Gabriela Moita
«O questionar-me a respeito destas coisas vem de longe. Lembro-me de um texto que li no ciclo preparatório: «Elas remavam como homens». Nunca percebi isto. Devia ter 11 anos. Cheguei a casa e perguntei ao meu pai: «Elas remam. Porque é que é como homens? Elas não remam com os braços delas?» E lembro-me de sentir indignação».
É desta fibra que é feita a psicóloga Gabriela Moita, doutorada na Universidade do Porto com o tema: «Discursos sobre a homossexualidade no contexto clínico». Questões relacionadas com a orientação sexual e a construção da identidade são temas privilegiados no seu estudo.
Vive e trabalha no Porto.
A designação «homossexual» remonta ao século XIX.
A noção de que havia seres que eram diferentes entre si pela orientação sexual começa a surgir no século XIX. Até então, não era um substantivo, as pessoas não eram isto ou aquilo. Era um adjectivo, as pessoas eram uma coisa entre muitas outras.
A existência de relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo é tão antiga como o mundo. O que é que faz que isso deixe de ser apenas um dos atributos do indivíduo, uma coisa que não é complicada e que não tem sequer o carácter de substantivo, para passar a ser uma questão?
Era também complicado quando era, apenas, um adjectivo. Porque é que é complicado e não é aceite, é a grande questão. O que é que faz que seja um tema de tal maneira rejeitado que leva pessoas a matarem outras por terem este comportamento.
E então?
A grande rejeição tem a ver com uma questão religiosa, não podemos fugir disso. A vontade divina, (vem escrito na Bíblia), diz que o homem é complementar da mulher. Falamos da natureza de Deus, e a natureza é aquilo que Deus decidiu que era. A Bíblia só diz: «Não te deitarás com um homem como se fosse uma mulher». Não diz: «Não te deitarás com uma mulher como se fosse um homem». Isto tem a ver com a desvalorização da mulher.
Os relatos da homossexualidade feminina escasseiam. Quando se fala da Grécia Antiga, fala-se de homens e das suas relações homoeróticas.
Na Grécia havia uma instituição e não uma permissão. Quando se diz que na Grécia a homossexualidade era aceite, não é verdade. Na Grécia havia uma obrigação relativamente a um determinado tipo de comportamento sexual com pessoas do mesmo sexo.
É por isso que era quase indigno para um jovem rapaz não merecer a afeição e o interesse intelectual e sexual de um homem mais velho, um protector cuja função seria a de iniciador?
A institucionalização da homossexualidade na Grécia tem a ver com essa atitude pedagógica. Ou seja, era suposto que homens ensinassem outros homens, neste caso adolescentes, a governar a cidade, e este ensino passava por uma relação de amor. Era desprestigiante para o adulto não ter o seu adolescente e para o adolescente não ter um homem mais velho que cuidasse dele e o ensinasse.
Quase todos estes homens tinham a sua família, tinham mulher e filhos. Qual era o conceito de família? A ideia base era a da procriação?
Exactamente. As mulheres eram procriadoras. Negligenciadas em quase toda a Grécia, cuidadíssimas em Esparta porque a noção de mulher procriadora era levada ao extremo. Eram mimadas e cuidadas pela sua potencialidade: para dar bons cidadãos, bons gestores da cidade. Não sei o que aconteceria a uma mulher que não pudesse engravidar...
Nas relações homossexuais com adolescentes o amor era também contemplado?
De uma forma instituída, estes homens tinham os seus amantes mais jovens. O que não quer dizer que não tivessem outros parceiros ou que não amassem outros homens. Era sobretudo uma relação de ensino; quem dominava era sempre o mais velho, e o mais novo dever-se-ia sentir interessado, apaixonado. Não sei se é possível definir se havia amor ou não. O amor não é muito falado. Mesmo a relação sexual era muito delimitada. Tinha que se manter uma assimetria entre o mais velho e o mais novo. Não era suposto que o mais novo tivesse prazer, por exemplo.
Não?
O mais novo permitia que o mais velho pudesse ter prazer. A relação era sobretudo entre as pernas. Não havia penetração nem anal, nem oral.
Porque é que havia uma delimitação tão precisa?
Porque o corpo daquele adolescente não vai pertencer a este homem. Pertence-lhe nesta fase, e não é uma coisa recíproca. Este desnível é uma regra absoluta. Que, de alguma maneira, se mantém na relação homem-mulher. A questão da dominação está aqui fortemente presente. Qualquer homem podia ter um relacionamento com outro homem. Desde que não governassem os dois a cidade. Ninguém se preocupava com o facto de um cidadão ter relações sexuais ou sentir o que quer que sentisse com um escravo ou um homem de condição inferior.
Quer dizer que não era a homossexualidade que estava em questão, mas a cidadania?
É a regra do domínio e a regra do poder.
Voltemos ao que está escrito na Bíblia: «Não te deitarás com um homem como se ele fosse uma mulher». O que está aqui implícito é uma depreciação da mulher.
A mulher é um reservatório. Deitar-se como se fosse com uma mulher é considerado uma abominação. Porque se vai pôr numa posição de subalternidade. É a grande questão da penetração. Do ser penetrado e penetrar.
