantemente conflituosa”. Uma das grandes interrogações do nosso tempo, a que assistimos pelos factos que nos são devolvidos pelos meios de comunicação, (nunca sabemos se são verdade, se não), é a de saber, afinal, onde está e o que significa essa diversidade.
E então, onde está e o que significa?
Aceitar que a diversidade existe, atravessando-a, permite encontrar uma unidade de outra natureza, permite dizer um “Eu, Tu e Nós” carregado de humanidade.
Recuemos ao «Persona». Quando me preparava para a sessão, escrevi a propósito do filme: “viagem à noite de cada um”, “solidão”, “procura”, “vazio”, “reconciliação”, “resposta decepcionante”. Há um aspecto interessante: a jovem enfermeira entra em desespero porque não encontra uma resposta, porque o outro [a sua paciente] não fala. Podemos extrapolar e falar, a este propósito, de Deus? Por mais que batalhemos, por mais que dialoguemos, há respostas? Embatemos, como a enfermeira Alma, no mutismo do nosso interlocutor? Como conseguir, mesmo assim, um diálogo?
Vai fazer-me dizer o que queria dizer só no fim, mas que tem lugar agora. No Livro do Eclesiástico, depois de louvar as maravilhas de Deus, o texto diz assim: “Quem contemplou Deus, que o possa descrever”. Esta declaração fica a pairar nos livros de sabedoria do Antigo Testamento até ao Evangelho de João, onde se pode ler esta frase muito forte: “Deus nunca ninguém o viu. Se nos amarmos uns aos outros permanecemos em Deus”. Na primeira carta de João aos discípulos, João pega na mesma ideia e diz esta frase lancinante – e se ela nos interpela em cada dia é porque estamos realmente a corresponder, Deus está a fazer-se ouvir: “Se não amamos o irmão a quem vemos, como podemos amar Deus a quem não vemos?”.
Há um facto, que é claro e constante nos escritos: não vemos Deus.
Esta ideia de que há uma procura de Deus, que é um Deus que não se deixa ver a não ser através do amor pelos irmãos que vemos, que conhecemos, que estão ao nosso lado é o que determina em grande parte, ou devia determinar, a vida dos cristãos. Esta é a interrogação. Ter fé é uma coisa muito limitada. O importante é se estamos no caminho dessa procura e dessa certeza. Ver os outros, olhar para os outros e amar os outros que vemos é o primeiro acto de fé.
Como se fez a sua aproximação à fé? Como se deu a sua formação?
Eu venho de uma família que não era cristã praticante. A minha avó do lado materno, que foi das mulheres que mais me influenciaram, era profundamente agnóstica. Era no tempo da família alargada. Havia tios militares que tinham estado na Primeira Guerra Mundial e que tinham feito a República, e que eram, portanto, republicanos laicos. Na terra onde nasci e onde vivíamos, Abrantes, havia dois campos nítidos: esse grupo de pessoas e os que tinham outras maneiras de olhar as coisas. O que é que a fé tem que ver comigo?
Sim, provinda desse caldo agnóstico...
Primeiro tive, como toda a gente, na adolescência, a ilusão de que era preciso fazer um estudo racional de tudo, inclusive da fé. Li os romances paradigmáticos, que demonstravam, por absurdo, que não era possível chegar a Deus. Obviamente devorei Dostoievski na sua procura de Deus, quer nas coisas que Aliocha diz nos «Irmãos Karamazov», quer naqueles que são tomados por outras ideias e valores. Depois, passei aos filósofos.
Sempre a procurar. Ainda com o propósito de, racionalmente, situar a fé?
Sim, dada a pessoa que eu era e o mundo em que me movimentava – o das ciências. Gradualmente comecei a encontrar pessoas, ainda na adolescência e depois na juventude, que são o que a professora Helena Araújo costuma chamar “a figura feminina essencial”. Mulheres que realizavam em si, ao mesmo tempo, uma dimensão de fé e uma presença na realidade, no mundo, no trabalho que desenvolviam. Fizeram-me perceber que, se calhar, Deus não se encontra dessa maneira. Nem sei se formulei a coisa exactamente assim, mas dei-me conta que, de repente, estava a seguir outros caminhos. Já não era só o racional, mas era também o racional.