Ainda na Grécia Antiga, a poetisa Safo, oriunda da ilha de Lesbos, (daí que hoje se diga que as mulheres homossexuais são sáficas ou lésbicas), é caso único no relato despreconceituoso de relações entre mulheres. Porquê?
Safo violou a norma do feminino e do masculino. Assumia-se também com obrigações pedagógicas, tinha escolas de ensino. Ela pensa e escreve quando as mulheres não têm que pensar. A não ser que fossem prostitutas. Não porque tivessem valor, mas para que os homens pudessem conversar com elas.
O que é que transpira deste período para a civilização romana?
Muda sobretudo este aspecto pedagógico. Roma caracteriza-se pelo pater-familiae. O patriarcado está instituído e o homem é dono da mulher e dos filhos, dos escravos e dos criados. Qualquer contacto de outro cidadão com a filha de, ou filho de, é grave: viola o direito do pater-familiae. Não há nenhuma referência negativa à homossexualidade. Qualquer homem pode ter outro – aliás, os imperadores romanos são disso famosos –, desde que o outro não seja pertença de ninguém.
A questão é a da posse?
É novamente o poder. É o território. Os filhos são território dos pais. Se fosse com prostitutos, escravos, estrangeiros, não era questionado.
O cenário é substancialmente diferente com a queda do Império Romano? Que marcas deixa a disseminação hegemónica dos princípios do Cristianismo?
São Paulo define o casamento como uma obrigação. O casamento heterossexual cria uma limitação à sexualidade. Há aqui uma outra coisa que vai estar sempre por detrás deste entendimento da homossexualidade como muito negativa, que é a noção da procriação. Com a entrada do Cristianismo, as pessoas deveriam casar-se para controlar os seus instintos. A sexualidade começa a ficar limitada, controlada pelo casamento, já que as pessoas não se conseguem controlar. Santo Agostinho é que vem dizer isto.
Mas porquê essa necessidade de controlar a sexualidade?
Na minha perspectiva, tem a ver também com o controle do património. Com o facto de as mulheres poderem ter filhos de outras pessoas e nunca se saber para onde vão os bens. É uma noção de território forte, de poder e de não partilha.
Porque é que a religião condena tanto a sexualidade?
Condena a sexualidade em geral. É por acréscimo que a homossexualidade passa a ser tão questionada. Questiona os papéis do homem e da mulher. Ouvi uma entrevista a um bispo que dizia que os papéis do homem e da mulher estão definidos e que são complementares. Mas não são complementares com iguais níveis de poder... São complementares havendo um que claramente subjuga o outro. Rigidifica estes papéis na hierarquia Deus-homem-mulher, atribuir a obrigatoriedade da complementaridade entre o homem e a mulher, sublinhando que só assim a Humanidade se estrutura, só assim cada ser humano está completo porque se encontra no outro...
Subjaz a esse discurso uma noção de harmonia e de harmonização dos diferentes? Diz-se que a homossexualidade é contra-natura porque não concorre para essa harmonia?
É para o que serve. Se formos fazer uma análise do social, em quase tudo se é hetero-qualquer coisa. Por exemplo, em relação à raça; há quase uma condenação da miscigenação. Porque é que de repente é muito útil falar da lei da química ou da física para os seres humanos? É de amor que estamos a falar. Por acaso, o amor integra, às vezes, a componente sexual. Mas estamos desde o princípio a falar de amor, da atracção que as pessoas têm por outras do seu sexo. Pessoas que têm um corpo.
Eu insisto em perguntar pelo perigo da sexualidade e da homossexualidade.
Perigo?
Porque é que se tentam impor tantas regras? Porque é que é uma questão tão vigiada?
As pessoas não têm de o reproduzir, mas o Cristianismo diz: «Crescei e multiplicai-vos». A ideia de que os seres são feitos para a reprodução é muito difícil negar na cabeça das pessoas. Aprendemos que o ser humano nasce, cresce, reproduz-se e morre.
Pode falar-se num instinto reprodutor? O instinto, por definição, é comum a todos.
É comum a todos e manifesta-se da mesma maneira.
Na sua perspectiva, existe instinto maternal e paternal?
Na minha perspectiva, não. Que o instinto existe, definimo-lo nós. Para além de haver pessoas que não o têm de todo, ele não se manifesta de forma semelhante. Isto passa a ser explicado como sendo educação – as pessoas não foram educadas de uma forma conveniente... O instinto não precisa de ser educado. Como é possível haver instinto com pais a matarem filhos, a violarem filhos, quando sabemos que as maiores atrocidades fazem-se dentro das famílias? A noção de família do Cristianismo define: um homem e uma mulher que se juntam, com uma obrigação de amor. Esta constituição de família obriga a que um discurso paralelo apareça. Que é destruir a homossexualidade, que é destruir uma possibilidade que o ser humano tem de fazer de forma diferente.
Um diferente que ameaça...