A que é que se refere quando se refere ao racional? Numa procura, numa comprovação, numa equação de tipo matemático?
Justamente por causa das ciências, o racional tinha muito que ver com as ciências. Na época em que estudei, tornaram-se acessíveis as teorias de Einstein, a da relatividade geral e a da relatividade restrita. Teve muita influência em mim “Como é que vejo o mundo”, um livro que ainda hoje considero muito importante. Einstein queria encontrar não só a resposta para as suas equações, mas também alguma coisa que dissesse a totalidade da Beleza e do Bem de Deus.
É curioso que tenha dito “Beleza”. Em entrevista recente a António Damásio, o cientista dizia-me que Einstein, perante uma equação que estava correcta, fazia uma aproximação estética. Dizia: “This is beautiful”; e quando estava incorrecta dizia: “This is ugly”. Esta apresentação, penso que contempla esse elemento, intangível e indecifrável, mas fundamental para a completude e perfeição da equação. Entende o que quero dizer?
Perfeitamente. Para mim a Beleza está no Bem e na Verdade, as três coisas. Os gregos, aí, foram de facto fundadores. Vou confessar-lhe uma coisa: sento-me sempre ao computador, e são várias horas ao dia, com um sentimento de maravilha perante o que está a acontecer. Pensar que está ali, num espaço tão limitado, um mundo de conhecimento, de dados, de reflexões... Isto tem muito que ver com a maneira como vejo o mundo, toda ela feita de interligações e correlações.
De revelação permanente, como se fosse uma epifania.
Exactamente. A capacidade e a velocidade de tudo o que se propaga são uma metáfora de um pensamento que invade tudo, que está presente em tudo. Devo dizer que a ciência contemporânea me ajuda imenso, do ponto de vista racional, na atitude de fé. Aquilo que vejo na ciência contemporânea é a possibilidade de uma realidade. Estamos aqui, não sei quantas pessoas, [audiência de cerca de 250 pessoas] e enquanto estamos a falar, estão circulando no espaço uma quantidade de auto-estradas; passa a, b, c, d, conversando nesta e naquela língua.
E é essa intercepção que é tão fascinante?
É uma maravilha pensar, saber que isso é verdade. Um site é um lugar onde se pode ouvir o outro, conhecer o outro.
Podemos tornar à sua aproximação à fé, e à cultura também? Estes dois tomos são inseparáveis? Ou são, justamente, dois tomos de uma mesma coisa?
São dois tomos da mesma coisa. Entendo a cultura como procura permanente da Verdade. Há aquela frase, muito simples, mas lindíssima, de Paulo Freire: “A cultura é o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez”. De cada vez que as pessoas dizem: “Tenho que fazer isso para me entreter”, penso onde está esse trabalho de deixar no mundo alguma coisa, de fazer do mundo alguma coisa que permaneça para além da fugaz passagem de cada um de nós.
O que aí está implícito, na dimensão da fé ou da cultura, é a mobilização e a construção.