Uma ameaça a esta estrutura. Isto vai implicar rever a estrutura social. Provavelmente muitas pessoas ao lerem esta entrevista vão dizer: «Que coisa deplorável que esta mulher está a dizer!». Mesmo as pessoas mal tratadas dentro da família continuam com o discurso interiorizado de que a família é o local mais quentinho do mundo e o melhor e aquele que nos apoia. Ainda que levem pancada e vão parar ao hospital todos os dias. Penso que o controle da sexualidade passa pela tentativa de impor esta estrutura social ao ser humano. E que, melhor do que qualquer outra instância, a religião assumiu esse papel.
O conceito de família está em mudança. Hoje em dia, não só aceitamos como vivemos novas modalidades de família.
É o mesmo modelo de família repetido, igual. É mais do mesmo. Vou, com a mesma estrutura, fazer o mesmo, a ver agora se sou feliz. Como se só ali houvesse possibilidade de se ser feliz. Ser feliz é: ter uma pessoa de outro sexo ali ao lado, coabitar com essa pessoa, provavelmente reproduzir com essa pessoa. Vai tentando este cardápio com diferentes pessoas para ver se acerta. Dificilmente a maior parte de nós, educados nesta cultura, aceita que a felicidade pode ser encontrada sozinho. Ou sem filhos.
Disse que estamos a falar desde o princípio de amor. Quando se fala de homossexualidade parece que se fala exclusivamente de sexualidade e não de amor – este é, de resto, um estigma muito comum.
É engraçado que diga que se fala como se fosse um problema sexual, porque o que tenho visto escrito e dito por muitos colegas é que é um problema de amor. Que a homossexualidade é um problema que tem a ver com a incapacidade de amar. O que eu acho, perdoem-me os colegas, um perfeito disparate.
Colegas seus?
Psiquiatras, psicólogos, psicanalistas.
Uma incapacidade de amar uma pessoa de sexo diferente?
Incapacidade de amar, ponto. Daí a ideia generalizada de que as pessoas que gostam de outras do mesmo sexo não conseguem relações estáveis. Claro que isto já tem para trás um preconceito: o de que as relações têm de ser estáveis. E um outro preconceito que a psicologia trouxe: só a estabilidade de uma relação dá estrutura e segurança psicológica. E agora terei outros tantos colegas a dizer que estou louca. Cada passo que é dado, é dado com um quadro de leitura por detrás que rigidifica a possibilidade de escolha.
Falávamos de amor-sexo e da incapacidade de amar que os seus colegas atribuem ao homossexual.
Uma pessoa que ama outra do mesmo sexo tem muita dificuldade, nesta nossa estrutura social, primeiro, em aceitar este seu sentimento; vai passar por um caminho de espinhos, dolorosíssimo.
Porquê?
Porque organizamos o mundo cá dentro em função do exterior. Toda a nossa interioridade vai ser um espelho deste exterior. Muito cedo se define o que é dos meninos e o que é das meninas. Nos infantários as brincadeiras estão estruturadas para os meninos de uma maneira, para as meninas de outra. Entra em qualquer quarto de bebé e sabe se o bebé que lá vive é um menino ou uma menina.
Esse processo é muito vincado. O que é, em si mesmo, revelador.
Porquê? Porque das imensas perspectivas e teorias que existem sobre a explicação da homossexualidade (e que as pessoas têm tanta vontade de explicar, em vez de procurarem explicar o porquê da rejeição), uma das grandes teorias defende que os pais constroem os filhos. É preciso educá-los de forma a que não sejam homossexuais. É engraçado: se se parte do pressuposto que há formas na educação de evitar que se seja homossexual, está a admitir-se que se possa ser.
Voltemos à incapacidade de amar.
A criancinha desde muito cedo vai pensar-se a si própria como o mundo que vê. No dia em que percebe que não é igual ao mundo que vê, isto significa o quê? Que até que perceba que não é heterossexual, na cabeça dela, é-o. Até que saibamos que o nosso filho é homossexual, ele é heterossexual. A primeira expectativa que temos em relação a um ser que aparece no mundo...
É que corresponda à norma.
Quando não corresponde, é muito difícil. São anos e anos a negar-se a si próprio, na maior parte dos casos. A injuriar-se, como ouve dizer que deve ser feito às pessoas que têm aquele sentimento: é pecado, não deve ser assim, é contra a natureza, é uma aberração. A pessoa pensa: eu não posso ser um pecador (ou pecadora), eu não posso ser uma aberração, eu não posso ser uma pessoa que deve ser morta. Em quantas casas se ouve: «Esses gajos e essas gajas! Se isto se passasse com um filho meu, matava-o!».
Acha que se mata? A reacção dos pais, hoje, pode ser ainda tão violenta?
Pode. Pode não matar de facto, não matar o corpo, mas matar a relação em absoluto. Hoje, Setembro de 2003, digo-lhe que há pais que põem os filhos imediatamente fora de casa, mudam a sua vida em absoluto porque não se conseguem rever numa família onde aquilo aconteceu. Estamos a falar de um percurso dificílimo, em que a primeira fase é negar. Ou então perceber que não se pode negar, mas assumir todas estas coisas que estão à volta.
É por isso que frequentemente a auto-estima dos homossexuais é muito baixa?