Nesse sentido, há uma ligação entre o que é a cultura e o que é a fé, expressa em São João no princípio da ceia: “Deus amou tanto o mundo que mandou o seu filho único”. Este amor pelo mundo aparece-me com coordenadas exigentes. Não pode haver paragem, não pode haver hiatos. A cultura foi durante muito tempo, para começar com os gregos, uma procura da Verdade. Sócrates diz a Alcibíades, um dos jovens que o procuram: “Se tivesses cinquenta e tal anos podias querer conhecer mais de ti e cuidar mais de ti; mas não. És jovem e, como tal, tens que fazer um trabalho sobre ti mesmo”. A expressão usada é “cuidar de si mesmo”. “Cuidar de ti mesmo para governar os outros homens”. Esta ideia de uma perfeição a atingir, que é a procura da Verdade, que é o deslumbramento perante a Beleza, que é a Bondade sejam elas as pessoas que forem... Quando Sócrates, já na prisão, diz: “Mesmo hoje, se me deixarem ir pelas ruas de Atenas, perguntarei a cada pessoa que encontrar: estás a cuidar de ti mesmo?”. Houve uma fase em que os primeiros padres da Igreja seguiram exactamente este caminho. Nietzsche, Husserl, Heidegger, outros e outras, recuperam depois esta ideia do “cuidar de si mesmo” que estava presente nos socráticos.
A ideia do amor enquanto medida foi tratada também por Santo Agostinho, que escreve nas “Confissões” esta passagem maravilhosa: “O meu amor é o meu peso, onde eu for, ele me levará”. Ou seja, denunciamo-nos no cuidado que temos com o outro. E há, neste desejo de auto-conhecimento, neste aperfeiçoamento procurado, nesta demanda continuada a ideia de que o amor é a medida.
Esse elemento é extremamente importante. Descartes e o seu racionalismo corrompem-no. São os filósofos da última metade do século XX que recuperam esta ideia. A palavra cuidar tem sido muito mal usada, em termos muito chãos. É uma palavra muito densa, que tem um grande sentido. Ela projecta-se não só no Eu-Tu de que falámos no início, mas também no hoje-amanhã. Há um futuro incluído no “cuidar de”.
Gostava de voltar à ideia inicial do Verbo e do Fazer. O que isso traz é Criação. É uma deslocação do Ser para o Fazer. A criação é o que arranca o Ser desse estado anterior e raso, onde não há palavra, e o mobiliza. Penso que quando se diz: “No princípio era o Verbo” se fala da palavra como motor, como primeiro passo.
Sem dúvida. Muitas vezes temos a sensação de que as palavras estão fervendo dentro de nós, que é preciso dizê-las. É preciso que venham, que deixem de ser coisas informes, que passem a ser qualquer coisa. Mesmo que seja maldita, essa palavra é essencial para estabelecer pontes de comunicação. Há pouco quando falávamos das auto-estradas no ciberespaço, temos que estabelecer auto-estradas de comunicação com novos ingredientes, e é aí que me parece que a palavra tem um valor singular.
No percurso da civilização ocidental cultura e religião surgem inseparáveis. Os princípios da criação do mundo são religiosos e culturais. Nos séculos anteriores à cisão Fé-Poder, os pressupostos dos quais os artistas partiam eram sobretudo religiosos.
Não há dúvida que no catolicismo toda a arte é figurativa e maravilhosa. Passaria semanas em Florença diante do que o Fra-Angelico pintou nas celas! Mesmo nas igrejas nascidas da Reforma quer o Espírito Santo, quer a Virgem Maria são duas expressões muito fortes. Há uma grande mudança no Oriente, com o cristianismo ortodoxo, na medida em que a figuração em volume desaparece (por ser contrária ao mandamento de não adorar imagens – daí os ícones, que têm uma superfície plana). É muito interessante estar nas igrejas ortodoxas. Há uma comunicação do ícone não como representação, mas como expressão de um desejo do que não tem ali a sua consumação. Na cultura da segunda metade do século XX, há uma tentativa de laicização de tudo. Nós portugueses tivemos duas vagas de laicização. A primeira, antes ainda do terramoto, pelo Marquês de Pombal. A segunda, já no século XIX, quando se preparava a República, e por aí adiante até hoje.
Que marcas temos dessas duas vagas?
Não temos lugares que nos falem de Deus. Em países como a França, a Alemanha ou a Suécia encontramos lugares, mosteiros, que são o respirar de Deus, são como que o culminar de tudo o que tem a vida. Em Portugal não temos nada disso. Há algumas Ordens, os Cartuxos em Évora, mas estão muito longe dessa densidade filosófica e mística que caracterizou as outras formas de cristianismo em países da Europa.
Mas essa respiração pode encontrar-se até numa obra de arte?
Certo. No século XIX a nossa arte é muito terrena, mas sem profundidade. Por exemplo, na Câmara Municipal de S. Gemignano, em Itália, ao pé de Siena, há um enorme fresco que se chama “O Bom Governo”. A gente vê as pessoas no campo a trabalhar, vê ao mesmo tempo a cidade, o sapateiro, o mestre da escola, as crianças, um grupo de raparigas com tamborins a cantar e a dançar. Este sentido de harmonia, do bom governo, esteve presente [na arte portuguesa], mas esteve muito mais a noção sacrificial do cristianismo. Tinha no meu quarto uma ampliação da “Ronda de Todos os Santos”, e agora tenho uma coisa muito engraçada: a “Virgem do Pintassilgo”, que tem um pintassilgo nas mãos. Acho muito divertido agora, durante muito tempo não achei.
Como é que se deu essa reconciliação?
O pintassilgo é a ave mais europeia que existe. Encontrei isto quando o meu pai morreu, uma reprodução na carteira dele. É a Virgem com um livro, São João Baptista já crescidinho, o menino Jesus muito pequenino, e estão os dois meninos com o pintassilgo na mão. Desculpem esta coisa...
Proponho-lhe duas obras de arte: o filme “A Palavra”, de Dreyer, onde se dá o milagre da ressurreição; e um quadro famoso de Vermeer, “A Leiteira”, cujo brilho intenso no pão e no leite interpretei como uma sacralização dos alimentos. Para encontrar Deus numa obra de arte é forçoso que haja uma inspiração religiosa?
Pode dizer-se que em Dreyer a mensagem é directamente religiosa, em particular no filme “A Palavra”. Tem o seu paralelo n’”O Idiota”, de Dostoiveski, e num filme recente, com o Tom Hanks, “Forrest Gump”. Na America toda a gente dizia que representava o ideal da cultura americana. Eu acho que está muito mais ligado a uma tradição europeia em que o idiota pode encarnar o Bem, na sua forma mais pura, mais naïf. Oiço muitas vezes “Run, Forrest, run”...
Mas essa inocência também se encontra nas crianças. Pode encontrar-se nos néscios e nas crianças.
Pois. Quanto à sua questão, o que é que há de religioso? Há de religioso o que há de cultural. Para isto vou buscar aquele que considero o nosso grande filósofo, prefiro chamar-lhe assim a chamar-lhe poeta, Fernando Pessoa. Vou ler duas ou três coisas de Alberto Caeiro, que era o mestre. “Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez, do que conhecê-la, porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez. E nunca ter visto pela primeira vez, é só ter ouvido contar”.
O que significa esse excerto para si?
Nem tenho palavras para o dizer! Procurar Deus nisto é qualquer coisa de simbólico. Só ter ouvido contar não chega, é preciso fazer o caminho, diferente como os caminhos podem ser. Mas também nunca ter visto pela primeira vez é estar longe, é não realizar a aventura pessoal. É só saber. Não chega, por isso, conhecer. Ainda Alberto Caeiro: “O que vejo a cada momento é aquilo que nunca antes tinha visto”. Há qualquer coisa aqui que é cultural, há um cuidado no sentido socrático em que falávamos há bocado, que é a interpretação e o ver completamente as coisas. O acto de ver transforma-se, na cultura e na fé, num princípio axial, determinante. Muita gente diz: “Não reparei, não dei por isso”. Este “não reparei” é a negação deste cuidado e deste ver. Ele diz também: “O essencial é saber ver, saber ver sem estar a pensar, saber ver quando se vê”.
Na sua aproximação à fé, o primeiro percurso que tentou foi o da razão. Mas a aproximação ao saber pressupõe um envolvimento pessoal.