Se viveram isto desta maneira, sim. A sensação é: não presto, Deus não me aceita, sou um pecador, sou uma anomalia. Se consegue ultrapassar esta fase, a outra pode ser: «Bom, se calhar sou só diferente». Mas é um salto muito grande. E é um salto que, sem nenhum tipo de ajuda, dificilmente se dá. E o não dar – e isto é muito importante que se diga – não significa que a pessoa não viva a sua homossexualidade, não sinta e não tenha práticas sexuais.
Nasce-se homossexual? Fica-se homossexual? Quando é que a pessoa percebe que é homossexual?
Pode acontecer em qualquer altura da vida. Muito cedo, muito tarde.
Peguemos no exemplo de um menino de oito anos que brinca continuamente com meninas e que tem trejeitos efeminados. Vulgarmente diz-se: «Vai dar em maricas». É possível perceber numa criança que a sua orientação sexual vai ser uma determinada?
Dessa maneira não. Dessa maneira é possível ajudar essa criança a ler-se como homossexual. A sociedade está a alimentar um estereótipo que é o do género. Se este menino gosta das brincadeiras que as meninas gostam, significa que vai ter os sentimentos que as meninas têm. As outras coisas vêm por arrasto. É um disparate! Percebo que isto não seja uma resposta clara à sua questão e, sobretudo, a muitos pais, isto não tranquiliza nada. Mas independentemente do tipo de educação, da forma de vida, dos hábitos quotidianos, as pessoas são homossexuais ou heterossexuais. Em todas as culturas há pessoas que desde que nasceram até que morreram sentiram atracção por pessoas de sexo diferente do seu ou atracção por pessoas de sexo igual ao seu. E pessoas que sentiram atracção por pessoas, independentemente do sexo que têm. Há qualquer coisa inerente ao ser humano? Acho que há. Onde está, não sabemos, e não sei se interessa. Interessará do ponto de vista heurístico. O problema é depois o que se faz com isso.
As pessoas têm uma grande fixação nisto, se é uma questão biológica, se é uma questão cultural, se é uma questão familiar. Procuram detectar a raiz do problema para, pelo menos, se sossegarem.
Problema, está a ver? Tocou da forma chave nesta questão. Porque é que se quer tanto saber? Primeiro porque é considerado um problema, segundo para detectar a raiz, terceiro para curar. O erro inicial é pensar-se que é um problema! Quando há uma falta de entendimento relativamente à diferença é a pessoa que lê que tem um problema. Não é o diferente. A questão a pôr é: «O que é que se passa comigo que não me permite lidar com a diferença?»
Na etiologia da homossexualidade percebemos o cruzamento de factores genéticos, psicológicos, culturais?
Sim. Nasce-se pessoa. E nasce-se sexuado. E nasce-se com capacidade de amar. Ponto. Quem vamos amar? Como vamos amar? Com que idade vamos amar? O que é que podemos fazer quando amamos? É pela vida fora que tudo isso se constrói. Mas depois, há coisas que são irreversíveis. Dificilmente conseguirá – a não ser contra a natureza, e por natureza entenda-se estrutura, forma de sentir e de viver da pessoa – transformá-la numa coisa que ela não é. Oiço muitas pessoas que têm uma estrutura de vida pautada pela heterossexualidade dizerem: «Está bem, mas podia controlar-se!»
Em nome de quê?
Não sei. Estas pessoas dizem isto para elas próprias. Poderiam não ser heterossexuais? Poderiam controlar-se e viver de outra maneira? A questão levanta-se da mesma forma.
Um aspecto que causa perplexidade, sobretudo às famílias, é haver um filho cuja orientação sexual é diferente da dos irmãos. Porque os genes serão os mesmos, a família será a mesma, o tipo de educação e envolvência social serão os mesmos.
Quatro filhos são quatro seres diferentes. Com combinações genéticas diferentes. A educação, por mais semelhante, nunca é igual, porque as pessoas não são iguais.
Produz um efeito diferente porque é uma pessoa diferente, mesmo que receba a mesma informação?
Não é só isso. O todo é mais que a soma das suas partes. E disso não temos controle. Obviamente, como a Igreja diz, é possível dizer: «Os senhores não se vão relacionar com ninguém». Agora, dizer assim: «Os senhores e as senhoras não vão amar», não pode!
A adolescência é o período em que se descobre a sexualidade e em que as coisas se definem na maior parte dos casos?
Não.
O Relatório Kinsey, em 1953, apontava a seguinte estatística: 37% dos homens tinham experiências homossexuais na adolescência e apenas 4% eram homossexuais exclusivos. É uma diferença abissal.
Não sei quando se define a sexualidade. É na adolescência, com uma capacidade de usar o pensamento formal, que se começa a pensar na sexualidade. E o corpo, as hormonas começam a permitir-nos sentir outras coisas. Há uma permissão social para que naquela fase etária se experimente. Aqui vai-se definindo o que se sente, o que se pode fazer... Mas encontramos muitas pessoas que aos 40, 50 anos dizem: «Vivi a vida toda a ser quem não era. Tenho uma sexualidade que não é a minha. Sou capaz de muitas outras coisas que não consigo experimentar com a pessoa com quem vivo. Esta foi a vida que todos esperaram de mim e portei-me como toda a gente esperou que me portasse. Dava-me prazer corresponder. Mas no fundo, no fundo, nunca senti assim». E há pessoas que têm a coragem, nesta altura, de transformar empregos, de transformar a família. A coragem, sublinho; porque poderia ser lido de outra maneira.
Poderia ser lido como «disparate».
Ou egoísmo.
«Agora que foi para velho deitou tudo a perder».
Cá está novamente o cardápio. E mais: rigidifica etapas da vida, mata-nos antes de morrermos. Há pessoas que encontram uma determinada maneira de viver a sexualidade aos 15 e depois modificam-na aos 40 ou aos 50, ou aos 30 ou aos 20.
Quando a modificam aos 30 ou 40 anos não significa forçosamente que não tenham sido felizes antes.
Exactamente! É importantíssimo que diga isso.
É verdade que os homens, uma vez que experimentam relações homossexuais, não voltam às heterossexuais?
Não sei se pode generalizar.
Conhece algum homem que tenha tido uma relação homossexual e que tenha voltado a um comportamento heterossexual?
Não sei se dizia «voltar». Isso, numa determinada visão, caracterizaria a bissexualidade. Que é marcada passo a passo. Uma pessoa bissexual é a que se vai apaixonando ou vivendo a sua sexualidade ora com um homem ora com uma mulher. É marcada pela indiferença clara de que sexo tem o outro.
A bissexualidade ainda causa uma maior estranheza que a homossexualidade?
Causa.
A homossexualidade, como a heterossexualidade, são definidoras de um território. A bissexualidade é um estar entre os dois, é um não saber o que se quer. A leitura é essa.
Precisamos de previsibilidade. É difícil não saber o que se vai passar com a vida do outro. E isto é no mais comezinho do dia-a-dia: se for à mercearia, as pessoas estão a falar do outro que fez alguma coisa com que não estávamos a contar. É o que nos surpreende e deixa inquietos.
A insegurança do desconhecido.
Temos tendência a dizer: «É uma pessoa excelente. Podemos sempre contar com ela». Uma coisa muito valorizada, e que depois ninguém tem, é a constância. A constância dá uma aura de boas pessoas. Porque não enganam. Quem é assim? Traga-me o primeiro!
O bissexual tem normalmente uma preferência por um dos sexos?
Pode ter ou não ter. Não há regra. O ser bissexual é o ser que efectivamente usa as suas potencialidades. Tanto um ser homossexual como um ser heterossexual são limitados.
Freud dizia que somos todos potencialmente bissexuais.
Freud falava do perverso polimorfo. O que ele dizia era: todos nascemos bissexuais, mas depois, se nos desenvolvermos de uma forma adequada, tendemos para a heterossexualidade. É esta segunda parte que limita o discurso. O ser humano vai viver como? Com que regras? O tender para a heterossexualidade tem a ver com uma adaptação cultural.
Podemos considerar bissexual uma pessoa que tem uma relação emocional e sexual com alguém de sexo diferente e uma relação exclusivamente sexual com alguém do mesmo sexo?
Está a pedir-me para entrar naquilo que é a senda de maior polémica...
O que é que define os territórios? É-se homossexual, heterossexual, bissexual em função do pensamento, da prática, do desejo? Em função daquele que se ama, se deseja, com quem se tem relações sexuais?
Vai encontrar um estilhaço de teorias.
Qual é a sua?
A minha é aquela que cada pessoa definir. Só cada um é que sabe o que é. E só cada um é que sabe o que quer ser. Por exemplo, um homem que ama uma mulher, tem filhos dela, vive lindamente com ela, e às quartas-feiras à tarde tem uns encontros com uns rapazes, e adora aquilo.
É homossexual, é bissexual, é o quê?
Não sei! Perguntamos-lhe. Ele é que se vai definir. Se ele disser que é heterossexual tenho que lhe dizer que não porque, como gosta de rapazinhos, é homossexual? Então se tem uma relação óptima com uma mulher, se a ama... Se ele disser que é homossexual, eu digo-lhe que não?
Imagine que pode ter com a mulher uma relação que é mais afectiva e com os rapazes uma relação que é mais sexual...
O que é que o vai definir do ponto de vista da orientação? É o afecto ou é o prazer sexual? Ele é que sabe. A diversidade de situações vai fazer com que, se entrarmos pela questão tecnicista ou pela autoridade da medicina ou da psicologia ou da psiquiatria ou da psicanálise, sejam os técnicos a definir. Então, cada um vai definir à luz da sua grelha de leitura e acontece o seguinte: se for à pessoa X, a pessoa X diz-lhe que é homo; se for à pessoa Y, a pessoa Y diz-lhe que é hetero.
Para si todos os registos são válidos desde que as pessoas se revejam e se sintam bem neles?
É isso. Há um valor que tenho: o valor do direito do terceiro. A única regra aqui é não violar o espaço da outra pessoa. A única regra da sexualidade em geral é a do consentimento com consciência. E por isso o desvio quando falamos de abusos sexuais de crianças ou de pessoas que não têm capacidade de raciocinar. Gostava de lhe dar uma definição de homossexual ou de heterossexual, sabe? Mas não tenho.
Tinha antes de fazer a tese de doutoramento?