Sem dúvida. A génese desse envolvimento, na maior parte das pessoas que tenho conhecido por esse mundo fora e que têm um empenhamento exemplar, mesmo na vida política, é uma permanente tentativa de ver e de explicar. O nosso tema de conversa era, é a cultura e a fé, e aí estamos por definição: a fé como interface de tudo e a cultura como interface de muitos outros sistemas. A cultura supõe a reflexão permanente, o permanente porquê, a possibilidade de interrogar todas as coisas, como diz o Alberto Caeiro, (“O que vejo a cada momento é aquilo que nunca antes tinha visto”).
Quer dizer, estarmos disponíveis para ser interpelados.
Para ser interpelados de uma forma criativa: que critério posso aplicar aqui, o que é que isto significa, o que é que vou dizer sobre isto. Fernando Pessoa diz também: “Sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura”. Esta passagem faz-me lembrar um verso do António Gedeão sobre a catedral de Burgos: “A catedral de Burgos tem trinta metros de altura e a retina dos meus olhos dois milímetros de abertura. Olha a catedral de burgos com trinta metros de altura”. Quanto a mim, esta é atitude cultural. Era esta a atitude que eu gostaria que fosse encarada nas políticas culturais em Portugal.
Há pouco, nas entranhas do edifício, no elevador, queixava-se que nada funciona no país, a propósito da avaria no nosso elevador. Está desencantada?
Não. Estamos numa fase, trinta anos depois, em que temos outra vez que desmontar parte da realidade que nos é enviada, transmitida. Temos que procurar noutros caminhos. Como São Paulo dizia: “Faço o mal que não quero e não faço o bem que quero”. Isto é uma máxima de constatação daquilo que penso que quis dizer. No nosso país, apesar de tudo, há ainda uma força grande capaz de ir por novos caminhos. Mas tem que ser absolutamente por novos caminhos. Os caminhos velhos já são demasiado andados, demasiado pervertidos, demasiado cheios de sacos de plástico à direita e à esquerda, cheios de detritos que vamos deixando. São caminhos novos de que precisamos, em todos os aspectos.
Isso obrigatoriamente com novas pessoas, com novas gerações?
Tenho muita dificuldade em responder à sua pergunta. Tenho fé cega na juventude. Acredito, mas acredito mesmo, que o futuro está entre nós porque a juventude está entre nós. E é a encarnação desse futuro.
Falou-me de uma pequena igreja, nos arredores de Paris, pintada por Jean Cocteau, como um espaço particular. Mas essa envolvência é sentida de modo diferente por aqueles que têm fé e por aqueles que não a têm?
Eu acho que toda a criação é movida por um princípio transcendente, de que o próprio autor pode não estar consciente. Somos todos agidos. Não vejo divisão aí entre pessoas que têm fé e pessoas que não têm fé. Quando eu era jovem havia uma organização de universitários católicos, e uma das pessoas que nos acompanhava era um padre, um velho bispo hoje, D. António Rodrigues, que nos dizia assim: “Vocês não podem continuar com esta fé de carvoeiro” – sem desprestígio nenhum para os carvoeiros.... Não, a fé é ver. A fé é estar presente às coisas. A fé é amar. A fé é ir até ao fundo da realidade que está diante de nós, com tudo o que isso significa de risco, de ser mal visto, de ser catalogado. Ir até ao fim parece-me que é a fé. Quer se chame assim quer não. Há uma imagem que não é minha, roubei-a a um padre dominicano, um dos grandes formadores da minha geração, o Padre Ivo Congar: “Podem as pessoas pensar que isto é um grande acontecimento, mas nós somos uma igreja que está no limiar das coisas, as coisas ainda não estão prontas, ainda não são o que deviam ser.” Por mim, tenho a noção de que aquilo de que faço parte é uma coisa que há-de vir, e que esse há-de vir é para mim suficiente.
Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em Julho de 2004
Maria de Lourdes Pintasilgo morreu em 2004