Ah, tinha! A sexologia tem imensas. Era muito simples. O homem de quem estávamos a falar, provavelmente porque o que há de constante é o hetero e a exclusão é o homo, diria: «Talvez seja homossexual». Lembro-me de perguntar às pessoas: «Em quem pensa com mais frequência? Homens ou mulheres?»
A pessoa pode pensar mais numa e desejar outra?
Pode. Pode gostar-se muito da pessoa X mas desejar a pessoa Z. O desejo e a constância do desejo determinavam a orientação sexual. A maior parte da bibliografia diz isto.
Evidentemente é possível ter uma relação sexual com uma pessoa e fantasiar com outra, e isto é válido para heterossexuais e homossexuais. Mas, insisto, o que é que prevalece, é a intensidade do desejo e da fantasia?
É o que a pessoa quiser. O que importa é aquilo a que a pessoa der mais valor.
É de uma indefinição absoluta! Não acha que as próprias pessoas precisam de se agarrar a uns quantos cânones na tentativa de se sentirem menos perdidas?
Pois precisam! Até conseguirem viver com isto. A grande dificuldade do homem é ser livre, é poder escolher. Então, se sinto assim, vivo assim e quero viver assim, o que é que faço? Eu tenho o direito e a possibilidade de escolher. E se calhar a obrigação. É muito mais fácil se me derem o guião... Assim não tenho que escolher. Pode ser complicadíssimo cá dentro, isso já é outra questão; mas tenho regras pré-definidas, não me culpabilizo.
É extraordinário que estejamos a falar há duas horas e não tenhamos abordado a culpa!
É verdade! A culpa aparece em todo o sentir que não devia lá estar. E não quer dizer que não se faça. Faz-se.
Há ainda as situações em que a pessoa sente e deseja, mas não pratica.
Claro. A religião usa muito isso. E sabe tão bem que se peca por pensamentos e omissões... Estão lá. A culpa funciona no medo. Mas acho que funciona pouco. A maior parte das pessoas, quando assaltada por um desejo forte, acaba por agir em função desse desejo. Na maior parte dos casos, não da melhor maneira. Acontece relativamente à homossexualidade, por exemplo: a pessoa sente que não pode desvirtuar a família, não se pode desvirtuar a si próprio em relação aos seus valores, e faz coisas de altíssimo risco.
E como renegar a culpa e enfrentar o medo?
Ah! Se tivesse resposta... Gostava muito de ter resposta para essa questão.
Outro exemplo: uma pessoa tem já uma família constituída quando descobre que a sua orientação sexual é outra. Pensa nos filhos: «vão achar que sou uma fraude. Construíram uma imagem do pai ou da mãe e agora, afinal, sou outra coisa». Deve ser muito complicado desestruturar e voltar a estruturar tudo.
É muito complicado. Mas olhe que deu a resposta à pergunta que fez: é preciso desestruturar e estruturar tudo.
Tem absolutamente de ser assim? Faz sentido viver uma vida dupla? «Tenho uma vida feliz com a minha mulher e depois às quartas-feiras à tarde vou ter com os rapazes...»
Não tenho uma resposta única. Há pessoas para as quais isso seria complicadíssimo. Há pessoas para as quais é a saída. Há pessoas que teriam que rebentar com tudo. Depende.
A despeito da aceitação da homossexualidade, a questão da família e dos filhos, a institucionalização da união, merecem muitas reservas.
Os filhos são o analisador último do efectivo entendimento. Usou uma palavra importantíssima, que é «aceitar», e não «entender». Muitas pessoas não vão conseguir entender nunca.
É uma incapacidade de base?
Pode ser. Na estrutura que a pessoa tem pode não haver a capacidade de entender. Há pais que com toda a sua moldura de vida, jamais terão abertura face ao novo. Nunca poderão entender, mas podem aceitar. Acho que este é o esforço que alguns pais poderão fazer por amor aos filhos. Quem ama aceita.
E amam da mesma maneira? Um pai ou uma mãe podem amar menos um filho porque ele confessa a sua homossexualidade?
Podem. Não sei bem o que é que acontece ao amor, mas a relação pode ser mais difícil. Terão que fazer o percurso de dor, sofrimento, isolamento, até de alguma destruição interna e de reelaboração que os próprios filhos tiveram que fazer. Uma família que sempre se viu de uma dada maneira, que sempre se projectou com determinado tipo de objectivos para os seus filhos e para si próprios, e que tem uma visão da homossexualidade com aqueles adjectivos terríveis que se ouve por aí...
Muitos pais alimentam a ilusão de que é uma coisa passageira, que com umas idas ao psicólogo de volta ao «bom caminho»…
Se se é, é. Não se muda. O bom caminho é poder ter uma vida digna sendo-se quem se é. Tanto os pais como os filhos podem ser ajudados nesse sentido. A serem salvos de uma visão destruidora e negativa de si próprios por terem este sentimento. Um sentimento que sempre ouvi dizer que era nobre, o amor.
É possível falar de diferentes homossexualidades? A masculina é diferente da feminina?
A sexualidade de cada pessoa é a de cada pessoa.
Mas é diferente o modo como a homossexualidade masculina e feminina são vistas socialmente? «Duas mulheres juntas é muito excitante. Dois homens juntos é uma aberração». É um discurso que se ouve frequentemente, sobretudo nos homens.
Nos homens! Muitas mulheres dir-lhe-ão o contrário. A elas, dois homens não faz impressão nenhuma, mas já duas mulheres... Porque o homem já é diferente de mim. Entendemos melhor o muito diferente do que o um bocadinho diferente. O muito diferente não tem nada a ver connosco. Duas mulheres juntas já é uma coisa mais próxima de mim. Tenho que renegar porque estou mais próxima de poder ser aquilo. Por isso é que se assistiu na História (e, olhe, estamos neste momento a assistir a isso) à estigmatização da homossexualidade ligando-a a várias outras coisas: ao abuso sexual, ao crime...
Para poder ser aberração?
Exacto. Se é homossexual mas também é criminosa, se destrói crianças, é uma coisa com que não terei nada a ver. Se é só uma pequena nuance, está muito próximo de mim. Por isso tendemos a transformar o diferente no infinitamente diferente. Para não nos tocar.
Na sociedade portuguesa a homossexualidade masculina está muito mais visível e assumida. Porque é que a feminina continua muito escondida?
Habitualmente as mulheres gostam de relações mais a dois, mais fechadas. Valorizam muito mais a exclusividade. Quando junta duas mulheres tem isto hiperbolizado. O que estou a dizer não tem nada de novo. Mesmo nas relações heterossexuais, muitas vezes isto acontece. «Foi a um jantar, não me convidou. O que é que isto quer dizer?» Este problema da fusão é muito mais habitual numa relação entre duas mulheres do que entre dois homens. Por exemplo, os homens têm tendência a ter mais relações extra-conjugais. Os homossexuais e os heterossexuais.
Significa que o facto de não vermos a homossexualidade feminina tão assumida como a masculina tem que ver com a natureza da relação?
Não. Tem mesmo a ver com o modo como lemos. Como é muito mais rejeitada a homossexualidade masculina... É muito mais rejeitado que um homem se porte como uma mulher – e ainda há muito esta ideia de que a homossexualidade e a feminilidade estão associadas. Dois homens juntos chamam mais a atenção do que duas mulheres juntas.
Faz sentido dissecar alguns rótulos? Há mesmo as camionistas e as hiper-femininas entre as lésbicas? Os gays e os bichas entre os homossexuais masculinos?
Está a falar da linguagem, não está a falar das pessoas.
Também estou a falar das pessoas porque julgo que a adopção da linguagem tem que ver com um determinado comportamento.
Os termos têm menos a ver com as pessoas do que com a classe social que os usa. Ou seja, não é o gay que é diferente do... Nem gosto de dizer os outros nomes. Há tanta coisa que se diz, mas tanta, que é do visível. Há muito mais diversidade no invisível do que a monotonia do visível.
O exibicionismo no visível tem que ver com quê?
Não sei bem o que quer dizer exibicionismo. Quando é que é exibicionismo? Quando a pessoa se apresenta muito diferente?
Sim. Neste contexto quer vulgarmente dizer que exibe a sua preferência e a sua orientação de forma ostensiva.
Di-lo? Como é que exibe?
No comportamento.
E como é que exibe?
Eu sei onde quer chegar.
Não, não. Estou mesmo a tentar perceber qual é o comportamento de que fala.
Assumindo trejeitos femininos, assumindo um comportamento que é de mulher.
Isso não é um comportamento homossexual. Está a falar-me de exibir a capacidade de ultrapassar a sua fronteira de género. Porque é que alguns homens, que também são homossexuais, gostam de ter um aspecto, de se vestir e de ter jeitos que se diria pertencer às mulheres? Olhe, a única coisa que sei dizer é que é porque gostam.
Não será que o fazem, também, porque aprenderam que ser homossexual era ser isso?
É verdade que podem ter aprendido isso, mas também é verdade que podem gostar disso e portanto não estão a exibir coisa nenhuma, é a sua forma de estar. Da mesma forma que se diz da mulher: «Porque é que ela anda de mini-saia, de botas de salto alto, de fatos justos, porque é que se está a exibir?» Apetece-lhe andar assim, porque é que se está a chamar àquilo exibição? A exibição está mais no olhar de quem vê do que de quem faz. O incomodar-me é da minha responsabilidade. Tenho de perceber porque é que aquele comportamento me incomoda. Sobretudo quando não me põe em causa.
Sobre os filhos nos casamentos gay: o que é que acontece – e este acontece quer dizer às referências, à personalidade – a uma criança que é educada por um casal homossexual, quer masculino, quer feminino? Existe uma diferença se o casal for constituído por duas mulheres ou por dois homens?
Habitualmente estas crianças não têm diferenças significativas quando comparadas com crianças educadas por casais heterossexuais ou que vivem em heterossexualidade. Esta é a primeira grande conclusão de todos os estudos que foram feitos – e são muitos! As pessoas sempre perguntam: terão estas crianças maior probabilidade de virem a ser homossexuais?
A sério que é essa a pergunta que fazem?
É. São os medos que as pessoas têm.
Pensei que se perguntassem pelas referências do masculino e do feminino.
Qual é o problema de um homem ser efeminado? O verdadeiro problema é se ele vem a ser homossexual. O verdadeiro problema de uma mulher ser muito masculina é se ela se torna homossexual. Mas a grande pergunta é sobre a probabilidade de a criança vir a ser homossexual.
Então e as referências do masculino e do feminino? É importante para uma criança ter a figura do pai e a figura da mãe, não é?
Essa era a grande questão que ainda não estava cá colocada! Eu acho que uma criança precisa de ter figuras importantes.
Que não têm de ser um homem e uma mulher?
Não. É sempre, sempre, sempre o argumento. E esse não tem a ver com a religião. Tem a ver com a psicanálise. Qual é o modelo de mãe da época de Freud? Afecto, dedicação, compreensão, carinho, cuidado, segurança, pratos, alimentação. Qual é o modelo de pai? A segurança a outro nível, autoridade, definição de limites. Isto é o que as crianças têm de ter. Agora se quem dá isto é o pai ou é a mãe, se são os vizinhos, se são os colégios... Quantas pessoas não foram criadas em colégios internos? Acha que todas aquelas pessoas que foram enfiadas em colégios internos têm traumas e são inadaptadas?
E socialmente, como é que se faz? Dentro de portas será mais fácil gerir este novo modelo. Mas, e a relação com o exterior, com os outros meninos que têm pais e mães convencionais, chamemos-lhes assim?
E os que não têm pais nem mães? A diversidade não é uma invenção de agora em que se reclama a diferença. A diversidade está aí. Quando faz a pergunta dessa maneira está a pensar em escolas do centro da cidade. Basta ir às periferias e no meio de 20 alunos, 15 vivem com tios, primos, vizinhos. Estes meninos têm esta diferença. Mas provavelmente vivem muito melhor porque têm dois adultos, independentemente do sexo desses adultos, que lhes dão tudo o que precisam: carinho, afecto, dedicação, construção, atenção, acompanhamento.
Porque é que se faz esta associação tão linear e imediata da homossexualidade à pedofilia? Porque são homens? Segundo os dados estatísticos, as raparigas são muito mais abusadas do que os rapazes.
Ser homossexual era ter todos os defeitos e mais um. Esta ligação da homossexualidade a tudo o que é perverso ou desviante ou mal entendido, não começa agora. Estamos a assistir outra vez à visibilidade de um discurso que já estava um bocadinho em off. Se formos aos anos 50 isto era o que havia de mais comum. Todos os abusadores eram homossexuais. Ser homossexual era ser abusador. O que caracteriza a pedofilia é a atracção que uma pessoa tem por crianças até à idade de 12, 13 anos. O que se faz com isto... Claro que me pode dizer: um pedófilo não terá tendência a praticar? Claro que sim, mas pode ter princípios.
Há pedófilos que não praticam?
Pois há. Estamos aqui a falar de uma coisa que na homossexualidade não se levanta.
O consentimento.
Exactamente. O consentimento consciente. Não há que confundir uma coisa com a outra. Nos jornais, como é que se fala destas pessoas que cometeram abusos? Pedófilos. Mas nem todos os pedófilos são abusadores. Chamar a um abusador pedófilo é retirar-lhe o peso brutal de ser um criminoso. Esta é a principal das questões: é preciso colocar o crime no lugar do crime. Este processo de aglutinação de duas palavras é muito perigoso. Pedofilia é uma palavra muito técnica. A melhor maneira de lhe dar leitura popular é juntá-la com outra que tenha força e transformá-la numa só. Se misturar aqui a homossexualidade, está a ver o caldinho? É misturar mais uma coisa, é o horror dos horrores, é voltar a trazer um fantasma que estava minimamente calado.
Num jantar de amigos perguntava-se aos presentes que orientação sexual preferiam para os filhos, no caso de a poderem escolher. Todos responderam que preferiam a heterossexual, nem que fosse para que o filho não sofresse os estigmas que os homossexuais sofrem. A sua resposta foi surpreendente: disse que antes de ter começado a estudar o tema provavelmente teria respondido da mesma maneira, mas que agora lhe é completamente indiferente.
É. Penso que esse discurso do querer proteger e por isso preferir a heterossexualidade ainda tem uma réstia de não entendimento. Se for mãe de alguém que é homossexual, vou ajudar a minha filha, apesar do contexto onde está, a viver bem com a sua forma de amar. Acho importante fazer parte de um contexto de mudança social. Sobretudo quando se tem convicções, e eu tenho-as fortemente. Esta estrutura social, com esta noção de família, põe a submissão a uma forma de vida acima do sujeito. Estou convencida de que o sujeito está acima destas submissões. Isto nem sequer é uma coisa especificamente relativa à homossexualidade. É uma coisa que tem a ver com o respeito pelo ser humano, por cada um na sua individualidade.
Foi isso que a fez estudar este tema?
Podia ser qualquer tema relativamente ao qual se estigmatiza o outro. Podiam ser questões de raça, podiam ser questões profissionais, podia ser o género, a masculinidade e a feminilidade. Tudo aquilo que faz com que se mantenha uma regra social a ponto de a considerar mais importante que o indivíduo.
Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em Setembro de 2003